Resumo
As inovações científicas em torno do estudo de cromossomos humanos surgidas após a segunda metade do século XX consolidaram a inserção da genética na assistência em saúde, no que tange ao diagnóstico pré-natal. A associação entre idade materna e síndromes genéticas, proposta por pesquisadores da biomedicina, produziu determinações sobre risco, referidas a gestantes a partir de determinada idade. O artigo apresenta as concepções de risco em torno do que a biomedicina considera ser idade materna avançada de modo a configurar o que é classificado como gestação de risco. A análise documental em manuais médicos brasileiros e estrangeiros das especialidades obstetrícia e genética evidenciou diferentes concepções de risco em relação ao fator etário reprodutivo. A idade materna é um aspecto presente na obstetrícia enquanto fator de risco de doenças. Para a especialidade genética, a idade materna não é um fator central de risco reprodutivo. A pesquisa constatou que a classificação de uma idade materna ideal para gestar é relativa e suscetível a alterações, segundo o contexto sócio-histórico de cada sociedade.
Palavras-chave:
Gestação em idade avançada; Idade materna; Aconselhamento genético.
Abstract
Scientific innovations around the study of human chromosomes, which emerged after the mid 20th century, consolidated the incorporation of genetics in prenatal diagnosis. The link between maternal age and genetic syndromes, proposed by biomedical researchers, produced resolutions about risks to pregnant women of a certain age. The article presents biomedicine concepts for advanced maternal age classified as a risk pregnancy. The review of Brazilian and foreign medical manuals in obstetrics and genetics showed different conceptions of risk concerning the reproductive age factor. Maternal age is an aspect in obstetrics related to the risk of diseases. For genetic expertise, advanced maternal age is not a central factor of risk for reproduction. The research found that the classification of an ideal maternal age for pregnancy is relative and susceptible to changes according to the socio-historical context of each society.
Keywords:
Advanced maternal age pregnancy; Maternal age; Genetic counseling.
Introdução
A partir da segunda metade do século XX foi constatado um aumento do número de gestantes com 35 anos ou mais, em países da União Europeia e Estados Unidos. Entre 1980 e 1993, na União Europeia, a idade materna média no primeiro nascimento aumentou de 27,1 para 28,6 anos. Entre 1991 e 2001, nos Estados Unidos, a percentagem de nascimentos para mulheres entre 35 e 39 anos aumentou em 36%, e na faixa etária de 40 a 44 anos cresceu 70% (HEFFNER, 2004HEFFNER, L. J. Advanced maternal age: how old is too old? The New England Journal of Medicine, v. 351, n. 19, p. 1927-1929, 2004.; HUANG ., 2008HUANG, L. et al. Maternal age and risk of stillbirth: a systematic review. Canadian Medical Association Journal, v. 178, n. 2, p. 165-172,2008.).
No Brasil, o aumento da gestação em mulheres com mais de 35 anos foi significativo, sobretudo nas camadas médias. Em 2015 houve aumento dos nascimentos de mães com 30 a 39 anos, com representatividade no Sul e Sudeste (IBGE, 2015INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estatística do Registro Civil, v. 42, 2015. Disponível em: Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2015_v42.pdf . Acesso em: 06 mar. 2017.
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizac... ).
Entre as razões que viabilizam o maior controle sobre as gestações destaca-se o advento do contraceptivo oral, desenvolvido na segunda metade do século XX, e a entrada intensa das mulheres no mercado de trabalho (HEILBORN, 2012HEILBORN, M. L. Direitos sexuais e reprodutivos: um olhar antropológico. In: LIMA A. C. S. Antropologia & direito: temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro: Contra-Capa, p. 396-404,2012.). Outras razões que afetaram o padrão etário reprodutivo foram: a postergação do matrimônio, o maior número de divórcios, o desejo de ascensão profissional para alcançar estabilidade e independência financeira (KIRZ; DORCHESTER; FREMAN, 1985KIRZ, D.; DORCHESTER, W.; FREEMAN, R. Advanced maternal age: the mature gravida. American Journal of Obstetrics & Gynecology, v. 152, n. 1, p. 7-12,1985.). Assim, é possível afirmar que mudanças no estilo de vida afetam o perfil da idade gestacional.
O tratamento científico da maternidade tardia teve início em 1958, quando a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia definiu o termo “primigesta idosa”, em referência à gestante com 35 anos ou mais (MORRISON, 1975MORRISON, I. The elderly primigravida. American Journal of Obstetrics & Gynecology, v. 121, n. 4, p. 465-470, 1975.; PAYNE, 2002PAYNE, D. The elderly primigravida: contest and complexity. A foucauldian analysis of maternal age in relation to pregnancy and birth. Thesis (Doctorate degree of Philosophy in Nursing) - Massey University Palmerston North New Zealand, New Zealand, 2002.; SCHUPP, 2006SCHUPP, T. R. Gravidez após os 40 anos de idade: análise dos fatores prognósticos para resultados maternos e perinatais adversos. 2006. 213f. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.). O conceito de “idade materna avançada” passou a ser utilizado em artigos científicos de obstetrícia nos Estados Unidos (KIRZ; DORCHESTER; FREMAN, 1985KIRZ, D.; DORCHESTER, W.; FREEMAN, R. Advanced maternal age: the mature gravida. American Journal of Obstetrics & Gynecology, v. 152, n. 1, p. 7-12,1985.). A padronização da idade foi demandada pela comunidade científica para a produção de pesquisa em diferentes países, com comparação de dados, na direção de expansão do conhecimento científico (PAYNE, 2002PAYNE, D. The elderly primigravida: contest and complexity. A foucauldian analysis of maternal age in relation to pregnancy and birth. Thesis (Doctorate degree of Philosophy in Nursing) - Massey University Palmerston North New Zealand, New Zealand, 2002.). Tal produção, acerca da relação entre idade materna e saúde da criança, contribuiu para a disseminação do conceito de gravidez de risco. Ao investigar as prescrições da biomedicina, é possível compreender como a gestação em idade considerada avançada se insere no contexto de uma lógica de assistência centrada no risco e na prevenção em saúde.
Com base em pesquisa documental em manuais médicos nacionais e internacionais de referência no tema, este artigo se propõe a identificar as concepções de risco presentes no que é denominado pela biomedicina como gestação em idade avançada.
