Resumo
Apesar das evidências apontarem que a abordagem da espiritualidade/religiosidade na prática clínica está relacionada à redução da mortalidade, à melhora da qualidade de vida e da saúde mental, a falta de treinamento é referida pelos médicos como uma barreira para que tal abordagem aconteça. No Brasil, existem marcos legais que ordenam a formação em saúde, ainda pouco estudados. O objetivo deste estudo foi mapear como documentos normativos da formação médica (de graduação e pós-graduação) abordam a dimensão espiritual/religiosa. Trata-se de estudo qualitativo descritivo exploratório do tipo análise documental, sendo considerados documentos: as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Medicina, os Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) de 20 universidades federais selecionadas e as resoluções do Conselho Nacional de Residência Médica em vigor sobre os requisitos mínimos dos Programas de Residência Médica (PRM). A dimensão espiritual/religiosa não foi mencionada nas DCN de medicina, esteve presente em metade dos PPPs analisados e apenas em um programa de residência médica, a Psiquiatria.
Palavras-chave:
Espiritualidade em saúde; Educação Médica; Integralidade em Saúde; Competência Cultural; Controle Social Formal
Abstract
The aim of this study was to assess the quality of oral care provided in Brazilian primary care and identify associated contextual socioeconomic factors. This is a cross-sectional study whose unit of analysis was all the oral care teams that participated in an external assessment for the second cycle of the Access and Quality Improvement Program - Primary Care. Quality was measured in the following dimensions: access, resolution, work process, care coordination and infrastructure. The quality criteria of the external assessment were grouped into these dimensions and weighted using Item Response Theory. The indicator of oral care quality was the result of grouping latent variables. Descriptive analyses were performed by region and association between “Oral Care Quality” and the Municipal Human Development Index (HDI), with 5% significance. Only 25% of the oral care teams were considered good. The infrastructure dimension obtained the best results and care coordination the worst. There was no statistically significant difference between municipalities with high and low HDIs. Quality assessment is vital to ensure the continuous improvement of quality healthcare.
Keywords:
Spirituality in medicine; Medical Education; Comprehensiveness care; Cultural Competency; Social Control
Introdução
Estudos vem demonstrando que a espiritualidade e a religiosidade de um indivíduo podem influenciar no seu processo saúde-doença-cuidado, na medida em que estão relacionadas à redução da mortalidade (HUMMER et al., 1999HUMMER, R. A. et al. Religious involvement and U.S adult mortality. Demography 1999;36(2):273-285.; CHIDA et al., 2009CHIDA, Y.; STEPTOE, A.; POWELL, L. H. Religiosity/spirituality and mortality. A systematic quantitative review. PsychotherPsychosom. 2009;78(2):81-90.), bem como à melhora da qualidade de vida (SAWATZKY et al., 2005SAWATZKY, R.; RATNER, P.A.; CHIU, L. A meta-analysis of the relationship between spirituality and quality of life. Soc Indic Res. 2005;72(2):153-88.; UNTERRAINER et al., 2014UNTERRAINER, H. F.; LEWIS, A. J.; FINK, A. Religious/Spiritual well-being, personality and mental health: a review of results and conceptual issues. J ReligHealth. 2014;53(2):382-92.; SHERMAN et al., 2015SHERMAN, A. C. et al. A meta-analytic review of religious or spiritual involvement and social health among cancer patients. Cancer. 2015;121(21):3779-88.) e da saúde mental (LUCCHETTI et al., 2011LUCCHETTI, G. et al. Religiousness affects mental health, pain and quality of life in older people in an outpatient rehabilitation setting. J Rehabil Med. 2011;43(4):316-22.; GONÇALVES et al., 2015GONÇALVES, J. P. et al. Religious and spiritual interventions in mental health care: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled clinical trials. Psychol Med. 2015;45(14):2937-49.; AKRAWI et al., 2015AKRAWI, D. A. et al. Religiosity, spirituality in relation to disordered eating and body image concerns: A systematic review. J Eat Disord. 2015;15(3):29.; KOENIG, 2015KOENIG, H. G. Religion, spirituality, and health: a review and update. Adv Mind Body Med. 2015 Summer;29(3):19-26.; LAWRENCE et al., 2016LAWRENCE, R. E.; OQUENDO, M. A.; STANLEY, B. Religion and Suicide Risk: A Systematic Review. Arch Suicide Res. 2016;20(1):1-21.). Além disso, estudos demonstram que grande parte dos pacientes tem interesse em discutir espiritualidade no contexto do atendimento em saúde (EHMAN et al., 1999EHMAN, J. W. et al. Do patients want physicians to inquire about their spiritual or religious beliefs if they become gravely ill? Arch Intern Med 1999;159(15):1803-6.; MACLEAN et al., 2003MACLEAN, C. D. et al. Patient preference for physician discussion and practice of spirituality. J Gen Intern Med. 2003;18(1):38-43.; MCCORD et al., 2004MCCORD, G. et al. Discussing spirituality with patients: a rational and ethical approach. Ann Fam Med 2004;2(4):356-61.).
