Resumo
A Saúde Coletiva brasileira analisou frequentemente o neoliberalismo como um fenômeno de esvaziamento do papel do Estado e de ameaça à saúde pública e universal. Tomando como subsídio o pensamento governamental de Foucault, discutimos o neoliberalismo como uma profunda metamorfose, não apenas do Estado, mas dos modos de produção de saúde. Enquanto atualização permanente do liberalismo, o governo neoliberal modifica as fronteiras entre público e privado e fabrica novas formas de normalidade, risco e subjetividade, progressivamente subordinados à verdade da economia e do mercado. Esta racionalidade econômica cria ideais de saúde inspirados em técnicas gerenciais de empresas e produz novas verdades biológicas, sanitárias, psicológicas. Restrita a “empresários bem-sucedidos de si mesmos”, a saúde pode se transformar em uma escolha moral e econômica em relação ao comportamento e ao risco individual, desresponsabilizando o Estado e criando um tipo de cidadania econômica destituída de solidariedade. Contudo, o jogo em torno de instituições e práticas de saúde não empresariais segue em aberto. Cabe-nos colocar em dúvida as formas de vida “responsáveis” e “seguras” que foram inventadas para nós, e desenvolver outras governamentalidades menos excludentes e desiguais em relação às que temos naturalizado e praticado.
Palavras-chave:
Neoliberalismo; Governo; Saúde Coletiva
Uma importante geração de trabalhadores, pesquisadores e militantes do movimento sanitário brasileiro foi forjada em lutas por cidadania e direitos. A possibilidade de existência do SUS foi diretamente influenciada pelas múltiplas experiências de democratização do país, contexto no qual também emergiu o campo teórico-prático da Saúde Coletiva brasileira (CARVALHO, 2005CARVALHO, S. R. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Editora Hucitec , 2005.). Nele, comparece de forma marcante a defesa das políticas públicas, dos direitos sociais e do fortalecimento e expansão do Estado, unificando historicamente o movimento sanitário brasileiro, a despeito de importantes polêmicas, debates e diferenças internas.
Podemos afirmar, assim, que a história da Saúde Coletiva brasileira - e também da Medicina Social latino-americana - foi e segue atravessada por uma visão negativa do “neoliberalismo”, visto enquanto um fenômeno político-econômico que coloca em risco princípios da Reforma Sanitária e da implementação de um sistema público, universal e integral de saúde. Identifica-se e analisa-se, neste contexto, a contradição entre o princípio constitucional da “Saúde como um direito de todos e um dever do Estado” e as políticas neoliberais que, a partir do governo Collor, apresentariam uma crescente importância no cenário político e econômico brasileiro. O SUS, que formalmente se institucionaliza enquanto política pública no Brasil em 1990, passa a ser tensionado por iniciativas que colocaram inúmeros obstáculos à sua consolidação.
O neoliberalismo é associado, nesta perspectiva hegemônica, ao esvaziamento do papel do Estado na provisão de serviços públicos e à produção de desigualdades, mercantilização da vida e financeirização da economia. Em nome do livre jogo do mercado e da acumulação do capital, limita gastos sociais e tem como imagem-alvo um Estado menor, eficaz, desburocratizado e subordinado à iniciativa privada (CARVALHO, 2009CARVALHO, S. R. Reflexões sobre o tema da cidadania e a produção de subjetividade no SUS. In: CARVALHO, S. R.; BARROS, M. E. B. DE; FERIGATO, S. (Eds.). Conexões: saúde coletiva e políticas de subjetividade. Saúde em debate. São Paulo: Editora Hucitec , 2009.).
Distintas reflexões (CAMPOS, 1991CAMPOS, G. W. S. A saúde pública e a defesa da vida. São Paulo: Editora Hucitec, 1991.; COHN, 2008COHN, A. A reforma sanitária brasileira: a vitória sobre o modelo neoliberal. Social Medicine, v. 3, n. 2, p. 82-94, 8 jul. 2008.; LAURELL; COHN; CONTRERA, 2009LAURELL, A. C.; COHN, A.; CONTRERA, R. L. Estado e políticas sociais no neoliberalismo. São Paulo: Cortez, 2009.; MERHY; BUENO, 1996MERHY, E.; BUENO, W. S. Os equívocos da NOB 96: uma proposta em sintonia com os projetos neoliberalizantes? Anais da Conferência Nacional de Saúde. Brasília, 1996.; PAIM; TEIXEIRA, 2007PAIM, J. S.; TEIXEIRA, C. F. Configuração institucional e gestão do Sistema Único de Saúde: problemas e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. supl, p. 1819-1829, nov. 2007.) afirmam que o neoliberalismo rechaça o conceito dos direitos sociais, a obrigação da sociedade de garanti-los via Estado e que suas ações no setor da saúde ferem a Reforma Sanitária e a própria Constituição Federal, através de cortes fiscais e privatizações. Ainda que com diferenças internas e distintas ênfases, tais leituras veem o neoliberalismo como um obstáculo à consolidação organizativa e política do SUS, tornando-o ainda mais vulnerável ao desmonte.
Compartilhamos, neste sentido, da posição de boa parte dos estudiosos da Saúde Coletiva de que a resistência à ofensiva neoliberal sobre a Reforma Sanitária não só segue atual, mas se faz cada vez mais urgente e necessária. Diariamente, novos ataques a direitos duramente conquistados e retrocessos em distintos campos traduzem-se em um movimento permanente que busca minar a conquista histórica e democrática do direito à Saúde enquanto dever do Estado, consagrado na Constituição de 1988.