Gravidez, aconselhamento genético e risco
Até meados do século XVIII, o parto era atividade restrita ao universo das mulheres e as parteiras eram a referência para o nascimento. Médicos e cirurgiões eram solicitados apenas para partos difíceis. A inserção médica no parto contou com dificuldades: o pudor e interdições da época impediam seu trabalho. A partir do final do século XVIII, paulatinamente, os médicos passaram a assumir atividades de assistência ao parto (ROHDEN, 2015ROHDEN, F. Sexualidade e gênero na medicina. In: NAVARRO, A, PITANGUY, J. (Org). Saúde, corpo e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ,2015. p.157-175.).
No século XIX houve um aumento dos conhecimentos médicos sobre a reprodução. No início do século XX, a ampliação dos saberes sobre a gestação e a valorização da natalidade possibilitou um desenvolvimento dos cuidados pré-natais (ROHDEN, 2015ROHDEN, F. Sexualidade e gênero na medicina. In: NAVARRO, A, PITANGUY, J. (Org). Saúde, corpo e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ,2015. p.157-175.). Nesse período, o obstetra escocês John Ballantyne propôs o cuidado pré-natal, para reduzir a frequência de malformações fetais e neonatais (LÖWY, 2014aLÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.).
Na década de 1960 foram realizadas pesquisas nos Estados Unidos, com células fetais do líquido amniótico, contribuindo ao diagnóstico pré-natal (STEELE; BREG, 1966STEELE, M. W.; BREG, R. JR. Chromosome analysis of human amniotic fluid cells. The Lancet, p. 383-385, 1966.; LÖWY, 2014aLÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.). Nesse período, o estudo das condições fetais era denominado “diagnóstico de defeitos genéticos”, pois os pesquisadores consideravam que a principal função da técnica seria detectar condições hereditárias de doenças metabólicas ou anomalias cromossômicas (LÖWY, 2014aLÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.).
O diagnóstico pré-natal foi desenvolvido nos anos 1970, fruto da associação de três inovações médicas: a amniocentese, o estudo de cromossomos humanos e a ultrassonografia obstétrica (LÖWY, 2014bLÖWY, I. Prenatal diagnosis: the irresistible rise of the ‘visible fetus’. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, v. 47, p. 290- 299. 2014b.). Ginecologistas estudaram a associação entre idade materna e síndrome de Down.
No início da década de 1970, alguns ginecologistas, conscientes da maior prevalência de aneuploidias em mães mais velhas, começaram a propor amniocentese para mulheres cujo único fator de risco conhecido para o nascimento de criança com deficiência era a idade. Inicialmente, essas mulheres pertenciam a estratos sociais privilegiados ou, alternativamente, a gravidez era supervisionada por um ginecologista que colaborava com um dos primeiros programas-piloto de diagnóstico pré-natal. (LÖWY, 2014, p. 156LÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.).
Ainda nos anos 1970, a revista (1977)WHO’S FOR AMNIOCENTESIS. The Lancet, London, p. 986-987,1977. indicou a amniocentese como importante procedimento para diagnóstico precoce de certas anomalias. Divulgou também resultados de estudos dos Estados Unidos e Europa, sobre o uso de amniocentese. A revisão do periódico apontou a idade materna avançada e gestação anterior com diagnóstico de síndrome de Down como as principais indicações para o procedimento (WHO’S, 1977WHO’S FOR AMNIOCENTESIS. The Lancet, London, p. 986-987,1977. ). Neste número da revista também consta que, na Europa, nos cinco ou seis anos anteriores, apenas cerca de 300 fetos anormais foram impedidos de chegar a termo. Segundo a edição, seria um efeito modesto, diante de cerca de 100 mil bebês com anomalias nascidos na época na Europa. A solução para reduzir o número de nascimentos com anomalias seria a difusão de dados sobre o tema.
Uma vigorosa publicidade, por exemplo, a mulheres grávidas que, devido à idade avançada, correm alto risco de ter uma criança com alterações cromossômicas, pode reduzir o número desses bebês para um terço do número atual nascido nesse grupo (WHO’S, 1977, p. 987WHO’S FOR AMNIOCENTESIS. The Lancet, London, p. 986-987,1977. ).
Segundo Löwy (2014aLÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.), essa “vigorosa campanha” ocorreu: a informação que a idade materna avançada significava risco de gerar um bebê com condições cromossômicas anormais foi disseminada na Europa. Histórias sobre riscos de saúde para mães com mais de 35 anos ganhavam visibilidade na mídia nos Estados Unidos. Como consequência, mulheres norte-americanas, a partir de 30 anos, solicitavam a realização de amniocenteses (LÖWY, 2014aLÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.).
Em 1976, o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas propôs que toda gestante com mais de 35 anos deveria ter a opção de realizar a amniocentese para avaliar o risco de síndrome de Down. A escolha da idade foi legitimada pela afirmação de que o risco de perda de um feto saudável após amniocentese seria menor do que o risco de nascimento de bebê com síndrome de Down (LÖWY, 2017LÖWY, I. Imperfect pregnancies: a history of birth defects & prenatal diagnosis. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2017.). Para Löwy (2017LÖWY, I. Imperfect pregnancies: a history of birth defects & prenatal diagnosis. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2017.), a explicação sobre o ponto de corte de 35 anos mascarou uma decisão parcialmente arbitrária, sobretudo motivada pelo controle de despesas com saúde, caso a amniocentese fosse realizada em todas as mulheres.
Nos anos 1970, nos Estados Unidos, a consolidação da amniocentese na rotina em obstetrícia viabilizou o desenvolvimento da especialidade de aconselhamento genético. A consulta no pré-natal com um conselheiro genético era justificada pelas informações sobre os riscos de gerar uma criança com malformação (LÖWY, 2014aLÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.). O desenvolvimento de testes de rastreamento de anomalias congênitas em gestantes, característico da década de 1980, era baseado na preocupação em estabelecer critérios de seleção das gestantes com risco de apresentar um feto com anomalia congênita (BERNAL; LÓPEZ, 2014BERNAL, L. M.; LÓPEZ, G. Diagnóstico pré-natal: retrospectiva. NOVA - Publicación Científica en Ciencias Biomédicas, v. 12, n. 21, p. 23-36, 2014.).
