O SUS e o tempo da democracia:reflexões políticas

Ronaldo Teodoro dos Santos Sobre o autor

Os dramas da pandemia esclareceram que a negação da vida está diretamente ligada à desconstrução do sentido público e compartilhado da existência. Mais que uma hipótese, essa condição vem sendo documentada desde o impeachment da presidenta Dilma, em 2016, intensificando-se com a eleição de Jair Bolsonaro e se aprofundando aceleradamente com a pandemia da Covid-19. Quais são seus fundamentos? Há indícios de como superar o abismo em que nos encontramos?

No que diz respeito aos fundamentos da crise, é possível apontar que a construção do direito público à saúde se encontra diretamente conectada à natureza dos conflitos que disputam os rumos da democracia brasileira. Desde 2016, caminhamos de um contexto marcado pelas insuficiências democráticas do pacto constitucional firmado em 1988 para um terreno qualitativamente distinto de exercício arbitrário de poder - combinando motivações econômicas, patriarcais e de ódio racial. Mais do que uma questão de escala, de expansão de opressões historicamente conhecidas, a condição qualitativamente nova e distinta desses arranjos de opressão consiste em que sua forma arbitrária se arroga a condição de disputa publicamente legítima.

Da contestação à reeleição de Dilma Rousseff, passando pela eliminação ou fragilização de 75% dos Conselhos Gestores, da definição da austeridade econômica como lei de Estado, via EC-95, a liberação de armas e o questionamento do processo eleitoral de 2022, pode-se localizar o rastro de degradação do sentido democrático e público do conflito político. A distopia, consumada nas mais de 600 mil mortes de brasileiras e brasileiros, foi construída nesse terreno em que os espaços democráticos do conflito foram substituídos pela imposição arbitrária de interesses.

O Sistema Único de Saúde (SUS) está no centro dessas tensões, dado que seus rumos estão conectados aos caminhos da própria forma republicana de organização do conflito e distribuição do poder da democracia brasileira. Assim compreendido, o SUS abriga as dores e esperanças de uma geração inteira. A atenção a esse entendimento republicano do conflito político nos permite ainda compreender que a resistência pelo direito público à saúde unifica desafios no terreno da economia, da cultura política e do arranjo institucional, que, tomados em conjunto, nos apontam indícios de como superar o abismo no qual nos encontramos.

A consideração dos desafios impostos pela pandemia da Covid-19 no plano da economia política aponta para a necessária retomada dos princípios de formação e soberania nacional. A flagrante dependência externa para a compra de vacinas e outros insumos essenciais para a assistência à saúde evidenciou que sem uma política de reindustrialização e de investimentos em Ciência e Tecnologia, aprofundam-se as linhas vitais da nossa subordinação ao capital. Soberania nacional e segurança sanitária são princípios que devem compor a base estratégica de reconstrução do país. No campo da cultura política, o contexto pandêmico documentou que um pensamento sanitarista no século XXI precisa estar conectado com as lutas classistas antipatriarcais e antirracistas por direitos. Todo sanitarista deve ir aonde o povo está. Esse caminho nos ensina que é preciso reaprender a conjugar o sentido da soberania popular em uma teoria do poder que tem como base a não opressão. Esse princípio se encontra presente na experiência política dos povos ribeirinhos, das populações indígenas, quilombolas, LGBTQIA+, das populações de rua e das regiões periféricas das grandes cidades, ocupadas por trabalhadoras e trabalhadores sindicalizados ou expostos à informalidade. É este o segmento que caminha para derrotar a política de morte e de mercado aberto de Jair Bolsonaro em 2022 - uma vez que quanto mais excluídos, maior a capacidade de leitura crítica dos desafios do nosso tempo (FOLHA DE SÃO PAULO, 2022FOLHA DE SÃO PAULO. Data Folha: Lula vai melhor entre quem recebe o Auxilio Brasil e tem medo da covid. São Paulo: Folha de São Paulo, 30 de maio de 2022. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/05/datafolha-lula-vai-melhor-entre-quem-recebe-auxilio-brasil-e-tem-medo-da-covid.shtml Acesso em: 01 jun. 2022.
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).

Por fim, o terceiro domínio de aprendizados diz respeito ao vínculo entre a garantia de direitos e a difícil construção de instituições. Em contextos democráticos, sua condição primeira consiste em mediar conflitos, que, em sua ausência, podem fraturar a sociedade, romper com o tecido social e abrir caminho à dominação irrestrita. São exemplos da fragilização das instituições democráticas a invasão de terras indígenas pelo garimpo, a política de liberação ampliada de armas e agrotóxicos. No SUS, a crise da sua institucionalidade atingiu em cheio a sua já frágil autoridade sanitária, com o acesso cada vez mais aprofundado do empresariado do setor saúde aos fundos públicos, garantido pela difusão de Organizações Sociais (OSSs), pelas renúncias fiscais bilionárias garantidas aos seguros de saúde ou pelo acesso a empréstimos subsidiados do BNDES para equipar a infraestrutura da rede privada de hospitais.

