Resumo
Este estudo investigou como as condições socioeconômicas de mães que residem na área urbana de Cruzeiro do Sul, Acre, interagem com o acesso a alimentos, tendo como foco as motivações envolvidas nas escolhas dos locais de aquisição de alimentos e dos tipos de alimentos adquiridos. Os métodos de produção de dados empregados foram a entrevista em profundidade e observação participante com 20 mulheres, posteriormente classificadas em diferentes grupos socioeconômicos. A partir de análise de conteúdo identificamos quatro principais fatores considerados pelas participantes para pensar os alimentos e seus locais de aquisição: preço, variedade, praticidade e estratégias. Nossos resultados apontam que disparidades socioeconômicas influenciam o acesso a alimentos por meio da valorização de alguns aspectos em detrimento de outros no processo de escolha alimentar, culminando em distintas motivações e formas de aquisição de alimentos. Logo, em um nível local, o acesso aos locais de compra e a aquisição de alimentos são fortemente influenciados pelas condições socioeconômicas, fazendo com que as práticas alimentares de grupos socioeconômicos díspares se diferenciem de forma polarizada, como a valorização de alimentos regionais e a distinção destes em relação aos alimentos “de fora”.
Palavras-chave:
Pesquisa qualitativa; Ambiente alimentar; Sistema alimentar; Aquisição de alimentos; Acesso a alimentos
Abstract
This study investigated how the socioeconomic status of mothers living in Cruzeiro do Sul, Acre relates to food access, focusing on the interactions between socioeconomic status and motivations in the process of food choice and food acquisition. Thus the methodological approach chosen to collect data were in-depth interviews and participant observation with 20 women, which were later classified into different socioeconomic status groups. Through a content analysis method, we identified four main factors that mothers considered in the food choice and food acquisition processes: Price, Variety, Convenience, and Strategies. Our results emphasize that socioeconomic inequality influences food access through enhancing some aspects above others in the food choice process, ensuing in different motivations and ways to purchase food. Therefore, on a local level, access to food stores and food acquisition is deeply influenced by socioeconomic status, hence the different socioeconomic status groups’ eating practices contrasting very much polarized, such phenomenon is seen by the regional food valorization and the distinction of the regional food compared to the “outside” food.
Keywords:
Qualitative research; food environment; food system; food acquisition; food access
Introdução
É reconhecida, na literatura científica do campo da Saúde Coletiva, a importância de determinantes sociais11 A Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) define o conceito como os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (BUSS e PELLEGRINI FILHO, 2007). sobre diversos aspectos da saúde humana, dentre eles os que afetam a alimentação e a nutrição. Um enfoque comum aos estudos que investigam a relação entre condições socioeconômicas e importantes desfechos na saúde e em outros aspectos da vida é como o distinto acesso a recursos (financeiros, sociais, culturais) suscita oportunidades ou limitações para os diferentes sujeitos e grupos socioeconômicos conduzirem determinado estilo de vida, produzindo desigualdade entre eles (STEPHENS et al., 2014STEPHENS, N. M.; MARKUS, H. R.; PHILLIPS, L. T. Social Class Culture Cycles: how three gateway contexts shape selves and fuel inequality. Annual Review of Psychology, Palo Alto, v. 65, n. 01, p. 611-634, 2014.).
Drewwnoski et al. (2007) observaram associação entre um maior nível de renda e escolaridade e o consumo de dietas de baixa densidade energética - que, por sua vez, são associadas a um melhor estado de saúde - assim como a associação inversa, entre dietas de alta densidade energética e piores condições socioeconômicas. Outras investigações quantitativas também indicam a influência das condições socioeconômicas na qualidade da alimentação e no perfil de morbimortalidade de uma população (WAGNER et al., 2018WAGNER, K. J. P. et al. Socioeconomic status in childhood and obesity in adults: a population-based study. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 52, n. 15, p. 244-250, 2018.; STRINGHINI et al., 2017STRINGHINI, S. et al. Socioeconomic status and the 25 × 25 risk factors as determinants of premature mortality: a multicohort study and meta-analysis of 1·7 million men and women. The Lancet, [S.l.], v. 389, n. 10075, p.1229-1237, 2017.).
Frequentemente, principalmente em estudos quantitativos, dados sobre renda, educação e ocupação são usados como indicadores de condições socioeconômicas. No entanto, Kraus et al. (2011KRAUS, M. W.; PIFF, P. K.; KELTNER, D. Social Class as Culture: The Convergence of Resources and Rank in the Social Realm. Current Directions in Psychological Science. New York, v. 20, n. 4, p. 246-250, 2011.) apontam que estes são apenas símbolos objetivos da classe social22 O conceito de classe social é, assim como afirma CAREY e MARKUS (2016), um complexo e multifacetado construto, já que engloba a posição de um sujeito em uma hierarquia social, âmbito subjetivo, e o acesso dos sujeitos a renda e recursos materiais, âmbito objetivo, porém sendo frequente uma conceituação plural entre autores devido tal complexidade. e que este conceito também é integrado por símbolos subjetivos, como o comportamento social. Em estudos no campo da Sociologia da Cultura, a investigação sobre classe social envolve interpretações mais complexas e subjetivas sobre as práticas alimentares33 O conceito de práticas alimentares abarca os dados que permitem descrever e compreender o fenômeno alimentar, distribuindo-se sobre um continuum indo dos mais objetivos, como as práticas observadas, aos mais subjetivos, como as representações sociais da alimentação (POULAIN e PROENÇA, 2003)., por exemplo, a estratificação social do consumo alimentar, que expressa processos empíricos que conectam consumo alimentar a pertencimento social (BERTONCELO, 2019BERTONCELO, E. Classe social e alimentação: padrões de consumo alimentar no Brasil contemporâneo. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 34, n. 100, p. 1-27, 2019.).