A partir da segunda metade do século XX, as preocupações biopolíticas com a minimização do risco tornaram-se intrínsecas às organizações dos serviços de saúde (ROSE, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XX. São Paulo: Paulus. 2013.). Nos anos 1970 e 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) utilizou estratégias de gestão de risco para o desenvolvimento de um programa denominado abordagem de risco. O objetivo era reduzir desigualdades em saúde e promover justiça social. Para tanto, publicou manuais dirigidos a profissionais de saúde, enfatizando a importância da atenção à saúde materno-infantil (BACKETT, DAVIES, PETROS-BARZAVIAN, 1984BACKETT, E. M.; DAVIES, A. M.; PETROS-BARVAZIAN, A. The risk approach in maternal and child health including family planning. Geneva: Division of Family Health, 1984.).
A inovação da proposta concerne ao uso do conceito de risco como ferramenta política e de gestão, além da oferta de cuidados na proporção das demandas de cada grupo. Segundo a abordagem de risco, os profissionais de saúde devem atuar com foco sobre os grupos mais vulneráveis (BACKETT; DAVIES; PETROS-BARZAVIAN, 1984BACKETT, E. M.; DAVIES, A. M.; PETROS-BARVAZIAN, A. The risk approach in maternal and child health including family planning. Geneva: Division of Family Health, 1984.). São considerados fatores universais de risco materno-infantil: primeira gravidez, desnutrição materna, gestações frequentes, aborto prévio e gravidez nos extremos da idade reprodutiva (OMS, 1978ORGANIZACION MUNDIAL DE LA SALUD. Método de Atención Sanitária de la Madre y el Nino Basado en el Concepto de Riesgo. Geneva: OMS, 1978. Disponível em: Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/41682/1/9243700391-spa.pdf. Acesso em: 09 fev. 2017.
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665... ).
No Brasil, em 1978, o Ministério da Saúde criou o Programa de Prevenção da Gravidez de Alto Risco, para operacionalizar a assistência ao risco reprodutivo e prevenir gestações futuras (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005NAGAHAMA, E. E. I.; SANTIAGO, S. M. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, p. 651-657, 2005.). A preocupação com a prevenção de riscos gravídicos convoca a mulher a participar de programas de saúde materna do governo, com aprendizado de prevenção e de controle de riscos gestacionais (ROBLES, 2015ROBLES, A. F. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”. Biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis - Revista de Saúde Coletiva, v. 25, n. 1, p. 139-169, 2015.).
Em 2000, o Ministério da Saúde publicou o primeiro Manual para gestação de alto risco (ROBLES, 2015ROBLES, A. F. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”. Biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis - Revista de Saúde Coletiva, v. 25, n. 1, p. 139-169, 2015.). Nas primeiras edições, o documento incorpora as diretrizes da OMS sobre a abordagem de risco e orienta profissionais para reconhecer as demandas e vulnerabilidades das gestantes. Lacunas na definição das propostas junto às dificuldades da triagem viabilizaram a distorção da classificação de risco e possíveis encaminhamentos para instituições especializadas (ROBLES, 2015ROBLES, A. F. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”. Biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis - Revista de Saúde Coletiva, v. 25, n. 1, p. 139-169, 2015.).
Sobre a metodologia e análise
A pesquisa documental11Este artigo é resultado de uma dissertação em Saúde Coletiva e recebeu financiamento da Fundação CAPES/ Ministério da Educação. foi empreendida em manuais médicos nacionais e internacionais. O uso de documentos como fonte possibilita ampliar o entendimento sobre objetos que necessitam de contextualização histórica e sociocultural (SÁ-SILVA; ALEMIDA; GUINDANI, 2009SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDA, C. D; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 1, n. 1, p. 1-15, 2009.). Em 2016 foi efetuado um levantamento bibliográfico com descritores selecionados em consulta aos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), no site da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS).
Na primeira busca foram utilizadas as expressões “gestação de alto risco” e “idade materna”, com resultado de 49 artigos, publicados entre 1975 e 2016. Encontramos debates sobre fatores de risco para mortalidade materna e perinatal e estudos concernentes às condições clínicas que caracterizam a gestação de alto risco, segundo critérios do Ministério da Saúde.
A segunda estratégia de pesquisa foi realizada a partir dos descritores “idade materna” e “aconselhamento genético”. Foram encontrados três artigos, publicados entre 2007 e a 2012. Eles abordam a importância de informação genética no acompanhamento neonatal. Como fontes de pesquisa, utilizamos referências internacionais e nacionais mais difundidas e confiáveis das especialidades: Obstetrícia e Genética. A escolha por documentos dirigidos aos médicos concerne à sua responsabilidade, no que tange ao processo decisório em saúde.
Ao consultar a opinião de médicos especialistas em obstetrícia e genética, foram recomendados: “Obstetrics: Normal and Problem Pregnancies” (GABBLE ., 2016GABBE, S. G. et al. Obstetrícia: gravidez normal e patológica. 6ªed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.) e “Williams Obstetric” (CUNNINGHAM , 2005CUNNINGHAM, G. F. et al. Williams obstetrics. New York: McGraw-Hill. 2005.); “Zugaib Obstetrícia” (ZUGAIB, 2012ZUGAIB, M. Zugaib obstetrícia. 2ª ed. Barueri: Manole. 2012.) e “Rezende Obstetrícia” (MONTENEGRO; REZENDE FILHO; BARBOSA, 2011MONTENEGRO, C. A. B.; REZENDE, J. F. Rezende Obstetrícia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2013.). Foram recomendados os seguintes livros: Emery and Rimoin's Principles and Practice of Medical Genetics (RIMOIN, PYERITZ; KORF, 2013RIMOIN, D. L.; PYERITZ, R.; KORF, B. R. Emery and Rimoin’s principles and practice of medical genetic. 6ª ed. Massachusetts: Academic Press, 2013); Practical Genetic Counselling (HARPER, 2010HARPER, P. S. Practical genetic counseling. London: Hodder Arnold, 2010.) e Thompson & Thompson Genética Médica. Foram selecionados para análise os capítulos associados ao tema da pesquisa.
Ao utilizar essas fontes de pesquisa, foi possível realizar um levantamento histórico e social do conceito de idade materna considerada avançada e conhecer a caraterização das noções de risco de saúde relacionadas à idade materna e as prescrições dirigidas aos profissionais de saúde.
