Rob Wallace acerca das raízes sociais da pandemia de Covid-19

Nuno Miguel Cardoso Machado Sobre o autor
20202020

Centenas de milhões de pessoas infetadas, 6,3 milhões de mortes e uma crise económica gravíssima fazem da pandemia de Covid-19 o fenómeno mais marcante do primeiro quartel do século XXI. Num mundo apanhado quase completamente de surpresa por esta hecatombe, Rob Wallace - biólogo evolutivo e filogeógrafo11 Conforme esclarece o autor, na qualidade de “filogeógrafo […] utilizo as sequências genéticas de vírus e bactérias […] para fazer descobertas sobre a propagação geográfica e a evolução dos patógenos” (WALLACE, 2020b, p. 605). renomado que já colaborou com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e com o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos - conta-se entre os poucos cientistas lúcidos que alertavam há vários anos para a inevitabilidade de uma pandemia.

A tese central de Pandemia e Agronegócio22Obra publicada originalmente em inglês, em 2015. A edição portuguesa inclui dois ensaios adicionais especificamente sobre o novo coronavírus. e Dead Epidemiologists enuncia que os vírus não possuem apenas um cariz biológico, mas são factos eminentemente sociais. A sua disseminação resulta de “combinações [...] entre circunstâncias agroecológicas [...] e relações económicas” (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 432). Por outras palavras, os “mecanismos” de “propagação das doenças” virais encontram “a sua mediação social” (WALLACE, 2020b, p. 429WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.) no funcionamento de “sistemas de produção ao longo do tempo e do espaço” (WALLACE, 2020a, p. 26WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.). Segundo Wallace, este contexto histórico-social “não é meramente um campo sobre o qual as relações causais se desenrolam. [...] O contexto é a causalidade” (WALLACE, 2020b, p. 357, itálico no originalWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

Na modernidade, a reprodução da sociedade e dos indivíduos obedece predominantemente aos ditames do capital como forma social. Portanto, o metabolismo entre os seres humanos e a natureza é subordinado à “dinâmica” destrutiva do “capitalismo” (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 200). Numa economia capitalista, a forma quasi-universal dos produtos do trabalho é a mercadoria; ora, as empresas “produzem mercadorias” não porque possuem um “valor de uso”, mas porque contêm um “valor” monetário (WALLACE, 2020b, p. 97WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). A produção prioriza, então, “o lucro [...], uma abstração que impacta nos alicerces do mundo real” (WALLACE, 2020a, p. 103WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.).

Por exemplo, as modificações promovidas no valor de uso das mercadorias para maximizar o valor económico criado “podem ter consequências [...] perigosas” (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 97). Isso é patente no agronegócio, onde “organismos vivos e respirantes” são alterados para potenciar a “produção de valor” (WALLACE, 2020b, p. 97WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). A situação é particularmente grave no domínio da pecuária:

[F]oram impostas mudanças de fundo à maneira como os animais destinados ao consumo são criados (e, inclusive, àquilo que eles são). A pecuária e a avicultura industriais encarnam cada vez mais a economia capitalista. A genética, a procriação, o nascimento, a engorda, a alimentação, o alojamento, a gestão de resíduos, o transporte, o abate, o processamento, o embalamento e a expedição devieram organizados, antes de tudo, de acordo com taxas de lucro. (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 110, itálico no original).

Em suma, o “agronegócio” procura transformar “a biologia [...] animal [...] em dinheiro a todo e qualquer custo” (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 176). Wallace defende que as doenças virais possuem, por isso, “origens sociais” frequentemente escamoteadas: a disseminação de um número crescente de vírus entre seres humanos pode, em parte, ser entendida como a consequência inadvertida dos “esforços dedicados a direcionar a ontogenia animal e a ecologia à lucratividade” (WALLACE, 2020b, p. 87WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Na ótica do autor, “a própria biologia” dos vírus “está enredada na economia política dos negócios de alimentos” (WALLACE, 2020b, p. 80WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Neste âmbito, a “biologia” e a “economia” fundem-se em “teias complexas de ação humana, de animais e de agentes patogénicos” (WALLACE, 2020b, p. 445WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

Portanto, em contextos agroecológicos cada vez mais “capitalizados”, onde os “organismos vivos” são mercadorizados, “cadeias de produção inteiras” tornam-se “vetores de doenças” (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 87). Conforme concretizarei nos parágrafos subsequentes, o móbil do lucro reflete-se na forma (historicamente) específica de organização do agronegócio, cujas caraterísticas gerais são outras tantas condições facilitadoras de doenças infeciosas.