Desse modo, a literatura aponta para a importância da abordagem da espiritualidade/religiosidade na prática clínica. Nesse sentido, a Associação de Universidades Médicas Americanas (AAMC), a Organização Mundial da Saúde e a Comissão Conjunta sobre Acreditação de Organizações de Saúde (JCAHO) há anos recomendam que questões espirituais sejam abordadas em atendimento clínico e na educação de profissionais de saúde (PUCHALSKI e LARSON, 1998PUCHALSKI, C. M.; LARSON, D. B. Developing curricula in spirituality and medicine. Academic medicine: journal of the Association of American Medical Colleges. 1998,73:970-974.). O posicionamento das sociedades médicas também vem crescendo, a exemplo da Academia Americana de Médicos de Família e Comunidade, que defende que já há evidências suficientes para indicar a abordagem da espiritualidade na prática clínica e que deixar de fazê-lo poderia ser considerado má prática (ANANDARAJAH e HIGHT, 2001ANANDARAJAH, G.; HIGHT, E. Spirituality and medical practice: Using the HOPE questions as a practical tool for spiritual assessment. Am Fam Physician. 2001;63(1):81-8.). Do mesmo modo, a Associação Mundial de Psiquiatria também já se posicionou a respeito da importância da abordagem do tema no cuidado em saúde mental (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2016MOREIRA-ALMEIDA, A. et al. WPA Position Statement on Spirituality and Religion in Psychiatry. World Psychiatry. 2016;15:87-88.).
Diante desse contexto, o desenvolvimento da competência para a abordagem da dimensão espiritual/religiosa do paciente por parte dos médicos torna-se necessário para o desempenho de uma prática clínica que olhe o processo saúde-doença-cuidado de modo adequado. Por outro lado, pesquisas realizadas com médicos americanos (MCCAULEY et al, 2005MCCAULEY, J. et al. Spiritual beliefs and barriers among managed care practitioners. J Relig Health. 2005 Summer;44(2):137-46.; CURLIN et al, 2006CURLIN, F. A. et al. The association of physicians’ religious characteristics with their attitudes and self-reported behaviors regarding religion and spirituality in the clinical encounter. Med Care. 2006;44(5):446-53.) e brasileiros (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, J. A. C. Desafios do cuidado integral em saúde: A dimensão espiritual do médico se relaciona com sua prática na abordagem espiritual do paciente? Dissertação de mestrado. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2018.) apontam que, dentre as principais barreiras enumeradas pelos profissionais médicos como impedimentos para a abordagem da espiritualidade na prática clínica, destacam-se a falta de tempo e a falta de conhecimento ou treinamento na área. Nesse sentido, surge a necessidade de investigar como o ensino e o desenvolvimento dessa competência permeiam a formação médica durante a graduação e a residência médica nas diferentes especialidades atualmente, no Brasil.
De acordo com os dados da Demografia Médica no Brasil, em novembro de 2017, havia 289 escolas médicas em atividade (que somavam 29.271 vagas), além de 16 cursos autorizados pelo Governo Federal que naquele momento ainda não haviam definido o início de funcionamento e do número de vagas a serem ofertadas. De acordo com o site (ESCOLAS MÉDICAS DO BRASIL, 2020), o número atualizado em janeiro de 2020 era de 341 escolas médicas em funcionamento no Brasil, correspondendo a 35.258 vagas.