Os manuais
O primeiro manual de obstetrícia analisado foi Williams Obstetrics, em sua 22ª edição (2005). Foram selecionados para análise os seguintes capítulos desta obra: Aconselhamento Preconcepcional; Cuidados pré-natais; Aborto; Genética e Diagnóstico pré-natal e Terapia Fetal.
O segundo manual analisado foi Obstetrícia: Gravidez normal e patológica, publicado em 2015. Este manual apresenta sete sessões e cinquenta e quatro capítulos, dentre os quais foram selecionados os seguintes: Preconcepção e cuidado pré-natal: parte do continuum; Aconselhamento e rastreamento genético; Diagnóstico genético pré-natal; Abortamento espontâneo e Questões legais e éticas na prática obstétrica.
Zugaib Obstetrícia é um manual brasileiro organizado por Marcelo Zugaib, professor da Universidade de São Paulo. Foi utilizada a 2ª edição (2012). Foram escolhidos para a análise os seguintes capítulos: Consulta preconcepcional; Assistência pré-natal; abortamento; Aconselhamento genético; Rastreamento de anomalias cromossômicas; Malformações fetais; Procedimentos invasivos, e Bioética e Biodireito.
O último livro de obstetrícia analisado foi Rezende Obstetrícia, de autoria de Carlos Antonio Montenegro e Jorge de Rezende Filho. Foram selecionados para análise os seguintes capítulos: Propedêutica da gravidez; Assistência pré-natal; Abortamento; Morte fetal; Diagnóstico pré-natal; Gravidez após reprodução assistida, e Obstetrícia médico-legal e forense: aspectos éticos.
Os manuais de genética foram selecionados a partir da indicação de uma geneticista do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (Fiocruz). Nenhum livro de autor brasileiro foi recomendado. Practical genetic counselling foi o primeiro manual de genética analisado, com autoria de Peter S Harper. Foi utilizada a 7ª edição (2010HARPER, P. S. Practical genetic counseling. London: Hodder Arnold, 2010.). Os capítulos selecionados para análise foram os seguintes: Aconselhamento genético: uma introdução; Diagnóstico pré-natal e aspectos reprodutivos da Genética Médica; A clínica do aconselhamento genético; Aspectos populacionais do aconselhamento genético e triagem genética e genética e sociedade.
O segundo manual de obstetrícia analisado foi Emery and Rimoin´s principles and practice of medical genetic. A sexta edição do manual norte-americano publicada em 2013 foi selecionada para a investigação. Foram analisados na pesquisa os seguintes capítulos: Aconselhamento genético e avaliação de risco clínico; Triagem pré-natal para defeitos do tubo neural e aneuploidia; Técnicas para diagnóstico pré-natal e questões éticas e sociais em genética clínica.
O último manual analisado foi Thompson e Thompson Genética Médica, tradução da 8ª edição do manual norte-americano, de 2016, apresenta 19 capítulos, dentre os quais foram selecionados para a análise os seguintes: Avaliação de risco e aconselhamento genético e diagnóstico e triagens pré-natais.
Idade materna e risco
Todos os manuais de obstetrícia analisados apresentam propostas similares de identificação dos fatores de risco. A investigação dos riscos consiste na triagem da história médica, social e familiar, além de exames complementares. Segundo o manual internacional Obstetrícia: Gravidez Normal e Patológica, o conceito de risco conta com a perspectiva de que todos os problemas que surgem na gestação configuram risco para a gravidez.
O manual Zugaib Obstetrícia contém a mesma concepção de risco do manual Obstetrícia: Gravidez Normal e Patológica. Os fatores agravantes da gestação são identificados a partir de queixas das gestantes e do reconhecimento de enfermidades previamente existentes e/ou surgidas na gestação. Os efeitos nocivos dependerão da maneira como a gestante e seu obstetra vão atuar na prevenção e controle desses fatores. O manual Rezende Obstetrícia considera como fatores de risco não modificáveis: idade materna avançada, histórico de doenças genéticas na família e minorias étnicas. Nesses casos, são indicadas intervenções de suporte psicossocial. Os extremos da idade materna (adolescentes e mulheres com idade igual ou superior a 35 anos) são fatores de risco associados a altos índices de natimortalidade e mortalidade infantil, em todos manuais de obstetrícia analisados. Os dois manuais de obstetrícia internacionais indicam maior risco de doenças sexualmente transmissíveis em adolescentes. Os autores de Williams Obstetrics alertam quanto à possibilidade de trabalho de parto prematuro entre as adolescentes.
Os manuais nacionais de obstetrícia destacam outras condições. Em Zugaib Obstetrícia, o despreparo psicológico das adolescentes para assumir funções maternas, menor adesão ao pré-natal, prejuízos à formação acadêmica são as justificativas utilizadas para desencorajar a gestação neste período. Em Rezende Obstetrícia, os autores apontam as condições comportamentais e socioeconômicas desfavoráveis, além de imaturidade biológica. Enquanto nos manuais de obstetrícia internacionais são considerados arriscados aspectos associados à propensão e aquisição de doenças e complicações fisiológicas, nos manuais brasileiros são destacados aspectos sociais, econômicos, educacionais e de compromisso com os cuidados da criança.
Em todos os manuais de obstetrícia analisados, a idade materna avançada é considerada como fator de risco para aneuploidia fetal22Aneuploidias fetais são alterações cromossômicas que envolvem um ou mais cromossomos de cada par. Essas alterações decorrem da não disjunção ou não separação de um ou mais cromossomos durante o processo de divisão celular (BORGES-OSÓRIO; ROBINSON, 2013). e aborto espontâneo. Segundo os autores do manual Williams Obstetrics, a aneuploidia fetal é a única anormalidade congênita vinculada à idade materna. Os riscos de saúde do feto relacionados à idade derivam de complicações maternas, como hipertensão, diabetes, parto prematuro espontâneo, distúrbios do crescimento fetal concernentes à doença materna crônica, aneuploidia fetal e gestações resultantes do uso de tecnologia de reprodução assistida.