No que se segue, buscamos contribuir para este movimento de resistência e de necessária reinvenção das premissas fundantes do SUS, por meio de um esforço teórico crítico que, sem deixar de reconhecer e afirmar a importância de princípios essenciais e práticas bem-sucedidas, busca explorar e desenvolver novas ofertas teóricas para a consolidação do sistema público e universal em tempos de intensificação neoliberal, conservadora e autoritária.
Nossos aportes teóricos para o debate buscam, com especial atenção, trazer “novas” perspectivas para se pensar o neoliberalismo, enfatizando-o menos como um sistema macroeconômico e político e mais enquanto uma racionalidade de governo e de produção dos nossos regimes de verdade, de poder e de subjetividade, que vem modificando profundamente a forma como pensamos e organizamos o campo da saúde. Seus princípios e valores não apenas transformaram o governo do Estado, mas, de forma difusa e capilar, também da saúde, das relações de trabalho, práticas educacionais e de diferentes aspectos da vida humana.
Tomaremos como subsídio o pensamento “governamental” de Michel Foucault e de autores contemporâneos que com ele vem dialogando (BARRY; OSBORNE; ROSE, 1996BARRY, A.; OSBORNE, T.; ROSE, N. (Eds.). Foucault and Political Reason: Liberalism, Neo-Liberalism, and Rationalities of Government. Chicago: University of Chicago Press, 1996.; BROWN, 2015BROWN, W. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.; DEAN, 2010DEAN, M. Governmentality: power and rule in modern society. 2a ed. London; Thousand Oaks, California: SAGE, 2010.; GORDON, 1991GORDON, C. (Ed.). The {Foucault} effect: studies in governmentality: with two lectures by and an interview with {Michel} {Foucault}.Chicago: University of Chicago Press , 1991.; MILLER; ROSE, 2013MILLER, P.; ROSE, N. S. Governing the present: administering economic, social and personal life. Cambridge Malden: Polity Press, 2013.; OKSALA, 2013OKSALA, J. Feminism and Neoliberal Governmentality. Foucault Studies, p. 32-53, 22 ago. 2013.; ROSE, 1999), incluindo os vinculados ao campo da Saúde Coletiva brasileira (BENEVIDES; PRESTES, 2014BENEVIDES, P. S.; PRESTES, T. K. A. Biopolítica e governamentalidade: uma análise da Política Nacional sobre Drogas. ECOS - Estudos Contemporâneos da Subjetividade, v. 4, n. 2, p. 274-287, 6 dez. 2014.; CAPONI, 2014CAPONI, S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 24, n. 3, p. 741-763, set. 2014.; CARVALHO, 2015CARVALHO, S. R. Governamentalidade, ‘Sociedade Liberal Avançada’ e Saúde: diálogos com Nikolas Rose (Parte 1). Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 19, n. 54, p. 647-658, set. 2015.; CARVALHO; ANDRADE; OLIVEIRA, 2019ANDRADE, H. S. DE; CARVALHO, S. R.; OLIVEIRA, C. Governo da subjetividade (e resistências) da clínica na atenção primária. In: CARVALHO, S. R. et al. (Orgs.). Vivências do cuidado na rua: produção de vida em territórios marginais. Rio de Janeiro: Rede Unida, 2019. p. 109-122.; MERHY ., 2019MERHY, E. E. et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde em Debate, v. 43, n. spe6, p. 70-83, 2019.) para discutir o governo neoliberal do Estado e da saúde. Interessa-nos, sobretudo, interrogar se nossas aspirações por direitos sociais têm sido obstruídas não apenas por um ideário neoliberal presente na conformação do Estado e das políticas públicas brasileiras, mas também por uma complexa reconfiguração das formas do governo da saúde, da subjetividade e de nossas relações com os outros e com nós mesmos.
Governamentalidade, biopolítica e liberalismo
No curso “Segurança, Território e População”, Foucault (2008aFOUCAULT, M. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a.) analisa a transformação e reativação das técnicas jurídico-legais e disciplinares de poder no contemporâneo e o desenvolvimento, complexificação de novas práticas e tecnologias de governo. Essa passagem no pensamento do filósofo torna-se possível através do diagrama da governamentalidade.
A fusão entre as palavras “governo” e “mentalidade” indica não ser possível estudar as tecnologias políticas sem a análise das formas de pensar e agir que as entrelaçam. As formas de poder político, a partir do século XVIII, estavam ligadas ao crescimento de dispositivos de governo e a um complexo campo de saberes sobre o próprio governo, seus modos de exercício e a natureza daqueles sobre os quais deveria agir (MILLER; ROSE, 2013MILLER, P.; ROSE, N. S. Governing the present: administering economic, social and personal life. Cambridge Malden: Polity Press, 2013.).