Nesta dinâmica, um crescente conjunto de investigações de diversas áreas das Ciências Sociais e Humanas argumenta que a classe social - na qual a condição socioeconômica é parte integrante e objetiva - está imersa em um ciclo cultural. Em outras palavras, a classe social é uma das diversas formas pela qual a cultura incita o entendimento e a experiência dos sujeitos no mundo por meio de ideias, interações e instituições (CAREY e MARKUS, 2016CAREY, R. M.; MARKUS, H. R. Social class matters: A rejoinder. Journal of Consumer Psychology, [S.l.], v. 26, n. 4, p. 599-602, 2016.; STEPHENS et al., 2014STEPHENS, N. M.; MARKUS, H. R.; PHILLIPS, L. T. Social Class Culture Cycles: how three gateway contexts shape selves and fuel inequality. Annual Review of Psychology, Palo Alto, v. 65, n. 01, p. 611-634, 2014.). Portanto, as vivências dos sujeitos com determinada condição socioeconômica tornam-se um importante aspecto na investigação, contribuindo para a literatura existente que se debruça sobre os impactos dos contextos socioeconômicos na estrutura cognitiva dos sujeitos (KRAUS et al., 2011KRAUS, M. W.; PIFF, P. K.; KELTNER, D. Social Class as Culture: The Convergence of Resources and Rank in the Social Realm. Current Directions in Psychological Science. New York, v. 20, n. 4, p. 246-250, 2011.), nas relações sociais estabelecidas (CONLEY et al., 2016CONLEY, D. Swapping and the Social Psychology of Disadvantaged American Populations. Journal of Consumer Psychology, [S.l.], v. 26, n. 4, p. 594-598, 2016.) e no comportamento de consumidor (SHAVITT, JIANG, CHO, 2016SHAVITT, S.; JIANG, D.; CHO, H. Stratification and segmentation: Social class in consumer behavior. Journal of Consumer Psychology, [S.l.], v. 26, n. 4, p. 583-593, 2016.).
Estudos qualitativos discutem a complexidade das práticas alimentares devido às oscilações, contradições e sobreposições que emergem das narrativas e discursos dos sujeitos. Oliveira et al. (2018OLIVEIRA, T. C. et al. Concepções sobre práticas alimentares em mulheres de camadas populares no Rio de Janeiro, RJ, Brasil: transformações e ressignificações. Interface, Botucatu, v. 22, p. 435-446, 2018.), ao trabalhar com mulheres de camadas populares no Rio de Janeiro, concluem que práticas alimentares se transformam e se ressignificam frente a um ambiente de periferia marcado por inequidade socioeconômica, vulnerabilidade social e insegurança alimentar. Assim como Garcia (2004GARCIA, R. W. D. Representações sobre consumo alimentar e suas implicações em inquéritos alimentares: estudo qualitativo em sujeitos submetidos à prescrição dietética. Revista de Nutrição, Campinas , v. 17, p. 15-28, 2004.), que ao investigar as representações sobre o consumo alimentar de sujeitos submetidos à prescrição dietética, argumenta que seus discursos acerca das práticas alimentares se manifestam de maneira flexível, sendo tal âmbito muitas vezes negligenciado na interpretação dos resultados das investigações.
Considerando as investigações em diversas áreas do conhecimento, é necessário introduzir nesta discussão, portanto, o conceito de acesso a alimentos e de exposição, os quais desempenham um papel central nas práticas alimentares. O acesso a alimentos é definido como o potencial do ambiente alimentar ser usado pelos sujeitos quando assim os convém e, consequentemente, condicionando quais alimentos serão adquiridos ou não. O conceito de exposição se difere da dimensão do acesso, pois é definido como um catalisador para a construção do conhecimento, preferências e rotinas diárias acerca da alimentação (CLARY et al., 2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.). MENEZES et al. (2017MENEZES, M. C. et al. Local food environment and fruit and vegetable consumption: An ecological study. Preventive Medicine Reports, [S.l.], v. 5, p.13-20, 2017.) e GLANZ et al. (2005GLANZ, K. et al. Healthy nutrition environments: Concepts and measures. American Journal of Health Promotion, Lawrence, v. 19, n. 5, p. 330-333, 2005.) indicaram que a disponibilidade e comercialização de determinados tipos de alimentos são estipuladas pelo ambiente alimentar44 Definido como a unidade básica de observação para avaliação de influências sobre comportamentos alimentares (CLARY et al., 2017)., contribuindo para seu acesso e, assim, para práticas alimentares mais ou menos adequadas. Deste modo, a aquisição de alimentos e outras práticas alimentares se relacionam, a um nível local, com o ambiente alimentar em que os indivíduos estão inseridos e, portanto, com os locais de compra de alimentos.
No contexto brasileiro de consumo alimentar, a mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares observou que a maioria dos alimentos relatados foi adquirida em supermercados, com associação entre um maior consumo de alimentos ultraprocessados55 Definidos como formulações industriais prontas para o consumo e preparadas com adição de vários ingredientes, como substâncias extraídas de plantas, substâncias sintetizadas a partir de constituídos dos alimentos e de aditivos usados para modificar a cor, o aroma, o sabor ou a textura do produto final. São feitos inteira ou majoritariamente com fontes de energia e nutrientes de baixo custo e numerosos aditivos que visam produtos extremamente lucrativos, hiperpalatáveis, com longa duração e que podem ser consumidos a qualquer momento (MONTEIRO et al., 2017). (AUP) e ter supermercados como o principal local de aquisição de alimentos (MACHADO et al., 2017MACHADO, P. P. et al. Price and convenience: The influence of supermarkets on consumption of ultra-processed foods and beverages in Brazil. Appetite, London, v. 16, p.381-388, 2017.). No entanto, não é investigada a complexidade acerca do processo de escolha e aquisição de alimentos, em particular a dinâmica envolvida na motivação da aquisição de determinados alimentos, como os AUP, ou em certos locais de compra, como supermercados, mercearias e feiras.