O manual Williams Obstetrics afirma não haver dúvidas de que a mulher com idade avançada com doença crônica ou em condições físicas precárias possui riscos aumentados. Há influência do status socioeconômico, estilo de vida e acesso aos serviços de saúde no desfecho da gravidez. A mortalidade materna é maior a partir dos 35 anos, mas com atenção médica é possível reduzir esse risco.
O livro Rezende Obstetrícia apresenta outra posição: a idade pode ser um fator de risco independente para morte fetal nas mulheres com 35 anos ou mais, até após o controle de condições clínicas como hipertensão, diabetes, problemas placentários e gestação múltipla. Recomenda que mulheres acima dos 35 anos não engravidem, e estabelece que o período “do mais perfeito desempenho” é entre 20 e 30 anos, idade a partir da qual há incremento dos riscos. Segundo o manual Zugaib Obstetrícia, o período ideal para gestar é aquele em que a mulher se encontra saudável, em suas melhores condições físicas e psíquicas. A idade materna indicada como ideal para gestação é entre 20 e 29 anos.
Nos manuais de obstetrícia pesquisados não é estabelecida uma faixa etária considerada como marco para idade paterna avançada. Segundo o manual Obstetrícia: Gravidez Normal e Patológica, o efeito da idade paterna na saúde do feto está associado a pequeno aumento do risco para mutações genéticas esporádicas, em homens acima de 40 anos. A idade do pai pode representar riscos genéticos para o feto somente com mais de 55 anos. Não há testes de rastreamento específicos para idade paterna avançada e o Colégio Americano de Genética Médica recomenda que uma gravidez desejada por um pai mais idoso não seja tratada de maneira especial.
A medicina aborda de modo distinto os problemas referentes à sexualidade e reprodução, em mulheres e homens. Uma das diferenças concerne à associação da mulher com a maternidade e, segundo outra perspectiva, “a vida masculina não é problematizada pela medicina com base na sua capacidade ou incapacidade para a reprodução, como acontece com as mulheres” (ROHDEN, 2009ROHDEN, F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2009., p. 109).
A comparação em relação à fertilidade tem significados culturais e sociais. O declínio da fertilidade da mulher ocorre, em geral, mais cedo do que com os homens. Trata-se de um fato biológico, que contribuiu para uma desvalorização do envelhecimento da mulher. No entanto, mulheres vivem em média mais do que os homens (LÖWY, 2009). Segundo Löwy (2009, p. 112):
A construção do declínio da fertilidade como a principal diferença biológica entre homens e mulheres mais velhos ilustra o uso seletivo de diferenças biológicas na reprodução das desigualdades.
Para Löwy (2009), a questão em relação às mulheres consideradas idosas para gestar reside nas representações culturais da masculinidade que independem da idade do homem e das representações da feminilidade incompatíveis com o envelhecimento. Há uma identificação da fertilidade feminina com um corpo jovem, dado que se tornou uma barreira para aceitação das mulheres em gestação considerada em idade avançada ou além da “idade reprodutiva natural”. De outro modo, a imagem de um homem “mais velho” ao ser pai não promove reação de estranheza. A autora afirma que a idade paterna acima de 40 anos parece influenciar no diagnóstico de autismo, distúrbios neurológicos, esquizofrenia e distúrbios de aprendizagem. Contudo, tais constatações não ocasionam cobranças sociais sobre a idade reprodutiva do homem ou o uso de uma classificação para designar os homens em “idade reprodutiva avançada".
O manual Williams Obstetrics refere que a idade paterna avançada está associada ao aumento da incidência de doenças genéticas causadas por novas mutações autossômicas dominantes. Entretanto, esse número é baixo, de modo que a indicação de exames em decorrência de idade paterna é controversa.
Em Rezende Obstetrícia (2013), o risco de abortamento é associado à idade paterna igual ou superior a 40 anos e, no caso de mulheres, com 35 anos ou mais. Em relação aos manuais de genética, não foi encontrada associação da idade dos homens com fator de risco de doença genética para o feto. Nos manuais de genética, o fator etário não é considerado elemento central de risco reprodutivo, como apresentado nos manuais de obstetrícia.
Segundo Emery and Rimoin´s principles and practices of medical genetic, a explicação elaborada pelo campo da genética para essa associação entre idade materna e aneuploidia consiste na constatação de taxa aumentada de não disjunção meiótica em oócitos envelhecidos. No entanto, o mesmo manual afirma que a idade materna não é adequada para detectar aneuploidias. A maior parte das gestações afetadas pela aneuploidia ocorre em mulheres com menos de 35 anos. A idade materna avançada como estratégia de triagem para a síndrome de Down é considerada inferior à combinada a protocolos de rastreio sérico e ultrassonográfico.
O manual Thompson & Thompson Genética Médica afirma que as diretrizes clínicas atuais não apoiam o uso da idade materna como único indicador para testes invasivos para aneuploidia. Recomendam que a avaliação do risco seja feita por um ou mais métodos de exames não invasivos.
Conforme o manual Practical Genetic Counselling, o desenvolvimento do rastreio bioquímico modifica o risco específico da idade. A triagem sérica materna para verificação da Síndrome de Down identifica os casos em uma proporção consideravelmente maior (60-70%) do que a triagem associada à idade isoladamente. Essa informação permite uma oferta de amniocentese às gestantes de todas as idades, se o teste de triagem ultrapassar um limite de risco estabelecido (frequentemente 1 em 250), enquanto outras mulheres têm a opção de não realizar o procedimento, se seus riscos após a triagem sérica forem considerados baixos.
Segundo o manual Emery and Rimoin´s Principles of Medical Genetic, o risco elevado de doença genética é identificado pelo nascimento anterior de uma criança com a doença, história familiar da doença, teste com resultado positivo de um pai/mãe portador, ou quando a triagem pré-natal indica risco elevado. A concepção de risco envolve ainda cálculos matemáticos baseados no conhecimento dos dados coletados.
Todos os manuais de genética analisados apresentam estratégias similares de detecção de fatores de risco genéticos. A investigação dos riscos é iniciada pelo rastreio da história médica do indivíduo e de sua família na consulta de aconselhamento genético. A triagem pré-natal constitui a etapa seguinte e tem como objetivo indicar a gravidez para a qual o diagnóstico pré-natal deve ser oferecido. O diagnóstico pré-natal propõe procedimentos invasivos e objetiva uma resposta definitiva, se o feto é afetado por uma doença em particular.
