A história de uma mulher negra e gorda: cotidiano, afetividade e sexualidade

The story of a fat black woman: daily life, affectivity and sexuality

Gabriela Pacheco Carniel Margarita Silva Diercks Natália Miranda Jung Sobre os autores

Resumo

Toda mulher que foge do rígido padrão de beleza atual sofre julgamento, rejeição, críticas e é propícia à marginalização - este é o caso das mulheres gordas. O preconceito sofrido pelas pessoas gordas é chamado de gordofobia e limita a vida desses indivíduos, impedindo inclusive que estes vivenciem sua sexualidade plenamente. Este trabalho realizou um relato de caso sobre a percepção do corpo gordo por parte de uma mulher adulta, gorda, de baixa renda e negra e como o ser gorda perpassa a vida desta mulher e sua relação afetiva e sexual com seu companheiro. Constatou-se que as mulheres gordas sentem insatisfação em relação aos seus corpos e comparam-se aos estereótipos de beleza difundidos pela mídia, o que lhes causa frustração e sentimentos de inferioridade. Preconceito, isolamento e exclusão são constantes na vida das mulheres em função de seus corpos grandes e volumosos. Esse preconceito se potencializa nas mulheres negras, uma vez que o racismo é estrutural e a população negra segue sendo marginalizada. O sofrimento e o impacto do corpo gordo no cotidiano, na autoestima, na relação sexual e afetiva são constantemente pauta na vida da mulher gorda, e a gordofobia emerge como razão considerável de sofrimento psíquico, sobretudo para a mulher.

Palavras-Chave:
Obesidade; Insatisfação corporal; Estigma social; Preconceito de peso; Imagem corporal

Abstract

Every woman who runs away from the current rigid standard of beauty suffers judgment, rejection, criticism and is prone to marginalization, this is the case for fat women. The prejudice suffered by fat people is called fatphobia and limits the lives of these individuals, even preventing them from fully experiencing their sexuality. This work carried out a case report on the perception of the fat body according to an adult woman, fat, low-income, and black and how the fat permeating the life of this woman and her affective and sexual relationship with her partner. It was found that fat women feel dissatisfied with their bodies and compare themselves to the stereotypes of beauty spread by the media, which causes them frustration and feelings of inferiority. Prejudice, isolation, and exclusion are constant in women's lives due to their large and bulky bodies. This prejudice is potentiated in black women, since racism is structural, and the black population continues to be marginalized. Suffering and the impact of the fat body in daily life, in self-esteem, in sexual and emotional relationships are constantly on the agenda of fat women, and fatphobia emerges as a considerable reason for psychological suffering, especially for women.

Keywords:
Obesity; Body dissatisfaction; Social stigma; Weight prejudice; Body image

Introdução

O padrão de beleza feminino está cada vez mais rígido, impondo a estética da magreza como a única alternativa aceitável. Há uma grande insatisfação com a imagem corporal e, mundialmente, a maioria das mulheres deseja o corpo magro difundido pela mídia (KOPS ., 2019KOPS, N. L.; BESSEL, M.; KNAUTH, D. R.; CALEFFI, M.; WENDLAND, E. M. Body image (dis)satisfaction among low-income adult women. Clinical Nutrition, v. 38, n. 3, p. 1317-1323, 2019.). As mulheres gordas que destoam deste modelo são passíveis de julgamento, rejeição, críticas e propícias à marginalização, podendo desencadear aspectos como baixa autoestima, ansiedade, angústia, agressividade, tristeza, compulsão, negação e insatisfação com a imagem corporal (SILVA; LANGE, 2010SILVA, G.; LANGE, E. Imagem corporal: a percepção do conceito em indivíduos obesos do sexo feminino. Psicologia Argumento, v. 28, n. 60, p. 43–54, 2010.).

O gordo sofre ao transitar pela cidade, despertando olhares de desaprovação. A dificuldade de mobilidade ao andar de ônibus e passar na roleta, em encontrar roupas de tamanho adequado, o medo de sentar em cadeiras plásticas e quebrá-las, podem ser exemplos de gordofobia (SILVA; BRANCO, 2019SILVA, M.; BRANCO, A.. Obesity, Prejudice, Self, and Culture : A Longitudinal Case Study. Paidéia, v. 29, p. 1–9, 2019.; GURGEL, 2018GURGEL, A. Pare de se odiar: porque amar o próprio corpo é um ato revolucionário. 1. ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2018.), entendida como o preconceito vivenciado pelas pessoas gordas simplesmente pelo formato de seus corpos e que permeia o comportamento da sociedade como um todo (PIÑEYRO, 2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia: y las panzas subversas. Málaga, 2016.).