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Medicina são um documento norteador para a organização, desenvolvimento e avaliação do Curso de Medicina, no contexto dos sistemas de ensino superior do país. Estabelecem os princípios, os fundamentos e as finalidades da formação em Medicina, bem como estabelecem as competências a serem desenvolvidas pelo egresso do curso. A mais recente DCN do curso de medicina foi instituída em 2014 pela Câmara da Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Em parecer CNE/CES nº 116/2014 consta que a implementação das diretrizes curriculares deverá contribuir para a inovação e para a qualidade do projeto pedagógico, devendo orientar o currículo do Curso de Graduação em Medicina para um perfil profissional do egresso condizente com as políticas de saúde do país. Assim, as DCN devem nortear a elaboração do Projeto Político Pedagógico do Curso de cada faculdade, apresentando grande relevância na formação médica em nível de graduação.
O panorama relacionado aos profissionais já formados, com dados de janeiro de 2018, menciona 451.777 registros de médicos em atividade no País, sendo que 62,5% (282.298) têm um ou mais títulos de especialista, enquanto 37,5% (169.479) não têm título algum (SCHEFFER, 2018SCHEFFER, M. et al, Demografia Médica no Brasil 2018. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da USP. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Conselho Federal de Medicina. São Paulo: 2018, 286 páginas. ISBN: 978-85-87077-55-4.).
A residência médica é uma modalidade de ensino de pós-graduação destinada a médicos, sob a forma de curso de especialização, instituída pelo Decreto nº 80.281, de 5 de setembro de 1977. Funciona em instituições de saúde, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional, sendo considerada o “padrão ouro” de especialização médica.
No Brasil, os programas de residência médica são regulamentados pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), instância colegiada de caráter consultivo e deliberativo do Ministério da Educação e tem a finalidade de regular, supervisionar e avaliar as instituições e programas de residência médica. (BRASIL, 2011, decreto nº 7.562, de 15 setembro de 2011)
A CNRM é responsável por estabelecer os requisitos mínimos dos programas de residência médica, os quais constituem documentos regulamentadores dos programas de residência médica do Brasil. Assim, esses documentos são de grande importância para nortear a formação dos profissionais das diversas especialidades médicas, descrevendo as competências exigidas dos profissionais em formação e, consequentemente, orientando a prática clínica.
De acordo com a legislação, a CRNM é composta por 12 conselheiros titulares e 12 suplentes, que representam diferentes instituições (Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde - CONASS; Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde - CONASEMS; Conselho Federal de Medicina - CFM; Associação Brasileira de Educação Médica - ABEM; Associação Médica Brasileira - AMB; Associação Nacional de Médicos Residentes - ANMR, Federação Nacional de Médicos - FENAM; Federação Brasileira de Academias de Medicina - FBAM). Importante mencionar ainda a Câmara Técnica e as Comissões Estaduais de Residência Médica - CEREM, unidades descentralizadas da CNRM nos Estados e no Distrito Federal como instâncias auxiliares.
A qualidade dos programas de residência médica e as competências por eles almejadas na formação do profissional influenciam a qualidade da prática clínica dos diversos especialistas formados e em atuação. Isso está diretamente envolvido no atendimento recebido pelo usuário, sua satisfação e seu processo saúde-doença-cuidado.
A ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde está prevista nos marcos legais do SUS (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Artigo 200 e Lei 8.080, Artigo 6º). Uma das formas de ordenação se dá pela regulação legal e infralegal. A regulação das profissões da saúde é uma atividade estatal que envolve a formação (ensino técnico, graduação e especialização), o exercício profissional (registro, ética, competências legais, atividades permitidas) e também as relações de trabalho (jornada de trabalho, salários, carreiras, etc.) (AITH, 2019).
Cientes da polissemia que envolve o assunto de regulação e, sobretudo das consequências para a análise de políticas públicas, entende-se que a regulação, na perspectiva do direito, seja composta pelo estabelecimento e implementação de regras e normas e manutenção ou restabelecimento do equilíbrio de um sistema. Defende-se ainda que os marcos regulatórios incluam os mecanismos de controle social, uma vez que expressam a participação da comunidade organizada em conselhos no processo decisório sobre políticas públicas de formação (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, R.R. Dos conceitos de regulação às suas possibilidades. Saúde Sociedade. 2014,, 23 (4),1198-1208.).
