Migração forçada, refúgio, alimentação e nutrição: uma revisão integrativa da literatura na perspectiva da segurança alimentar e nutricional

Forced Migration, Refuge, Food and Nutrition: An Integrative Literature Review from the Perspective of Food and Nutritional Security

Thainá do Nascimento de Barcelos João Roberto Cavalcante Eduardo Faerstein Jorginete de Jesus Damião Sobre os autores

Resumo

Introdução: Até o final de 2020, 82,4 milhões de pessoas foram forçadas ao deslocamento no mundo. Este quantitativo qualifica a população deslocada à força como a maior já registrada, sendo 1% da população mundial. Cerca de 80% dessas pessoas estão em países afetados por grave insegurança alimentar. Objetivo: Analisar a produção científica sobre migrações forçadas, refúgio e nutrição, com foco na segurança alimentar e nutricional. Método: Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, por meio das bases: Biblioteca Virtual de Saúde, USA National Library of Medicine, Portal Periódicos da CAPES e Science Direct. Resultado: Foram encontrados 717 artigos, 334 (46,6%) no MEDLINE, 241 (33,6%) no Portal Periódicos CAPES, 110 (15,3%) no Science Direct e 32 (4,5%) na BVS. Cinco temas foram identificados: (1) Segurança Alimentar e Nutricional; (2) Práticas alimentares e aculturação; (3) Nutrição Materno-Infantil; (4) Dupla carga de má-nutrição; (5) Estratégias de Educação Alimentar e Nutricional. Conclusão: As dificuldades em função das diversidades culturais evidenciadas pelo idioma e práticas alimentares; a falta de acesso a trabalho e renda; acesso a serviços e cuidados adequados em saúde estão dentre os principais desafios para o acesso à segurança alimentar e nutricional.

Palavras-Chave:
Migração humana; Refugiado reconhecido; Nutrição em Saúde Pública; Saúde Pública; Saúde Global

Abstract

Objective: To analyze the existing scientific production on forced migrations, refuge and nutrition, with a focus on food and nutrition security. Method: This is an integrative literature review, using the bases: Virtual Health Library, USA National Library of Medicine, Periodical Portal of the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel and Science Direct. Results: 717 articles were found, 334 (46.6%) in MEDLINE, 241 (33.6%) in Portal Periódicos CAPES, 110 (15.3%) in Science Direct and 32 (4.5%) in the VHL. Five themes were identified: (1) Food and Nutritional Security; (2) Food Practices and Acculturation; (3) Maternal and Child Nutrition; (4) Double burden of malnutrition; (5) Food and Nutrition Education Strategies. Conclusion: Difficulties due to cultural diversities evidenced by language and food practices; lack of access to work and income; access to services and adequate health care are among the main challenges for access to food and nutrition security.

Keywords:
Human Migration; Recognized Refugee; Nutrition in Public Health; Public health; Global Health

Introdução

A preocupação com a fome, como problema humanitário a ser enfrentado por todas as nações, sempre foi um dos principais motivos para migrações forçadas em massa, tendo maior destaque após a Primeira Guerra Mundial (IPEA, 2014). Diversos países tiveram suas economias profundamente afetadas e, anos mais tarde, a situação de tragédia foi exacerbada, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, que teve impacto em todo o sistema econômico mundial, além de sérios danos à garantia de direitos humanos (IPEA, 2014).

Nesse contexto, as migrações forçadas que se caracterizam por interrupções e perturbações de vidas e violações de direitos humanos e busca por melhores condições de vida (MILESI, 2014MILESI, R. Refugiados e migrações forçadas: uma reflexão aos 20 anos da Declaração de Cartagena. Brasília: Ministério da Justiça. 10p, ago. 2014.; MONAIAR, 2018MONAIAR, A. B. et al. Migrantes Forçad@s: Conceitos e Contextos. p. 891, 2018.), também se intensificaram e se perpetuam até os dias de hoje (FAERSTEIN; TRAJMAN, 2018FAERSTEIN, E.; TRAJMAN, A.; Forced Migration and Health: Problems and Responses. In: PARKER, R.ichard Parker; GARCÍA, Jonathan García. (Org.). Routledge Handbook on the Politics of Global Health. 1ed. New York: Routledge Handbook, 2018, v. 1, p. 359-367.).

Migrantes forçados podem ser classificados como refugiados, solicitantes de refúgio e deslocados internos. Refugiados são os indivíduos que migraram devido a “fundados temores de perseguição por questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política e que, em virtude desse receio, não podem ou não querem obter proteção de seu país de origem” (ACNUR, 2020ACNUR. Global Trends: Forced Displacement in 2020, 2021. Disponível em: https://www.unhcr.org/60b638e37/unhcr-global-trends-2020#_ga=2.239568899.1866016895.1628873083-755307507.1628354274. Acesso em: 13 ago. 2021.
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). Os solicitantes de refúgio realizaram a migração internacional, mas procuram ser admitidos no país de destino como refugiados e aguardam a decisão de sua solicitação (IOM, 2004INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION (IOM). Glossary on Migration, n. 25. International Migration Law Series, 2004.; JUBILUT; MADUREIRA, 2014JUBILUT, L. L.; MADUREIRA, A. de L. Os desafios de proteção aos refugiados e migrantes forçados no marco de Cartagena+ 30. REMHU-Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 22, n. 43, p. 11-33, 2014.; ACNUR, 2018ACNUR. Protegendo Refugiados no Brasil e no Mundo, 2018. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2018/Cartilha_Protegendo_Refugiados_No_Brasil_2018.pdf?file=fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2018/Cartilha_Protegendo_Refugiados_No_Brasil_2018. Acesso em: 22 abr. 2020.
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). Deslocados internos deixam suas casas, vilas e aldeias, por motivos similares aos dos refugiados e muitas vezes por perseguição de seu próprio estado-nação, porém não atravessaram ainda uma fronteira internacional (IOM, 2004; ACNUR, 2018ACNUR. Protegendo Refugiados no Brasil e no Mundo, 2018. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2018/Cartilha_Protegendo_Refugiados_No_Brasil_2018.pdf?file=fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2018/Cartilha_Protegendo_Refugiados_No_Brasil_2018. Acesso em: 22 abr. 2020.
https://www.acnur.org/fileadmin/Document...
).

