Articulando Gênero e Saúde: um mapa para refletir sobre processos de saúde e doença a partir da chave analítica dos estudos de gênero

Marina Nucci Sobre o autor
2022

A Coleção Temas em Saúde, da Editora Fiocruz, é marcada por publicações em pequeno formato voltadas ao público amplo – de estudantes de diferentes níveis do ensino superior à profissionais –, com o objetivo de traçar panoramas e levantar reflexões a respeito de diferentes temas ligados à saúde. Este é o caso do livro recém-lançado na coleção, “Gênero e saúde: uma articulação necessária”, escrito por Elaine Brandão e Fernanda Alzuguir, professoras do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tratase tanto de um excelente material introdutório, como um instrumento útil para leitores/as já familiarizados/as com a temática se atualizarem a respeito de suas discussões mais centrais.

No livro, dividido em cinco capítulos, as autoras mapeiam um vasto debate que passa pelos estudos socioantropológicos sobre gênero, estudos sociais da ciência e tecnologia, e o campo da saúde. Ao longo do livro, procuram refletir sobre o impacto das relações de gênero, enquanto modo de organização da vida social, nos processos de saúde e doença. A categoria de gênero, porém, nunca é pensada de modo isolado, e sim, como veremos, em uma abordagem interseccional, articulada a outros marcadores sociais da diferença como raça, etnia, classe e geração.

Como praticamente todos os acontecimentos de nossas vidas desde março de 2020, a escrita do livro também foi atravessada pela pandemia de Covid-19. Assim, Brandão e Alzuguir iniciam o livro contextualizando o período em que vivemos, chamando atenção para as implicações de gênero acirradas pela pandemia. Embora a urgência de se debater as relações entre gênero e saúde já estivesse colocada anteriormente, a pandemia traz desdobramentos significativos para a temática. Entre elas, as autoras destacam as questões relativas ao trabalho de cuidado (em suas múltiplas formas – tanto o cuidado com crianças, mas também de idosos e enfermos) cujo ônus, historicamente, sempre recaiu sobre as mulheres – tendo se intensificado com a Covid-19.

O capítulo 1, “Panorama histórico e conceitual sobre a categoria de gênero”, aborda hierarquias – de classe, raça, etnia e, especialmente, de gênero – naturalizadas pela sociedade. Isto é, analisa como desigualdades são tomadas como se fossem biologicamente determinadas e independentes de concepções e valores sociais. É em oposição a esta naturalização que será criada a categoria “gênero”, para contestar a ideia de que o sexo biológico explicaria qualquer diferença de comportamento e características entre homens e mulheres – que por sua vez, justificaria os diferentes papéis e locais ocupados por homens e mulheres na sociedade, e a distribuição desigual de poder entre eles. Com a construção da categoria gênero, na segunda metade do século XX, pensadoras feministas procuraram evidenciar, portanto, como as visões sobre o que seria “naturalmente” feminino e masculino estão permeadas por estereótipos e valores sociais.

Como mostram as autoras, através do acionamento da categoria gênero é possível, por exemplo, problematizar e desnaturalizar a tradicional divisão sexual do trabalho, que implica em um maior reconhecimento e prestígio conferido a atividades consideradas masculinas e ligadas ao espaço público, em oposição à desvalorização do trabalho de cuidado e do espaço doméstico, frequentemente vinculados ao feminino.

Importante observar que gênero se trata de uma categoria de análise, para pensar a estrutura, as hierarquias e desigualdades sociais – ou seja, as formas de classificação sociais e seus efeitos. Sendo sempre relacional, ao contrário do que acontece com frequência no senso comum, a categoria gênero não deve ser tomada como sinônimo do termo “mulher”, ou reduzido ao conceito de “identidade de gênero”.

Além disso, no primeiro capítulo, Brandão e Alzuguir apresentam um histórico do movimento feminista e sua relação com o conceito de gênero, a partir do pensamento de algumas autoras centrais para a temática – como, por exemplo, Simone de Beauvoir e, mais recentemente, Gayle Rubin, Joan Scott, Judith Butler e Donna Haraway. Trata-se de uma excelente oportunidade para leitores/as não familiarizados/as com o tema se aproximarem do trabalho destas autoras e identificarem a pluralidade de perspectivas que o campo dos estudos de gênero comporta.

No capítulo 2, “Diferença sexual e medicalização de corpos”, Brandão e Alzuguir retomam a discussão do capítulo anterior, acerca da naturalização das desigualdades sociais – que, como vimos, são comumente encaradas como biologicamente determinadas. Neste capítulo, elas se dedicam então a não apenas problematizar a ideia de biologia como destino, mas a própria noção de natureza como um domínio apartado da sociedade.

A partir do trabalho de pesquisadores como Londa Schiebinger e Thomas Laqueur, as autoras observam como a própria noção de diferença sexual – ou seja, a ideia de que há dois corpos distintos, o feminino e o masculino – pode ser historicamente localizada. Assim, observam como o fato quase inquestionável de que há uma diferença sexual inata, que se ancora no corpo biológico, foi sendo construída ao longo dos séculos no ocidente.