Apesar de sua extensão prática, a produção teórica na literatura nacional sobre aspectos regulatórios ainda é incipiente, sobretudo no que se refere a formação médica. Frente a necessidade do desenvolvimento da competência cultural para abordagem da dimensão espiritual/religiosa do paciente pelo médico, este estudo visa identificar se a competência da abordagem espiritual/religiosa está presente em três instâncias. Primeiramente, nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Medicina. Em segundo lugar, nos Projetos Político Pedagógicos de cursos de medicina de universidades federais e por fim, entre requisitos mínimos dos Programas de Residência Médica da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) especificando em quais especialidades. Espera-se com isso contribuir e fortalecer documentos norteadores da formação médica, em direção à integralidade das dimensões do cuidado.
Objetivo
Mapear se os documentos normativos da formação médica (de graduação e pós-graduação) abordam a dimensão espiritual/religiosa e em caso positivo, descrever como é feita tal abordagem.
Métodos
Foi realizado estudo qualitativo descritivo exploratório do tipo análise documental, sendo adotado na análise o paradigma construtivista, no qual as interpretações são reconhecidamente subjetivas e socialmente construídas. Foram considerados como documentos: a DCN do curso de graduação em Medicina publicada em 2014, os PPPs de cursos de medicina e as resoluções do CNRM em vigor sobre os requisitos mínimos dos Programas de Residência Médica (PRM) das especialidades médicas reconhecidas no Brasil e os requisitos mínimos de seus programas em vigor em dezembro de 2018.
Considerando a dimensão nacional das DCNs e dos PRM, optou-se por selecionar os PPPs das universidades federais que constituem 23% (78) das escolas médicas no Brasil e 2% (7006) das vagas de 1º ano (ESCOLAS MÉDICAS DO BRASIL, 2020). A partir deste recorte, foram selecionadas quatro escolas de cada uma das cinco regiões geográficas brasileiras. Por entender a importância da dimensão histórica na construção do PPP, foram elencadas dentro de cada região, as duas instituições mais antigas e as duas mais recentes que disponibilizassem seus PPPs nos respectivos websites.
Em relação à residência médica no Brasil, a portaria do CME nº 1/2018, homologada pelo CFM na resolução nº 2.221/2018, é o documento mais recente com a relação de especialidades e áreas de atuação médica e reconhece 55 especialidades no Brasil, que serão apresentadas nos resultados.
Os requisitos mínimos dos programas de residência médica dessas especialidades são determinados pela CNRM e podem ser obtidos através do site do Ministério da Educação (MEC), na página de Residência Médica, onde há Ementário da Residência Médica - (Leis - Decretos e resolução - Em vigor e revogadas). Nesta página há as resoluções da CNRM e a respectiva ementa. Para a etapa pré-analítica, ou seja, a fase de organização, o acesso aos documentos se deu nos meses de agosto e setembro de 2017, sendo realizada a seleção das ementas em vigor relacionadas aos requisitos mínimos dos programas de residência médica, com a atenção para aquelas especialidades que tiveram atualizações em seus requisitos mínimos em ementas posteriores.
Para a exploração dos dados, foi feita leitura exaustiva das DCNs do curso de medicina, dos PPPs dos cursos de medicina selecionados bem como das ementas e requisitos mínimos de cada especialidade em busca de três categorias definidas a priori:
1) Menção direta ou indireta à competência da abordagem espiritual.
2) Menção direta ou indireta à abordagem da religiosidade, embora conceitualmente diferente da espiritualidade;
3) Menção a uma abordagem mais ampliada ou atenção integral da saúde.
Resultados
O texto das DCN publicado em 2014 e produzido pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação tem 14 páginas e trata da atenção integral, sem citar diretamente a espiritualidade/religiosidade:
Art. 5º Na Atenção à Saúde, o graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social. (Brasil, 2014 p1)
Em relação aos PPPs das 20 escolas de medicina selecionadas, observa-se que em 10 (50%) há menção direta à abordagem da espiritualidade/religiosidade do paciente, enquanto as demais fazem uma abordagem indireta do tema, na medida em que trazem uma abordagem integral à saúde (Tabela 1).
Entre os 20 PPPs analisados, três foram elaborados antes de 2014, ano da versão vigente das DCN. A abordagem integral presente no documento norteador dos cursos esteve presente em todos os PPPs, sendo que sete explicitam a espiritualidade e três tratam da religiosidade. Destaca-se ainda que todos os quatro cursos da região Sudeste abordam explicitamente a dimensão da espiritualidade/religiosidade e apenas um da Região Norte. Entre os cursos mais antigos (criados entre 1808 e 1967), apenas um incorporou a temática em seu PPP.