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNURACNUR. Global Trends: Forced Displacement in 2019, 2020. Disponível em: https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5ee200e37/unhcr-global-trends-2019.html. Acesso em: 30 jul. 2020a.
https://www.unhcr.org/statistics/unhcrst...
) contabilizou, até 2020, que cerca de 82,4 milhões de indivíduos foi forçada ao deslocamento no mundo, sendo 26,4 milhões de refugiados, 4,1 milhões de solicitantes de refúgio, 48 milhões de deslocados internos e 3,9 milhões de venezuelanos vivendo fora da Venezuela (ACNUR, 2021ACNUR. Reassentamento UNHCR, [s.d.]. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/solucoes-duradouras/reassentamento/>. Acesso em: 30 jul. 2020b.). Cerca de 80% desses indivíduos deslocados no mundo estão em países ou territórios afetados por grave insegurança alimentar e nutricional (IAN) e desnutrição (ACNUR, 2020ACNUR. Global Trends: Forced Displacement in 2020, 2021. Disponível em: https://www.unhcr.org/60b638e37/unhcr-global-trends-2020#_ga=2.239568899.1866016895.1628873083-755307507.1628354274. Acesso em: 13 ago. 2021.
https://www.unhcr.org/60b638e37/unhcr-gl...
).

O fenômeno da migração forçada agrava as condições de desigualdade e IAN. As populações de refugiados, em particular, por vezes não têm acesso aos alimentos devido às restrições legais de seus direitos ao trabalho, acesso à terra e liberdade de movimento (FAO, 2020FSIN; PMA; FAO. Relatório Global de Crises Alimentares. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://docs.wfp.org/api/documents/WFP-0000114546/download/?_ga=2.50460457.1675590893.1603922845-1640974595.1603922845>. Acesso em: 28 out. 2020.
https://docs.wfp.org/api/documents/WFP-0...
). Os refugiados, solicitantes de refúgio e deslocados internos não são incluídos com sucesso nos serviços e sistemas nacionais, o que os expõe a maiores riscos de pobreza e desnutrição (FAO, 2020).

As situações de fome, obesidade ou doenças associadas à má-alimentação, além do consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou prejudiciais à saúde, são diferentes faces da IAN (CONSEA, 2006), uma vez que a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) compreende o direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente (CONSEA, 2006; CFN, 2020CFN. Segurança Alimentar e Nutricional. Disponível em: https://www.cfn.org.br/index.php/seguranca-alimentar-e-nutricional/. Acesso em: 25 nov. 2020.
https://www.cfn.org.br/index.php/seguran...
).

Nesse contexto, refugiados, solicitantes de refúgio e deslocados internos enfrentam uma dependência cada vez maior do apoio humanitário para atender suas necessidades alimentares e outras necessidades básicas (FAO, 2020). O objetivo deste artigo foi analisar a produção científica existente sobre migrações forçadas, refúgio e nutrição no cenário nacional e internacional, com foco na SAN, a fim de dar visibilidade às ameaças e violações de direitos e identificar as lacunas a respeito das necessidades dessa população.

Métodos

Trata-se de uma revisão integrativa da literatura. Para delinear o estudo, definiu-se a seguinte questão norteadora: “Qual a produção científica no cenário nacional e internacional acerca das migrações forçadas e alimentação, nutrição e segurança alimentar e nutricional dessa população?”.

Foram seguidas seis etapas: (1) definição das questões de pesquisa; (2) definição das bases de dados, critérios de inclusão e exclusão de acordo com a pergunta norteadora; (3) avaliação e seleção dos estudos a serem incluídos; (4) definição do instrumento para extração e registro dos dados coletados dos artigos selecionados; (5) análise crítica dos estudos incluídos e discussão dos resultados; (6) síntese do conhecimento obtido através da revisão integrativa (SOUZA, 2010; FIGUEIRA, 2018FIGUEIRA, M. C. E S.; SILVA, W. P. da; SILVA, E. M. Integrative literature review: access to primary healthcare services. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 71, n. 3, p. 1178-–1188, maio 2018.).

As bases de artigos científicos e periódicos consultadas foram: Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), USA National Library of Medicine (MEDLINE), Science Direct, Portal Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sendo que este último possui indexados artigos de 290 bases, em sua maioria repositórios institucionais.

A coleta foi realizada no mês de março de 2020, com os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e operadores booleanos “AND” e “OR”, para interseção dos descritores (Tabela 1).

Tabela 1
Descritores utilizados na busca dos artigos nas bases de dados. Rio de Janeiro-RJ

A estratégia de busca utilizada na BVS, MEDLINE e Portal Periódicos CAPES foi: “((forced migra* OR refuge* OR asylum AND seek* OR exiled*) AND (food and nutrition security OR nutritional status OR feeding OR nutrition OR nutrition assessment))” (Figura 1). Science Direct não permite o uso de caracteres curinga “*” e mais que oito operadores booleanos por campo de pesquisa, por isso a pesquisa nesta base se deu em dois momentos diferentes, com as seguintes estratégias de busca: ((forced migration) OR refugees) OR asylum seeker) OR exiled) AND (food and nutritional security OR nutritional status OR feeding OR nutrition)); ((forced migration) OR refugees) OR asylum seeker) OR exiled) AND nutrition assessment)) (Figura 1). A busca pelos artigos nesta base restringiu-se aos que apresentaram os descritores no título/resumo/autor.

Figura 1
Representação esquemática da estratégia de busca por base bibliográfica

Nas bases BVS e Portal Periódicos CAPES, a busca restringiu-se aos artigos que apresentaram os descritores no título, enquanto na base MEDLINE a busca pelos artigos restringiu-se aos que apresentaram os descritores no título/resumo. Utilizou-se ainda o filtro “Humans” na MEDLINE, pois um número expressivo de resultados encontrados sem a adição do filtro tratava sobre migração animal e migração celular, que não condizia com o objetivo do estudo.

Além do uso dos descritores DeCS, foram selecionadas palavras-chave para compor a estratégia de busca, a partir da leitura de outros artigos da área de interesse (Figura 2).

Figura 2
Fluxograma de busca e seleção, 2020

Foram atribuídos os seguintes critérios de inclusão: artigos publicados em português, inglês e espanhol, disponíveis na íntegra e sem período limite para as publicações, a fim de abranger o maior quantitativo de trabalhos. Para os critérios de exclusão, foram considerados: artigos que estavam em outros idiomas que não fossem os estabelecidos no critério de inclusão; outros formatos, como: carta, relatório, capítulo de livro, resumo de anais de congresso e notícias; as duplicatas; artigos que não eram exclusivamente sobre nutrição e alimentação de migrantes forçados ou refugiados, aqueles que não estavam conectados à questão do estudo e que possuíam como amostra a população característica das migrações voluntárias, que diferem pelos motivos da migração e do estado de saúde no momento da chegada no país de destino (DONDI, 2020)DONDI, A. et al. Food Insecurity and Major Diet-Related Morbidities in Migrating Children: A Systematic Review. Nutrients, v. 12, n. 2, 31 jan. 2020..