Neste sentido, o cenário do município de Cruzeiro do Sul (CZS), no Acre, especificamente na Amazônia ocidental brasileira, parece ser um relevante contexto de investigação, já que é palco de grandes disparidades socioeconômicas na dimensão de acesso a alimentos. Uma parcela da população, em sua maioria a urbana, tem acesso a alguns alimentos não regionais, que são mais caros, devido à necessidade do transporte aéreo, e ditos inacessíveis a outra parcela da população, a rural (ALCOFORADO, 2010ALCOFORADO, C. L. G. C. Entre o científico e o popular: saberes e práticas da equipe de enfermagem e clientes com feridas: um estudo de caso no Município Cruzeiro do Sul - Acre. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências do Cuidado em Saúde) - Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 2010.).
Este artigo almeja investigar como as condições socioeconômicas de mães que residem na área urbana de CZS interagem com o acesso a alimentos, com foco nas interações entre a condição socioeconômica e as motivações envolvidas nas escolhas de locais de aquisição de alimentos e os tipos de alimentos adquiridos. Esperamos que tal conhecimento possa contribuir para a promoção da saúde e da alimentação adequada neste contexto por permitir: (1) o maior aprofundamento do entendimento das práticas alimentares a partir do foco no acesso a alimentos, já que tais tipos de estudo podem contribuir para uma atuação em prol de ambientes alimentares que proporcionem escolhas mais adequadas e (2) uma maior compreensão sobre os mecanismos que induzem os sujeitos no processo das escolhas alimentares, tendo as condições socioeconômicas como um atravessador das possibilidades existentes.
Metodologia
Desenho do estudo
O presente trabalho qualitativo insere-se no “Estudo MINA BRASIL - Materno-INfantil no Acre: coorte de nascimentos da Amazônia ocidental brasileira”, estudo longitudinal de base populacional, com retenção de 70% no segmento de 24 meses (n=854). Mais detalhes sobre o estudo MINA BRASIL foram publicados por Neves et al. (2018NEVES, P. A. R. et al. Effect of Vitamin A status during pregnancy on maternal anemia and newborn birth weight: results from a cohort study in the Western Brazilian Amazon. European Journal of Nutrition, Darmstadt, v. 58, p. 1-12, 2018.). A descrição das etapas qualitativas referentes ao presente trabalho é apresentada a seguir.
1.1. População do estudo
A população do presente estudo é uma subamostra das mães participantes do segmento de 24 meses do estudo MINA BRASIL. A partir de um questionário simplificado de frequência de consumo de alimentos, as participantes do projeto foram classificadas em quintis de frequência de consumo de AUP. Dez mulheres do quintil de maior frequência de consumo de AUP e dez do quintil de menor frequência foram sorteadas e convidadas a participar do estudo qualitativo, compondo uma amostra de máxima variação (LIAMPUTTONG e EZZY, 2005LIAMPUTTONG, P.; EZZY, D. Rigour, ethics and sampling. In: ______. Qualitative research methods. South Melbourne: Oxford University Press, 2005. p. 32-52.) de vinte participantes. Tal número foi determinado pelo critério de saturação, ou seja, quando novas entrevistas a novas participantes não produziram dados novos relevantes ao tema da pesquisa.
1.2. Produção de dados e aspectos éticos
Os métodos utilizados para produção dos dados foram: a entrevista em profundidade (realizadas duas entrevistas com cada participante) e observação participante, ocorrendo em quatro oportunidades: novembro de 2017, janeiro de 2018, abril de 2018 e julho de 2018.
De acordo com PELTO (2013PELTO, P. J. Applied ethnography: guidelines for field research. Walnut Creek: Left Coast Press, 2013.), a entrevista em profundidade deve proporcionar ao entrevistado a possibilidade de narrar eventos e ideias em extensão. Tal estratégia permite que perguntas específicas sobre os temas sejam realizadas a todos os sujeitos, mas sem restringir a entrevista a tais tópicos, possibilitando, assim, que temas relevantes aos entrevistados, mas que não foram definidas a priori, emerjam. Realizadas por uma pesquisadora com experiência em pesquisa qualitativa em alimentação, gravadas e posteriormente transcritas, as entrevistas em profundidade, com duração média de 52 minutos, tiveram como tema de investigação a dimensão do acesso dentro das práticas alimentares. As perguntas eram direcionadas à investigação de (1) quais tipos de alimentos que eram adquiridos e as motivações pela escolha e (2) quais eram os locais de compras e as motivações para sua escolha, bem como as vantagens e desvantagens deles e se alimentos eram adquiridos de outras formas (doação, produção própria ou troca).
O objetivo da observação participante é possibilitar um olhar abrangente sobre o fenômeno do estudo e seu contexto (CRESWELL, 2007CRESWELL, J. W. Qualitative inquiry and research design: choosing among five approaches. California: Sage, 2007.). Neste trabalho, a observação participante deu-se nos domicílios dos sujeitos durante as entrevistas e nos locais em que eles referiram fazer compras de alimentos. As impressões sobre o contexto, ambientes e relações interpessoais com as participantes foram escritas em um caderno de campo para compor o material utilizado para a análise.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP - parecer nº 2.454.972/2018). A participação no estudo foi voluntária, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assegurando sigilo das informações obtidas.
1.3. Análise de dados
A análise dos dados foi feita em duas etapas: uma primeira etapa com vista à classificação das participantes segundo condições socioeconômicas e uma segunda etapa voltada à compreensão das práticas alimentares em si, especificamente, as relacionadas à dimensão de acesso a alimentos.
A primeira etapa de análise se focou em informações das entrevistas das participantes que ajudassem a dividi-las de acordo com suas experiências materiais e sociais. Para tanto, especial atenção foi dada a informações sobre escolaridade e ocupação, bem como sobre as condições de vida da mulher, como as condições financeiras e estrutura familiar. A partir desta análise, as mulheres participantes fossem classificadas em dois grupos: as com melhores condições socioeconômicas (M-CSE) e piores condições socioeconômicas (P-CSE). O grupo M-CSE se caracterizava por ter grau de escolaridade mais alto, comumente tendo realizado o ensino superior, viver com companheiro, ter vínculo empregatício formal e a presença de empregadas domésticas, cozinheiras e/ou babás em suas residências. Enquanto o grupo P-CSE era caracterizado por ter escolaridade mais baixa ou mesmo a ausência de escolaridade, não ter vínculo empregatício formal e, em sua maioria, desempenhar trabalho doméstico não remunerado. Algumas mulheres deste grupo também realizavam trabalhos fora, por exemplo, como revendedora de produtos cosméticos e auxiliar de serviços gerais ou diaristas. Ainda, algumas não viviam com o companheiro, o que impactava na renda familiar e algumas recebiam ajuda dos pais e/ou familiares para a aquisição de alimentos.