No Brasil, a prevalência de excesso de peso é maior em mulheres negras, com idades mais avançadas, de baixa renda e escolaridade (BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2018: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico : estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados b. 1. ed. Brasília, DF.; FERREIRA; SZWARCWALD; DAMACENA, 2019FERREIRA, A. P. S.; SZWARCWALD, C. L.; DAMACENA, G. N. Prevalência e fatores associados da obesidade na população brasileira: estudo com dados aferidos da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 22, 2019.; CANELLA; DURAN; CLARO, 2019CANELLA, D. S.; DURAN, A. C.; CLARO, R. M. Malnutrition in all its forms and social inequalities in Brazil. Public Health Nutrition, v. 23, n. 1, p. 29-38, 2020.; LISOWSKI ., 2019LISOWSKI, J. F.; LEITE, H. M.; BAIRROS, F.; HENN, R. L.; COSTA, J. S. D.; OLINTO, M. T. A.. Prevalência de sobrepeso e obesidade e fatores associados em mulheres de São Leopoldo, Rio Grande do Sul: um estudo de base populacional. Cadernos Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 380-389, 2019.). As mulheres casadas tendem a apresentar maiores índices de massa corporal (IMC), podendo causar problemas relacionados à harmonia conjugal, inclusive sexual (LISOWSKI ., 2019LISOWSKI, J. F.; LEITE, H. M.; BAIRROS, F.; HENN, R. L.; COSTA, J. S. D.; OLINTO, M. T. A.. Prevalência de sobrepeso e obesidade e fatores associados em mulheres de São Leopoldo, Rio Grande do Sul: um estudo de base populacional. Cadernos Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 380-389, 2019.; YILMAZ; KUMSAR; DEMIREL, 2019YILMAZ, F.; KUMSAR, A.; DEMIREL, G. The effect of body image on sexual quality of life in obese married women. Health Care for Women International, v. 40, n. 4, p. 479-492, 2019.), especialmente quando o companheiro realiza comentários a respeito do corpo da parceira e a compara com mulheres dentro do “padrão de beleza idealizado” (LEMA, 2017LEMA, VM. Body Image and Female Sexual Functioning: Impact on Health Service Delivery in a Developing Country Context. Investigations in Gynecology Research & Womens Health, v. 1, n. 2, p. 26-30, 2017.).

Considerando que a autoestima tem grande impacto na forma em que a sexualidade se expressa e que ser uma mulher gorda é oposto ao padrão aceito pela sociedade (SOL; ASSIS; FIGUEIREDO, 2018SOL, I. C. R.; ASSIS, N. V.; FIGUEIREDO, M. D. A obesidade e sua relação com a sexualidade feminina sob o olhar da psicologia complexa. Programa de Apoio à Iniciação Científica, p. 509-526, 2018.), vivenciar “o direito de viver plenamente a sexualidade sem medo, vergonha, culpa e falsas crenças” (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Caderno de Atenção Básica: saúde sexual e saúde reprodutiva. 1. ed. Brasilia, DF: Ministério da Saúde, 2013.), não tem acontecido com uma parcela importante das mulheres que estão com o peso acima do que a sociedade julga ser ideal. Sendo a magreza socialmente estabelecida como fator fundamental para a identificação de feminilidade e atratividade perante o sexo oposto, a mulher com excesso de peso se sente inadequada perante os padrões e medidas impostos, deixando-as vulneráveis a desordens psíquicas e emocionais (SCORSOLINI-COMIN; SOUZA; SANTOS, 2010SCORSOLINI-COMIN, F.; SOUZA, L. V.; SANTOS, M. A. A construção de si em um grupo de apoio para pessoas com transtornos alimentares. Estudos de Psicologia, v. 27, n. 4, p. 467–478, 2010.).

Em nossa experiência em um serviço de Atenção Primária à Saúde (APS) de Porto Alegre-RS, atendemos muitas mulheres gordas em busca do emagrecimento. A grande maioria trazia questões de baixa autoestima e insatisfação corporal, depositando na perda de peso a resolução de grande parte dos seus conflitos. Observamos, nas falas femininas, a interferência exercida por seus companheiros sobre seus corpos, a postura pouco colaborativa dos mesmos em relação à mudança dos hábitos e a falta de apoio no processo de emagrecimento e/ou autoaceitação. O presente relato de caso tem como objetivo narrar a história de uma mulher adulta, gorda, negra e de baixa renda, como forma de dar visibilidade a essas mulheres, e também provocar a reflexão de como o “ser gorda” perpassa seu modo de vida e sua relação afetiva e sexual com seu companheiro.