Os autores do manual Emery and Rimoin´s Principles of Medical Genetic afirmam que a análise do histórico médico familiar pode fornecer informações valiosas sobre o valor preditivo de uma doença no indivíduo. Contudo, os autores reconhecem limitações na coleta da história familiar por fatores como o não entendimento do tipo de informação solicitada, a imprecisão dos dados pelos familiares distantes, além do fato da história familiar ser dinâmica e mudar com o tempo.
O cálculo do risco baseia-se na aplicação de princípios genéticos mendelianos de padrões de herança que podem ser modificados ou condicionados, usando princípios matemáticos, como a análise bayesiana e as leis de adição e multiplicação para avaliação de risco individualizada.
Além da preocupação com a confiabilidade dos cálculos de riscos, todos os manuais de genética consideram a preocupação com a transmissão dessas informações aos pacientes. O manual Emery and Rimoin´s Principles of Medical Genetic afirma que cada paciente apresenta um conceito singular de risco e suas experiências pessoais podem subestimar os riscos comunicados pelos profissionais.
Acompanhamento pré-natal e aconselhamento genético
Em todos os manuais de obstetrícia analisados, o trabalho de assistência pré-natal é direcionado à identificação de fatores de risco para complicações perinatais e o estabelecimento de propostas de medidas preventivas e/ou curativas. Todos os manuais brasileiros e internacionais de obstetrícia afirmam a importância de consulta médica anterior à concepção. Nessas consultas, informações sobre gestação de risco podem ser transmitidas. Segundo o manual Williams Obstetrics, a saúde da gravidez depende da saúde da mulher antes de engravidar.
Nessa mesma direção, os autores do livro Obstetrícia: Gravidez Normal e Patológica asseguram que o momento ideal para avaliar e tratar das condições e complicações da gestação é anterior à gravidez e a ideia de cuidado interconcepção é explicitada. Esse conceito significa fazer uso das interações nos espaços de cuidados de saúde com mulheres em idade reprodutiva para promover comportamentos saudáveis e identificar questões que possam afetar a gravidez.
Os manuais internacionais de obstetrícia sinalizam que a maior parte das gestações não é planejada e que muitas condições clínicas, como anemia, hipertensão, diabetes, poderiam ser tratadas. Os autores de Williams Obstetrics consideram a gravidez não planejada uma condição de risco, pois a gestante pode apresentar condições de saúde perigosas para a gestação.
No Brasil, pesquisa ampla realizada pela Fundação Oswaldo Cruz entre 2011- 2012, apresenta dados sobre planejamento (ou não) da gravidez no país. O estudo revelou que mais da metade das puérperas (55,4%) não desejou engravidar, e que 29,9% não pretendia ter filhos (VIELLAS ., 2014VIELLAS, E. F. Assistência pré-natal no Brasil. Cad. Saúde Pública, v.30, p. S85-S100, 2014.). O manual Rezende Obstetrícia afirma que, embora a consulta preconcepcional seja um instrumento para redução dos índices de morbiletalidade materna e infantil, esse tipo de assistência no país é uma situação ideal que dificilmente ocorre na assistência pública.
Segundo Obstetrícia: Gravidez Normal e Patológica, os médicos devem levantar a história pessoal e familiar da mulher, para verificar a possibilidade de gerar um feto com doença hereditária. Uma história familiar com distúrbio genético pode justificar a indicação e o encaminhamento para um geneticista ou conselheiro genético. Recomenda-se também a busca por resultados reprodutivos adversos, como abortos espontâneos de repetição, natimortos e neonatos com anomalias.
Para os autores do manual Zugaib Obtetrícia, são indicações para aconselhamento genético: idade materna avançada; testes pré-natais alterados; abortamento habitual; filho anterior com cromossomopatia e/ou doenças genéticas e grupos étnicos para determinadas doenças.
De acordo com o manual Thompson & Thompson Genética Médica, o aconselhamento genético oferece informações e apoio para tomar decisões em relação ao tratamento. Essa abordagem é denominada aconselhamento não diretivo e tem suas origens no aconselhamento pré-natal, em que o princípio orientador é o respeito pela autonomia e o direito de fazer escolhas reprodutivas livres de coação. O respeito pela autonomia do paciente é considerado pelos autores como um dos principais valores da profissão de conselheiro genético.
Desde a segunda metade do século XX a medicina clínica solicita que o paciente desempenhe uma função ativa no processo de investigação diagnóstica e tratamento para cura. Além de fornecer informações para identificação da doença, os pacientes são advertidos para que “se comportem prudentemente antes da doença, à luz de informações sobre risco para a saúde” (ROSE, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XX. São Paulo: Paulus. 2013., p. 161). A intervenção prévia no corpo em nome do “tratamento de risco” é considerada por Rose (2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XX. São Paulo: Paulus. 2013.) uma dimensão central da política da vida contemporânea. Os testes genéticos e o aconselhamento genético são exemplos de estratégias adotadas para o gerenciamento de risco, modeladas pela obrigação e desejo de gerenciar a vida no presente em nome do futuro.
Para os autores do manual de obstetrícia Williams Obstetrics, o diagnóstico pré-natal é a ciência que identifica anormalidades estruturais ou funcionais no desenvolvimento do feto. Os livros de genética apresentam como principais testes de diagnósticos a amniocentese, a biópsia de vilocorial e a cordocentese.
Segundo o manual Thompson & Thompson Genética Médica, o objetivo da triagem e diagnóstico pré-natais é informar as mulheres grávidas e casais sobre os riscos de defeitos congênitos e de doenças genéticas em seus fetos e lhes fornecer escolhas sobre como gerenciar esse risco. Os testes de triagem genética foram desenvolvidos pelo fato de defeitos congênitos surgirem em gestações sem fator de risco conhecido, em casos em que o diagnóstico pré-natal não seria proposto. Os testes são baseados na coleta de amostras de sangue materna ou imagens de ultrassonografia ou ressonância magnética. Foram desenhados para serem econômicos e seguros e, portanto, adequados para triar toda mulher independente da probabilidade de risco.