A segunda etapa da análise dos dados foi feita por meio de análise de conteúdo. As etapas realizadas para a constituição da análise de conteúdo foram pré-análise, exploração do material, tratamento dos dados e inferência e interpretação. A etapa de pré-análise se consistiu na leitura flutuante das transcrições de entrevistas e anotações do caderno de campo, possibilitando a identificação de unidades de registro, definidas a partir da presença de palavras-chave (BERNARD et al., 2017BERNARD, H. R.; WUTICH, A. Y.; RYAN, G. W. Analyzing Qualitative Data: Systematic Approaches. 2. ed. California: Sage, 2017.). As palavras-chave escolhidas foram: preço, limpeza, variedade, praticidade, planejamento, pesquisa de preços e qualidade, as quais eram frequentes nas entrevistas e indicaram a presença de informações potencialmente importantes para os objetivos do presente estudo.
Uma vez selecionados os trechos que compuseram os dados do presente trabalho, a etapa de exploração do material deu-se pela realização de uma codificação inicial e exploratória do material, seguida pela identificação de categorias emergentes, obtida pela técnica de “cutting and sorting”, processo que envolve identificar falas ou expressões que se destacam e organizá-las em pilhas com características semelhantes.
Após a pré-análise, a exploração do material culminou na construção de um codebook que incluiu, para cada categoria, uma descrição detalhada, uma descrição abreviada, critérios de inclusão e exclusão da categoria, exemplos típicos, exemplos atípicos e um exemplo categorizado como "close, but no" (MACQUEEN et al., 1998MACQUEEN, K. M. et al. Codebook Development for Team-Based Qualitative Analysis. Cultural Anthropology Methods Journal, [S.l.], v. 10, n. 2, p.31-36, 1998.; BERNARD et al., 2017BERNARD, H. R.; WUTICH, A. Y.; RYAN, G. W. Analyzing Qualitative Data: Systematic Approaches. 2. ed. California: Sage, 2017.).
Com o codebook construído, iniciou-se a etapa de tratamento dos dados, com dois diferentes pesquisadores codificando os materiais separadamente a partir das categorias descritas. Posteriormente, ambas as codificações foram comparadas, a fim de verificar a confiabilidade da codificação entre pesquisadores. Para tal, realizou-se o cálculo do coeficiente de Kappa, com o auxílio do programa GraphPad Quick- Calcs (GRAPHPAD SOFTWARE, 1989), observando-se concordância substancial em uma categoria (0.791), concordância quase perfeita em duas categorias (0.885 e 0.840) e concordância perfeita (1,000) nas demais categorias (LANDIS e KOCH, 1977LANDIS, J. R.; KOCH, G. G. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics, Washington, DC, v. 33, n. 1, p. 159-174, 1977.).
Por fim, foram realizadas as etapas de inferência e interpretação dos dados. Para estas, buscou-se observar relações entre as categorias criadas, com a definição de eixos temáticos que permitissem a articulação das mesmas. Os resultados serão apresentados em forma de paráfrases e citações literais e a identificação das participantes se dará por nomes fictícios.
Resultados
Dentre as 20 participantes, as quais tinham de 17 a 35 anos, com média de idade de 27,2 anos, observou-se uma distribuição equitativa das mesmas entre as classificações de condições socioeconômicas (10 mulheres no grupo M-CSE e 10 no grupo P-CSE). Identificamos quatro principais fatores considerados pelas participantes para pensar os alimentos e seus locais de aquisição representados pelas categorias Preço, Variedade, Praticidade e Estratégias. Apesar da complexa relação estabelecida entre as condições socioeconômicas e as práticas alimentares, alguns padrões puderam ser observados entre os grupos com melhores e piores condições socioeconômicas; com as categorias Preço e Estratégias, sendo mais frequentemente observadas nas falas de mulheres no grupo P-CSE, e as categorias Variedade e Praticidade no grupo M-CSE.
A seguir será apresentada cada categoria e, posteriormente, serão interpretadas as interações entre as mesmas, a partir de dois eixos temáticos identificados: ALIMENTO e LOCAL.
A primeira categoria, Preço, era relacionada pelas participantes diretamente à aquisição de alimentos, influenciando fortemente o consumo alimentar destas. Uma prática difundida entre as mães, principalmente entre as do grupo P-CSE, era a substituição da carne bovina por frango ou ovos, que eram mais baratos, ou mesmo por embutidos ou enlatados, como calabresa, carnes em conserva ou salsicha:
“Agora a carne é raro nós comer carne agora [...] um pedacinho deste tamanho assim, pra falar a verdade. Tá um absurdo. [...] aí nós não tamo comendo, tamo comendo mais calabresa, frango, peixe e ovos” (Maria Glaúcia, P-CSE).
Tal substituição também se estendia à aquisição de frutas, legumes e verduras, considerados alimentos saudáveis pelas participantes:
“[...] às vezes a gente não tem dinheiro para comprar aquilo que é saudável e compra enlatado, não tem verdura, come no limpo mesmo assim sem verdura, só caldo, é alho, cebola de cabeça, pimentinha assim” (Raimunda, P-CSE)
A categoria Preço também exercia influência sobre a escolha do local de compras desses alimentos, fazendo com que elas limitassem ou preferissem fazer as compras em certos locais. Dessa forma, os locais escolhidos diferiram expressivamente entre os grupos P-CSE e M-CSE.