É proposto, então, um uso variado do conceito de governo para além de sua denotação estritamente política. Foucault parte de uma formulação de um texto pouco conhecido, escrito em 1567 por Guillaume de La Perrière - “governo é a correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para conduzi-las para um fim adequado” -, para afirmar que governar significa encarregar-se dos homens, de suas relações, de seus vínculos, em suas imbricações com seus costumes, hábitos, maneiras de fazer ou de pensar. Esse deslocamento no sentido de governo produz uma importante clivagem no sentido tradicional do exercício do poder político. Aponta-se aqui o governo como uma ação com níveis variados de sistematicidade, regulação, autorreflexão, e que vai, portanto, além de um exercício espontâneo, fluido e aleatório de poder (ANDRADE; CARVALHO; OLIVEIRA, 2019CARVALHO, S. R.; ANDRADE, H. S. DE; OLIVEIRA, C. F. DE. O governo das condutas e os riscos do risco na saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 23, e190208, 2019.).
Não se trata, portanto, nem de uma autoridade constituída ou um Estado soberano, mas no exercício de “condução da conduta” de indivíduos e grupos, isto é, uma ampla e heterogênea teia de administração da conduta individual e coletiva, conectada a procedimentos de cálculo, experimento e avaliação. Além disso, a “mentalidade” é vista não como representação da realidade, mas da perpétua fabricação dos regimes discursivos de saber, onde o exercício de poder é pensável, racionalizável e tornado possível de ser praticado (LEMKE, 2002LEMKE, T. Foucault, Governmentality, and Critique. Rethinking Marxism, v. 14, n. 3, p. 49-64, set. 2002.).
A governamentalidade passa a ser um vetor na obra de autores que perceberam a potência do conceito para pensar o Estado e a política, mas também outros fenômenos sociais não diretamente estatais ou públicos. Sem buscar unificar uma teoria geral de governo, os estudos realizados a partir dessa perspectiva investigam a heterogeneidade das autoridades governantes e dos problemas em torno dos quais as problematizações acerca do governo se formaram. Neles, as técnicas e práticas de poder não seriam reflexo ou representação de uma finalidade política idealizada, mas efeitos dos próprios usos das ferramentas e dispositivos de governo, das possibilidades e limites de seus regimes de verdade e prática. Analisar o governo significa, aqui, interrogar como determinado problema foi moldado de uma forma “pensável e administrável”; os locais onde esses problemas se formaram e as autoridades responsáveis por enunciá-los; as técnicas e dispositivos inventados; os modos de autoridade e de subjetividade engendrados. Logo, não apenas as finalidades dessas ambições e estratégias (ROSE, 1999, p. 21-22ROSE, N. Powers of Freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.).
Esse diagrama cumpre uma série de funções na análise do poder. Além de oferecer uma visão que rompe com a ideia de poder como dominação ou violência, conecta as técnicas do eu (self) com práticas de vigilância, disciplina, dominação e aprimoramento e pensa em conjunto a constituição da subjetividade com a própria formação do Estado e dos dispositivos históricos que o formataram (a medicina, a psiquiatria, a prisão, o hospital, a fábrica etc.). A clivagem do sentido de governo como “condução da conduta” implica em um vínculo entre poder político e moralidade, isto é, em pensar as próprias ações (ou as ações do outro) a partir de uma autorregulação ligada a certos valores, princípios e julgamentos. Nesse sentido, governar sempre envolve uma aspiração e relação a valores de uma vida “boa”, “virtuosa” e “desejável”. Além disso, o governo não exige sempre um governante e um governado: o próprio indivíduo vai colocando em questão a própria conduta e buscando cada vez uma maior capacidade de conduzi-la de forma que julga adequada, responsável, virtuosa, saudável, lucrativa, moralmente aceitável etc.
Estas análises, portanto, observam não apenas o exercício da autoridade e poder sobre os cidadãos, o Estado, a população, mas também as formas como governamos a nós mesmos. Fazendo uma conexão intrínseca entre governo e subjetividade, lançam olhar sobre como são formatados nossos desejos, escolhas, necessidades; nossa busca por saúde e normalidade; nossos ideais de autonomia e autoestima e nossos modos de experienciar a vida.
O exercício dessas técnicas e práticas de poder vai exigir não apenas mecanismos disciplinares sobre os indivíduos, mas também o governo sobre a população. É em nome da saúde da população, de sua longevidade, bem-estar, prosperidade, segurança, felicidade etc. que diferentes formas e práticas de governo, incluindo as que têm como centro o Estado, vão se estruturar historicamente.
Nesse vértice entre governo e população, insere-se o conceito da biopolítica. Entenderemos aqui a biopolítica, de forma geral, como uma política relativa à administração da vida e especialmente no âmbito das populações. Uma forma de pensar e problematizar a prática do governo em relação à saúde, expectativa de vida, taxa de nascimentos e mortalidade, questões raciais e um conjunto amplo de atributos que caracterizam e constituem a população (DEAN, 2010DEAN, M. Governmentality: power and rule in modern society. 2a ed. London; Thousand Oaks, California: SAGE, 2010.; ESPOSITO, 2008ESPOSITO, R. Bios: Biopolitics and Philosophy. Tradução: Timothy Campbell. 1 ed. Minneapolis: Univ. Minnesota Press, 2008.; GORDON, 1991GORDON, C. (Ed.). The {Foucault} effect: studies in governmentality: with two lectures by and an interview with {Michel} {Foucault}.Chicago: University of Chicago Press , 1991.; RABINOW; ROSE, 2006RABINOW, P.; ROSE, N. Biopower Today. BioSocieties, v. 1, n. 2, p. 195-217, jun. 2006.; SAFATLE, 2015SAFATLE, V. Uma certa latitude: Georges Canguilhem, biopolítica e vida como errância. Scientiae Studia, v. 13, n. 2, p. 335-367, jun. 2015.).