Os registros encontrados foram expostos ao gerenciador de referências Zotero (versão 5.0.86), responsável por identificar e eliminar as duplicatas. Iniciou-se então a primeira etapa de seleção dos trabalhos, envolvendo triagem pelo título e resumo dos artigos que foram selecionados para leitura integral.

Após a seleção dos artigos, o EpiData Manager (v4.6.0.0) foi utilizado para criar um instrumento de coleta de informações, como: título, primeiro autor, ano de publicação, país de origem, país de destino, tipo de estudo/delineamento e principais resultados.

O conceito brasileiro de SAN, expresso na Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, foi utilizado como referencial teórico para a análise e síntese dos resultados encontrados (BRASIL, 2006BRASIL. Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: Presidência da República, 25 ago. 2010.). Os artigos foram categorizados de acordo com os temas recorrentes. Por se tratar de um estudo de revisão de literatura integrativa, não foi necessária uma avaliação por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

Resultados

Foram encontrados 717 artigos, 334 (46,6%) no MEDLINE, 241 (33,6%) no Portal Periódicos CAPES, 110 (15,3%) no Science Direct e 32 (4,5%) na BVS. Após a remoção de 121 duplicatas no gerenciador de referências Zotero, restaram 596 artigos, dos quais ainda restaram 23 duplicatas que foram removidas manualmente, totalizando 573 artigos.

Com a primeira etapa de seleção, leitura do resumo e título, 29 artigos foram selecionados, dos quais sete foram eliminados após a leitura integral. Os motivos para exclusão foram a falta de acesso completo ao artigo (2), não corresponder à questão norteadora do estudo (2), formato (1) e população diferente das migrações forçadas (2) (Figura 2).

Ao final, foram selecionados 22 artigos (Quadro 1), dos quais 11 (50%) apresentaram abordagens qualitativas, 7 (31,8%) abordagens quantitativas e 4 (18,2%) fizeram uso da combinação dos métodos qualitativos e quantitativos. O delineamento dos estudos foi em sua maioria de estudos transversais (15; 68,2%), seguidos por estudos de coorte (3; 13,6%), dos quais dois eram prospectivos e outro retrospectivo, estudos de intervenção não controlados (2; 9,1%) e estudos de revisão sistemática (2; 9,1%) (Tabela 2). Quanto aos anos de publicação, 2016, 2017 e 2019 foram os que mais tiveram artigos publicados sobre a temática investigada (Tabela 3).

Quadro 1.
Identificação dos artigos selecionados
Tabela 2
Principais resultados das revisões bibliográficas incluídas neste estudo. Rio de Janeiro-RJ
Tabela 3
Principais resultados dos artigos incluídos neste estudo. Rio de Janeiro-RJ

Os países que mais produziram artigos sobre essa temática foram os Estados Unidos (EUA), com 10 (45,5%) artigos; e República do Líbano e Austrália, com 2 (9,1%) artigos cada. Os migrantes forçados vieram de 19 diferentes países, sendo os mais frequentes Camboja (3; 13,6%), Libéria (3; 13,6%) e Somália (3; 13,6%) (Tabela 3). Em relação aos países de destino, EUA apareceram 8 (36,4%) vezes como país para reassentamento de refugiados; Argélia, Austrália, Gana e Líbano também estiveram entre os países mais frequentes de destino.

O status de migração forçada mais recorrente foi o de refúgio: 20 (90,9%) artigos tinham como amostra populações com o status de refugiado no momento da entrevista e 4 (18,1%), populações em situação de deslocamento interno. Destes, 14 (63,6%) estudos foram realizados com migrantes forçados que haviam passado por algum processo de solução duradoura, sendo 13 (92,9%) com refugiados que haviam sido reassentados em um terceiro país e 1 (7,1%) com refugiados que passaram pelo processo de integração local.

Os autores de 15 (68,2%) artigos alegaram financiamento para o estudo, por agências governamentais e intergovernamentais (10; 66,7%), universidades (3; 20%), instituições sem fins lucrativos (2; 13,3%), programas institucionais de bolsas para pós-graduação (2; 13,3%), associações médicas (1; 6,7%) e empresas privadas (1; 6,7%) com atividades de produção e processamento de alimentos.

Em 15 (68,2%) artigos, os autores declararam não apresentar conflitos de interesse na produção dos dados apresentados. No entanto, destes, 11 (50%) informaram ter recebido financiamento, sendo um dos estudos financiado por empresa privada com atividades de produção e processamento de alimentos. A influência das indústrias de alimentos pode comprometer a integridade das pesquisas de maneira imprópria; interesses primários e coletivos podem ser prejudicados em função de interesses secundários, como ofuscar aspectos negativos relacionados ao consumo de seus produtos e assim fidelizar os consumidores (PEREIRA, 2016PEREIRA, T. N. et al. Conflict of interest in the training and practices of nutritionists: regulation is necessary. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 12, p. 3833-3844, dez. 2016.).

Com a análise dos artigos selecionados, cinco temas foram identificados: (1) Segurança Alimentar e Nutricional, e ações para seu enfrentamento; (2) Práticas alimentares e aculturação; (3) Nutrição Materno-Infantil; (4) Dupla carga de má-nutrição; e (5) Estratégias de Educação Alimentar e Nutricional. Os artigos abordaram mais de um tema, correlacionando-os. O tema da Segurança Alimentar e Nutricional esteve presente de forma explícita em 8 (36,4%) artigos; 6 (27,3%) estavam relacionados às Práticas Alimentares e Aculturação dos migrantes forçados; 4 (18,2%) tratavam o tema da Nutrição Materno-Infantil; 4 (18,2%) abordavam a Dupla carga de má-nutrição presente nos refugiados e deslocados internos; e 3 (13,6%) apresentavam meios para Estratégias de Educação Alimentar e Nutricional.

Segurança Alimentar e Nutricional

A SAN foi avaliada de diferentes formas nos artigos selecionados. Um instrumento de mensuração da IAN foi criado em um estudo com refugiados liberianos e iraquianos, com base na escala de IAN do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) (HADLEY, 2007; GHATTAS, 2014). A SAN domiciliar foi examinada em pessoas refugiadas da Coreia do Norte por meio de uma versão traduzida da escala USDA (JEONG, 2017). Para avaliar a fome infantil em refugiados somalis, utilizou-se a Escala de Fome de Radimer/Cornell de 10 itens (DHAROD, 2013).