Na escrita deste artigo, houve o cuidado de utilizar sempre a palavra “gorda”, já que obesidade é tido como doença. Gurgel (2018) reforça que a principal luta contra a gordofobia é despatologizar o corpo gordo, tirar o estigma de doentes unicamente pelo formato do corpo. Nenhuma pessoa é doente simplesmente por estar acima do peso, conforme os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como saudável.

Metodologia

Trata-se de um relato de caso descrito na forma de narrativa (BASTOS; BIAR, 2015BASTOS, L. C.; BIAR, L. A. Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, v. 31, p. 97–126, 2015.).11Pesquisa realizada como requisito parcial para conclusão da Especialização em Residência Multiprofissional em Saúde, com ênfase em Saúde da Família e Comunidade do Grupo Hospitalar Conceição em 2020. Número do parecer do Comitê de Ética do Hospital Nossa Senhora da Conceição do Grupo Hospital Conceição 3.658.592. Esta pesquisa não recebeu financiamento para sua realização e não há conflito de interesse. A participante e seu companheiro foram escolhidos de forma intencional, uma vez que, além de ela consultar na Unidade Básica de Saúde (UBS) onde foi desenvolvido este estudo, possui as características sociodemográficas mais prevalentes das mulheres gordas (BRASIL, 2019; FERREIRA; SZWARCWALD; DAMACENA, 2019; LISOWSKI ., 2019LISOWSKI, J. F.; LEITE, H. M.; BAIRROS, F.; HENN, R. L.; COSTA, J. S. D.; OLINTO, M. T. A.. Prevalência de sobrepeso e obesidade e fatores associados em mulheres de São Leopoldo, Rio Grande do Sul: um estudo de base populacional. Cadernos Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 380-389, 2019.; CANELLA; DURAN; CLARO, 2019).

Melissa é uma mulher cisgênero, adulta gorda, de baixa renda, negra, com relacionamento heterossexual monogâmico, usuária de uma UBS localizada em bairro de alta vulnerabilidade social em Porto Alegre-RS. O casal em questão foi convidado a participar do estudo por uma das autoras deste artigo. Nesse momento, foram esclarecidos a metodologia e os objetivos do estudo. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi lido e assinado pelo casal. A identidade dos participantes foi preservada e todos os nomes citados são codinomes escolhidos pelas autoras.

As informações foram coletadas: a) no prontuário de família do casal onde foi realizada a leitura dos registros desde o primeiro contato motivado pelo excesso de peso; b) por questionário sociodemográfico com perguntas fechadas aplicado no momento da entrevista individual visando aprofundar as informações coletadas no prontuário; c) entrevista individual semiestruturada realizada inicialmente com Melissa e depois com o seu companheiro; d) diário de campo onde foi realizado o registro das impressões da pesquisadora após a entrevista e as consultas subsequentes de acompanhamento nutricional da paciente. A coleta de informações, realizada ao longo do primeiro semestre de 2019, ocorreu na UBS, em sala reservada e separadamente com cada um dos membros do casal.

A reunião dos materiais coletados subsidiou a construção de uma narrativa longitudinal e reflexiva, analisada à luz da bibliografia de referência sobre o tema. A partir dos relatos e registros emergiram três categorias a serem exploradas: 1) Mel e seu corpo gordo, 2) A mulher negra e gorda e os preconceitos vivenciados e 3) Influência do corpo gordo na relação afetiva e sexual do casal.

Resultados e Discussão

Every time society reads my fat body, it lets me know that I am defective. Society “knows” my body, as a site of undisciplined flesh and unmanaged desires.

Samantha Murray (MURRAY, 2005MURRAY, S. Doing politics or selling out? Living the fat body. Women’s Studies: An interdisciplinary journal, v. 34, n. 3-4, p. 265-277, 2005.)