A gestão da vida liga-se aqui à economia política: como as famílias vivem, sob quais condições, quantas vezes por dia se higienizam, como se reproduzem, como adoecem, que tipo de trabalhos exercem, a que riscos estão expostas. Em suma, um conjunto de questões nas quais a medicina social, a saúde pública, a assistência social e outros campos de saber e poder vão se debruçar e estruturar suas estratégias biopolíticas.
Administrar a vida significa mapear todo esse corpo social e identificar seus possíveis focos de perigo, erro e anormalidade. Risco e normalidade assumem, dessa forma, funções centrais: mais do que disciplinar, vigiar e punir quem viola a lei e as normas sociais, é necessário calcular, em nome da segurança do conjunto da população e da manutenção da estabilidade, as possibilidades e os índices “normais” e “aceitáveis” de violação dessas normas. Para governar a população, são necessários não apenas leis e normas, mas um ideal permanente de normalidade e normalização. Quais os níveis adequados para os crimes de uma cidade? Qual o máximo de pessoas que podem passar fome sem que haja uma rebelião? Quantos assassinatos? Qual a taxa de mortalidade infantil ideal? O quanto de desigualdade em uma sociedade é aceitável? Em suma, governar é gerenciar risco e calcular como diminuir ou aumentar as chances de determinado evento, como interferir em fatores que interferem nessa probabilidade e como predizer fenômenos e eventos individuais e populacionais.
Governamentalidade e biopolítica são, assim, eixos transversais nessa análise histórica das mutações do exercício do poder político. A biopolítica (e, de forma mais ampla, o biopoder) não significam uma estratégia consciente de uma classe dominante ou um conjunto único de interesses. Ainda que intrínsecos à história e à proliferação dos mecanismos estatais, esses dispositivos biopolíticos não são criados pelo ou por causa do Estado, stricto sensu. A medicina moderna, a Saúde Pública, a epidemiologia, a psiquiatria, a assistência social vão formar uma multiplicidade de formas e fontes de autoridade, de expertise, de regimes de verdade e prática que não têm exatamente o Estado como ponto de origem ou destino, mas que se relacionaram com a emergência da estrutura estatal e das práticas de governo ligadas a ela.
Em vez de ver o liberalismo, a partir do século XVIII, como um conjunto teórico coerente ou uma estrutura político-institucional consolidada, o pensamento governamental opta por defini-lo como uma forma de apresentar e racionalizar problemas. O liberalismo, nesse sentido, é uma racionalidade prática que se metamorfoseia de acordo com o próprio contexto com o qual se debruça: contra o poder soberano e a Razão de Estado, contra o totalitarismo, contra o papel do Estado em garantir direitos fundamentais, contra a coletivização de responsabilidades. Nesse sentido, é um compósito de atividades nem sempre estritamente vinculadas ao Estado ou à política - aqui entendida na sua concepção clássica -, que vai tanto fabricar tecnologias específicas de governo e interesses, além de escolhas e desejos de indivíduos e grupos, quanto conectar estas tecnologias aos novos domínios subjetivos que vão se formando.
Tomemos, por exemplo, a liberdade. Para este pensamento governamental, a liberdade não é uma constante antropológica ou um valor universal, mesmo que afirmada pelos pensadores liberais como um princípio, mas uma relação entre governantes e governados. A liberdade acaba sendo uma necessidade do exercício do governo, que é obrigado a produzi-la, consumi-la, organizá-la e geri-la. O liberalismo não é tanto um imperativo de liberdade, mas um modo de produção e de desejo de liberdade.
Assim, o governo liberal transforma-se em um jogo permanente entre a necessidade de uma regulamentação dessa liberdade, que busca também estabelecer limites para essas intervenções. É nesse aparente paradoxo que se dá seu florescimento: contra um Estado que supostamente governa demais, o governo liberal revisa e cria continuamente formas de governo do próprio Estado e em outros campos de saber e poder que modificam e reestruturam as práticas de poder estatais e não estatais.
Tanto a biopolítica quanto o governo liberal representam a invenção e configuração de um amplo e heterogêneo espectro de tecnologias, cálculos e estratégias para gerenciar a vida econômica, saúde e hábitos da população, civilidade das massas e assim por diante. É no exercício do ato de governar que se definem e atualizam os limites do que é ou não estatal, do que é ou não político, do que é público ou privado, do que é ligado à responsabilidade do indivíduo ou do coletivo.
Dessa forma, o governo liberal é, em certo sentido, a possibilidade de realização e, ao mesmo tempo, de contestação das estratégias biopolíticas. Dizer isto envolve afirmarmos que o liberalismo engloba o conjunto de práticas políticas que também fabricaram o que entendemos hoje como o “bio”, o “psico” e o “social”, o “indivíduo”, a “liberdade” e também a própria “economia”, o “mercado” e o “Estado”.
Isso não significa dizer que as problemáticas sociais nascem com o liberalismo, mas que uma série de problematizações sobre a questão social (a miséria, a criminalidade, a fome, as decisões sobre a família, o trabalho, as condições urbanas e sanitárias etc.) serão abordadas pelo governo liberal, a partir da emergência histórica de instituições específicas e campos de saber e poder.
O governo liberal vai construir a própria noção de “sociedade” como um domínio complexo e permeado por interesses antagônicos, em torno dos laços individuais, familiares, comunitários e nacionais. A coesão social coexiste com a ruptura e o conflito, e será necessário elaborar normas e normalidades abstratas para administrar os indivíduos de forma regulada e calculada.