Diversas reflexões reunidas ao longo da pandemia no espaço de comentários da Physis reverberam a consciência coletiva acerca dos caminhos possíveis para a superação dos problemas que desafiam o SUS e a democracia brasileira. No campo de questões da Economia Política da Saúde, o artigo “O Estado em desmonte frente à epidemia da Covid-19” (MONTEIRO, 2020MONTEIRO, N. O Estado em desmonte frente à epidemia da Covid-19. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300304, 4 set. 2020.) localiza as adversidades que a dependência brasileira de insumos e produtos importados impõe à estruturação do SUS. Associado a essa subjugação internacional do Estado brasileiro, o artigo ainda capta a fragilidade decorrente da dependência do SUS em relação à infraestrutura do setor privado nacional no que diz respeito à propriedade dos leitos e à rede de serviços para exames diagnósticos e terapêuticos.

No campo da cultura política, o artigo “O neoliberalismo como linguagem política da pandemia” problematiza a importância dos valores públicos para o avanço dos fundamentos da reforma sanitária (SANTOS, 2020SANTOS, R. T. D. O neoliberalismo como linguagem política da pandemia: a Saúde Coletiva e a resposta aos impactos sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300211, 24 jul. 2020.). Em preocupação convergente, Camargo e Coeli (2020CAMARGO JR., K. R. de; COELI, C. M. A difícil tarefa de informar em meio a uma pandemia. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300203, 26 jun. 2020.) apontam para a difusão de fake news e suas adversidades para a formação de uma cultura pública de direitos à saúde. No que diz respeito à relação entre a expansão das lutas periféricas e antirracistas, com a configuração de uma cidadania mais emancipada, o artigo de Souza (2020SOUZA, F. O dia em que a vida parou. Expressões da colonialidade em tempos de pandemia. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300210, 24 jul. 2020.), “O dia em que a vida parou. Expressões da colonialidade em tempos de pandemia”, abriga apontamentos importantes.

No terceiro campo, a consciência de que a cidadania demanda o entendimento de que o Estado é imprescindível para a realização dos direitos públicos se encontra registrado nos artigos “A pandemia nas fronteiras da reforma sanitária: os desafios da rede hospitalar” (FRANCO, 2020FRANCO, T. de A. V. A pandemia nas fronteiras da reforma sanitária: os desafios da rede hospitalar. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300307, 4 set. 2020.) e “Crescimento dos leitos de UTI no país durante a pandemia de Covid-19” (COTRIM JR; CABRAL, 2020COTRIM JR, D. F.; CABRAL, L. M. da S. Crescimento dos leitos de UTI no país durante a pandemia de Covid-19: desigualdades entre o público x privado e iniquidades regionais. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300317, 18 set. 2020.). Nesses artigos, se coloca a compreensão de que uma organização sistêmica da saúde exige uma regulação pública do setor privado hospitalar, sem o qual a assistência universal perseguida pelo SUS perde substrato na realidade. O impasse entre uma cultura política “estadofóbica” e a profusão de serviços públicos em vista de uma soberania compartilhada por meio de ONGs, entidades privadas e outros agentes da sociedade civil, governança sem Estado, pode ser considerado o pano de fundo cognitivo desses desafios (ANDRADE, 2020ANDRADE, H. S. de. A fobia do Estado em leituras de Foucault. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 30, p. e300421, 14 dez. 2020.).

Balanços dos desafios e possibilidades colocados pelo contexto da pandemia para a reorganização das lutas pelo SUS nos parecem fundamentais não apenas para a organização de um juízo histórico, mas de abertura de caminhos futuros. Em contraponto às agressões conservadoras e aos descaminhos da pandemia, estamos desafiados a construir novos caminhos políticos de encontro para nossas muitas formas de resistência. Ante o ano eleitoral de 2022, é atual o entendimento dos conjurados baianos do século XVIII, segundo os quais é sempre preciso declarar um tempo de feliz liberdade para quebrar opressões.

Referências

  • ANDRADE, H. S. de. A fobia do Estado em leituras de Foucault. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 30, p. e300421, 14 dez. 2020.
  • CAMARGO JR., K. R. de; COELI, C. M. A difícil tarefa de informar em meio a uma pandemia. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300203, 26 jun. 2020.
  • COTRIM JR, D. F.; CABRAL, L. M. da S. Crescimento dos leitos de UTI no país durante a pandemia de Covid-19: desigualdades entre o público x privado e iniquidades regionais. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300317, 18 set. 2020.
  • MONTEIRO, N. O Estado em desmonte frente à epidemia da Covid-19. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300304, 4 set. 2020.
  • SANTOS, R. T. D. O neoliberalismo como linguagem política da pandemia: a Saúde Coletiva e a resposta aos impactos sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300211, 24 jul. 2020.
  • SOUZA, F. O dia em que a vida parou. Expressões da colonialidade em tempos de pandemia. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300210, 24 jul. 2020.
  • FOLHA DE SÃO PAULO. Data Folha: Lula vai melhor entre quem recebe o Auxilio Brasil e tem medo da covid. São Paulo: Folha de São Paulo, 30 de maio de 2022. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/05/datafolha-lula-vai-melhor-entre-quem-recebe-auxilio-brasil-e-tem-medo-da-covid.shtml Acesso em: 01 jun. 2022.
    » https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/05/datafolha-lula-vai-melhor-entre-quem-recebe-auxilio-brasil-e-tem-medo-da-covid.shtml
  • FRANCO, T. de A. V. A pandemia nas fronteiras da reforma sanitária: os desafios da rede hospitalar. Physis: Revista de Saúde Coletiva , v. 30, p. e300307, 4 set. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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