No PPP da UFG, há a menção à “promoção do conforto físico, emocional e espiritual”, habilidade que deve ser aprendida pelo estudante em alguns dos módulos do curso. No PPP da UNIRIO, também consta o tema no currículo nuclear, neste caso na disciplina de “Bioética e ética médica”, fazendo referência à religiosidade. Na UFJF, a religiosidade está presente no contexto de abordagem da saúde integral da população negra. Já no PPP da UFVJM - Teófilo Otoni, a palavra-conceito aparece no item de metodologia de ensino. A UFP - Parnaíba traz o tema nos objetivos do curso: “valoriza o paciente em todos os seus aspectos (biológico, psíquico, social e espiritual)”. Na UNIFAL, a espiritualidade em cuidados paliativos é citada no curso sobre habilidades de comunicação e humanidades em medicina. Já nos PPPs da UFAL - Arapiraca, UFMS - Três Lagoas e UNIPAMPA - Uruguaiana, consta a existência de disciplinas optativas sobre saúde e espiritualidade.
Nas resoluções do CNRM, no contexto das residências médicas, apenas uma especialidade - psiquiatria - menciona diretamente a espiritualidade/religiosidade e cinco trazem uma abordagem biopsicossocial ou atenção integral: endoscopia, ginecologia e obstetrícia, medicina de família e comunidade, medicina do trabalho e pediatria.
A Resolução da CNRM nº 2 de 17 de maio de 2006 é a mais antiga resolução em vigor que dispõe sobre requisitos mínimos dos PRM. Apenas as especialidades de Oncologia Clínica, Cirurgia da Mão, Medicina de Família e Comunidade (MFC) e Pediatria tiveram seus requisitos mínimos alterados em resoluções posteriores.
A leitura exaustiva desse documento permitiu identificar que não há um padrão de texto dos requisitos mínimos para as especialidades. Assim, para algumas especialidades o texto dá enfoque na porcentagem da carga horária que deve ser destinada em cada serviço (ambulatório, enfermaria, etc), enquanto textos de outras especialidades focam nos temas a serem abordados em cada ano da residência e outros ainda abordam as competências a serem alcançadas pelos profissionais que passam pelos programas de residência.
Nessa resolução, apenas no trecho referente à especialidade de Psiquiatria, há menção à espiritualidade/religiosidade. Segundo o texto, uma das competências a serem alcançadas, presente no item 9, é:
“O residente demonstrará conhecimento do crescimento e do desenvolvimento humano, incluindo os desenvolvimentos biológico, cognitivo e psicossexual normais, bem como os fatores socioculturais, econômicos, étnicos, sexuais, religiosos/espirituais e familiares.”
Em nenhuma outra especialidade há menção direta ou indireta à abordagem espiritual/religiosa. Realizando uma leitura atenta, podemos identificar que em algumas especialidades há a menção a uma abordagem mais ampliada de saúde, como no trecho do texto referente à Endoscopia: “ [...] com capacidade de avaliar o paciente de forma abrangente em seu todo biopsicossocial [...]”. Esse texto ainda se mantém em vigor, já que na resolução da CNRM nº 8, de 30 de outubro de 2006, houve a alteração apenas dos pré-requisitos para realização do programa de residência em Endoscopia.
No texto referente aos requisitos mínimos dos PRM de Medicina de Família e Comunidade, há também menção à “abordagem biopsicossocial”, expressa no trecho: “[...] formar um especialista cuja característica básica é atuar, prioritariamente, em Atenção Primária à Saúde, a partir de uma abordagem biopsicossocial do processo saúde adoecimento [...]”. Esses requisitos não estão mais em vigor, na medida em que foram atualizados em resolução posterior que será aqui mencionada.
A resolução da CNRM nº 1, de 25 de maio de 2015, regulamenta os requisitos mínimos dos PRM em Medicina de Família e Comunidade, atualizando o texto até aquele momento em vigor. O texto possui uma abordagem ampla e cita as competências a serem desenvolvidas ao longo da residência, além dos fundamentos da especialidade, objetivos do programa, entre outros tópicos. Não menciona, entretanto, a espiritualidade/religiosidade. Também não faz referência a uma abordagem biopsicossocial, apesar de entre os fundamentos da especialidade estar “comprometer-se com o cuidado integral às pessoas sob sua responsabilidade [...]”.