Enquanto o grupo P-CSE preferia mercearias, verdureiros, mercados de bairro e, principalmente, vendedores ambulantes para a aquisição de alimentos, as mães do grupo M-CSE preferiam fazer suas compras em supermercados, nos quais elas salientaram uma maior variedade e diversidade de produtos, bem como higiene e qualidade, em alguns casos. Visto que, na quase totalidade das entrevistas, os dois principais supermercados da cidade foram citados, estes foram nomeados aqui “Supermercado X” e “Supermercado Y” (este último considerado o mais caro da cidade pelas mães P-CSE):
“Mas muitas vezes eu compro as coisas na mercearia. É difícil eu comprar as coisas ali no Supermercado Y, que ali é um absurdo. Então [...] aí ele [pai de Edésia] vai em todo canto, pesquisa o preço. Se for mais barato, se ele for ali e for mais barato e vir aqui e for mais caro, ele volta para lá de novo para comprar” (Edésia, P-CSE).
Foi possível inferir que diferentes condições socioeconômicas influenciam em diferentes percepções sobre um mesmo local de compras, neste caso um supermercado popular - “Supermercado X”, considerado o mais barato da cidade pelo grupo P-CSE. Porém, na percepção das mães M-CSE o preço era equiparável aos demais supermercados, não sendo o apelo financeiro que as atraia a este local:
“Ó, [prefiro] o supermercado ‘X’, porque lá tem tudo que tu precisa, da verdura, limpeza, tudo, tudo, até coisa de... receita de fora que vem, assim [...] se tu procura lá, tem. E tem supermercado que você vai, só tem o básico, não tem nada” (Mayara, M-CSE).
A segunda categoria, Variedade, apresentava a interação entre os eixos alimento e local, atuando como condicionante da preferência por determinados locais de compra de alimentos, a partir da percepção de variedade de alimentos no local. Um discurso frequente em ambos os grupos se relacionou à aquisição de alimentos regionais. Tal aspecto emergiu em quase todas as entrevistas, independentemente das condições socioeconômicas, assumindo um papel de oposição aos “alimentos de fora”, assim denominado pelas mães:
“Agora aqui em Cruzeiro do Sul é as opções, porque sempre os alimentos como vêm mais de fora, então a gente não sabe qual que é a origem deles. A gente fica meio que sem saber como que eles são produzidos lá” (Juliana, M-CSE).
Os “alimentos de fora” eram divididos em dois tipos:
(1) verduras, frutas e legumes não comuns da região e encontrados, em sua maioria, em grandes mercados e supermercados, como morango, uva, abacate, cenoura, tomate, sendo apontado que estes traziam uma maior variedade para as escolhas alimentares:
“Acho que tomate, esses tipos de frutas, não é da região, não. Vem sempre de fora, porque o tomate daqui é bem diferente do que vem. Ele [tomate cultivado na região] é pequenininho e não tem muita quantidade. Sempre vem e acaba rápido. Agora fruta daqui é o que eu te falei [...] mas sempre tem a época. Laranja, mamão, cupuaçu. São poucas aqui, a variedade. Sempre vem mais de fora mesmo” (Juliana, M-CSE).
(2) embutidos e outros AUP, que apesar de serem considerados não saudáveis pelas mães, o baixo preço e a praticidade desses alimentos os tornavam atrativos para sua aquisição:
“Ah, sabe essas coisas que vende no mercado que já é comida mais ou menos pronta. Às vezes congelado ou então molho de tomate já pronto, miojo. Essas coisas que cozinha rápido você usa [...] Tipo, ovos, que é mais rápido, e também em conserva, que é enlatado” (Juliana, M-CSE).
Os “alimentos daqui” eram preparações culinárias regionais, como a baixaria66 Prato regional, usualmente servido no café da manhã, preparado com farinha de milho (também conhecido como fubá ou cuscuz), carne moída, cheiro-verde e ovo frito., assado de panela, churrasco, galinha caipira, rapadura, tapioca, beiju, e alimentos regionais, como cebola cabeça de palha, mamão, laranja, peixes e feijões regionais, mandioca e a farinha de mandioca. Tais alimentos regionais, em especial verduras e frutas, eram apontados como mais baratos e acessíveis:
“Ah, o preço, o mercadinho é mais em conta, né, são todas verduras da região, né, são mais em conta” (Sarah, M-CSE)
A percepção sobre a Variedade e o discurso de ambos os grupos, no entanto, diferiu-se em relação aos locais de aquisição de alimentos. O grupo M-CSE preferia realizar as compras em supermercados da região ou mercados maiores:
“Não, eu acho que de todos que a gente tem aqui na nossa cidade o melhor é o X e o Y [supermercados], né? Que eu acho [...]” (Juliana, M-CSE).
Já o grupo P-CSE relatou a preferência por mercados menores, verdureiros, mercearias e, principalmente, vendedores ambulantes. Estes passavam de porta em porta para a comercialização de alimentos:
“Não, a gente, a gente compra também com aqueles camelozinho que vem de madeira, a gente sempre compra no supermercado, lá no [supermercado] X não tem não, até tem mas não tem esses tipos de verdura, pimenta [...]” (Lourdes, P-CSE).
“É, porque a maioria, quando a gente faz compra no supermercado, ele já traz de fora. Eles compram pouco da região [alimentos] [...] É. O da região [alimento] geralmente é vendido nas pequenas mercearias que tem no bairro” (Raiane, P-CSE).
A categoria Praticidade englobou em ambos os grupos a escolha de alimentos baseada na facilidade do preparo culinário, principalmente quanto a escolha do tipo de carne (carne de peixe e frango ou carnes bovina e suína) e o uso de AUP nas preparações, como carnes enlatadas e macarrão instantâneo:
“Acho que mais peixe, que é mais rápido de cozinhar. Mais rápido do que carne, né? Frango” (Maria Flor, M-CSE).
“Os enlatados porque às vezes a gente come rápido né, é uma coisa se tiver fechada a gente faz rápido [...] Aí come né, é mais rápido. Eu tava muito ocupada e tá muito tarde, faz ligeiro” (Maria Claudia, P-CSE).
