Um diálogo com Janus: reflexões sobre a regulação dos produtos de tabaco no Brasil

André Luiz Oliveira da Silva Josino Moreira Sobre os autores

O controle do tabaco no Brasil é um dos casos de maior sucesso global de uma política de saúde pública, considerando a redução no número de fumantes e das doenças tabaco relacionadas obtidas nas últimas décadas (GBD 2015 DALYS AND HALE COLLABORATORS, 2016).

Contudo, apesar do sucesso destas políticas, antigos e novos desafios regulatórios coexistem de forma interdependentes, como, por exemplo, as propagandas sedutoras (apesar de proibidas) e o uso de tabaco em ambientes coletivos convivendo com novos desafios como a utilização das redes sociais para divulgação e venda desses produtos e os novos dispositivos eletrônicos para fumar.

Por essas razões o controle do tabaco nos remete ao deus Janus da mitologia romana, entidade que possuía duas faces, uma jovem voltada para a frente (o futuro) e outra de um ancião voltada para trás (o passado). Esta entidade era considerada o deus dos inícios e dos finais, das transições e das mudanças, ligado também aos conflitos e a paz, assim como era o senhor dos portões por onde passavam os soldados. Janus também representava o progresso do passado para o futuro, a mudança de uma visão para outra e o amadurecimento da infância para a idade adulta (AUGUSTINE, 2012AUGUSTINE, S. The City of God. [s.l.] New City Press, 2012.; FAIRBANKS, 1907FAIRBANKS, A. The Mythology of Greece and Rome. Reprint edition ed. New York: D. Appleton and Company; Reprint edition (1907), 1907.; MORFORD; LENARDON; SHAM, 2013MORFORD, M.; LENARDON, R. J.; SHAM, M. Classical Mythology. 10 edition ed. Oxford ; New York: Oxford University Press, 2013.; SCULLARD, 1981SCULLARD, H. H. Festivals and ceremonies of the Roman Republic. [s.l.] Cornell University Press, 1981.).

A utilização da metáfora do deus romano nos ajuda a compreender os desafios da regulação destes produtos e nos auxilia a encontrar caminhos de como ela pode ser aprimorada, considerando a evolução científica e tecnológica dos produtos de tabaco, as realidades diversas do Brasil e as estratégias da Indústria do Tabaco (IT), onde o passado aponta para o futuro e este orienta o presente, da mesma forma que as faces de Janus dialogam e nos convocam à prudência e ao amadurecimento, em um ambiente onde os interesses econômicos concorrem com os interesses da saúde pública, gerando um permanente conflito entre os atores envolvidos.

A própria regulação dos produtos de tabaco no âmbito da Vigilância Sanitária (VS) é um exemplo disso. A VS é, certamente, um dos campos mais antigos da saúde pública e sua história confunde-se com a própria história da civilização humana. As civilizações egípcia, chinesa, hindu, grega e romana trazem registros de ações de VS, especialmente na área do controle de alimentos (RADOMÍR LÁSZTITY; PETRO-TURZA, 2009RADOMÍR LÁSZTITY; PETRO-TURZA, M. History of food quality standards. In: RADOMÍR LÁSZTITY; FOLDESI, T. (Eds.). . Food quality and standards - Volume I. Encyclopedia of life support systems ; Food and agricultural sciences, engineering, and technology resources. Oxford, U.K: Eolss Publishers, 2009. p. 62-77.). Alguns autores vão ainda mais longe e indicam que a Bíblia, especialmente nos livros do Levítico e Deuteronômio, poderia ser considerada como um código sanitário e seria assim, portanto, um dos mais antigos regulamentos sanitários existentes (regulação de alimentos) (WENDY ANN WILKENFELD, 1998).

Por outro lado, a regulação dos produtos de tabaco somente começou a fazer parte do escopo de atividades da VS no Brasil em 1999, com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), através da Lei 9782/1999. Tal fato fez com que o Brasil fosse o 1º país do mundo a mandatar uma Agência Reguladora na área da saúde (usualmente nos demais países esse controle era feito diretamente pelos Ministérios da Saúde) para regular produtos de tabaco. Os Estados Unidos somente incluíram o tabaco no escopo de regulação de sua agência reguladora da área da saúde em 2009. (UNITED STATES OF AMERICA, 2009).