Outra forma de mensuração da IAN consistiu no uso de entrevistas em profundidade em grupo ou individuais, com registros dietéticos, ou seja, recordatório de 24 horas e questionário de frequência alimentar, em refugiados afegãos, somalis e coreanos (KHAKPOUR, 2019; DHAROD, 2013; JEONG, 2017).

O peso corporal foi obtido por meio de questionário de dieta e saúde dos refugiados norte-coreanos residentes na Coreia do Sul (JEONG, 2017) e por meio de balança digital e estadiômetro portátil para medir a altura nos EUA (DHAROD, 2013).

A proporção de famílias da Somália (n=195) residentes nos EUA vivendo em situação de IAN, em adultos foi de 29%, enquanto 23% delas relataram IAN grave ou fome infantil (DHAROD, 2013). Situação semelhante foi encontrada em refugiados afegãos no Paquistão, onde pais e membros mais velhos evitavam fazer algumas refeições para garantir a alimentação das crianças (KHAKPOUR, 2019).

Identificou-se que aproximadamente 53% das famílias africanas (n=101) experimentaram períodos de IAN durante os seis meses anteriores à entrevista de acompanhamento nos EUA (HADLEY, 2007). A IAN também esteve presente entre as famílias de refugiados iraquianos no Líbano (n=630), onde 35,5% se encontravam em situação de IAN moderada e 44,4% estavam em situação de IAN grave (GHATTAS, 2014). Famílias refugiadas da República Democrática do Congo (33%) e República do Burundi (67%) que foram reassentados nos EUA (n=18) também se encontravam em situação de IAN (McELRONE, 2019).

Em quatro diferentes artigos que estudaram grupos refugiados, observou-se que a IAN esteve presente antes, durante e após o processo migratório (KHAKPOUR, 2019; HADLEY, 2007; McELRONE, 2019; JEONG, 2017). No estudo sobre as mudanças no peso corporal, SAN e consumo de alimentos e nutrientes em refugiados norte-coreanos adultos, foi demonstrado que o nível de SAN das famílias (n=149) aumentou da Coreia do Norte, passando pela nação transitória até a Coreia do Sul (JEONG, 2017). Um total de 12,1% dos indivíduos relatou consumo de alimentos em quantidade suficiente e de vários tipos na Coreia do Norte, mas essa proporção aumentou para 47,3% na nação transitória, bem como para 61,7% na Coreia do Sul (JEONG, 2017).

A IAN familiar foi manifestada por uma redução significativa no consumo de frutas (WANG, 2016), carne, peixes, bebidas e doces em comparação com as famílias com SAN (GHATTAS, 2014), enquanto o consumo de alguns grupos de alimentos, como cereais, leguminosas, produtos lácteos e gorduras foi significativamente reduzido apenas quando a IAN era grave (GHATTAS, 2014). Em estudo com famílias somalis residentes nos EUA, a IAN foi mensurada por meio de registros dietéticos e Escala de Fome de Radimer/Cornell, demonstrando que a chance de ter IAN foi significativamente menor entre os participantes que relataram comer vegetais com folhas verdes pelo menos uma vez por dia (DHAROD, 2013; WANG, 2016).

Sobre os fatores associados à IAN, a falta de acesso a emprego e bens e serviços resultou em restrição de alimentos, redução do número de refeições por dia e substituição de alimentos de maior custo por alimentos de menor custo em populações de refugiados da Ásia e África (KHAKPOUR, 2019; HADLEY, 2007).

Entre os estudos, foi possível observar que as famílias com menor proficiência no idioma do país de destino eram mais propensas a ter IAN (KHAKPOUR, 2019; HADLEY, 2007; DHAROD, 2013; McELRONE, 2019; WANG, 2016). A educação dos entrevistados também esteve associada à IAN (HADLEY, 2007; DHAROD, 2013; GHATTAS, 2014; WANG, 2016). Mulheres com ensino médio ou superior tiveram menos probabilidade de ter IAN (HADLEY, 2007). Da mesma forma, das famílias com IAN severa com crianças menores de 5 anos, 61,2% tinham mães que completaram menos de 10 anos de escolaridade, em comparação com 46,8% das famílias com SAN (GHATTAS, 2014).

As famílias que estavam vivendo em situação de IAN severa tinham um número médio de filhos mais alto do que as famílias que viviam em situação de SAN (GHATTAS, 2014). Outros fatores foram associados à IAN, como: a falta de emprego (KHAKPOUR, 2019; LAWLIS, 2018); o recebimento de salários mais baixos (HADLEY, 2007; DHAROD, 2013; WANG, 2016; LAWLIS, 2018); capacidade de manter os alimentos frescos (WANG, 2016); aquisição e utilização de utensílios e equipamentos de cozinha desconhecidos (KHAKPOUR, 2019; LAWLIS, 2018); barreiras em se locomover do território de moradia até os locais de venda (KHAKPOUR, 2019; McELRONE, 2019; LAWLIS, 2018); desconhecimento sobre os locais de venda de alimentos e dificuldade de compreensão do novo ambiente alimentar (WANG, 2016); acesso limitado a alimentos e terras culturalmente apropriados para cultivar as safras desejadas (McELRONE, 2019) e envio de dinheiro para os parentes que não conseguiram migrar (HADLEY, 2007; LAWLIS, 2018).

Como consequência da privação anterior de alimentos no país de origem, refugiados liberianos e hmong relataram aumento excessivo do consumo geral de alimentos nos EUA, enquanto em outro estudo com refugiados bósnios, cubanos e iranianos, 60% relataram aumento do consumo de doces e gorduras (WANG, 2016).

Em meio aos desafios, os refugiados se utilizaram de medidas como: pedir dinheiro emprestado, aceitar um presente ou doação (GHATTAS, 2014; LAWLIS, 2018) e recorrer a redes de apoio social como estratégias de enfrentamento da IAN (McELRONE, 2019).

Políticas Públicas e intervenções voltadas ao enfrentamento da IAN

Foi possível identificar diferentes estratégias para o enfrentamento da IAN, tais como serviços de orientação para recém-chegados (McELRONE, 2019), cupons-alimentação, fortificação de alimentos e distribuição de alimentos (GHATTAS, 2014) em banco de alimentos ou igreja (HADLEY, 2007).