Aqui o homo economicus, um sujeito racional que baseia suas escolhas em interesses econômicos, é central para forjar o indivíduo e a própria noção de sociedade civil. Emergem daí questões centrais para a Saúde Pública: normas médicas e educacionais dentro da família, o desenvolvimento de estatísticas sobre doenças, censos sobre a pobreza, criminalidade, suicídios, uso de álcool, etc. (DEAN, 1994DEAN, M. “A Social Structure of Many Souls”: Moral Regulation, Government, and Self-Formation. The Canadian Journal of Sociology, v. 19, n. 2, p. 145-168, 1994.; DONZELOT, 2012DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012.).
Essa economia liberal de governo não apenas fabrica as formas de governar, mas também os saberes sobre aqueles que serão governados. Epidemiologistas, sanitaristas, administradores, psicólogos e outros especialistas identificarão quem se reproduz de forma irresponsável, quem é negligente em relação à própria higiene, quais as moradias inadequadas, quais as crianças com maior risco de dificuldade escolar, que terão maior chance intrínseca de se tornar um criminoso, e assim por diante.
Essa miríade de práticas não foi organizada e desenvolvida de forma coerente ou planejadas de forma unificada, mas formou um “vocabulário comum” em torno de valores como a saúde (e a normalidade), a educação, a segurança, o controle do risco e a subjetividade. É este vocabulário comum que vai formatar também o conjunto de aspirações políticas e experiências históricas que buscavam aumentar direitos e a participação popular, diminuir a desigualdade e melhorar indicadores de desenvolvimento social.
Ainda que comumente visto enquanto defensor de um princípio genérico de liberdade, o governo liberal exige a proliferação e generalização dos procedimentos de vigilância e controle sobre os próprios indivíduos, em nome da garantia dessa mesma liberdade. A expansão da soberania e dos Estados-Nação - concomitante à própria emergência do liberalismo - vai difundir e proliferar a existência tanto de instituições disciplinares, como o hospital, a fábrica, o manicômio, a prisão etc., quanto de tecnologias de segurança da população, como a sexualidade, a epidemiologia, a planificação econômica etc. Nesse sentido, a norma e a normalidade assumem papel fundamental para a proliferação das práticas de governo, para além da lei soberana, e a ampliação desse domínio “biopolítico” depende dessas práticas governamentais.
Ou seja, o indivíduo político do liberalismo aparece nessa dualidade paradoxal: como cidadão dotado de direitos e liberdades e como sujeito normalizado. É representado como um agente racional de interesses, mas dependente de um governo adequado, que o faça exercer suas escolhas e sua liberdade de forma adequada, produzindo uma normalização que será essencial para o governo neoliberal da saúde.
(Re)leituras do governo neoliberal
Mais do que uma forma do capitalismo ou do Estado, o neoliberalismo vem sendo descrito por muitos estudiosos como uma racionalidade de governo que modifica e dissemina todas nossas práticas sociais (BROWN, 2015BROWN, W. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.; DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1a ed. São Paulo: Boitempo, 2016.; DEAN, 2014DEAN, M. Rethinking neoliberalism. Journal of Sociology, v. 50, n. 2, p. 150-163, 1 jun. 2014.), modificando profundamente a forma como pensamos e organizamos o campo da saúde. Tais reflexões utilizam a obra de Foucault em torno da emergência do pensamento neoliberal (FOUCAULT, 2008bFOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes , 2008b.) e recorrem ao conceito de governamentalidade para pensar essa dobra entre o governo dos outros com o de si e a produção de subjetividade. Ou seja, a forma como o neoliberalismo formata as relações de nós com nós mesmos enquanto trabalhadores, consumidores, membros de uma família, com orientações e opções sexuais, e outras diversas identidades.
O filósofo francês parte da compreensão da teoria capital-trabalho presente na obra de Marx para desdobrá-la em relação à teoria norte-americana do capital humano. Realiza uma significativa mutação discursiva: não mais trabalho abstrato e força de trabalho da classe operária como oposição dialética à realidade histórica do capital, mas qualificação do capital humano do próprio trabalho e aumento de capital.
Essa metamorfose abre espaço para os trabalhadores se verem como empreendedores de si mesmos: pela primeira vez, o trabalhador não está presente na análise econômica enquanto um objeto - de oferta e demanda de força de trabalho - mas como um “sujeito econômico ativo” (DEAN, 2017b, p. 30DEAN, M. The Secret Life of Neoliberal Subjectivity. In: SCHRAM, S. F.; PAVLOVSKAYA, M. (Eds.). Rethinking Neoliberalism: Resisting the Disciplinary Regime. 1. ed. New York: Routledge, 2017b.). A composição genética, o comportamento, as escolhas em relação à criação dos filhos, sua educação, estrutura familiar, cada um desses fatores e decisões influenciam na renda futura dos indivíduos-empresas.
Politicamente posicionados à esquerda, tais autoras e autores utilizam os pensamentos de Foucault justamente para ampliar o espectro da análise de como o capital permeia a produção de subjetividade. Buscam romper com a concepção de um neoliberalismo como uma fase atualizada e ideológica do capitalismo e usam o pensamento do autor francês para criticar os efeitos do neoliberalismo sobre as condições de vida e sobre a subjetividade dos trabalhadores e da maior parte da população (BROWN, 2015BROWN, W. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.; DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1a ed. São Paulo: Boitempo, 2016.).