Melissa, ou Mel, como gosta de ser chamada, é uma mulher negra de 42 anos, com altura de 1,56 metros e peso de 147 kg. Seu IMC de 60,40kg/m² a classifica como obesa grau III (WHO, 2020WORLD HEALTH ORGANIZATION. Obesity. 2020. Disponível em: https://www.who.int/news-room/facts-in-pictures/detail/6-facts-on-obesity.
https://www.who.int/news-room/facts-in-p...
). O IMC, que é a medida de peso dividido pela altura ao quadrado (kg/m²), foi descrito em 1832, por Lambert Adolph Jacque Quetelet e se popularizou como IMC por Ancel Keys em 1972. O IMC tem sido útil em estudos de base populacional, mas está se mostrando bastante pobre como indicador de percentual de gordura corporal. Também não captura informações sobre a distribuição da gordura corporal em diferentes locais do corpo e não considera estilo de vida, gênero, etnias, morbidades, acúmulo esperado de gordura com o envelhecimento e o papel dos fatores genéticos. Essa medida é ainda hoje amplamente utilizada pelos profissionais de saúde, mas não deve ser a única forma para determinar a necessidade de perda de peso (NUTTALL, 2015NUTTALL, F. Q. Body Mass Index: Obesity, BMI, and Health: A Critical Review. Nutrition today, v. 50, n. 3, p. 117-128, 2015.; EKNOYAN, 2008EKNOYAN G. Adolphe Quetelet (1796-1874) - the average man and indices of obesity. Nephrol Dial Transplant, v. 23, n. 1, p. 47-51, 2008.).

Mel tem ensino fundamental incompleto, é casada com Pedro há 20 anos, com quem tem três filhos. Ainda faz parte do núcleo familiar um filho de um relacionamento anterior de Melissa. A família encontra-se em situação de pobreza, vivem com o salário mínimo do trabalho de Pedro. A casa tem dois quartos, onde moram quatro pessoas (o casal e dois dos filhos), quatro cachorros e um gato. Residem há três anos na moradia atual, localizada em um bairro de reassentamento construído pelo governo municipal. Trata-se de uma família negra que mora em um conjunto habitacional, distante do centro da cidade. Segundo Lélia Gonzales (1984)GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244., o lugar natural do negro é, evidentemente, da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais”, famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias. Mel trabalhava com serviços gerais, mas desde 2016 está desempregada.

"Tô gorda": Mel e seu corpo gordo

O conceito de imagem corporal é definido por uma construção psicossocial multifacetada, que diz respeito à representação do corpo, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para a pessoa, não sendo apenas uma construção cognitiva, mas também reflexo de desejos, emoções e interação com os outros (VARNS; FISH; EAGON, 2018VARNS, J.; FISH, A.; EAGON, J. C. Conceptualization of body image in the bariatric surgery patient. Applied Nursing Research, p. 52-58, 2018.).

Quando questionada sobre em que momento de sua vida Mel se percebeu gorda, a resposta foi: “eu nunca fui gorda, gorda assim como eu tô agora. Foi depois das ‘gravidez’ que eu perdi assim pra balança direto”. Sua fala reforça o que muitas referências indicam sobre o ganho de peso entre as mulheres gordas, de que um dos agravantes são as múltiplas gestações (LISOWSKI ., 2019LISOWSKI, J. F.; LEITE, H. M.; BAIRROS, F.; HENN, R. L.; COSTA, J. S. D.; OLINTO, M. T. A.. Prevalência de sobrepeso e obesidade e fatores associados em mulheres de São Leopoldo, Rio Grande do Sul: um estudo de base populacional. Cadernos Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 380-389, 2019.).

[...] Até que o peito caído me incomoda e não me incomoda, me incomoda porque ele é muito grande e eu tenho dor nas costas, mas ele não me incomoda porque eu sou assim, se eu tenho um peitão que tá caído é porque eu amamentei. Tenho aquela consciência, porque eu sou grande, tenho tudo, tô gorda, mas eu tenho o corpo de uma mulher de 40 anos [...].

Ao mesmo tempo em que se observa um certo acolhimento sobre o próprio corpo no discurso acima, a partir de sua fala também emergem exemplos de grandes insatisfações com sua imagem, conforme descrito no trecho abaixo.

[...] mas assim, não consigo mais me olhar no espelho, porque assim, coisas que eu amava não consigo mais. É, que é no caso assim, botar um saltinho, bota eu não consigo botar porque não fecha, eu não acho uma bota que fecha aqui [panturrilha]. Assim, eu tenho sempre que por roupas grandes [...].