As transições e conflitos do qual Janus governa com suas faces podem ser ilustradas pelo caso da proibição de uso de produtos de tabaco em ambientes fechados. Isto porque apesar de somente em 2011 (BRASIL, 2011) terem sido estabelecidos padrões mais restritivos de uso em ambientes coletivos, esta é uma política que pelo menos desde 1996 (BRASIL, 1996) já vem sendo adotada e desde então vem sendo aprimorada gradativamente, seja por meio de alterações legais ou decisões judiciais, apesar das tentativas de reversão destas políticas. O caso do uso de produtos de tabaco nas aeronaves talvez seja o mais emblemático depois da Lei 9294/1996, pois o antigo Departamento de Aviação Civil pública em 1997 uma Portaria permitindo uso destes produtos após a 1ª hora de voo. A justiça, em 1998, concede liminar derrubando a portaria e desde essa época é proibido fumar nas aeronaves no Brasil.

Entretanto, apesar de bem estabelecida e entendida pela população, o aumento do consumo do narguilé, especialmente entre os jovens (BERTONI et al., 2019BERTONI, N. et al. Electronic cigarettes and narghile users in Brazil: Do they differ from cigarettes smokers? Addictive Behaviors, v. 98, p. 106007, 29 maio 2019.), tem sido uma ameaça às políticas de proibição do fumo em ambientes coletivos, pois estes produtos usualmente são utilizados em bares, restaurantes e outros locais coletivos a despeito da proibição legal. Além disso, ao apresentarem aromas agradáveis e uma aura exótica, reduzem a percepção negativa e o incomodo causado e facilitam a iniciação de crianças e adolescentes ao tabagismo, apesar de seus danos à saúde e sua capacidade de causar dependência serem significantes (MINISTÉRIO DA SAÚDE; INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA, 2019).

No Brasil, foram estimadas em 15,35% as taxas de prevalência para cigarros convencionais, enquanto que para o narguilé e para os cigarros eletrônicos as taxas são de 1,65 % e 0,43% respectivamente (BERTONI et al., 2019BERTONI, N. et al. Electronic cigarettes and narghile users in Brazil: Do they differ from cigarettes smokers? Addictive Behaviors, v. 98, p. 106007, 29 maio 2019.), que apesar das taxas dos dois últimos serem significantemente inferiores ao do cigarro convencional, ambos têm potencial de crescimento em seu consumo, especialmente entre os mais jovens (MARTINS et al., 2019MARTINS, S. R. et al. Narguilé, uma forma de consumo de tabaco em ascensão. Jornal Brasileiro de Pneumologia, v. 45, n. 5, 2019.; SILVA et al., 2019aSILVA, A. L. O. DA et al. Por que os cigarros eletrônicos são uma ameaça à saúde pública? Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 6, 2019a.) e assim reverter as políticas de controle do tabaco, caso medidas efetivas deixem de ser tomadas.

Apesar dos produtos de tabaco do tipo narguilé serem produtos antigos, a incorporação do uso de aditivos de sabor é recente e sua popularização no Brasil ocorreu na última década (MINISTÉRIO DA SAÚDE; INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA, 2019; REVELES; SEGRI; BOTELHO, 2013REVELES, C. C.; SEGRI, N. J.; BOTELHO, C. Fatores associados à experimentação do narguilé entre adolescentes. Jornal de Pediatria, v. 89, n. 6, p. 583-587, dez. 2013.).

Em relação ao futuro, a face jovem de Janus observa as novas tecnologias chegando aos produtos de tabaco, no qual os Dispositivos Eletrônicos para Fumar apresentam uma miríade de formas e possibilidades, que vão desde a capacidade de atender telefonemas ao uso de formas de nicotina com maior capacidade aditiva, enquanto a face anciã de Janus observa o retorno das propagandas de produtos tabaco, a renormalização e a glamourização do fumar que estes novos dispositivos trazem de volta.

Assim sendo, devemos invocar o deus bifronte para auxiliar-nos no aprimoramento regulatório de uma área onde o passado, presente e futuro coexistem e a experiência nos mostrou que o controle do tabaco não é uma política de novos saberes e práticas substituindo os antigos, mas sim de coexistência destes. O mesmo se aplicaria as estratégias da IT.