Em primeiro lugar, a monocultura industrial e intensiva de animais em “mega-quintas” - que, “desde a década de 1970, [...] se espalhou pelo planeta a partir de suas origens no sudeste dos Estados Unidos” (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 66) - contribui para o desenvolvimento de uma “vasta gama” de patógenos, nomeadamente das “epizootias peculiares da nossa era” (WALLACE, 2020a, p. 113WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.).

Desde logo, “milhões de porcos e aves apinhados lado a lado” geram “uma ecologia quase perfeita para a evolução de várias cepas virulentas” (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 66), em virtude do contacto permanente e “prolongado” (WALLACE, 2020b, p. 195).33Wallace define a virulência como “a quantidade de dano que um patógeno causa ao hospedeiro” (WALLACE, 2020b, p. 264). De acordo com Wallace, “tamanho e densidade populacional maiores facilitam maiores taxas de transmissão” de vírus (WALLACE, 2020b, p. 91WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Sobretudo em situação de “confinamento”, que deprime a “resposta imune” dos animais (WALLACE, 2020b, p. 91WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.).44Note-se que não são só os animais que estão enclausurados e hiperconcentrados. No caso da Covid-19, a “mortalidade” foi maximizada pela “concentração de pessoas idosas” - com sistemas imunitários fragilizados - “em lares de terceira idade” (Jappe et al., 2020, p. 157). Além disso, os níveis de produtividade extremamente elevados no ramo pecuário são responsáveis “por uma oferta continuamente renovada de hospedeiros potenciais, o combustível para a evolução da virulência” (WALLACE, 2020a, p. 34WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.).

Como se tudo isto não bastasse, os animais criados industrialmente são sobrealimentados para crescerem rapidamente (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 111) e, assim, atingirem o “peso” comercialmente “adequado” no menor período de tempo possível (WALLACE, 2020b, p. 91-92). No caso das aves, as suas tiroides são manipuladas geneticamente “para não reconhecerem quando os seus estômagos estão cheios” (WALLACE, 2020a, p. 111WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.). Ora, “a diminuição da idade do abate [...] contribui para selecionar patógenos capazes de sobreviver” inclusive aos “sistemas imunitários mais robustos” (WALLACE, 2020a, p. 51-52WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.). Em outros termos, aumenta “a pressão sobre os vírus para atingir seu limiar de transmissão - e carga de virulência - em um ritmo muito mais acelerado”, antes que o hospedeiro seja abatido (WALLACE, 2020b, p. 92WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

Outro aspeto problemático é a “homogeneização genética” dos animais promovida conscientemente pela pecuária intensiva (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 380). De facto, “o agronegócio produz em laboratório suas poucas linhagens [...] a partir de estoques genéticos” (WALLACE, 2020b, p. 317WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Esta criação de “animais [...] destinados ao consumo com genomas virtualmente idênticos” (WALLACE, 2020a, p. 51WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.) impede a atuação da “seleção natural como um serviço ecológico gratuito e em tempo real” (WALLACE, 2020b, p. 364WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.) e, além disso, “remove os retardadores imunes que em populações mais diversificadas abrandam a transmissão” (WALLACE, 2020a, p. 51WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.). Importa reter que “a falha em acumular resistência natural aos patógenos circulantes é incorporada ao modelo industrial antes que ocorra um único surto” (WALLACE, 2020b, p. 317WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

Um fator adicional facilitador da disseminação viral é o enorme “alcance geográfico” das cadeias de produção (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 343). Com efeito, pode-se falar de uma autêntica “rede globalizada de produção e comércio [...] de animais confinados”, em que estes são transportados “de região para região” e, inclusive, exportados para países terceiros (WALLACE, 2020b, p. 123WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Nas palavras de Wallace, “as mercadorias alimentares são o meio pelo qual mesmo o condado mais isolado pode ter ligações a epidemias globais” (WALLACE, 2020a, p. 66WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.).

Em segundo lugar, é preciso ressalvar que os “cultivos” e as “pastagens” capitalistas “em larga escala [...] estão rapidamente a substituir a floresta, a savana, as pradarias e o mato” (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 106). A desflorestação acelerada contribui para eliminar “os serviços auto-integrados que a natureza geralmente oferece” (WALLACE, 2020b, p. 422WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.), mormente a “biodiversidade” (WALLACE, 2020b, p. 429) e a “complexidade” que tipicamente são capazes de conter os “patógenos «selvagens»” (WALLACE, 2020a, p. 83WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.) e de impedir uma “transmissão contínua” dos vírus (WALLACE, 2020b, p. 482WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Esta destruição da “resiliência agroecológica” (WALLACE, 2020a, p. 126WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.) oferece, por um lado, as condições perfeitas para a evolução dos patógenos, em particular dos “fenótipos mais virulentos e infeciosos” (WALLACE, 2020a, p. 34), enquanto, por outro, permite que aqueles vírus “previamente acantonados” transbordem “para a pecuária local e para as comunidades humanas” (WALLACE, 2020a, p. 33WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.).