Para isso, então, as autoras discutem de modo aprofundado a mudança do chamado “modelo do sexo único”, para um “modelo dos dois sexos” – localizado por Laqueur (2001LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.) na passagem do século XVIII para o XIX. Analisam também o crescente interesse científico, observado no mesmo período por Schiebinger (1986)SCHIEBINGER, L. The first illustrations of the female skeleton in eighteenth-century anatomy. Representations, v. 14, p. 42-82, 1986., na demarcação de diferenças – que, ao mesmo tempo, acabam por construir fronteiras – entre corpos femininos e masculinos. Além disso, observam o destaque que a ciência médica vai ganhando neste processo, tornando-se a entidade destinada a “revelar” os fundamentos da “verdade” da natureza.

Ao final do capítulo, Brandão e Alzuguir relacionam a produção da diferença sexual, com o processo de medicalização de corpos femininos e masculinos, que historicamente sempre recaiu com maior intensidade nos corpos reprodutivos femininos. Assim, em geral, foram e continuam sendo as mulheres o alvo preferencial do escrutínio e intervenção médica, muitas vezes justificada por uma suposta “natureza instável”, ligada aos hormônios e ao ciclo menstrual – como observado em diversos trabalhos, como os de Fabiola Rohden (2008)ROHDEN, F. Império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciência, Saúde – Maguinhos, v. 15, supl., p. 133-152, 2008..

A historicização da forma como o campo médico e científico classifica, lida e intervém em corpos femininos e masculinos, discutida no segundo capítulo, ajuda a introduzir uma perspectiva que encara fatos científico não como isentos de valores, mas sempre entrelaçados a concepções e contextos sociais específicos. É este modo de pensar a ciência que continuará a ser apresentado e discutido no capítulo 3, “As implicações do gênero na produção do conhecimento científico”.

As autoras ressaltam, porém, que uma visão crítica sobre o processo de construção de fatos científicos não é o equivalente a uma negação da ciência e de sua importância na sociedade e na vida das pessoas. A própria pandemia de Covid-19 nos impele a pensar sobre isso. Assim, como colocam as autoras, um recurso biotecnológico proporcionado pela ciência, e de inegável importância, como as vacinas para Covid-19, não pode ser visto de modo desarticulado a condições políticas, econômicas, sociais e culturais mais amplas.

Assim, no terceiro capítulo, as autoras apresentam um panorama das discussões do campo da crítica feminista à ciência, abordando tanto aquelas discussões a respeito da desigualdade no acesso e permanência de mulheres na ciência, como uma segunda vertente voltada à análise da produção do conhecimento científico “em si” – orientada pelo referencial teórico que une o campo dos estudos de gênero e estudos sociais da ciência e tecnologia. Os trabalhos desta segunda vertente – dedicada à análise do conhecimento científico –, problematizam a própria constituição da ciência moderna ao desconstruir o ideal de neutralidade científica, e analisar o modo como o pensamento científico alimenta hierarquias de gênero na sociedade. Neste segundo tópico, Brandão e Alzuguir apresentam trabalhos clássicos de autoras como Emily MartinMARTIN, E. The egg and the sperm: how science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles. In: KELLER, E.; LONGINO, H. (Eds.). Feminism and science. New York: Oxford University Press, 1996. p. 103-120. e sua análise das metáforas de gênero nas descrições científicas do óvulo e do espermatozoide (1996), Nelly OudshoornOUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routledge, 1994. e a “invenção” dos chamados “hormônios sexuais” (1994), e Donna HarawayHARAWAY, D. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX [1985]. In: HARAWAY, D.; HUNZRU, H.; TADEU, T. (Org.). Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 33-118. e a ideia de “ciborgue” (2009). Tais autoras – assim como outras que fazem parte deste campo – compartilham a crítica a dualismos como sexo e gênero, e natureza e cultura, perspectiva esta que informa suas análises da produção científica.

No capítulo 4, “A centralidade da abordagem interseccional na compreensão dos processos de saúde e doença”, as autoras aprofundam a discussão que permeia todo o livro: de que não é possível pensar isoladamente em gênero, sem levar em conta outros marcadores sociais da diferença, como raça, etnia, classe, nacionalidade, território, entre outros. Apresentando a perspectiva interseccional, chamam atenção de que ela não propõe, porém, uma simples “soma” destes atributos, mas sim uma complexa interação entre eles. Somente com uma abordagem interseccional, que articule essas diferentes categorias, é possível ter a dimensão das desigualdades sociais e de seus efeitos. Isto é especialmente central ao se pensar saúde e doença, pois tais desigualdades se relacionam diretamente com a forma de se viver tais processos.

Assim, o quarto capítulo é destinado a discutir a interseccionalidade – que surge como crítica ao feminismo ocidental branco –, apresentando também um panorama do pensamento de feministas negras, como as brasileiras Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Lucia Xavier, Fatima Oliveira, Maria Aparecida Bento, Luiza Bairros e Jurema Werneck.

