Método e teoria: a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais em Saúde

Jane A. Russo Sobre o autor

A estruturação da Saúde Coletiva como campo acadêmico ocorreu no final dos anos 1970 e no decorrer dos anos 80, e foi concomitante com a luta política levada adiante pelos movimentos de oposição à ditadura, em prol da reforma do sistema público de saúde.

As disciplinas que compuseram os primeiros cursos de pós-graduação em Saúde Coletiva, e que fundamentaram as primeiras teses e publicações, foram a sociologia política, a ciência política, a economia (ver RUSSO; CARRARA, 2015RUSSO, J. A.; CARRARA, S. L. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 467-484, 2015 , p. 4). Quer dizer, as Ciências Humanas e Sociais (em especial as Ciências Sociais) estavam lá na constituição da Saúde Coletiva desde o início. Os primeiros grandes nomes da Saúde Coletiva, entretanto, não serão cientistas sociais, mas sim médicos sanitaristas, comprometidos com a redemocratização do país e com a saúde pública no interior desse processo de redemocratização.

Com a consolidação dos programas de pós-graduação, a Saúde Coletiva se estruturou nas três áreas que se tornaram tradicionais - Política e Planejamento, Epidemiologia e Ciências Humanas e Sociais em saúde, “sendo que, em termos históricos, essa área que hoje denominamos Política e Planejamento fazia parte de uma espécie de ‘área mãe’ de onde as outras, mais acadêmicas, se desgarraram.” (RUSSO; CARRARA, 2015RUSSO, J. A.; CARRARA, S. L. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 467-484, 2015 , p. 4).

Sabemos que uma importante inflexão do campo ocorreu nos anos 90, quando as lideranças da área (que eram médicos sanitaristas e que haviam se destacado na luta por uma saúde pública democrática) ocuparam postos de planejamento e gestão no governo em seus vários níveis (secretarias em ministérios, em governos estaduais e municipais etc.). Nesse momento, começou a ocorrer certa separação entre dois tipos de legitimidade que até então se entrelaçavam: “a legitimidade política e a acadêmica, com novos atores passando a ocupar lugar de relevância nos cursos de pós-graduação. Dentre esses novos atores, se destacaram os epidemiologistas” (RUSSO; CARRARA, 2015RUSSO, J. A.; CARRARA, S. L. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 467-484, 2015 , p. 5).

Também é no decorrer dos anos 90 que se assiste à lenta estruturação da área que vai se autodenominar Ciências Humanas e Sociais em Saúde. A história dessa área será diferente da história da Epidemiologia, na medida em que é externa à área médica. Conforme escrevi em meu texto com Sergio Carrara:

A paulatina constituição e estruturação do campo das Ciências Sociais e Humanas em Saúde vai coincidir com o surgimento de novas temáticas que, acredita-se, devem ser tratadas também com uma metodologia diversa - questões que não podem ser acessadas por meio dos métodos “objetivos”. Temos, de um lado, “novos” objetos de pesquisa - a experiência (dos sujeitos), concepções populares ou leigas, modos de organização de grupos sociais. Além disso há o surgimento de questões mais propriamente teóricas, que exigem uma formulação conceitual, como: subjetividade e cultura, construção social da saúde e da doença, medicalização. Esses três níveis - do método, do objeto e da teoria - estão entrelaçados. A Abordagem qualitativa surge como aquilo que permite ter acesso a crenças, valores, a todo um universo simbólico dos sujeitos / grupos, que os métodos quantitativos não seriam capazes de captar. E o acesso a esse universo simbólico é imprescindível para se discutir conceitualmente a relação entre subjetividade, corpo e cultura, por exemplo, ou a construção social da saúde e da doença. (RUSSO; CARRARA, 2015RUSSO, J. A.; CARRARA, S. L. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 467-484, 2015 , p. 8).

A abordagem qualitativa, que surge como contribuição fundamental a partir da consolidação da nova área, vai trazer alguns problemas, dos quais um dos mais graves é a banalização da própria metodologia qualitativa. A ideia de que, por exemplo, basta colocar um certo número de sujeitos para falar (de si ou de alguma outra coisa), ou que basta observar e descrever um evento, e isso pode ser apresentado como resultado de uma pesquisa. Uma concepção subjacente de que o método substitui a teoria (ou a questão teórica); e que o discurso nativo (ou êmico) fala por si.

De fato, hoje em dia o “informante” passou a ser “colaborador/a”. Não se trabalha mais com a ideia de um sujeito “passivo” sendo objeto da pesquisa. Considera-se que o antigo informante tem papel ativo na pesquisa que está sendo realizada. Mas isso mesmo, essa transformação, é objeto de debates teórico-metodológicos importantes, cuja dimensão política é da maior relevância. “Dar a voz” aos sujeitos dos cuidados em saúde é, cada vez mais, uma via de mão dupla, uma toma lá dá cá entre o pesquisador e o pesquisado.

Como disse, tudo isso tem sido objeto de debates teórico-metodológicos acalorados. Neste sentido, é importante enfatizar que não há metodologia sem teoria. Sem uma teoria acerca do “sujeito” ou “objeto” da pesquisa. Ou seja, já há teoria na própria construção do objeto - que não está lá colocado no mundo sem ter nada a ver com a construção que dele é feita pelos (diversos) mundos da ciência. O método depende de uma teoria acerca da sociedade, dos grupos e indivíduos que a compõem etc. Qualquer metodologia tem uma teoria implícita acerca de tais categorias, que é necessário explicitar.

Referências

  • RUSSO, J. A.; CARRARA, S. L. Sobre as ciências sociais na Saúde Coletiva - com especial referência à Antropologia. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 467-484, 2015

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br