Os serviços de orientação, oferecidos por meio de várias agências de reassentamento, foram considerados facilitadores valiosos para a SAN; no entanto, muitos participantes notaram o esquecimento das informações fornecidas nas sessões, como a senha e método para utilizar o vale-refeição (McELRONE, 2019). Entre as famílias de refugiados iraquianos, 65,8% receberam algum tipo de assistência alimentar na forma de cupons de alimentos, cestas básicas ou cereais infantis fortificados, em ações pontuais (GHATTAS, 2014).

Outros estudos evidenciaram a participação dos refugiados em programas de assistência alimentar (HADLEY, 2007; DHAROD, 2013; McELRONE, 2019). Cerca de 98% das mulheres liberianas entrevistadas nos EUA participaram do Programa de Vale-Refeição em algum momento desde sua chegada no país de destino e 59% participaram do Programa de Assistência Pública de Suplemento Especial para Mulheres, Bebês e Crianças (HADLEY, 2007). As famílias com IAN eram mais propensas a participar do Programa de Vale-Refeição e do Programa de Assistência Pública de Suplemento Especial para Mulheres, Bebês e Crianças e experimentavam insegurança alimentar mais grave (HADLEY, 2007). Entre os participantes do Programa de Vale-Refeição, 52% relataram esgotar o vale-refeição antes de conseguirem mais, e esses indivíduos eram mais propensos a ter IAN (HADLEY, 2007).

A maioria dos refugiados somalis, residentes nos EUA, participaram do Programa Suplementar de Assistência Nutricional (92%) e do Programa de Assistência Pública de Suplemento Especial para Mulheres, Bebês e Crianças (78%) (DHAROD, 2013). Neste último estudo, mesmo com a alta participação dos programas de assistência alimentar, 67% dos refugiados vivenciaram a IAN (DHAROD, 2013). Enquanto em outro estudo com refugiados da República Democrática do Congo e República do Burundi, residentes nos EUA, os programas de assistência nutricional existentes no país foram relatados por alguns refugiados como a única fonte de renda para a compra de alimentos (McELRONE, 2019).

Práticas Alimentares e Aculturação

Em um estudo com refugiados africanos reassentados na Austrália (n=40), a aculturação (processo de modificação cultural ou adaptação a outra cultura, da qual são retirados traços significativos) foi representada pela mudança no estilo de vida, quantidade de atividade física e mudanças dietéticas (WILSON; RENZAHO, 2015). Em termos de mudanças nas práticas alimentares, crianças e adolescentes foram os mais predispostos à aculturação alimentar, preferindo a comida australiana em vez da tradicional (WILSON; RENZAHO, 2015).

Tal fato também foi observado em outro estudo, no qual mulheres cambojanas (n=160) preparavam duas refeições separadas para suas famílias, com alimentos de estilo americano, como cachorro-quente e nuggets de frango para crianças, e alimentos tradicionais para adultos (PETERMAN, 2011). Com a aculturação, houve também diminuição da comensalidade familiar, mudanças no formato das compras e refeições e papéis sociais alterados, com as mulheres entrando no mercado de trabalho (WILSON; RENZAHO, 2015).

Em contraste, refugiados africanos de religião islâmica, na Austrália, mantiveram seus valores religiosos em relação à alimentação, apesar da limitação de opções disponíveis, especialmente no ambiente escolar (WILSON; RENZAHO, 2015). Da mesma forma, estudo com deslocados internos na Colômbia (n=101) observou que mais de 80% das famílias usavam condimentos para preparações, como cebola, óleo e tomate, e as práticas alimentares tradicionais permaneceram devido ao menor deslocamento (PRADA-GOMEZ, 2008). Porém, 34,7% das famílias afirmaram não ter acesso à compra de alimentos e 13,9% do total os receberam como doação (PRADA-GOMEZ, 2008). As práticas alimentares mantidas foram de baixa qualidade, pois não cumpriam com as recomendações do Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar, dentre elas: caldo de batata (sopa de batata em água salgada e leite), infusão quente preparada com um derivado sólido da cana-de-açúcar e arepas (tortilhas preparadas com farinha de milho) (PRADA-GOMEZ, 2008).

Outras práticas alimentares e rituais tradicionais foram verificados (STRAUB, 2008; PRADA-GOMEZ, 2008; PETERMAN, 2011). Em estudo com refugiadas cambojanas, todas as entrevistadas (n=9) participaram de rituais típicos da cultura cambojana relacionados ao pós-parto e lactação e costumes dietéticos tradicionais durante a gravidez nos EUA (STRAUB, 2008). Alimentos como sopa, “tnam sraa” (ervas misturadas com vinho ou chá), pimenta preta e gengibre foram relatados como alimentos que ajudam as mulheres a produzir leite (STRAUB, 2008). Práticas como “ong klung” (pós-parto que não permite que o bebê seja amamentado por horas a dias após o nascimento) não foram praticadas (STRAUB, 2008).

O arroz branco foi identificado como um alimento básico entre as famílias colombianas e cambojanas (PETERMAN, 2011; PRADA-GOMEZ, 2008). O baixo consumo de laticínios, vegetais verdes, verduras, legumes e frutas foi observado entre os deslocados internos na Colômbia (PRADA-GOMEZ, 2008), enquanto entre os refugiados cambojanos observou-se alto valor cultural em vegetais e frutas, ervas e molhos asiáticos (PETERMAN, 2011).

Em estudo com refugiados liberianos e deslocados internos em Gana (n=480), três padrões dietéticos foram encontrados e rotulados como "saudáveis", "doces" e “gorduras”. Sendo o padrão “saudáveis” mais presente, em seguida de “doces” e “gorduras” (ROSS, 2017).

Como visto, em algumas populações, a aculturação pode ser um fator de risco ou de proteção para a SAN, a depender das condições de vida e cultura proporcionadas pelo país de destino (HADLEY, 2007). Por exemplo, o tempo vivido nos EUA foi forte e negativamente associado à IAN e a sua gravidade (HADLEY, 2007). Foi observado que aqueles que viviam há um ano ou menos nos EUA, a IAN foi apontada em 73%, enquanto entre os domicílios que estavam nos EUA há pelo menos três anos, a IAN foi apontada em apenas 33% (HADLEY, 2007).

Nutrição materno-infantil

Uma alta taxa de aleitamento materno exclusivo (AME) até os seis meses de idade foi observada em refugiadas liberianas (n=239), autônomas e multíparas que residem em Gana (WOLDEGHEBRIEL, 2017). Embora a prevalência de aleitamento materno exclusivo tenha sido alta, quase um quarto das crianças (24,4%) apresentava baixa estatura (WOLDEGHEBRIEL, 2017).