O contexto sociocultural exerce influência na inserção destes recursos tecnológicos para assistência médica. Segundo Löwy (2017LÖWY, I. Imperfect pregnancies: a history of birth defects & prenatal diagnosis. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2017.), o rastreio para síndrome de Down foi disseminado nos países da Europa Ocidental de modo distinto. A Dinamarca foi o primeiro país a apresentar triagem para a síndrome de Down às gestantes, independentemente da idade. A partir de 2004, o rastreio compôs a rotina dos serviços prestados a todas as mulheres atendidas pelo Serviço Nacional de Saúde do país. Na Holanda, o rastreio não é coberto pelo Serviço de Saúde Nacional, o que pode transmitir às mulheres holandesas uma mensagem de que este é um procedimento desnecessário e explica, em parte, a sua baixa procura no país. Na Noruega, a triagem para síndrome de Down é oferecida apenas a mulheres com mais de 38 anos e a quem possui um alto risco de uma criança com anomalia. Em 2007, o Conselho de Ética Médica Sueca recomendou que todas as mulheres grávidas recebessem informações sobre a avaliação do risco de gestar um feto com síndrome de Down, bem como o acesso a testes de triagem. Os debates públicos na Suécia envolveram considerações éticas com foco aos imigrantes e suas diferenças culturais. A Polônia não possui testes organizados para o risco de síndrome de Down, no entanto, os planos de saúde muitas vezes oferecem às mulheres um "pacote" de teste pré-natal que inclui um teste de soro para o risco de síndrome de Down (PAPP-A). Em 2009 o Ministério da Saúde Francês emitiu normas oficiais que recomendavam triagem no primeiro trimestre a todas as mulheres grávidas e fixou suas normas.
O manual inglês Practical Genetic Counseling considera que a indicação para diagnóstico pré-natal requer a presença de fatores de risco para anomalias genéticas como: um dos pais possui uma translocação autossômica; idade materna avançada; teste de triagem alterado para síndrome de Down; achados ultrassonográficos sugestivos de síndrome de Down ou outro distúrbio cromossômico; criança anterior com trissomia autossômica ou outra anormalidade semelhante e síndromes de instabilidades cromossômicas.
Os manuais americanos de genética não estabelecem critérios de risco para indicação de diagnóstico pré-natal. Segundo o livro Thompson & Thompson Genética Médica, o Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia em um documento produzido em 2007 recomenda que o diagnóstico pré-natal seja disponibilizado para todas as mulheres, independente da idade e sem que haja um teste de triagem prévio indicativo de risco aumentado. Para o manual Emery and Rimoin’s Principles and Practice of Medical Genetic, a segurança na amostragem vilo-coriônica33A amostra de vilosidade coriônica é um procedimento de coleta de tecido fetal para realização de uma biópsia. A biópsia de vilosidade coriônica é um procedimento diagnóstico utilizado na investigação genética fetal (ZUBAIG, 2012). e amniocentese aumentam a possibilidade de oferecer diagnóstico pré-natal invasivo a todas as mulheres no primeiro e segundo trimestres.
A discussão sobre a extensão do diagnóstico pré-natal nos manuais de genética e obstetrícia inclui as pesquisas sobre a elaboração do diagnóstico pré-natal não invasivo (NIPT). A tecnologia propõe a análise do DNA de células fetais no sangue materno. No entanto, nenhum manual considerou a possibilidade de substituição dos procedimentos invasivos pelo NIPT. Segundo Thompson & Thompson Genética Médica, o NIPT deve ser considerado um teste de triagem e não um teste diagnóstico.
No Brasil, os hospitais públicos não demonstram interesse pelo uso do NIPT, diferente do setor privado de saúde (LÖWY, 2017LÖWY, I. Imperfect pregnancies: a history of birth defects & prenatal diagnosis. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2017.). Na área de ginecologia e obstetrícia, um grande número de mulheres da classe média e alta usam exclusivamente serviços de saúde privados. Elas realizam com frequência alguma triagem de risco para síndrome de Down, como a combinação de um teste de soro materno e um exame de ultrassonografia. Se o teste identifica um alto risco para anomalia, a mulher é indicada para realizar amniocentese. Os testes de diagnóstico não invasivo no Brasil foram dissociados de um cálculo do risco e tornaram-se um símbolo de status que visa tranquilizar as gestantes de que o feto está saudável (LÖWY, 2017LÖWY, I. Imperfect pregnancies: a history of birth defects & prenatal diagnosis. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2017.).
A indicação para diagnóstico pré-natal que, na década de 1970 era estritamente relacionada à idade materna avançada e aos riscos de anomalias cromossômicas (LÖWY, 2014aLÖWY, I. How genetics came to the unborn: 1960-2000. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 47, p. 154-162, 2014a.) sofreu modificações. Em 2007, o Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia amplia a disponibilidade da triagem e diagnóstico pré-natal para todas as mulheres independente da idade. Essa conduta diz respeito ao reconhecimento das tecnologias de rastreio de doenças no campo da genética e à atribuição de responsabilidade ao paciente que deve realizar escolhas sobre os procedimentos (AMERICAN COLLEGE…, 2016AMERICAN COLLEGE OF OBSTETRICIANS AND GYNECOLOGIST. Practice Bulletin nº163-Screening for Fetal Aneuploidy. Obstetrics & Gynecology, v.127, n. 5, p. 123-137, 2016.). No momento de indicação para diagnóstico pré-natal, as duas especialidades trabalham pela via da escolha do paciente.
Considerações finais
Esta pesquisa objetivou conhecer as percepções de risco em idade considerada avançada, por meio da análise de manuais médicos científicos de obstetrícia e genética. Tais manuais contam com distintos estilos de pensamento, no sentido atribuído por Fleck(2010FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo horizonte: Fabrefactum. 2010.), com diferentes concepções de risco relativas à idade materna avançada. As duas especialidades produziram espaços para identificação e gestão de riscos: as consultas de acompanhamento pré-natal e as consultas de aconselhamento genético.
A idade materna é um aspecto presente na obstetrícia enquanto fator de risco de doenças. Em todos os manuais de obstetrícia analisados, a idade materna avançada é considerada como fator de risco para aneuploidia fetal e aborto espontâneo. Há concepções distintas em relação à idade materna avançada. No manual Williams Obstetrics, fatores socioeconômicos, acesso aos serviços de saúde e as condições físicas da mulher em idade avançada exercem influência sobre sua classificação de risco. Já o manual Rezende Obstetrícia apresenta uma concepção divergente, a idade materna avançada é fator de risco que independe de outras condições externas. Recomenda que mulheres acima dos 35 anos de idade não engravidem. Os extremos de idade são considerados fatores de risco associados à natimortalidade e à mortalidade infantil.