Logo, estes produtos devem ser regulados de maneira única, sem exceções, sem ideias do novo “destruindo” o antigo, sem categorizações ou preferências e acima de tudo com precaução, especialmente em temas como, por exemplo, ambientes livres, uso de aditivos de sabor, uso destes produtos por menores de idade e propaganda.

Não se pode desprezar também neste processo que esta política é um permanente espaço de conflitos onde a IT a todo o momento tenta subvertê-la das mais variadas formas, como, por exemplo, com o uso de aditivos nos produtos de tabaco, que apesar do Brasil ter sido um dos primeiros países do mundo a proibir seu uso, até hoje essa proibição não foi efetivamente aplicada por uma série de manobras da IT (SILVA et al., 2019bSILVA, A. L. O. DA et al. The taste of smoke: tobacco industry strategies to prevent the prohibition of additives in tobacco products in Brazil. Tobacco Control, p. tobaccocontrol-2018-054892, 30 maio 2019b.).

Assim, a coexistência do passado, presente e futuro requer prudência e determinação para enfrentar os conflitos inerentes ao tema, não permitindo retrocessos nas políticas de controle do tabaco, seguindo o deus bifronte romano.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Este texto representa única e exclusivamente a opinião e os pensamentos dos autores, baseados nas evidências científicas disponíveis no momento, eles não representam qualquer diretriz e/ou opinião institucional da Anvisa, da Fiocruz, do Ministério da Saúde e/ou do Governo Brasileiro.

Referências bibliográficas

  • AUGUSTINE, S. The City of God. [s.l.] New City Press, 2012.
  • BERTONI, N. et al. Electronic cigarettes and narghile users in Brazil: Do they differ from cigarettes smokers? Addictive Behaviors, v. 98, p. 106007, 29 maio 2019.
  • BRASIL. Lei no 9.294, de 15 de julho de 1996.
  • BRASIL. Lei no12.546, de 14 dezembro de 2011.
  • FAIRBANKS, A. The Mythology of Greece and Rome. Reprint edition ed. New York: D. Appleton and Company; Reprint edition (1907), 1907.
  • GBD 2015 DALYS AND HALE COLLABORATORS. Global, regional, and national disability-adjusted life-years (DALYs) for 315 diseases and injuries and healthy life expectancy (HALE), 1990-2015: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2015. Lancet (London, England), v. 388, n. 10053, p. 1603-1658, 08 2016.
  • MARTINS, S. R. et al. Narguilé, uma forma de consumo de tabaco em ascensão. Jornal Brasileiro de Pneumologia, v. 45, n. 5, 2019.
  • MINISTÉRIO DA SAÚDE; INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Narguilé: o que sabemos? Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, 2019.
  • MORFORD, M.; LENARDON, R. J.; SHAM, M. Classical Mythology. 10 edition ed. Oxford ; New York: Oxford University Press, 2013.
  • RADOMÍR LÁSZTITY; PETRO-TURZA, M. History of food quality standards. In: RADOMÍR LÁSZTITY; FOLDESI, T. (Eds.). . Food quality and standards - Volume I. Encyclopedia of life support systems ; Food and agricultural sciences, engineering, and technology resources. Oxford, U.K: Eolss Publishers, 2009. p. 62-77.
  • REVELES, C. C.; SEGRI, N. J.; BOTELHO, C. Fatores associados à experimentação do narguilé entre adolescentes. Jornal de Pediatria, v. 89, n. 6, p. 583-587, dez. 2013.
  • SCULLARD, H. H. Festivals and ceremonies of the Roman Republic. [s.l.] Cornell University Press, 1981.
  • SILVA, A. L. O. DA et al. Por que os cigarros eletrônicos são uma ameaça à saúde pública? Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 6, 2019a.
  • SILVA, A. L. O. DA et al. The taste of smoke: tobacco industry strategies to prevent the prohibition of additives in tobacco products in Brazil. Tobacco Control, p. tobaccocontrol-2018-054892, 30 maio 2019b.
  • UNITED STATES OF AMERICA. Family smoking prevention and tobacco control and federal retirement reform. 22 jun. 2009, p. 1775.
  • WENDY ANN WILKENFELD. Food Regulation in Biblical Law. Monografia-Harvard: Harvard Law School, 27 abr. 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2019
  • Aceito
    12 Jun 2020
  • Revisado
    10 Out 2021
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