As mulheres eram mais propensas a praticar o AME por pelo menos seis meses se fossem: nascidas na Libéria, nascidas em uma cidade, se conseguissem ler ou escrever e pedir dinheiro emprestado aos vizinhos nos últimos seis meses (WOLDEGHEBRIEL, 2017). Entre as refugiadas congolesas (n=90) reassentadas em Kigali, Ruanda, as atitudes de conhecimento e prática em relação ao aleitamento materno exclusivo não foram correlacionadas significativamente com: idade, nível de escolaridade, profissão ou estado civil (BAHEMUKA, 2013). Nesse estudo, cerca de 74% das refugiadas congolesas possuíam conhecimento sobre a importância do AME, porém somente cerca de 34% praticaram o AME durante os primeiros seis meses (BAHEMUKA, 2013).

Em estudo com refugiadas Saarauís (n=111), 11,7% e 21,6% dos lactentes foram exclusiva ou predominantemente amamentados, respectivamente (AAKRE, 2016). Já em um estudo com refugiadas cambojanas (n=9), apenas uma manteve o AME até os seis meses, tendo a maioria praticado o aleitamento materno parcial (STRAUB, 2008). Apesar do conhecimento sobre a importância do leite materno, as mães apontaram a baixa produção de leite e a necessidade de retornar ao trabalho como os principais motivos para a suplementação com a fórmula infantil (STRAUB, 2008).

Além disso, a introdução da fórmula infantil foi incentivada após o parto, por profissionais de saúde nos EUA (STRAUB, 2008). Resultados semelhantes foram encontrados na Argélia, onde cerca de 23% de crianças receberam água ou fórmula antes de iniciar a amamentação e houve uma diminuição da probabilidade de início precoce da amamentação se a criança nascesse em um hospital em vez de em casa ou em um posto de saúde (AAKRE, 2016). Dados sobre o estado nutricional das mães demonstraram que 67,5% estavam com sobrepeso ou obesidade, e dados sobre o estado nutricional das crianças foram indicativos de baixa estatura e baixo peso (AAKRE, 2016).

Dupla carga de má-nutrição

Nos campos para refugiados na Argélia, 37,8% dos domicílios apresentaram pelo menos um caso classificado com alguma forma de desnutrição em qualquer grupo de idade, sendo frequente a baixa estatura e o baixo peso em crianças (GRIJALVA-ETERNOD, 2012). Entre as mulheres (n=1781), a baixa estatura foi a principal forma de inadequação observada, mas a prevalência de baixo peso foi menor em comparação com a prevalência de sobrepeso e obesidade que, combinados, afetaram mais da metade da população (GRIJALVA-ETERNOD, 2012).

Tal fato também foi observado em outro estudo com refugiadas somalis (n=195) reassentadas nos EUA, em que 41% e 24% apresentaram sobrepeso e obesidade, respectivamente (DHAROD, 2013). O mesmo pode ser observado em deslocados internos entrevistados na Palestina (n=357), onde 64,1% das mães apresentaram excesso de peso e cerca de 24% das crianças apresentaram baixo peso, incluindo desnutrição leve e moderada (EL KISHAWI, 2016). A ordem de nascimento da criança foi significativamente associada à dupla carga de má-nutrição, mas as famílias mais pobres foram menos propensas a ter dupla carga de má-nutrição (EL KISHAWI, 2016).

Em estudo com refugiadas somalis, os Índices de Massa Corporal (IMC) mais elevados foram associadas à presença de IAN (DHAROD, 2013). Resultados semelhantes foram observados em refugiados reassentados da Ásia e África nos EUA, entre os quais o ganho de peso não saudável foi o problema de saúde relacionado à nutrição mais frequentemente identificado pelos participantes (RONDINELLI, 2011), enquanto mais de um quarto dos participantes relataram o que consideraram desnutrição e/ou anemia como um problema que ainda os afetava mesmo após o reassentamento (RONDINELLI, 2011).

Estratégias de Educação Alimentar e Nutricional

Um estudo com famílias cambojanas (n=25) reassentadas nos EUA teve o objetivo de familiarizar os alunos com alimentos mais acessíveis e disponíveis localmente, por meio de demonstrações de alimentos e receitas semelhantes aos pratos cambojanos, mas com alimentos geralmente não disponíveis no Camboja (IP; BETTS, 1986). Após o período de demonstração, alguns alimentos foram incorporados: ovos, leite, pratos de guisado e suco de laranja eram as adições mais comuns (IP; BETTS, 1986). As participantes alcançaram o peso adequado e relataram que o leite auxiliava no crescimento das crianças (IP; BETTS, 1986).

O programa “Cozinhas Saudáveis, Crianças Saudáveis” empregou refugiadas palestinas (n=33) para cozinhar refeições escolares para 714 crianças, em cozinhas comunitárias no Líbano (GHATTAS, 2020). Três sessões de educação em saúde e nutrição foram ministradas a cada turma, nas quatro escolas, com a participação de pais e alunos (GHATTAS, 2020). Entre os resultados, a redução da desnutrição infantil, a redução do excesso de peso e o aumento da SAN foram observados (GHATTAS, 2020).

Outro estudo criou e testou materiais educacionais para aconselhamento domiciliar de mães refugiadas ao longo da fronteira entre a Tailândia e Mianmar, para melhorar a alimentação infantil adequada, saneamento, água e higiene (HASHMI, 2019). No estudo, verificou-se que bebês com seis meses de idade foram alimentados inadequadamente (HASHMI, 2019); destes, 5% foram alimentados com diversidade dietética adequada; 10% receberam a quantidade adequada de refeição e nenhum lactente consumiu uma dieta mínima aceitável (HASHMI, 2019). Com a intervenção, essas proporções aumentaram para 90%, 100% e 90%, respectivamente, quando as crianças completaram nove meses (HASHMI, 2019).

Discussão

A IAN se refletiu em indicadores antropométricos, indicando a presença simultânea da desnutrição e obesidade associada ao baixo poder aquisitivo entre refugiados da Ásia e África nos EUA. Neste país, a elevada prevalência de obesidade e perda da qualidade da alimentação na população foram evidenciadas (BARALDI; MONTEIRO, 2017BARALDI, L. G.; MONTEIRO, C. A. Consumo de alimentos ultraprocessados e qualidade nutricional da dieta na população americana. Master’s Tese (Doutorado) -Thesis—[s.l.] Universidade de São Paulo. São Paulo,, 2017. Disponível em: < https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6138/tde-06042017-093026/pt-br.php > DOI: 10.11606/T.6.2017.tde-06042017-093026.).