O autor francês vai nos mostrando, de forma embrionária, as diferenças sutis entre sofisticadas teorias que faziam emergir uma nova racionalidade de governo a partir do século 20 em dois contextos específicos, a saber: o ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo da Escola de Chicago. Já inicia, portanto, suas reflexões chamando a atenção à pluralidade das formas recentes de neoliberalismo, suas fronteiras nacionais e seus contextos temporais particulares. Isso traz o neoliberalismo para a análise como algo identificável e estudável, mais plural, contingente e historicamente enraizado do que uma narrativa geral de um neoliberalismo global (DEAN, 2019DEAN, M. Rogue Neoliberalism, Liturgical Power, and the Search for a Left Governmentality. South Atlantic Quarterly, v. 118, n. 2, p. 325-342, 1 abr. 2019.).
Como o próprio autor coloca, o neoliberalismo “não é Adam Smith; o neoliberalismo não é uma sociedade de mercado. O neoliberalismo não é o gulag na escala insidiosa do capitalismo” (FOUCAULT, 2008b, p. 131FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes , 2008b.). Nesse sentido, o neoliberalismo aparece não como continuidade do liberalismo ou do capitalismo em um estágio mais desenvolvido, mas, sobretudo, como uma metamorfose crítica e atualizada das formas liberais de governo.
Mais do que uma liberdade naturalmente constitutiva dos indivíduos, típica do pensamento liberal a partir do século XVII, seus teóricos buscam construir formas ativas de liberdade. Nelas, o mercado assume função central, não apenas como resultado espontâneo das relações de indivíduos livres, mas devendo ser permanentemente legitimado e fabricado. Sua lógica de eficácia e aumento máximo de ganhos ganha autoridade e verdade científica, e deve guiar todas as práticas de governo na sociedade.
Assim, o neoliberalismo não se opõe ou esvazia o Estado, mas se apossa dele para produzir continuamente um modo verdadeiro de governá-lo. Enquanto o liberalismo clássico buscava limitar a influência do Estado sobre um mercado natural, o neoliberalismo busca fundar a própria legitimidade do Estado no mercado. Nesse sentido, o neoliberalismo enseja e fabrica uma forma específica de Estado, um conjunto de valores, princípios e práticas que modifica o exercício da soberania política, modifica as fronteiras entre o público e privado e cria permanentemente novos fluxos materiais e imateriais entre capitais, subjetividades e sociabilidades.
Em nome da diminuição do poder soberano, disciplina e dominação, há um deslocamento do governo para o sujeito individual e suas escolhas, transformando permanentemente o ambiente em que as ações se desenvolvem e cultivando atributos desejáveis em torno da competição, da virtuosidade, da riqueza, da saúde, do corpo etc. O projeto original do neoliberalismo não era tanto disciplinar sujeitos, mas cultivar atributos desejáveis de empresa e competição, agindo sobre o ambiente dos indivíduos e seu campo de escolha.
A lógica do governo neoliberal torna-se econômica em um triplo sentido - o modelo econômico empresarial é, ao mesmo tempo, “modelo, objeto e projeto” (BROWN, 2015, p. 62BROWN, W. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.). Ou seja, a economia organiza o modelo de organização do Estado, seu objeto central e seu plano de expansão em relação aos outros domínios sociais. A liberdade econômica e o mercado, visto como elementos naturalmente regulados no pensamento liberal clássico, deixam de ter uma natureza intrínseca e devem ser permanentemente atualizados e modificados.
Nesta metamorfose, a centralidade da troca dá lugar ao estímulo à competição entre capitais, o que representa uma mutação analítica importante: o mercado natural entre iguais à disputa virtuosa e desigual; e o Estado deve fomentar e garantir esta competição. No mesmo sentido, a lógica do empreendedorismo substitui a da produção. Como já afirmamos, emerge um sujeito econômico ativo - empreendedor de “si mesmo” -, regido por uma permanente avaliação de produtividade e qualidade. A sociedade não é mais uma constelação de mercadorias e trabalhadores, mas de empresas individuais e coletivas em relação.
Com a dinâmica da empresa invadindo outros campos da vida, o mercado também expande seu campo de veridicidade e validação, tornando-se a base dos regimes de verdade de qualquer experiência social. Decidir ou não ter filho, julgar um criminoso, formular um projeto de intervenção sobre a saúde de uma comunidade, formatar um currículo escolar, organizar a fila de transplante, priorizar políticas para grupos vulneráveis, decidir fornecer um leito de UTI para um idoso ou uma criança: todas as decisões precisam se guiar pela lógica das perdas e ganhos, dos custos econômicos, do investimento e da produtividade e da avaliação permanente sobre a qualidade e a satisfação em relação aos resultados.
Essa generalização da forma-empresa na sociedade produz um tipo de saúde neoliberal, resultado do trabalho permanente de vigilância e controle sobre os indicadores do corpo, da mente, sobre fatores de risco e comportamentos, ou seja, de uma “racionalização empresarial” do desejo e da subjetividade (SAFATLE; JUNIOR; DUNKER, 2021SAFATLE, V.; JUNIOR, N. S.; DUNKER, C. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. 1. Ed . [s.l.] Autêntica, 2021., p. 31). Esta criação permanente de novos ideais de normalidade e de saúde - inspiradas em técnicas gerenciais de empresas, com controle de concentração, foco, inteligência emocional e aumento da produtividade e desempenho - produz novas verdades biológicas, sanitárias, psicológicas. Opor-se a esta normalidade, a esta definição atualizada de saúde, acaba tornando-se sinônimo de falha, fraqueza e de desvio patológico.