Esta categoria se referiu também à facilidade de locomoção ou proximidade em relação aos locais de compra, indicando a preferência das mães pela aquisição de alimentos em tais locais, sendo que as mães M-CSE reconheciam também a praticidade de aquisição de alimentos com vendedores ambulantes e atravessadores, apesar de a maioria ainda preferir fazer compras em supermercados:
“Acho que das pessoas que passam assim, se for de qualidade é mais prática para a gente [vendedores ambulantes]. Passa com verdura, de manhã bem cedo geralmente eles passam com verdura, você não tem tempo de ir lá” (Tatiana, M-CSE).
A quarta e última categoria, Estratégias, pode ser considerada um produto da interação das demais categorias com as condições socioeconômicas das participantes, pois se referiu às estratégias usadas pelas mães para lidar com as limitações financeiras ou com gestão da aquisição de alimentos. Apesar de ter sido mais frequente entre o grupo P-CSE, o grupo M-CSE também fez o uso de estratégias.
As duas estratégias citadas foram:
(1) A substituição de ingredientes em preparações, por motivos financeiros ou de tempo:
“Então, as pessoas estão deixando de comprar essas coisas [frutas, verduras, legumes] para comprar tipo mais rápido, mais prático, que acaba saindo mais barato, entendeu?” (Joana Maria, P-CSE).
“Aí o macarrãozinho, tu quebra, coloca na sopa, coloca uma colherzinha de sopão, aí coloca batatinha, cenoura, a beterraba, e um pouquinho do arroz cozido. E aí o sopão vai fazer com que a sopa engrosse. E o macarrão instantâneo, ele cozinha mais rápido” (Mayara, M-CSE).
(2) O planejamento de compras:
“Não, assim, geralmente nós já temos um planejamento. Faço as compras geralmente no dia vinte, faço a feira básica. Aí durante uns quinze dias, a gente vai fazendo compra do básico, da carne, do peixe” (Raiane, P-CSE).
“Assim, a minha feira, eu costumo assim, eu faço duas feiras por ano, que eu gosto de fazer tudo assim, no início do ano eu faço uma feira de uma saca de açúcar, tudo de grosso né, e aí eu fico comprando somente aquele básico, verduras, frutas e o basicozinho, né” (Sarah, M-CSE).
Por fim, observa-se que as diferenças entre as questões de acesso a alimentos entre participantes dos grupos P-CSE e M-CSE concentrou-se nos tipos de alimentos adquiridos e nos locais de aquisição destes, sugerindo dois eixos para a interpretação dos resultados, nomeados ALIMENTO e LOCAL. O primeiro é caracterizado por falas relacionadas a que tipo de alimentos eram adquiridos e os motivos pela escolha destes, enquanto o segundo é caracterizado por relatos quanto à motivação para a escolha dos locais de aquisição de alimentos, vantagens e desvantagens dos locais escolhidos e se alimentos eram adquiridos de outras formas (doação, produção própria ou troca). Tais eixos, ALIMENTO e LOCAL, explicitam a imbricação entre o acesso a alimentos e as condições socioeconômicas das participantes, apontando como estes interagem com as categorias encontradas (Preço, Variedade, Praticidade e Estratégias) nos discursos das mulheres de CZS, possibilitando acessar as motivações expressas por suas escolhas alimentares.
O Quadro a seguir resume os sentidos que os eixos ALIMENTO e LOCAL assumem dentro das três primeiras categorias (Preço, Variedade e Praticidade), já que foram estas que exerceram influência direta na aquisição de alimentos. A quarta categoria (Estratégias) não é apresentada no quadro, pois se manifestou como uma consequência da interação das outras com as condições socioeconômicas das participantes.
emergentes do discurso das mães de CZS e sua relação com os eixos de análise ALIMENTO e LOCAL.
Discussão
Este estudo é pioneiro na investigação entre as condições socioeconômicas e acesso a alimentos, especificamente no contexto amazônico. Nossos resultados contribuem para a compreensão de que as motivações para a escolha alimentar, aqui expressas na escolha dos alimentos e seus locais de aquisição, são fortemente influenciadas e cerceadas pelas condições socioeconômicas. Estratégias são criadas pelas mães de CZS para esquivar-se de limitações financeiras, mas também outras motivações da escolha alimentar são desvendadas quando a condição socioeconômica possibilita uma margem para que tais preferências sejam expressas, como a variedade e a praticidade.
As quatro categorias apresentadas representavam os principais fatores imbricados na interação entre condições socioeconômicas e acesso a alimentos, três deles incitadores (Preço, Variedade e Praticidade) e um deles consequente (Estratégias) dessa interação. Clary et al. (2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.) propõem o conceito de “acesso a alimentos”, que é composto por cinco dimensões: Disponibilidade, Acessibilidade Espacial, Acessibilidade Financeira, Acomodação e Aceitabilidade (CLARY et al., 2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.). Destas, três (Acessibilidade Financeira, Disponibilidade e Acessibilidade Espacial) se aproximam das categorias incitadoras do presente estudo e serão discutidas nos próximos parágrafos. No entanto, nosso estudo apresenta uma nova categoria relevante para se pensar a aquisição de alimentos, Estratégias, já que esta perspassa as três dimensões destacadas.
A dimensão da Acessibilidade Financeira, definida como a relação do preço dos alimentos e a capacidade dos consumidores de pagarem por tal (CLARY et al., 2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.), relacionou-se com a categoria Preço. No entanto, é importante notar que tal fator age de maneiras distintas sobre as mães participantes: (1) agindo como principal elemento cerceador das escolhas alimentares das mães do grupo P-CSE, sendo este papel central que o preço sozinho exerce sobre a aquisição de alimentos entre famílais de baixa renda já reconhecido (LIN et al., 2014LIN, B. H. et al. The roles of food prices and food access in determining food purchases of low-income households. Journal of Policy Modeling, New York, v. 36, n. 5, p. 938-952, 2014.); e (2) agindo sobre a percepção acerca do preço dos alimentos, que diferiu entre os dois grupos socioeconômicos, inferência esta que contraria os achados de BATALHA et al. (2005BATALHA, M. O.; LUCHESE, J.L.; LAMBERT, J. L. Hábitos de consumo alimentar no Brasil: realidade e perspectivas. In Batalha, M. O. (Organiz.). Gestão de agronegócios: textos selecionados. São Carlos: Editora UFSCar, 2005. p. 28-84.) que demonstraram que a maioria dos consumidores tinham a mesma percepção sobre o preço dos alimentos (alto, caro) nos diferentes níveis de renda.