Os manuais nacionais de obstetrícia indicam e contraindicam uma faixa etária para gestar. O período considerado ideal para gestação é relacionado a uma faixa etária entre os 20 e 29 anos, ou dos 20 aos 30 anos. O período desaconselhado para gestar é a adolescência, com a justificativa de despreparo psicológico para assumir as funções maternas e conciliá-las com atividades acadêmicas. Nos manuais internacionais, as doenças sexualmente transmissíveis e os problemas nutricionais integram as principais preocupações relativas à gestação na adolescência.
A medicina obstétrica, ao tratar de assuntos referentes à sexualidade e à reprodução, estabelece um uso seletivo dos aspectos biológicos entre homens e mulheres. O declínio da fertilidade ocorre primeiro em mulheres e depois nos homens. A fertilidade, ao ser eleita pela medicina como a principal diferença entre homens e mulheres mais velhos, contribui para a desvalorização do envelhecimento das mulheres, ainda que estas apresentem mais anos de vida do que os homens. A representação cultural da feminilidade é associada à juventude e torna-se incompatível com o envelhecimento.
Nos manuais de obstetrícia não é apresentado consenso acerca de uma idade paterna considerada avançada. Foram citadas as idades acima de 40 e 55 anos como possíveis faixas etárias geradoras de riscos de saúde para a criança. É possível afirmar que a representação cultural da paternidade independe da questão etária. Os manuais ainda orientam que não seja concedida atenção diferenciada aos homens que desejam se tornar pais mais velhos. Portanto, não há problematização em torno da capacidade reprodutiva do homem.
A associação da mulher com a maternidade contribui para o estabelecimento de normas e condutas direcionadas a modificar o estilo de vida da mulher, segundo a função de gestar. Na assistência pré-natal, os profissionais difundem um discurso de responsabilização das condições físicas e sobre o estilo de vida da mulher, passíveis de afetar sua saúde e a da prole. São transmitidos comportamentos e informações dirigidos à redução de riscos para evitar intercorrências no período gestacional, no parto e pós-parto. O momento recomendado para adotar condutas dirigidas a evitar danos à saúde da mulher e do feto é anterior à gestação, o que consiste em condição ideal no Brasil. A intervenção médica prévia, em nome do “tratamento” do risco, é tida como dimensão central da política da vida no século XXI.
As consultas de aconselhamento genético constituem um espaço de “tratamento” do risco, com proliferação de discursos sobre riscos e medidas preventivas. As sessões são organizadas para indicar a realização de escolhas, em prol do gerenciamento do risco no presente, para evitar intercorrências no futuro. No entanto, as concepções de risco de saúde presentes nos manuais de genética incluem critérios distintos dos propagados nos manuais de obstetrícia. O estilo de pensamento encontrado nos manuais de genética valoriza a avaliação de cada organismo biológico no nível do genoma. A concepção de risco ainda envolve cálculos matemáticos baseados nos dados coletados de cada individuo. Tradicionalmente, os requisitos para a indicação de diagnóstico pré-natal derivam de resultados alterados dos protocolos de rastreio sérico e ultrassonográfico.
Para a especialidade genética, a idade materna não é fator central de risco reprodutivo. No século XXI, para o campo da genética, a idade materna enquanto fator isolado não é adequada para detectar aneuploidias. A maior parte das gestações afetadas por aneuploidias ocorre em mulheres com menos de 35 anos. Este argumento contribui para a expansão de indicação de diagnóstico pré-natal a partir de critérios que ultrapassam a idade materna. O Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia também compartilha essa flexibilidade em relação à indicação para diagnóstico pré-natal e reconhece as tecnologias para detecção de doenças no campo da genética. Nos Estados Unidos, no que tange à indicação para diagnóstico pré-natal, houve um tráfego intercoletivo de pensamentos entre as duas especialidades que trabalham segundo a escolha do paciente.
Este artigo não pretendeu considerar alguma idade materna como ideal para gestar. O fator etário reprodutivo é uma escolha arbitrária e relativa, que varia em cada sociedade, grupo ou cultura. Tal opção pode mudar no tempo, segundo aspectos históricos, econômicos, sociais e culturais. A discussão acerca das concepções de risco em gestação em idade materna tida como avançada não se encerra neste estudo. Permanecem em aberto muitas indagações, referentes à transmissão de informações sobre gestação em idade avançada, por diferentes profissionais, além das repercussões dos discursos de risco sobre os planos reprodutivos individuais. Investigações futuras podem contribuir para uma ampliação dos conhecimentos acerca das concepções de risco em gestações em variadas idades maternas.44P. L. Martins: Pesquisa e coleta dos dados, análise e transcrição dos resultados. R. A. Menezes: análise dos resultados e revisão teórica do artigo.
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- 1Este artigo é resultado de uma dissertação em Saúde Coletiva e recebeu financiamento da Fundação CAPES/ Ministério da Educação.
- 2Aneuploidias fetais são alterações cromossômicas que envolvem um ou mais cromossomos de cada par. Essas alterações decorrem da não disjunção ou não separação de um ou mais cromossomos durante o processo de divisão celular (BORGES-OSÓRIO; ROBINSON, 2013BORGES-OSÓRIO, M. R.; ROBINSON, W. M. Genética humana. Porto Alegre: Artmed, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=mCvpnQEACAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=f alse >. Acesso em: 20 jun. 2016
https://books.google.com.br/books?id=mCv... ). - 3A amostra de vilosidade coriônica é um procedimento de coleta de tecido fetal para realização de uma biópsia. A biópsia de vilosidade coriônica é um procedimento diagnóstico utilizado na investigação genética fetal (ZUBAIG, 2012ZUGAIB, M. Zugaib obstetrícia. 2ª ed. Barueri: Manole. 2012.).
- 4P. L. Martins: Pesquisa e coleta dos dados, análise e transcrição dos resultados. R. A. Menezes: análise dos resultados e revisão teórica do artigo.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jul 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
26 Out 2020 - Revisado
26 Out 2020 - Aceito
27 Set 2021