A abordagem do cuidado integral também está presente nos textos referentes à Medicina do Trabalho e a Obstetrícia e Ginecologia. Na primeira especialidade está presente no trecho: “[…] atenção integral à saúde dos trabalhadores, compreendendo ações de promoção e proteção da saúde, prevenção de doença, diagnóstico, tratamento e reabilitação”. Já na segunda especialidade, está contida no trecho: “[…] atenção integral à gravida adolescente: acompanhamento da gestante adolescente durante o pré-natal, enfocando a fisiologia do desenvolvimento normal da gestação e do concepto às necessidades médicas, psicológicas e sociais da adolescente […]”, no qual também há referência a uma abordagem biopsicossocial.
Os requisitos mínimos do PRM em Pediatria também sofreram alterações, as quais se deram pela resolução da CNRM nº 1, de 29 de dezembro de 2016. Neste documento, são citados além da distribuição da carga horária, os conhecimentos e competências esperados para cada ano da residência. No entanto, entre as diversas competências ali presentes, não há menção à competência da abordagem espiritual/religiosa. Apesar disso, a abordagem biopsicossocial é citada no trecho referente a um dos conhecimentos e competências a serem desenvolvidas no primeiro ano da residência: “reconhecer a importância das condições ambientais, psicológicas e socioculturais no atendimento de crianças e adolescentes”. Além disso, também há a menção do cuidado integral entre as habilidades e atitudes a serem desenvolvidas no segundo ano de residência: “prestar atendimento integral à saúde do adolescente”.
Assim, pode-se notar que, apesar de para algumas especialidades haver a menção de uma abordagem biopsicossocial ou atenção/cuidado integral, apenas no texto referente à Psiquiatria há menção à espiritualidade/religiosidade.
Discussão
Apesar do texto das DCN não abordar explicitamente a dimensão da espiritualidade/religiosidade, metade dos PPPs analisados avançam nesta direção. Foram observadas diferenças regionais e também em relação ao tempo de existência da universidade. Tal resultado demonstra a diversidade nos programas oferecidos, como prevê o texto geral da DCN (BRASIL, 2001, parecer CNE/CES nº 583, de 4 de abril de 2001). Ao mesmo tempo, defende-se que a variação e flexibilidade dos programas deve buscar melhor atender às necessidades e peculiaridades das regiões, neste sentido a dimensão espiritual/religiosa deveria estar presente.
A escassez da menção à competência da abordagem da dimensão espiritual/religiosa nos documentos regulamentadores da formação médica observada no presente estudo contribui para o debate sobre a falta de estudos brasileiros que lidam com a incorporação da espiritualidade/religiosidade na educação médica.
Uma revisão bibliográfica (LUCCHETTI et al., 2012bLUCCHETTI, G.; LUCCHETTI, A. L.; PUCHALSKI, C. M. Spirituality in medical education: global reality? J Relig Health 2012b;51:3-19) indica que há predominância de estudos relacionados a saúde/medicina e espiritualidade nos cursos médicos nos EUA e no Canadá. Os estudos encontrados na revisão abordam temas como a inserção da espiritualidade em cursos de educação médica, a incorporação em cursos de residência médica e especialização, maneiras de incorporar a espiritualidade nos currículos médicos, número de escolas médicas que possuem cursos que abordam a espiritualidade na graduação, e aspectos espirituais de estudantes de medicina, residentes e professores. Foi apontado que 75% das escolas médicas dos EUA fornecem ensino sobre questões religiosas e espirituais com aplicação à medicina (PUCHALSKI, 2006PUCHALSKI, C. M. Spirituality and medicine: Curricula in medical education. Journal of Cancer Education, 2006,21(1),14-18.). Outras pesquisas apontam que 90% das escolas de medicina dos EUA (KOENIG et al., 2010KOENIG, H. G. et al. Spirituality in Medical School Curricula: Findings from a National Survey. Int J Psychiatry Med. 2010,40:391-398.) e 59% das escolas de medicina britânica (NEELY e MINFORD, 2008NEELY, D.; MINFORD, E.J. Current status of teaching on spirituality in UK medical schools. Medical education. 2008, 42:176-182.), possuem cursos ou conteúdo em espiritualidade e saúde.