A indústria publicitária e a moda reafirmam o padrão valorizado, fabricando produtos com tamanhos específicos para corpos magros (GELSLEICHTER; ZUCCO, 2017GELSLEICHTER, M. Z.; ZUCCO, L. P. Quanto pesa a mulher com obesidade? Textos & Contextos. Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 100-114, 2017.). É possível compreender que se o vestuário não contempla as necessidades dos diferentes corpos existentes acaba por ser excludente (PACHECO ., 2019PACHECO, B.; RENNER, J.; NUNES, M.; ROCHA, A. Inclusive Fashion: perception of obese women relating body and clothing. Revista Artemis, v. 27, p. 443, 2019.). A incapacidade de encontrar roupas surge como um impacto negativo na vida das pessoas gordas, sendo comum o sentimento de inferioridade e baixa autoestima, repercutindo nas interações sociais.

Preconceito, isolamento e constrangimento social são constantes na vida das mulheres em função de seu corpo gordo. Ganham materialidade em decorrência de violências explícitas ou quando, implicitamente, são excluídas da vida social. Atravessar a estreita catraca do ônibus, sentar em cadeiras, realizar a higiene íntima, amarrar os cadarços, comprar sapatos e roupas são desafios diários que promovem dor e destituição. Essas atividades cotidianas reforçam o seu corpo gordo e dão voz aos espaços sociais que dizem "você deve ter um tamanho específico" (SILVA; BRANCO, 2019SILVA, M.; BRANCO, A.. Obesity, Prejudice, Self, and Culture : A Longitudinal Case Study. Paidéia, v. 29, p. 1–9, 2019.).

Outra coisa que eu acho triste, faz muitos anos que eu não uso uma calcinha. Eu tenho vontade de colocar uns conjuntos de lingerie que eu usava antes [...], não uso mais porque não tem né? não consigo do meu tamanho assim sabe?

Estes aspectos, aliados às exigências de perda de peso, geram a culpabilização das mulheres pelo seu corpo gordo (GELSLEICHTER; ZUCCO, 2017GELSLEICHTER, M. Z.; ZUCCO, L. P. Quanto pesa a mulher com obesidade? Textos & Contextos. Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 100-114, 2017.).

Minhas irmãs são tudo magra, elas são tão bonitas (choro) [...] não fui no casamento de nenhum irmão, para eles não ficarem com pena de mim e ficarem falando que eu sou isso.

Eu queria perder peso [...], mas não tô conseguindo, é complicado assim.

As mulheres gordas sentem insatisfação em relação aos seus corpos e comparam-se aos estereótipos de beleza difundidos pela mídia, o que lhes causa frustração e sentimentos de inferioridade. O preconceito de peso é mais acentuado em mulheres (RUBINO ., 2020RUBINO, F. et al. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, v. 26, n. 4, p. 485–497, 2020.), sendo elas as que mais sofrem com esses sentimentos, como Mel coloca a seguir:

Não vou dizer que não olho (no espelho), porque eu olho, porque eu sou sem vergonha, porque eu tenho um espelho bem no banheiro assim, atrás da porta, é horrível, é horrível, horrível, não gosto […] Ai eu acho horrível.

"Como eu sou obesa e negra...": a dor do preconceito

Entende-se hoje que a estrutura da sociedade é gordofóbica. Um olhar, um comentário e até um suspiro podem estar cheios de gordofobia. A opressão está em toda parte. A gordofobia permeia todos os nossos pensamentos e comportamentos, constituindo assim uma grande limitação na vida das pessoas gordas. Muitos gordos e gordas sentem medo de ir ao médico, comer em público, usar roupas curtas, ir à praia, passear ou andar de bicicleta, tudo por causa da rejeição social que percebem e experimentam em relação ao seus corpos (PIÑEYRO, 2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia: y las panzas subversas. Málaga, 2016.). Como relata Melissa “Faz anos que eu não encontro mais ninguém (choro) [...]. Eu não saio pra canto nenhum”.

A exclusão extrapola o campo emocional, afetando o mundo do trabalho (PIÑEYRO, 2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia: y las panzas subversas. Málaga, 2016.), onde frequentemente, experiências estigmatizantes são vivenciadas conforme observado na fala a seguir:

Fui na entrevista [...] e eu vi que eu sentei lá e a moça não me chamava nunca né[...] quando eu vi, ela falou “meu Deus, é aquela mulher ali, o perfil é, mas ela pessoalmente não, ela é enorme de gorda” [...] Eu abri a porta “é moça eu não faço o perfil né? Porque aqui diz que eu faço o perfil, eu tô no perfil da vaga, mas só como eu sou obesa e negra, daí eu não to mais fazendo o perfil pra você?” [...]. Aí naquele dia eu desmoronei, daí vim pra casa chorando. E daí pra cá engordei, não consigo mais emprego, me desmotivou.