Além disso, na Ásia e na África, origem da maioria dos refugiados dos estudos encontrados, 155 milhões de crianças foram consideradas desnutridas a partir do indicador antropométrico de altura para idade (FAO, 2020). De acordo com o relatório “Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo”, a prevalência de IAN moderada ou grave foi identificada como 51,6%, 31,7%, 22,3%, 13,9% e 7,9 na África, América Latina e Caribe, Ásia, Oceania e América do Norte e Europa, respectivamente (FAO, 2020).

A inadequação do estado nutricional em todas as suas formas, incluindo a desnutrição, a obesidade e outros riscos alimentares para DCNTs, foi identificada como a principal causa de doenças e mortes prematuras no mundo todo (Swinburn et al., 2019). Ademais, o Relatório da Comissão The Lancet, sobre a sindemia global da obesidade, desnutrição e mudanças climáticas, indica que o risco de obesidade aumenta quando os migrantes de países de baixa renda se mudam para países de alta renda, além do aumento da prevalência de obesidade em todas as regiões do mundo (Swinburn et al., 2019).

Entre os estudos, foi possível observar que as famílias com menor proficiência no idioma do país de destino eram mais propensas a ter IAN (KHAKPOUR, 2019; HADLEY, 2007; DHAROD, 2013; McELRONE, 2019; WANG, 2016). A fragilidade do domínio da língua desfavorece a comunicação eficaz e o acesso a políticas e serviços de saúde e assistência. Junto a isso, o medo de exposição, discriminação e violência são impactantes e as impede de acessar os serviços de saúde e tratamentos, mesmo quando são devidamente informadas (SOARES, 2018).

A falta de emprego foi associada à presença de IAN nas famílias (KHAKPOUR, 2019; HADLEY, 2007). Ademais, estudos mostram que a revalidação de diploma no país de destino enfrenta dificuldades burocráticas que impedem os solicitantes de refúgio de exercer suas profissões (CAVALCANTE, 2018CAVALCANTE, J. R.; TRAJMAN, A.; FAERSTEIN, E.; CANO, I. Perfil sociodemográfico e rotas dos refugiados atendidos pela Cáritas no município do Rio de Janeiro. Qualificação Dissertação de mestrado (Mestrado Dissertação em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de JaneiroUERJ. Rio de Janeiro, 2018.; FERNANDES, 2017FERNANDES, J. M.; ACCIOLY, T.; DUARTE, P. Refúgio no Brasil: avanços legais e entraves burocráticos. FGV DAPP. Disponível em: <http://dapp.fgv.br/refugio-no-brasil-avancos-legais-e-entraves-burocraticos/>. Acesso em: 29 out. 2020.
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). Assim, são condicionados a procurar por trabalhos informais, que não garantem acesso a direitos trabalhistas. Por exemplo, refugiados no Paquistão relataram assédio policial físico e emocional por não possuírem documentos de identificação além do cartão NADRA, que também não garante acesso a direitos básicos ou permissão para trabalhar (KHAKPOUR, 2019). Assim, as violações de outros direitos humanos podem agravar ainda mais sua condição econômica e perpetuar sua condição de IAN.

Apesar de ser um direito humano consagrado, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), não foi assinado e ratificado por todos os países (UNTC, 1966UNTC. International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights, [s.d.]. Disponível em: <https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-3&chapter=4&lang=en>. Acesso em: 14 jan. 2021.
https://treaties.un.org/Pages/ViewDetail...
). Isso leva ao não reconhecimento do DHAA e, por consequência, não são propostos mecanismos para sua concretização em diversos países. Isto implica fragilidades para a garantia da realização desse direito na prática, sobretudo no que concerne às condições de vida dos migrantes forçados.

Além disso, as famílias são expostas a um processo de aculturação, com mudanças de hábitos da vida cotidiana. As mulheres entram para o mercado de trabalho e se tornam as maiores provedoras da renda familiar (PRADA-GOMEZ, 2008). Sabe-se que elas estão sujeitas a receber salários menores em comparação aos homens, mesmo quando exercem a mesma função (MOROKIVASIC, 1984MOROKIVASIC, M. Birds of Passage are also women. Internacional Migration Review, v. 18, n. 4, 1984.; LERIN, 2019LERIN, C. A dupla invisibilidade das mulheres refugiadas: o paradigma do gênero como vulnerabilidade social. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo, Casca, 2019.). Além do estigma de gênero vivenciado pelas mulheres, estas ainda sofrem com xenofobia e violência sexual (LERIN, 2019LERIN, C. A dupla invisibilidade das mulheres refugiadas: o paradigma do gênero como vulnerabilidade social. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo, Casca, 2019.; ROUPETZ, 2020ROUPETZ, S. et al. Continuum of sexual and gender-based violence risks among Syrian refugee women and girls in Lebanon. BMC Women’s Health, v. 20, 14 ago. 2020.). Essa situação também influencia a diminuição da comensalidade familiar e acarreta o aumento do consumo de alimentos fora de casa por adolescentes e, de forma mais expressiva, pelos homens (PRADA-GOMEZ, 2008).

Segundo o último Relatório Global de Crises Alimentares, a escassez e os altos preços dos alimentos foram as principais causas do deslocamento relatado pelos venezuelanos que fugiram para Colômbia, Peru e Equador (FAO, 2020). Discussões semelhantes foram evidenciadas entre os migrantes de Bangladesh e da África Oriental e Ocidental, que identificaram a IAN como um dos principais motivadores da migração externa (FAO, 2017).

A migração decorrente da escassez e falta de acesso aos alimentos foi evidenciada como “migração de sobrevivência” pela FAO (2020). O conceito de migração por sobrevivência abrange aqueles que sofrem ameaças à sua existência, por meios diferentes dos definidos para o caso dos refugiados, como por falta de subsistência (alimentos, moradia, cuidados de saúde), Estado frágil, pela alteração do clima ou por desastres naturais (BETTS, 2010BETTS, A. Survival Migration: A New Protection Framework. Global Governance, v. 16, n. 3, p. 361–382, 2010.; CORRÊA ., 2015CORRÊA, M. A. S. et al. MIGRAÇÃO POR SOBREVIVÊNCIA: SOLUÇÕES BRASILEIRAS. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 23, p. 221–236, jun. 2015.).