Já no contexto brasileiro, em um estudo de Lucchetti et al. (2012aLUCCHETTI, G. et al. Spirituality and health in the curricula of medical schools in Brazil. BMC Med Educ. 2012a;12(1):78) sobre o ensino de espiritualidade e saúde nas escolas médicas no Brasil, observou-se que menos da metade fornece alguma forma de ensino sobre o assunto e poucas escolas (10,4% das 86 escolas pesquisadas) têm cursos que abordam especificamente a espiritualidade e a saúde, sendo que, em quatro escolas privadas, o conteúdo foi desenvolvido em disciplinas obrigatórias e nas 5 demais, públicas, em disciplinas eletivas. Entretanto, a maioria dos diretores médicos (54%) acreditam que esta questão é um assunto importante que deve ser ensinado.
Estudo mais recente (CONDE et al., 2019CONDE, S. R. S. S. et al. A espiritualidade nos currículos das escolas médicas da região norte e a visão do interno de medicina sobre sua importância na formação. Interdisciplinary Journal of Health Education. 2019;4(1-2):9-18) investigou a presença formal da espiritualidade nos currículos das escolas médicas da região Norte do Brasil, bem como a perspectiva dos internos de medicina sobre a importância da espiritualidade como parte do cuidado integral ao ser humano. Observou-se que das dezesseis escolas médicas selecionadas, apenas duas, ambas privadas, apresentavam a temática da espiritualidade no currículo das suas instituições. Em relação à perspectiva do estudante de medicina, 70,6% concordam que a espiritualidade deveria fazer parte dos currículos dos cursos de medicina.
Em um estudo de Lucchetti et al. (2013LUCCHETTI, G., DE OLIVEIRA, L.R., KOENIG, H.G. et al. Medical students, spirituality and religiosity-results from the multicenter study SBRAME. BMC Med Educ 13, 162 (2013).), foi encontrado similar resultado. Dos estudantes de doze escolas médicas que participaram do estudo, 71,2% acreditam que a espiritualidade tem impacto na saúde do paciente. A maioria também gostaria de abordar espiritualidade/religiosidade na prática clínica (58%). No entanto, em relação ao preparo para abordagem do tema, quase metade (48,7%) se sentem despreparados. Em relação ao treinamento para tal abordagem, 81% referem nunca terem participado de uma atividade sobre saúde e espiritualidade.
Esses estudos evidenciam que a temática da espiritualidade/religiosidade não está presente na maioria dos currículos das escolas médicas, comprometendo a formação do estudante para abordar tal tema no contexto de cuidado ao paciente. Isso encontra paralelo nos resultados aqui encontrados, em que 50% das escolas médicas selecionadas por esse estudo não mencionam a abordagem da espiritualidade/religiosidade em seus PPPs.
Já a literatura sobre a incorporação da temática de espiritualidade/religiosidade e saúde durante a residência médica é ainda escassa e evidencia um cenário que requer muitos avanços. Nos EUA, houve a implementação de cursos de espiritualidade e saúde em programas de residência em medicina interna, psiquiatria e medicina de família. (PUCHALSKI, 2006PUCHALSKI, C. M. Spirituality and medicine: Curricula in medical education. Journal of Cancer Education, 2006,21(1),14-18.). Entretanto, muitos avanços ainda são necessários. Em um estudo realizado nos EUA com a avaliação do treinamento em espiritualidade e cuidado em saúde nos programas de residência médica de medicina de família, aproximadamente 92% dos diretores dos programas disseram ser o ensino da espiritualidade importante. No entanto, apenas 31% dos programas têm um currículo específico (com média de 6 horas) para ensinar espiritualidade e cuidado em saúde para seus residentes (KING e CRISP, 2005KING, D. E.; CRISP, J. Spirituality and Health Care Education in Family Medicine Residency Programs. Fam Med 2005;37(6):399-403.).
Comparado ao progresso do tema em outros países, o reconhecimento da importância da espiritualidade e religiosidade para a saúde, bem como de sua abordagem na prática médica não parece estar sendo suficiente para promover mudanças nos documentos regulamentadores dos PRM no Brasil. Isso pode impactar na garantia da efetiva abordagem do tema nos programas de residência médica.