Questões como discriminação provocam sofrimento e implicações no âmbito social e ocupacional (RUBINO ., 2020RUBINO, F. et al. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, v. 26, n. 4, p. 485–497, 2020.). O estigma do peso, por si só, pode ser prejudicial à saúde mental, estando associado a sintomas depressivos, níveis mais altos de ansiedade, menor autoestima e isolamento social. A gordofobia emerge como razão considerável de sofrimento psíquico e de exclusão no contexto laboral dos atores sociais, sobretudo para a mulher (ARAÚJO ., 2018ARAÚJO, L.; COUTINHO, M.; ARAÚJO-MORAIS, L.; SIMEÃO, S.; MACIEL, S. Preconceito frente à obesidade: representações sociais veiculadas pela mídia impressa. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 70, n. 1, p. 69–85, 2018.).

É comum a discriminação no local de trabalho contra indivíduos com excesso de peso. Pessoas gordas recebem salários mais baixos e são classificados como menos qualificados. As pessoas gordas podem ser consideradas menos adequadas para o emprego e têm menos probabilidade de serem convidadas para uma entrevista. As mulheres gordas são as mais improváveis de serem contratadas (RUBINO ., 2020RUBINO, F. et al. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, v. 26, n. 4, p. 485–497, 2020.).

Indivíduos adultos gordos estão expostos a uma ampla gama de experiências que refletem atitudes e comportamentos que atendem aos critérios de estigmatização. Elas abrangem expressões diretas de abuso, demonstrações mais sutis de preconceito e discriminação, atitudes insidiosas e pouco aparentes de críticas e julgamentos profundamente enraizados na cultura da vida cotidiana. O estigma do peso é generalizado e se manifesta de várias maneiras, sistematicamente distinguidas por suas relações com diferentes discursos sociais (FRANCISCO; DIEZ-GARCIA, 2015FRANCISCO, L. V.; DIEZ-GARCIA, R. W. Abordagem terapêutica da obesidade: entre conceitos e preconceitos. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde, v. 10, n. 3, p. 705-716, 2015.).

Não se pode deixar de falar que o preconceito que a mulher negra gorda sofre é diferente daquele sofrido pela mulher gorda branca. O racismo é estrutural na sociedade brasileira e a população negra sempre foi e segue sendo marginalizada (SILVA, 2018SILVA, T. Youtube como ferramentade empoderamento negro: construindo novos olhares sobre o corpo da mulher negra e gorda. Journal of Chemical Information and Modeling, v. 1, n. 9, p. 1689-1699, 2018.). Melissa personifica todos os aspectos dessa sociedade desigual e preconceituosa: é gorda, negra, com maior número de filhos, marginalizada e encontra-se em situação de pobreza. Sofre preconceito quando não é aceita para trabalhar, em suas palavras, por ser “obesa e negra”. Lélia Gonzales, em 1984, já relatava que o trabalho da mulher negra são sempre atividades onde não podem ser vistas, nas casas das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente copeira. Nessa perspectiva, há que se considerar as iniquidades raciais, que em decorrência do racismo naturaliza a não efetivação dos direitos humanos aos negros.

“Ele diz que não, mas eu sei que é...”:Influência do corpo gordo na relação afetiva e sexual do casal

A maneira como socialmente os corpos são apreciados na sociedade impacta diretamente nas oportunidades de exercício da sexualidade. Considerando que ser uma mulher gorda tem um significado oposto ao ideal estético, a expressão da sexualidade pode ser um problema (SOL; ASSIS; FIGUEIREDO, 2018SOL, I. C. R.; ASSIS, N. V.; FIGUEIREDO, M. D. A obesidade e sua relação com a sexualidade feminina sob o olhar da psicologia complexa. Programa de Apoio à Iniciação Científica, p. 509-526, 2018.). Mel vivencia sua sexualidade com vergonha de mostrar seu corpo gordo. Em seu discurso transbordam falas depreciativas sobre sua autoimagem. A insatisfação corporal sobre si própria interfere em sua relação afetiva e sexual, acarretando um comportamento sexual mecânico subjugado ao desejo do parceiro. Apesar do seu corpo ser objeto de angústia para si, no que diz respeito ao contato sexual com Pedro, Mel transcende essa questão uma vez que se sente recompensada pela segurança e afeto que obtém dessa relação. É o retrato da prescrição socialmente destinada ao “ser mulher”: devem ser dóceis, amorosas, devotadas, recatadas e, sobretudo, amantes. A exigência social para que cumpram este padrão preestabelecido aprisiona as mulheres ao desejo do outro, silenciando-as em uma vivência de impotência, apagada (ZANELLO; FIUZA; COSTA, 2015ZANELLO, V.; FIUZA, G.; COSTA, H. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal rev. psicol, v. 27, n. 3, p. 238-246, 2015.).