Portanto, na perspetiva de Wallace, “as relações de produção” mercantis “amplificam o transbordamento (spillover) de doenças” para seres humanos (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 90). Chega-se assim, finalmente, à explicação da Covid-19: “a genética do vírus SARS-CoV-2 mostra que ele é um rearranjo de um coronavírus de morcego com uma cepa de pangolim que posteriormente sintonizou-se com o sistema imunológico humano, durante ou pouco antes do surto de Wuhan” (WALLACE, 2020b, p. 544WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

Wallace subscreve, então, a tese mais consensual de que a Covid-19, provocada pelo vírus SARS-CoV-2, se terá devido a justamente um fenómeno de transbordamento. Em virtude da sua “virtuosidade imunitária”, os morcegos são hospedeiros de uma “diversidade impressionante de vírus” (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 162). A destruição do seu habitat natural, por via da desflorestação, conduz a uma maior interação “entre humanos e morcegos frugívoros” (WALLACE, 2020b, p. 476WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.), quer direta quer indiretamente. Isto potencia a probabilidade de infeção. Por um lado, através de mordidelas, arranhões e da exposição às secreções dos morcegos (WALLACE, 2020b, p. 477WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Por outro lado, através do contacto com outras espécies selvagens previamente infetadas, mormente “nos mercados de produtos frescos” e nos talhos “de carnes de animais silvestres” (WALLACE, 2020b, p. 346WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

No caso da China, tanto o consumo de “alimentos selvagens crescentemente capitalizados” (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 24) como os “círculos periurbanos de extensão e densidade populacional crescentes” são fatores de risco infecioso, porque incrementam “a interface (e o transbordamento) entre populações de animais selvagens e humanos das áreas rurais recentemente urbanizadas” (WALLACE, 2020b, p. 545). Todavia, Wallace considera que a “concentração” exclusiva “da atenção nas zonas dos surtos” iniciais “escamoteia as relações” sociais, económicas e agroecológicas “partilhadas pelos atores económicos globais” (WALLACE, 2020a, p. 49, itálico nosso).

É neste ponto que jaz a originalidade da sua teoria explicativa: a responsabilidade pelo SARS-CoV-2 não pode ser imputada (apenas) à China e a sua origem não se deveu somente a fatores de índole biológica. Esta é uma “pandemia que nasce do modo de produção capitalista” aplicado à agropecuária (WALLACE, 2020aWALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a., p. 53). Logo, “a causa da Covid-19 [...] não se encontra apenas [...] em qualquer agente infecioso ou no seu curso clínico, mas também no campo das relações ecossistémicas que o capital [...] fixou para proveito próprio” (WALLACE, 2020a, p. 55WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.), ou seja, verifica-se uma “convergência de mecanismos patogénicos e socioculturais” (WALLACE, 2020b, p. 131WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

A prova disso é a infeção de seres humanos por uma quantidade assinalável de novos vírus nas últimas décadas, cujas origens e disseminação podem ser atribuídas inequivocamente ao modo de (re)produção mercantil:

O SARS-CoV-2, [...] causador da pandemia de Covid-19 [...], representa apenas uma das novas cepas de patógenos que subitamente surgiram como ameaças aos seres humanos neste século. Entre elas estão o vírus da peste suína africana, [...] os ébolas Makona e Reston, [...] a febre aftosa, a hepatite E, a listéria, o vírus Nipah [...], a salmonela [...] e algumas novas variantes da influenza A [como sejam a gripe aviária e a gripe suína] [...]. Esses surtos [...] estão ligados, direta ou indiretamente, às mudanças na produção ou no uso do solo associadas à agricultura intensiva. A monocultura de capital intensivo - tanto a pecuária como a agricultura - impulsiona o desmatamento e os empreendimentos que aumentam a taxa e o alcance taxonómico do transbordamento de patógenos [...] dos animais selvagens para os da pecuária e destes para os trabalhadores do setor. (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 527).