O corpo, o processo saúde-doença, a compreensão de normalidade, o risco e a produção de subjetividade: o pensamento governamental vai justamente observar como uma racionalidade de governo empresarial influencia e modifica todos os aspectos da vida humana e das relações de poder, inclusive nossas práticas no campo da saúde.
Como temos discutido previamente, um dos elementos centrais para o governo neoliberal da saúde é o risco. Cuidar de si acaba sendo sinônimo de buscar comportamentos que evitem o risco e que possibilitem autocontrole, autoconhecimento e autoaprimoramento. E, no fim das contas, uma eterna autovigilância. Além disso, a privatização e individualização dos riscos abrem caminho para o desmonte de políticas universais e colocam em questão a própria noção de uma cidadania social, produzindo uma cidadania "econômica" como condição e como ideal de saúde, restrita a empresários bem-sucedidos de si mesmos.
Nesse ponto, o cálculo do risco não aparece apenas como instrumento vinculado a estudos epidemiológicos, mas imbricado à própria subjetivação da sociedade. Qualquer experiência social é delimitada como um comportamento, escolha e conduta individual, passível de ser quantificada, medida e analisada como fator de risco. Cabe aos experts da saúde (não apenas na assistência clínica, mas também engenheiros, analistas de sistemas, cientistas sociais etc.) e, cada vez mais, aos próprios pacientes mensurar estes comportamentos e características físicas e psicológicas para revelar as doenças, transtornos e condições médicas que possuímos e, em última instância, quem realmente somos.
Este deslocamento da saúde para o âmbito da autonomia individual produz não apenas a desresponsabilização do poder público em relação à saúde dos indivíduos e da população, mas também uma compreensão de normalidade subjetiva e “biopsicossocial” como equivalente às escolhas morais e comportamentais em relação a nós mesmos e nossos “estilos de vida”. Com isso, obesos que não emagrecem, hipertensos e diabéticos incapazes de controlar a pressão e a glicemia, infartados que seguem fumando, usuários de álcool e outras drogas que não estão em abstinência etc. têm suas vidas e escolhas tratadas como inaceitáveis, e vistos como um fardo econômico e moral para a sociedade.
Em vez de intervir sobre condições sociais relacionadas à saúde, como acesso à renda básica, alimentação, água potável e abrigo, o neoliberalismo transforma a saúde como sinônimo de um estilo de vida baseado em escolhas individuais. Cidadãos saudáveis são comparados a “bons” cidadãos; os doentes são considerados irresponsáveis (PETERSEN; LUPTON, 2000PETERSEN, A. R.; LUPTON, D. The new public health: health and self in the age of risk. London: Sage, 2000.).
A perspectiva governamental suspende antigas dualidades (“objetivo-subjetivo”, “estrutura-consciência”, “corpo-mente”, “biológico-social”, “liberdade-coerção”) e pensa a saúde imbricada a práticas de poder e a regimes de verdade. Ou seja, não somente como reflexo de um poder soberano/estatal e disciplinar/institucional, mas também como produção de sujeitos responsáveis moral e economicamente, cujas escolhas devem ser permanentemente avaliadas e validadas pela racionalidade verdadeira do mercado e da empresa.
É necessário, contudo, reconhecer que no movimento dessas relações de poder, há um processo permanente de resistência às formas de subjetividade, normalidade e risco que somos impelidos a desejar e escolher. Jamais seremos sujeitos coerentes e unificados de algum regime governamental; pensar o cuidado no neoliberalismo exige justamente reconhecê-lo entremeado por regimes de verdade e de poder em disputa, no qual a saúde e a subjetividade se produzem e resistem às nossas práticas de governo. E também desnaturalizar as formas de uma vida “responsável”, “segura” e “saudável” que foram inventadas para nós, especialmente em um grave e crescente processo de desresponsabilização, insegurança e desigualdade social a que estamos todos submetidos.
Vale também observar como a pandemia de Covid-19 tem exigido práticas epidemiológicas da Saúde Pública que não emergiram do governo neoliberal e tampouco respondem à sua lógica. O controle da pandemia tem revelado tensões entre estas instituições que, como viemos discutindo, estão ligadas à história do capitalismo e do governo liberal do Estado, e o sonho neoliberal do cálculo individual e comportamental do risco, incompatível com qualquer programa governamental minimamente exitoso.
Esse tema de investigação ganha, em nossa avaliação, ainda mais relevância em um contexto global de progressiva redução de serviços públicos e de avanço de um certo ceticismo em relação ao Estado, descrito como um espaço vazio e disfuncional. Tal visão é compartilhada inclusive por grupos considerados “progressistas” mas com uma certa “Estadofobia” (ANDRADE, 2020 ANDRADE, H. S. DE. State Phobia in Foucault readings. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 30, n. 4, p. e300421, 2020.; DEAN; VILLADSEN, 2016DEAN, M.; VILLADSEN, K. State phobia and civil society: the political legacy of Michel Foucault. Stanford, California: Stanford University Press, 2016.), isto é, críticos à ampliação de direitos sociais através do Estado.