Eu não consigo ver a perereca. Ai eu acho horrível e eu acho que daí é a mesma visão que o Pedro tem. Ele diz que não, mas eu sei que é. (Melissa)

Ah não eu já tiro tudo [roupa] e já fico lá de baixo da coberta[...] e com a luz apagada[...] vai que ele veja alguma coisa que não é pra ele ver. (Melissa)

Relatos clínicos sugerem que alguns indivíduos gordos relutam em se despir na frente de seus parceiros ou experimentam um nível de insatisfação com a imagem corporal que os deixa relutantes em se envolver sexualmente (SARWER ., 2018SARWER, D.; HANSON, A.; VOELLER, J.; STEFFEN, K. Obesity and Sexual Functioning. Curr Obes Rep, v. 7, n. 4, p. 301-307, 2018.). No estudo de MenezesMENEZES, C. F. J.; FERREIRA, R. L. P.; MÉLO, R. S. “Imagina ela nua!”: Experiências de mulheres que se autodeclaram gordas. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 2, 2020.et al. (2020), uma das participantes relatou que durante uma fase de sua vida, apesar de se sentir bem consigo mesma, não conseguia se despir diante do namorado da época. Esse fato aconteceu por seu pai sempre falar a ela frases como “você nunca vai arranjar um namorado, porque você é gorda. Se um cara quiser você, ele vai largar você por uma mulher mais magra”. Podemos verificar um discurso sobre a gordura perpassado por uma perspectiva heteronormativa, visto que sua forma corporal lhe impediria de arranjar um namorado. Assim, a gordura lhe aparece como um atributo problematizador da feminilidade e aceitar o homem que lhe queira é a “melhor” opção para mulher gorda. Também não podemos deixar de destacar a solidão da mulher negra, como relata Djamila Ribeiro (2019)RIBEIRO, D. Pequeno manual antirracista. 1 ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019. numa sociedade racista, machista e heteronormativa, as mulheres negras ficaram relegados ao papel de servir: seja na cozinha seja na cama. Djamila Ribeiro (2019) destaca que os dados do censo de 2010 mostraram que as mulheres negras são as que menos se casam. Os processos históricos fazem com que as mulheres negras, sobretudo as retintas, sejam sistematicamente preteridas, como se não fossem dignas de serem amadas.

[...] mas paciência, eu pedi tanto a Deus um homem. Então uma coisa eu coloquei na cabeça, veio um homem, eu só tenho que lapidar. (Melissa).

Quando questiono Pedro a respeito do interesse sexual e/ou se ele sente atração física por Mel a resposta é: “Não, não tenho”. Pergunto se ele sabe o porquê e a resposta é: “bá, eu não sei, bá nem vou saber te dizer mesmo”. Questiono se ele sentia mais atração por ela quando ela estava mais magra e ele responde: “não, não influencia nada, a pessoa é a mesma”.

Bá, eu vou te ser bem sincero, faz, bá, um bom tempo, um bom tempo mesmo [que não tem relação sexual]. É deve ter sido uns 2, 3 meses (última relação sexual). (Pedro)

Aí eu tiro dele o foco e boto em mim, que aí eu acho que é porque eu tô muito gorda. (Melissa)

Podemos observar nas falas de Pedro que a razão do afastamento sexual do casal aparenta ser devido aos longos anos de casamento. Já Melissa se culpa, apontando “inadequação” do seu corpo, por esses longos meses sem relação sexual.

A sexualidade feminina é virada pelo avesso desde o nascimento, para que a “beleza” assuma seu lugar, mantendo os olhos das mulheres voltados para o próprio corpo, olhando de relance para cima, só para verificar a imagem refletida nos olhos dos homens (WOLF, 2019WOLF, N. O mito da beleza. 7. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.).