Apesar dos desafios e vulnerabilidades vivenciadas pelas populações refugiadas após a migração, escolher migrar e se integrar em uma nova sociedade permite o aumento dos níveis de SAN. Em 2017 e 2020, foi observado que o nível de SAN de famílias da Coreia do Norte aumentou significativamente, passando pela nação transitória até a Coreia do Sul (JEONG, 2017; KIM, 2020KIM, J. Y.; LEE, S.-K.; KIM, S. G. Comparisons of food security, dietary behaviors and nutrient intakes between adult North Korean Refugees in South Korea and South Koreans. Nutrition Research and Practice, v. 14, n. 2, p. 134-142, abr. 2020.). Em muitos países de destino, os refugiados recebem assistência alimentar humanitária de organizações da sociedade civil que auxiliam na capacidade dos refugiados de obter alimentos em quantidade e qualidade suficientes (FAO, 2020).

Existe uma relação inversa entre IAN e apoio social. Isto se dá porque o apoio social pode influenciar a disponibilidade de recursos através de doações de alimentos ou trocas (SANTOS, 2019SANTOS, I. N. dos et al. Food insecurity and social support in families of children with sickle-cell disease. Jornal de Pediatria, v. 95, n. 3, p. 306-313, maio 2019.; INTERLENGHI; SALLES, 2015INTERLENGHI, G. dos S.; SALLES-COSTA, R. Inverse association between social support and household food insecurity in a metropolitan area of Rio de Janeiro, Brazil. Public Health Nutrition, v. 18, n. 16, p. 2925–2933, nov. 2015.). No entanto, a distribuição de alimentos agrega pouco ao bem-estar geral dos grupos vulneráveis e impõe restrições à liberdade na escolha do alimento para consumo (BURLANDY, 2007BURLANDY, L. Transferência condicionada de renda e segurança alimentar e nutricional. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, p. 1441–1451, dez. 2007.). A associação entre a assistência alimentar humanitária aos refugiados e o acesso destes grupos às políticas públicas de enfretamento da IAN já existentes nos países de destino pode constituir ferramenta essencial para garantia do DHAA (HADLEY, 2007; DHAROD, 2013; GHATTAS, 2014; McELRONE, 2019).

Atualmente, a pandemia de Covid-19 tem exacerbado as desigualdades sociais, raciais e de gênero e comprometido ainda mais a SAN, principalmente entre os mais vulneráveis (ALPINO et al., 2020), como as populações refugiadas. Antes da pandemia, quase 690 milhões de pessoas, ou 8,9% da população global, estavam em situação de risco nutricional (FAO, 2020).

O fechamento das fronteiras e as medidas preventivas de distanciamento e isolamento social adotadas impactam as populações refugiadas, enfatizando a precariedade e a superlotação dos abrigos, que carecem de infraestrutura sanitária adequada (RODRIGUES et al., 2020). Além da falta de assistência em saúde, há a impossibilidade de se garantir o distanciamento (RODRIGUES et al., 2020). E ainda no que concerne aos diversos trabalhadores de canais de comercialização suspensos, há o impacto na condição socioeconômica e, por consequência, o acesso aos alimentos e outros bens e serviços essenciais (RIBEIRO-SILVA et al., 2020).

A IAN esteve presente entre as populações dos estudos, e embora tenhamos identificado questões relacionadas a esta situação, poucos estudos fizeram tal referência (HADLEY et al., 2007; DHAROD, 2013; GHATTAS, 2014; WANG, 2016, JEONG, 2017; LAWLIS, 2018; KHAKPOUR, 2019; McELRONE, 2019). Isto pode estar relacionado com o fato de que o conceito de SAN operacionalizado na maioria dos países refere-se ao acesso a alimentos. O conceito de SAN utilizado no Brasil, que adotamos como referencial, incorpora a dimensão nutricional e enfatiza ações intersetoriais (BRASIL, 2006BRASIL. Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: Presidência da República, 25 ago. 2010.). Leva-se em consideração que, embora a pobreza e a SAN sejam fortemente associadas à fome, o conceito ampliado de SAN contempla várias outras condições como igualmente inseguras (BURLANDY, 2007BURLANDY, L. Transferência condicionada de renda e segurança alimentar e nutricional. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, p. 1441–1451, dez. 2007.), como acesso à terra, à água para consumo e produção de alimentos, acesso de serviços públicos adequados de saúde, educação e transporte, além de ações de prevenção e controle da obesidade, do fortalecimento da agricultura familiar e outros (BRASIL, 2006BRASIL. Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: Presidência da República, 25 ago. 2010.).

Conclusão

A migração forçada frequentemente resulta em perda de meios de subsistência e bens produtivos, como redução de renda e falta de acesso à terra. A IAN, além de ser uma consequência da migração forçada, pode desencadeá-la. Dentre os principais desafios e barreiras ao acesso à SAN enfrentados pelos migrantes forçados, estão as violações dos direitos humanos; a falta de acesso a trabalho e renda; as dificuldades resultantes das diversidades culturais evidenciadas no idioma e práticas alimentares e o acesso a serviços e aos cuidados adequados em saúde, principalmente no enfrentamento a dupla carga de má-nutrição e no apoio às mulheres em fase de aleitamento.

Considerando a análise dos artigos selecionados, pode-se afirmar que a produção científica nacional e internacional a respeito da SAN carece de mais estudos, sobretudo dos países periféricos que recebem os migrantes forçados e não possuem estrutura para receber o número de pessoas que chegam.

As políticas públicas identificadas pelos estudos para o enfrentamento da IAN em migrantes forçados consistem, em geral, em ações de curto e médio prazo para complementar o orçamento alimentar por meio de subsídios governamentais. No entanto, outras ações são importantes no enfrentamento da IAN, como a regularização de documentos, o ensino do idioma local e a inserção no mercado de trabalho formal, entre outras. Essas ações facilitam o processo de integração dos migrantes forçados nas comunidades anfitriãs, facilitando também o acesso a direitos sociais, diminuindo a dependência de programas de assistência nutricional e facilitando o apoio social e a criação de redes de ajuda mútua. Além disso, o combate à xenofobia e à iniquidade de gênero são ações transversais capazes de impactar fortemente a situação de SAN desses grupos.

Ressalta-se que o estudo apresenta limitações, como a não utilização de um instrumento para análise da qualidade dos artigos e a não inclusão de outros idiomas e bases de dados internacionais que possibilitassem o acesso a estudos com maior diversidade cultural das populações amostradas. Além disso, este tipo de revisão não permite fazer inferências e estudos com métodos mais robustos são necessários.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2021
  • Aceito
    29 Jul 2022
  • Revisado
    28 Jun 2022
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