Entendemos que o uso metodológico da governamentalidade pode nos ajudar a realizar análises mais sofisticadas da política, ao suspender temporariamente uma compreensão funcional e totalizante do Estado, e tornar suas racionalidades de governo inteligíveis. Reconhecemos, porém, que esta ótica imanente dos dispositivos governamentais pode fazer desaparecer a centralização do poder em um território determinado e por um conjunto de instituições, impedindo análises contemporâneas do exercício da lei, da soberania e de diferentes práticas políticas. No limite, a própria definição do Estado como forma de inovação política acabaria suprimida e a política transformada apenas em um jogo virtual entre diversas racionalidades técnicas.
O neoliberalismo não diminuiu realmente o tamanho absoluto do Estado ou suprimiu sua existência, mas apropriou-se progressivamente dele e de diferentes instituições sociais, subordinando-os à lógica empresarial e econômica. Além disso, tem sido extremamente hábil em mobilizar sentimentos antipolíticos e antissociais, normalizar e naturalizar a desigualdade e potencializar grupos de extrema-direita e fascistas (BROWN, 2018BROWN, W. Neoliberalism’s Frankenstein: Authoritarian Freedom in Twenty-First Century “Democracies”. Critical Times, v. 1, n. 1, p. 60-79, 1 abr. 2018.), levando-os ao poder, como no caso recente do Brasil. Para enfrentá-lo, será preciso renunciar a certas posturas anti-Estado e anti-instituições presentes em determinadas leituras de Foucault e repensar nossa defesa do sentido do público e do Estado em nossa sociedade.
Será também necessário atualizar, disputar e produzir novos sentidos e práticas para a saúde, o cuidado, o risco, a normalidade, a subjetividade e a liberdade. Nas palavras de Wendy Brown, parece-nos fundamental transformar, por exemplo, a liberdade “de” (como condição formal) em liberdade “para” (como prática): “para realizar nossos sonhos, e não apenas sobreviver”; “liberdade de escolher, não simplesmente de abortar ou de com quem dormir - que é importante -, mas também de construir vidas, construir comunidades e mundos nos quais todos tenhamos vontade de viver”. Uma liberdade que esteja ligada não apenas a solidariedade e o bem-estar social, mas também a capacidade de vivermos em um ambiente sustentável e protegido e seja capaz de “seduzir” mais do que a liberdade neoliberal, afirmando-se como “algo com o que se constrói a vida”(BROWN, 2020BROWN, W. E agora, que o neoliberalismo está em ruínas?, 22 dez. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/e-agora-que-o-neoliberalismo-esta-emruinas />. Acesso em: 10 fev. 2021
https://outraspalavras.net/mercadovsdemo... ).
Outras governamentalidades, novas biopolíticas
Conforme vimos discutindo, o presente artigo buscou apresentar leituras contemporâneas do neoliberalismo, distintas das correntemente usadas na Saúde Coletiva brasileira, sem negligenciar a importância das críticas aos efeitos econômicos e políticos do governo neoliberal do Estado nas últimas décadas.
Reconhecer as múltiplas expressões do governo neoliberal exige pensarmos criticamente não apenas seus efeitos sobre as políticas públicas, o papel do Estado e os direitos sociais, mas sobre as relações sociais em torno da saúde, da normalidade e do adoecimento e sobre o próprio cuidado. Dispositivos, técnicas e práticas de governo que produzem formas específicas e variáveis dos sujeitos pensarem, calcularem, estratificarem e organizarem as relações particulares que estabelecemos com nós mesmos.
Nesse sentido, mesmo sem uma definição única e normativa, entendemos ser necessário olhar as diferentes expressões do neoliberalismo, com suas heterogeneidades e contextos específicos pelo mundo. Como nos provoca Dean (2017a, p. 7DEAN, M. Neo-liberalism and our demons. European Political Science, v. 16, n. 2, p. 263-289, jun. 2017a.), enfrentar o governo neoliberal nos exigirá voltar a olhar para o que “está debaixo do nosso nariz...”, isto é, examinar tanto as conquistas e os limites das instituições que hoje associamos às democracias chamadas liberais, mas também a memória das reivindicações por democracia, socialismo, soberania popular e ampliação de direitos sociais que marcaram o século passado e a atualidade da resistência de movimentos e lutas atuais. E observar como esta razão neoliberal tem modificado nossas relações e práticas no campo da saúde, modificando a realidade do risco, da doença e da normalidade. No entremeio de uma subjetividade neoliberal em permanente atualização, o jogo em torno de instituições e práticas de saúde não legisladas pela verdade do mercado segue em aberto.
Uma das lições que o pensamento governamental nos ensina é que, acima de tudo, compartilhamos a condição de sujeitos de governo. Somos todos, em alguma medida, governantes e governados. Partir desse pressuposto nos convida a identificar e desenvolver outras governamentalidades e novas biopolíticas - menos excludentes, normativas e desiguais das que infelizmente temos naturalizado e praticado.11H. S. de Andrade, S. R. Carvalho e C. F. de Oliveira foram responsáveis pela elaboração do argumento, redação e revisão final do texto.
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- 1H. S. de Andrade, S. R. Carvalho e C. F. de Oliveira foram responsáveis pela elaboração do argumento, redação e revisão final do texto.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Abr 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
12 Mar 2021 - Revisado
21 Mar 2021 - Aceito
03 Jun 2021