Como afirma Navarro-Swain (2006)NAVARRO-SWAIN, T. Entre a vida e a morte, o sexo. Labrys, estudos feministas, 2006., o corpo é, para as mulheres, o eixo de sua existência social, o que torna a beleza física uma das principais características enaltecidas. Esta talvez seja a arma mais poderosa que torna as mulheres passíveis de serem “escolhidas” no mercado do amor. Na contemporaneidade, o ideal de beleza é vivenciado como uma “escolha” que depende de esforços pessoais (NOVAES, 2006NOVAES, J. O intolerável peso da feiúra: sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: PUC Rio; Garamond, 2006.). Embora o peso seja entendido como um empecilho para uma vida sexual ativa e prazerosa, conseguem elaborar um futuro em que esse problema será dissipado. Para tanto, depositam no emagrecimento e, consequentemente, na adequação do seu corpo ao padrão considerado desejado a solução dessa questão.

[...] eu notei uma coisa, ele é atraído por mim pelas roupas, no caso assim se eu tô mais apertadinha, mais justinha, ele fica bem doidinho, aí se eu tô mais larga, mas jogada assim e ele nem tá. E eu dei uma emagrecida e ele tava bem louco. (Melissa).

Algumas pessoas gordas expressam expectativas em relação ao emagrecimento, como a resolução dos conflitos interpessoais e conjugais e mudanças de traços de suas personalidades. É como se o peso fosse o único problema que essas pessoas têm e, uma vez resolvido, tudo estaria bem em suas vidas (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2013OLIVEIRA, A. P.; RIBEIRO, M. A. Fatores conjugais e familiares que dificultam a perda de peso em mulheres obesas. Saúde & Transformação Social, v. 4, n. 3, p. 65-74, 2013.).

Ser mulher é aprender a se odiar, aprender que a culpa é sua, que você vale menos, a ter sua vida subjugada a um homem e, que talvez, você morra sozinha (GURGEL, 2018GURGEL, A. Pare de se odiar: porque amar o próprio corpo é um ato revolucionário. 1. ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2018.) caso não cumpra os papeis que lhe foram atribuídos. O mérito da mulher estaria não naquilo que ela escolhe ou conquista, mas em ser escolhida. Eis seu distintivo e medalha. Os louros não são sua bravura, coragem e astúcia, mas ter conquistado o coração de um homem que com ela queira se casar. Neste sentido, a “verdadeira mulher” seria a esposa, mãe, bela, amorosa e disponível sexualmente (MONTEIRO; ZANELLO, 2014MONTEIRO, C.; ZANELLO, V. Tecnologias de Gênero e dispositivo amoroso nos filmes de animação da disney. Revista Feminismos, v. 2, p. 36-44, 2014.). Para Mel, seu relacionamento talvez seja um dos poucos exemplos de triunfo de sua vida:

Ele sempre uma pessoa muito trabalhadeira, muito honesta, trabalhadeira. Só que assim […]. Conquistou minha família, conquistou meu filho, então nada mais justo que eu dar o braço a torcer, né?

Considerações finais

O sofrimento e o impacto do corpo gordo no cotidiano, na autoestima, na relação sexual e afetiva com o companheiro segue sendo pauta na vida de Mel e de tantas outras mulheres. Observamos que muitas vivências de Mel vão ao encontro do que a literatura relata. As dificuldades em encontrar roupas, o desemprego, os preconceitos diários e o quanto essas questões a impedem de circular pela cidade. Entretanto, outras questões nem sequer estão descritas. Talvez porque não estejam sendo vistas.

Ao contar a história de Mel, percebemos, então, o quanto precisamos, enquanto profissionais de saúde, ampliar o olhar e rever nosso papel no atendimento de mulheres gordas, provocando um cuidado mais acolhedor e menos culpabilizador, na perspectiva de evitar a recorrência do estigma.

O presente relato de caso apresenta as limitações inerentes a esta metodologia. A extrapolação dos achados aqui encontrados deve ser realizada com cautela. Os resultados sugerem a necessidade de aprofundamento do tema estudado, principalmente no que se refere às relações afetivas e sexuais das mulheres gordas, através de novas pesquisas.

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    Pesquisa realizada como requisito parcial para conclusão da Especialização em Residência Multiprofissional em Saúde, com ênfase em Saúde da Família e Comunidade do Grupo Hospitalar Conceição em 2020. Número do parecer do Comitê de Ética do Hospital Nossa Senhora da Conceição do Grupo Hospital Conceição 3.658.592. Esta pesquisa não recebeu financiamento para sua realização e não há conflito de interesse.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2021
  • Aceito
    29 Jul 2022
  • Revisado
    29 Jun 2022
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