Para além das análises aqui mencionadas, o presente estudo permitiu observar que as resoluções da CNRM que dispõem sobre os requisitos mínimos dos programas de residência médica das especialidades reconhecidas no Brasil não possuem um padrão do texto, de modo que há divergências do conteúdo entre as especialidades. Assim, nem todas as especialidades explicitam as competências a serem desenvolvidas ao longo da formação profissional. Além disso, a maioria das especialidades não teve seu texto atualizado desde a resolução de 2006 em vigor. Dessa forma, não ocorreu uma adaptação às necessidades evidenciadas na atualidade.
Faz-se necessário pontuar que o artigo tem como base a análise documental de textos produzidos entre 2006 e 2019, logo os resultados tratam da realidade vigente até 2019, ou seja, são datados. Sabe-se, por exemplo, da dinâmica dos PPPs e também que o CNRM aprovou em novembro de 2018 Matrizes de Competências para 45 especialidades. De toda forma, ciente das rupturas e permanências envolvidas no processo regulatório, o resultado do presente artigo mapeia a abordagem da espiritualidade/religiosidade em documentos nacionais e de universidades federais. Documentos de outra natureza, como os PPPs de universidades estaduais e privadas, bem como programas específicos elaborados pelas instituições que oferecem residência médica poderiam acrescentar novos elementos a discussão. Ressalta-se ainda que os achados referentes aos PPPs são trazidos para exemplificar a operacionalização das DCNs pelas instituições e não pretendem ser generalizáveis, uma vez que a amostra selecionada não busca ser representativa do universo dos cursos existentes.
Como já mencionado, a falta de padrão estabelecido para o conteúdo dos textos sobre os requisitos mínimos dos PRM das diversas especialidades, faz com que haja variação de conteúdo e formato entre os textos das especialidades. Outro fator limitante é que a abordagem da dimensão espiritual/religiosa seria uma necessidade que pode estar embutida em outras competências mais amplas, como o cuidado biopsicossocial, podendo limitar que o termo “religiosidade” ou “espiritualidade” seja explicitado na descrição das competências.
Como observado em outras análises de políticas públicas (ALESSSIO et al, 2016; COSTA et al 2017COSTA P.H.A; RONZANI T.M; COLUGNATI F.A.B. “No papel é bonito, mas na prática…” Análise sobre a rede de atenção aos usuários de drogas nas políticas e instrumentos normativos da área. Saúde Sociedade. 2017,26(3):738-750.), é essencial reforçar e defender a potência dos marcos regulatórios, construídos de forma democrática. Entende-se que tais documentos sejam uma forma de promover e assegurar a melhoria progressiva da formação em saúde, incorporando evidências e corroborando para a oferta do cuidado integral preconizada no SUS.
Cabe lembrar que o SUS prevê e assegura a participação social e o controle social como forma dos cidadãos participarem das políticas públicas. Entende-se ainda que tais políticas são dinâmicas - mudam e se transformam - a partir de embates entre atores implicados (SILVA e Baptista, 2014SILVA, P. F.A; BAPTISTA, T.W.F. Os sentidos e disputas na construção da Política Nacional de Promoção da Saúde. Physis [online]. 2014, 24 (2): 441-465.). Como os documentos analisados são produzidos e aprovados por Conselheiros de naturezas distintas, espera-se que a participação represente, em última instância, os interesses da população. Como apontado por Aith (2019) “Zelar para que o interesse público prevaleça é eixo estruturante para assegurar o direito a saúde e a consolidação do SUS”.
Conclusão
Considerando as três instâncias de documentos analisados, podemos afirmar que a competência da abordagem da dimensão espiritual/religiosa ainda é pouco abordada nos documentos norteadores gerais, sendo observada em documentos locais. O fato de a competência cultural da abordagem da dimensão espiritual/religiosa do paciente não ser mencionada nas DCN de medicina e ser citada apenas nos requisitos mínimos de Psiquiatria evidencia que os avanços no conhecimento da importância da abordagem espiritual/religiosa na prática clínica não estão tendo reflexo em documentos que regulamentam a educação médica no Brasil. A presença da dimensão espiritual/religiosa nos PPPs mostra a potência de marcos norteadores locais. De toda forma, sugere-se então que os espaços institucionalizados, responsáveis pela formulação, monitoramento e avaliação de tais documentos, estimulem e garantam o debate sobre o tema, buscando a incorporação e a consolidação de melhorias progressivas na formação em saúde, em direção ao cuidado integral.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Dez 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
04 Dez 2019 - Aceito
06 Abr 2020 - Revisado
14 Out 2021