No contexto amazônico, uma particularidade manifestada, em comparação a outros estudos com famílias de baixa renda, é a existência de vendedores ambulantes, relacionada à categoria Praticidade, e, portanto, relacionando-se com a dimensão Acessibilidade Espacial. Esta é definida como a relação de locomoção entre o consumidor e o local de aquisição de alimentos (CLARY et al., 2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.). Embora a importância da praticidade do acesso aos alimentos também tenha sido descrita em populações de outros contextos, como o estadunidense urbano ou rural (CLIFTON, 2004CLIFTON, K. J. Mobility Strategies and Food Shopping for Low-Income Families: A Case Study. Journal of Planning Education and Research, [S.l.], v. 23, n. 4, p. 402-413, 2004.; MACNELL, 2018MACNELL, L. A geo-ethnographic analysis of low-income rural and urban women's food shopping behaviors. Appetite, London, v. 128, p. 311-320, 2018.), em CZS, o vendedor ambulante atua como promotor de uma maior acessibilidade a alimentos, especialmente às mães P-CSE, uma vez que a presença deste atravessador configura-se como uma maneira de lidar com limitações de transporte. A imagem do vendedor ambulante transcende a de um facilitador da comercialização de alimentos, pois estabelece com suas freguesas, nossas participantes, relações de sociabilidade e construção de vínculos e confiança, o que o torna um agente para a promoção da alimentação adequada e saudável, particularmente no contexto de CZS, uma vez que ele pode acessar áreas e pessoas em situação de insegurança alimentar.
A categoria Variedade tem relação com a dimensão da Disponibilidade, já que esta significa a existência de fornecimento de alimentos adequados, frente a necessidade da população, nos locais de aquisição de alimentos (CLARY et al., 2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.). No entanto, nossos resultados apontam para a questão subjetiva de tal avaliação, já que na perspectiva do grupo M-CSE a variedade era simbolizada por supermercados, enquanto para grupo P-CSE tais locais não ofertavam variedade suficiente, já que não encontravam alimentos regionais. Estes eram encontrados em mercearias, verdureiros ou vendedores ambulantes, apontados pelo grupo M-CSE como tendo menor variedade de produtos.
Como observado em nosso estudo, é perceptível que enquanto as categorias Preço e Variedade evocam diferentes percepções sobre os tipos de alimentos e locais de aquisição, a depender do grupo socioeconômico que as mães se encontram, na categoria Praticidade tal percepção foi comum entre os grupos. Tal particularidade no contexto acreano pode ser explicada pela procura por diferentes tipos de alimentos em um mesmo local de aquisição, “Supermercado X”. Logo, as percepções sobre um local de compras ser ou não barato ou ter ou não variedade de alimentos são concebidas a partir da escolha de quais tipos de alimentos serão adquiridos em tal local.
Neste trabalho, aspectos relacionados à Acomodação, definida como relação entre a maneira pela qual os locais de venda de alimentos se organizam para receber os consumidores e a habilidade dos consumidores de aceitar tais fatores, como horário de operação, estacionamento, ambiência etc, e Aceitabilidade, definida como o sentimento de harmonia sociocultural entre comerciantes, consumidores e os alimentos disponíveis (CLARY et al., 2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.), não apresentaram grande influência sobre o acesso e a aquisição de alimentos. A falta do papel da Acomodação pode ser entendido pelo baixo número de participantes que podiam escolher pagar por alguns confortos, expresso por falas isoladas de algumas participantes do grupo M-CSE que relatam sentir-se melhor nos supermercados devido ao “cuidado com o cliente”. Já a Aceitabilidade aproximava-se dos significados dados aos alimentos regionais e os alimentos “de fora”. Uma vez que a aquisição de alimentos regionais adquire valor simbólico e afetivo no discurso das mães, quando questionadas qual alimento era melhor (em relação a frutas, verduras e legumes regionais e aqueles não regionais), a maioria das mães elegeu os regionais.
Com relação aos tipos de alimentos consumidos, embora algumas diferenças tenham sido observadas entre os dois grupos, um tipo de alimento, o “de fora” - alimentos não regionais e AUP - aponta que seu acesso extrapola as diferenças socioeconômicas dos grupos e traz luz ao papel da exposição nas escolhas alimentares. Desta forma, a dimensão da exposição relaciona-se não com uma ótica local, mas interage a um nível global, com a soberania do neoliberalismo econômico, o processo de globalização e o controle da distribuição de alimentos por grandes corporações transnacionais (CLARY; MATTHEWS; KESTENS, 2017CLARY, C.; MATTHEWS, S. A.; KESTENS, Y. Between exposure, access and use: Reconsidering foodscape influences on dietary behaviours. Health & Place, Kidlington, v. 44, p. 1-7, 2017.).
Com relação à exposição a AUP, observamos diferentes motivações para sua aquisição: baixo preço, maior disponibilidade nos locais e/ou praticidade no consumo. As diferentes motivações, neste caso, apresentavam-se em ambos os grupos socioeconômicos, embora seja importante ressaltar que o grupo M-CSE encontrava-se mais exposto a estes alimentos, uma vez que o supermercado era seu principal local de aquisição de alimentos. Além disso, podemos inferir que a presença dos vendedores ambulantes em Cruzeiro do Sul desfavorecia uma maior exposição do grupo P-CSE aos AUP presentes nos supermercados.