O capítulo 5, “Direitos sexuais e direitos reprodutivos: debates contemporâneos”, faz um histórico das conquistas e perdas de direitos neste campo. Central para esta história, foram as conferências internacionais promovidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao longo dos anos 199011Como a Conferência de População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994, e a IV Conferência da Mulher, em 1995, em Pequim.. Nestas conferências, discutiase acordos sobre direitos humanos entre diferentes países, e, em meio a discussões acirradas, a articulação de direitos sexuais e reprodutivos foi alvo de grande debate e de muita luta feminista.

Além do panorama histórico, as autoras também apresentam a crítica a uma abordagem liberal e individualista dos direitos reprodutivos, que pensa em um “sujeito universal”, descolado de raça, classe e nacionalidade. Neste sentido, uma saída teórica profícua apresentada pelas autoras, que foi articulada pela crítica de feministas negras, é o conceito de justiça reprodutiva, que procura evidenciar as desigualdades sociais que permeiam o acesso a serviços de saúde e a efetividade dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres brancas e negras.

O capítulo explora também três temas espinhosos relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, centrais para pensar gênero e saúde: o direito ao aborto, as políticas voltadas para pessoas com HIV, e o trabalho sexual.

Apresentando dados da Pesquisa Nacional do Aborto (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2016DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660, 2017.), as autoras discutem como esta é uma prática extremamente comum entre mulheres brasileiras, mas que releva enorme desigualdade de classe e raça – já que por ser ilegal, mulheres que não dispõem de recursos para realizá-lo em condições de maior segurança estão expostas a grandes riscos de saúde.

O segundo e terceiro temas discutidos dizem respeito aos preconceitos e estigmas relacionados a pessoas portadoras de HIV, e a trabalhadores/as sexuais. Em relação ao HIV, apesar do Brasil ter sido referência, nas décadas passadas, em políticas sanitárias de enfrentamento da epidemia, na atualidade observamos retrocessos que vêm crescendo de modo assustador. Tais retrocessos, marcados pela interferência de religiosos na política brasileira, se expressam em um desmonte de políticas que lidem com a sexualidade, e o crescimento de uma perspectiva punitivista, que enfatiza a responsabilidade individual na contaminação pelo HIV. Em relação ao trabalho sexual, além dos estigmas e discriminação, as autoras também apontam para a ausência de direitos desses/as profissionais.

Ao final do quinto capítulo, em um balanço de avanços e retrocessos de direitos, as autoras destacam o pânico moral recente que se observa nos ataques aos estudos de gênero e aos movimentos sociais feministas e LGBT. Tal pânico moral, como afirmam Brandão e Alzuguir, se articula em um combate a uma suposta “ideologia de gênero”, em uma tentativa de restauração de uma ordem social que nega a diversidade. Não por acaso, o foco tem sido a interdição de debates sobre gênero e sexualidade em escolas, além de campanhas antiaborto, e campanhas que procuram “restaurar” posições tradicionais de gênero, família e maternidade. Em suas palavras: “São campanhas que difamam, deturpam informações, fazem apologia à conversão sexual e de gênero, espalhando o pânico moral como motor para fomentar retrocessos legislativos e jurídicos” (BRANDÃO; ALZUGUIR, 2021, p. 85).

Porém, longe de acabar o livro de modo pessimista, as autoras convidam os/as leitores/as a descontruir essencialismos e determinismos, e a lutar por uma sociedade mais justa e menos desigual. Como elas mesmas colocam nas considerações finais, a partir da perspectiva de Donna Haraway (1995)HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu¸ n. 5, p. 7-41, 1995. e da ideia de “saberes localizados”, a visão do livro é assumidamente parcial e posicionada. Além disso, chamam atenção para a impossibilidade de abordar toda a complexidade da categoria gênero e seu diálogo com o campo da saúde. Portanto, traçam um caminho teórico e político possível, dentre vários – convidando os/as leitores/as a se aprofundarem posteriormente na temática, a partir das articulações e panoramas apresentados. Por fim, em resumo, o livro “Gênero e saúde: uma articulação necessária”, evidencia a potência e a relevância de se pensar processos de saúde e doença a partir da chave analítica dos estudos de gênero.

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    Como a Conferência de População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994, e a IV Conferência da Mulher, em 1995, em Pequim.

Referências

  • DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660, 2017.
  • HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu¸ n. 5, p. 7-41, 1995.
  • HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX [1985]. In: HARAWAY, D.; HUNZRU, H.; TADEU, T. (Org.). Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 33-118.
  • LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
  • MARTIN, E. The egg and the sperm: how science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles. In: KELLER, E.; LONGINO, H. (Eds.). Feminism and science. New York: Oxford University Press, 1996. p. 103-120.
  • OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routledge, 1994.
  • ROHDEN, F. Império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciência, Saúde – Maguinhos, v. 15, supl., p. 133-152, 2008.
  • SCHIEBINGER, L. The first illustrations of the female skeleton in eighteenth-century anatomy. Representations, v. 14, p. 42-82, 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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