Perante este diagnóstico, impõe-se a pergunta: que fazer? Em primeiro lugar, é preciso deixar de tratar o capitalismo e, em particular, a sua encarnação neoliberal como um modo de vida social ontológico, quasi-natural (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 437) e examinar criticamente os seus “pressupostos” (WALLACE, 2020b, p. 200WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). Wallace advoga uma “ciência alternativa” suscetível de abarcar “todos os processos fundamentais subjacentes às ecologias da saúde, tais como a propriedade e a produção, remanescentes históricos de longa duração e a infraestrutura cultural por trás das mudanças na paisagem que produzem as ameaças à saúde” (WALLACE, 2020b, p. 440WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

Em segundo lugar, travar (temporariamente) os surtos virais “por meio de uma vacina não faz desaparecer o contexto social que impulsiona a sua própria circulação” (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 484). Ou seja, se o “cerne do problema”, conforme demonstra Wallace, “está no modelo de produção” agroalimentar (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 513), então é necessário transformá-lo radicalmente. Caso contrário, “múltiplos patógenos” continuarão a adquirir o “estatuto súbito de celebridade global, um após o outro” (WALLACE, 2020a, p. 33WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.).

É necessário, pois, combater a mercadorização da Natureza, das espécies vegetais e animais destinadas ao consumo humano e do seu processamento em alimentos, privilegiando o valor de uso em detrimento do valor de troca (WALLACE, 2020bWALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b., p. 284, 300, 355). Por outras palavras, urge “combater o agronegócio como paradigma” (WALLACE, 2020b, p. 171WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.). No seu lugar deve ser construído “um eco-socialismo que supere a fissura metabólica entre ecologia e economia, e entre urbanidade, ruralidade e ambiente selvagem, impedindo desde logo o surgimento dos piores destes patógenos” (WALLACE, 2020a, p. 28). Trata-se de estabelecer uma “agricultura ecológica” passível de atender as “necessidades das pessoas” (WALLACE, 2020b, p. 176), integrando “produção de alimentos” e ecossistemas (WALLACE, 2020b, p. 350WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.).

Em jeito de conclusão, pode-se afirmar que Rob Wallace realiza uma excelente análise dos fatores históricos, sociais e ecológicos associados ao surgimento e à disseminação de patógenos mortais. O autor coloca o capitalismo neoliberal no banco dos réus, evidenciando que o seu modelo de produção agropecuária - o agronegócio - comporta uma série de ameaças sistémicas para o meio ambiente e para os seres humanos. Em especial, este é um setor de atividade promotor de doenças infeciosas, incluindo a mais recente pandemia de Covid-19.

Apesar do seu mérito incontestável, ambas as obras resenhadas sofrem de algumas insuficiências. Por um lado, Wallace não relaciona o fenómeno viral com a crise económica que afeta a reprodução do capital global no seu conjunto, conforme fazem Jappe (2020JAPPE, A. et al. De Virus Illustribus: crise du coronavirus et épuisement structurel du capitalisme. Albi: Editions Crise & Critique, 2020. ). Por outro lado, o autor não escalpeliza os efeitos político-jurídicos de índole securitária (estado de exceção/emergência, confinamento obrigatório de enormes populações, etc.) das medidas de combate à pandemia colocadas em ação por virtualmente por todos os governos, conforme faz Slavoj Zizek (2020ZIZEK, S. A Pandemia que Abalou o Mundo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2020.). Porém, estas lacunas não beliscam o facto de se estar perante um dos melhores estudos críticos acerca das origens sociais da Covid-19 escritos até ao momento.

Referências

  • JAPPE, A. et al De Virus Illustribus: crise du coronavirus et épuisement structurel du capitalisme. Albi: Editions Crise & Critique, 2020.
  • WALLACE, R. Dead Epidemiologists: on the origins of Covid-19. Nova Iorque: Monthly Review Press, 2020a.
  • WALLACE, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infeciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante, 2020b.
  • ZIZEK, S. A Pandemia que Abalou o Mundo Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2020.

  • 1
    Conforme esclarece o autor, na qualidade de “filogeógrafo […] utilizo as sequências genéticas de vírus e bactérias […] para fazer descobertas sobre a propagação geográfica e a evolução dos patógenos” (WALLACE, 2020b, p. 605).
  • 2
    Obra publicada originalmente em inglês, em 2015. A edição portuguesa inclui dois ensaios adicionais especificamente sobre o novo coronavírus.
  • 3
    Wallace define a virulência como “a quantidade de dano que um patógeno causa ao hospedeiro” (WALLACE, 2020b, p. 264).
  • 4
    Note-se que não são só os animais que estão enclausurados e hiperconcentrados. No caso da Covid-19, a “mortalidade” foi maximizada pela “concentração de pessoas idosas” - com sistemas imunitários fragilizados - “em lares de terceira idade” (Jappe et al., 2020, p. 157).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2021
  • Revisado
    09 Out 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
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