Portanto, uma relação dual é encontrada entre as práticas alimentares e as condições socioeconômicas: em uma ótica local, as disparidades socioeconômicas resultam em divergências entre as mães P-CSE e M-CSE no acesso a alimentos, porém, em uma ótica mais global, ambos os grupos estão expostos à entrada de alimentos não regionais e AUP para a venda local, disputando espaço com os alimentos regionais. Logo, não se pode reduzir tal discussão a apenas à interação das participantes com o Ambiente Alimentar, uma vez que há interferências superiores ao âmbito local; é necessário um olhar sobre Sistema Alimentar, já que este retroalimenta o ciclo local de comercialização de alimentos. É particularmente interessante observar como o consumo de AUP está difundido entre ambos os grupos e a imensa disponibilidade dos alimentos “de fora” nos supermercados da cidade. Este é o reflexo local de uma caracterização mundial do alimento como uma mercadoria - commodities - pela lógica privada do capital, interagindo com um contexto produtor de doenças e de disparidades socioeconômicas (CAREY e MARKUS, 2016CAREY, R. M.; MARKUS, H. R. Social class matters: A rejoinder. Journal of Consumer Psychology, [S.l.], v. 26, n. 4, p. 599-602, 2016.; MACHADO; OLIVEIRA; MENDES, 2016MACHADO, P. P.; OLIVEIRA, N. R. F. de; MENDES, A. N. O indigesto sistema do alimento mercadoria. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 505-515, 2016.).
Por fim, o presente trabalho apresenta algumas limitações. Embora a falta de uma classificação socioeconômica apoiada em questionários como os de posse de bens possa ser vista como uma limitação, entendemos que a riqueza dos dados qualitativos sobre as condições de vida das participantes (provendo símbolos subjetivos da classe social) possibilitou classificá-las de maneira mais adequada ao presente estudo do que indicadores diretos e simplificados.
Conclusão
O presente estudo chama a atenção para a centralidade do preço, da variedade e da praticidade como motivações para a aquisição de alimentos e a escolha dos locais de aquisição destes. Nossos resultados ressaltam que disparidades socioeconômicas influenciam o acesso a alimentos por meio da valorização de alguns aspectos em detrimento de outros no processo de escolha alimentar, culminando em distintas motivações e formas de aquisição de alimentos. Apresentamos ainda uma nova categoria relevante para se pensar a intersecção de condições socioeconômicas e aquisição de alimentos, Estratégias.
Em relação ao eixo ALIMENTO, no grupo P-CSE a prática de substituição da carne bovina por frango, ovos ou embutidos era muito comum devido ao preço inferior destes em relação à carne bovina. Era também corriqueira a integração de AUP em preparações culinárias pela facilidade e rapidez no preparo. Contrariamente, no grupo M-CSE a substituição da carne bovina por alimentos com preço inferior não foi vista e quando mencionada a facilidade do preparo culinário, as mães deste grupo referiram procurar um corte de carne que fosse mais rápido e fácil ou carnes brancas e não o uso de AUP como um substituto em uma preparação culinária, em sua maioria.
O eixo LOCAL emergiu de forma nitidamente polarizada: o grupo P-CSE preferia verdureiros, mercearias, mercados menores e vendedores ambulantes por fatores envolvendo um menor preço, uma maior variedade de alimentos e por serem mais práticos, enquanto o grupo M-CSE preferia supermercados pelos mesmos motivos. Tal fato denuncia uma explícita diferença de percepção: a concepção de um local de aquisição de alimentos ser ou não adequado e/ou suprir as expectativas das participantes era condicionado pelos alimentos ali procurados e, portanto, exigindo diferentes formas de planejamento e gestão de aquisição pelas mães.
Logo, em um nível local, o acesso aos locais de compra e a aquisição de alimentos são fortemente influenciados pelas condições socioeconômicas, fazendo com que as práticas alimentares de grupos socioeconômicos dispares diferenciem-se de forma polarizada, apesar de algumas sobreposições e semelhanças, como a valorização dos alimentos regionais e a distinção destes em relação aos alimentos “de fora”.
No entanto, ao pensar tal relação, alimentos regionais versus alimentos “de fora”, é necessária a introdução de uma discussão mais ampla, por uma ótica global, já que ambos os grupos se encontram expostos a uma produção de alimentos por grandes corporações e sua consequente distribuição por supermercados, manifestado pelo consumo difundido de AUP e determinados tipos de frutas, legumes e verduras produzidos em massa. Neste sentido, os vendedores ambulantes e verdureiros locais surgem como veículos para a comercialização de alimentos regionais, resguardando a cultura alimentar acreana e a soberania alimentar.
Por fim, destacamos a importância de mais estudos, tanto no contexto amazônico como em outros, sobre a influência exercida pelas condições socioeconômicas nas práticas alimentares, ressaltando a relevância das dimensões de acesso e exposição serem consideradas em trabalhos futuros.
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- 1A Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) define o conceito como os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (BUSS e PELLEGRINI FILHO, 2007).
- 2O conceito de classe social é, assim como afirma CAREY e MARKUS (2016), um complexo e multifacetado construto, já que engloba a posição de um sujeito em uma hierarquia social, âmbito subjetivo, e o acesso dos sujeitos a renda e recursos materiais, âmbito objetivo, porém sendo frequente uma conceituação plural entre autores devido tal complexidade.
- 3O conceito de práticas alimentares abarca os dados que permitem descrever e compreender o fenômeno alimentar, distribuindo-se sobre um continuum indo dos mais objetivos, como as práticas observadas, aos mais subjetivos, como as representações sociais da alimentação (POULAIN e PROENÇA, 2003).
- 4Definido como a unidade básica de observação para avaliação de influências sobre comportamentos alimentares (CLARY et al., 2017).
- 5Definidos como formulações industriais prontas para o consumo e preparadas com adição de vários ingredientes, como substâncias extraídas de plantas, substâncias sintetizadas a partir de constituídos dos alimentos e de aditivos usados para modificar a cor, o aroma, o sabor ou a textura do produto final. São feitos inteira ou majoritariamente com fontes de energia e nutrientes de baixo custo e numerosos aditivos que visam produtos extremamente lucrativos, hiperpalatáveis, com longa duração e que podem ser consumidos a qualquer momento (MONTEIRO et al., 2017).
- 6Prato regional, usualmente servido no café da manhã, preparado com farinha de milho (também conhecido como fubá ou cuscuz), carne moída, cheiro-verde e ovo frito.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Dez 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
27 Nov 2019 - Aceito
03 Mar 2020 - Revisado
07 Out 2021