Dificuldades no trabalho em saúde mental: percepção de trabalhadores do Núcleo de Apoio à Saúde da Família na Macrorregião Oeste de Minas Gerais

Difficulties in mental health work: the perception of Family Health Support Center workers in the Western Region of Minas Gerais state, Brazil

Denise Alves Guimarães Vanessa Cristina de Paiva Oliveira Vívian Andrade Araújo Coelho Carlos Alberto Pegolo da Gama Sobre os autores

Resumo

No atual cenário de manobras neoliberais no país, mudanças nas Políticas de Atenção em Saúde alteram formas de organização e financiamento dos serviços, desdobram-se em formas precarizadas de trabalho e ameaçam conquistas da Reforma Psiquiátrica e Atenção Psicossocial. Buscou-se identificar e analisar, na percepção de profissionais de 11 equipes de Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), dificuldades no processo de construção de uma política de Saúde Mental (SM) na Atenção Básica em Saúde (ABS). Realizou-se estudo qualitativo, a partir de entrevistas com 11 profissionais de SM dos NASF, e estas foram analisadas considerando-se o referencial da Análise de Conteúdo. As dificuldades identificadas foram: formas precárias de contratação; alta rotatividade; carga horária insuficiente; baixa remuneração; concentração da carga horária em atividades de assistência; falta de compartilhamento e integração de serviços e profissionais; desarticulação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). O Apoio Matricial não estava incorporado e não havia políticas de Educação Permanente em Saúde (EPS) no conjunto dos municípios estudados. No entanto, os NASF contribuíam para melhorar o cuidado em SM. Conclui-se que as mudanças em curso impõem desafios para a sustentação de conquistas em SM e consolidação da política de SM na ABS dos municípios estudados.

Palavras-Chave:
Atenção à Saúde Mental; Condições de trabalho; Atenção Primária à Saúde

Abstract

The current scenario of neoliberal political maneuvers in Brazil brought several legislative changes regarding health care policies which alter many services’ organizational forms and funding. These changes also come through as precarious work and threaten advances and accomplishments related to the Brazilian Psychiatric Reform and mental health care. This study aimed to identify and analyse difficulties regarding the construction of a mental health (MH) policy in Primary Health Care (PHC) according to professionals working at 11 teams of the Family Health Support Center (NASF). We developed a qualitative study through 11 semi-structured interviews conducted with 11 MH workers in PHC and explored the results using content analysis. The identified difficulties were precarious forms of employment; high professional turnover; insufficient working hours; low wages; working hours concentrated in care activities; lack of integration and communication among services and workers and disarticulation of the psychosocial attention network (RAPS). Matrix support was not present and there were no Permanent Health Education policies in the municipalities studied. Nevertheless, the NASF contributed to improve mental healthcare. The conclusion is that ongoing changes impose challenges to sustain mental health accomplishments and consolidation of mental healthcare policies at PHC at the studied municipalities.Resumo: No atual cenário de manobras neoliberais no país, mudanças nas Políticas de Atenção em Saúde alteram formas de organização e financiamento dos serviços, desdobram-se em formas precarizadas de trabalho e ameaçam conquistas da Reforma Psiquiátrica e Atenção Psicossocial. Buscou-se identificar e analisar, na percepção de profissionais de 11 equipes de Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), dificuldades no processo de construção de uma política de Saúde Mental (SM) na Atenção Básica em Saúde (ABS). Realizou-se estudo qualitativo, a partir de entrevistas com 11 profissionais de SM dos NASF, e estas foram analisadas considerando-se o referencial da Análise de Conteúdo. As dificuldades identificadas foram: formas precárias de contratação; alta rotatividade; carga horária insuficiente; baixa remuneração; concentração da carga horária em atividades de assistência; falta de compartilhamento e integração de serviços e profissionais; desarticulação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). O Apoio Matricial não estava incorporado e não havia políticas de Educação Permanente em Saúde (EPS) no conjunto dos municípios estudados. No entanto, os NASF contribuíam para melhorar o cuidado em SM. Conclui-se que as mudanças em curso impõem desafios para a sustentação de conquistas em SM e consolidação da política de SM na ABS dos municípios estudados.

Keywords:
Mental health care; Working conditions; Primary Health Care

Introdução

O neoliberalismo compreende um conjunto amplo de fenômenos inicialmente identificados à economia e que, com o tempo, se torna uma razão de mundo, uma nova racionalidade do capitalismo contemporâneo. Com seu advento, criou-se uma tensão entre o conceito de saúde como direito e bem coletivo, associado ao estado social, e o de saúde como bem individual e econômico, típico da lógica neoliberal – tensão especialmente catalisada pelo avanço veloz da mercantilização das ações e serviços de saúde em escala global (VIANA; SILVA, 2018VIANA, A. L. A.; SILVA, H. P. Meritocracia neoliberal e capitalismo financeiro: implicações para a proteção social e a saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 7, p. 2107-2118, jul. 2018.). No Brasil, entremeiam-se às políticas públicas em saúde um intrincado campo de interesses e conflitos concernentes às relações público-privadas que fragilizam as possibilidades de garantia da saúde como direito e do Sistema Único de Saúde (SUS) como política social. Enquanto se dão importantes incentivos ao setor privado, o SUS vive uma realidade de sistemático subfinanciamento (MACHADO; MELO; PAULA, 2019MACHADO, H. S. V.; MELO, E. A.; PAULA, L. G. N. Medicina de Família e Comunidade na saúde suplementar do Brasil: implicações para o Sistema Único de Saúde e para os médicos. Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 35, n. 11, out. 2019.).

O Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), criado em 2008 como estratégia para fortalecer a Atenção Básica à Saúde (ABS) e sua articulação com a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) (BRASIL, 2001BRASIL. Lei n. 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 abri. 2001, Seção I, p. 2.), tem como objetivo estender o alcance e a resolutividade das equipes de Saúde da Família (eSF), ampliar a oferta de profissionais em sua equipe mínima, além de, necessariamente, abranger um profissional da área de Saúde Mental (SM) (BRASIL, 2008BRASIL. Portaria nº 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os núcleos de apoio à saúde da família. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 mar. 2008, Seção I, p. 38-42.). A equipe multidisciplinar do NASF deve propor ações que permitam transformações no processo de trabalho em saúde saindo de um modelo biomédico focado no indivíduo em direção a uma concepção de saúde coletiva que valorize a interdisciplinaridade e uma visão biopsicossocial do processo saúde-doença. Neste sentido, a equipe do NASF deve participar ativamente da construção de um projeto de Educação Permanente em Saúde (EPS) problematizando as dificuldades cotidianas, realizando reflexões críticas e buscando soluções criativas através do fortalecimento do trabalho em equipe.

Nesse sentido, destaca-se a relevância dos investimentos em políticas e projetos de EPS para a produção de mudanças, tanto no processo de trabalho, quanto no processo de cuidado em SM. A Política de EPS, proposta de aprendizado no e pelo trabalho, tem como ponto de partida a realidade vivenciada pelos profissionais, de quem a experiência e os problemas do dia a dia são a base para questionamentos e aperfeiçoamento, considerando-se ainda a articulação entre os segmentos da formação, da atenção, da gestão e do controle social em saúde. Ela se opõe a um processo de ensino-aprendizagem desarticulado do trabalho real, no qual os educandos são apenas ouvintes passivos que absorvem os conhecimentos apresentados por outras pessoas que não participam diretamente das especificidades das realidades de trabalho. De maneira análoga, a EPS se dá no cotidiano das pessoas e das organizações envolvendo o conjunto de trabalhadores e usuários dos serviços de saúde (BRASIL, 2004BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política de Educação e Desenvolvimento para o SUS: caminhos para a Educação Permanente em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 68 p. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios).; CECCIM, 2005CECCIM, R. B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunic, Saúde, Educ, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-168, 2005.; PEREIRA; LIMA, 2009PEREIRA, I. B.; LIMA, J. C. F. Dicionário da educação profissional em saúde. Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. 2009. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l43.pdf Acesso em: 15 jan 2020.
https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/defau...
). O apoio matricial, a clínica ampliada e o projeto terapêutico singular (PTS) representam suas ferramentas mais utilizadas, por meio das quais seria possível que se constituísse um arranjo para rompimento da lógica de encaminhamentos e potencializar as ações da ESF (CECCIM, 2005CECCIM, R. B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunic, Saúde, Educ, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-168, 2005.; BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. 152 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Caderno de Atenção Básica, n. 27).; NASCIMENTO; CORDEIRO, 2019NASCIMENTO, A. G.; CORDEIRO, J. C. Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica: Análise do Processo de Trabalho. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, e0019424, 2019.; MAZZA et al, 2020). No que se refere ao campo da SM, destaca-se a potência do NASF para mudar culturas e práticas profissionais em torno da grande demanda da ABS nessa área (FIGUEIREDO; CAMPOS, 2009FIGUEIREDO, M. D.; CAMPOS, R. O. Saúde Mental na atenção básica à saúde de Campinas, SP: uma rede ou um emaranhado? Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 129-138, fev. 2009.; IGLESIAS; AVELAR, 2019).

A partir de 2017, um conjunto de mudanças envolvendo a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) vem gerando preocupações e críticas, especialmente relacionadas à flexibilização e relativização do projeto de fortalecimento da atenção à saúde no país, configurada anteriormente a partir do compromisso com a expansão da saúde da família (BRASIL, 2017BRASIL, Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as portarias de consolidação n. 3 e n. 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 dez. 2017, Seção I, p. 236.). Tais mudanças, acompanhadas de outras manobras políticas de caráter neoliberal – como a aprovação da EC 95, política de ajuste fiscal que congelou despesas públicas por até 20 anos –, apontam uma tentativa de contínuo enfraquecimento do SUS (BRASIL, 2016aBRASIL. Presidência da República. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016a Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 dez. 2016. Seção I, p. 2.). Fruto da mesma racionalidade, as modificações na PNAB possibilitam maior autonomia de gestores municipais em optarem por novos arranjos organizativos na atenção à saúde – que podem se mostrar mais baratos, mas que propiciam a precarização da atenção e do trabalho em saúde, bem como a descontinuidade de serviços e práticas já existentes (MOROSINI; FONSECA; LIMA, 2018MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; LIMA, L. D. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 116, p. 11-24, jan. 2018.).

No esteio dessas mudanças, o NASF torna-se Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) e seu financiamento específico deixa de existir, o que submete a continuidade do serviço à vontade política das gestões locais. A ausência de financiamento específico para o NASF-AB reflete um risco imediato de desmonte e aponta para a redução da atuação multiprofissional na ABS e do acesso da população ao atendimento por categorias profissionais que, antes de sua implantação, apenas eram acessadas por meio da atenção secundária. Além disso, a ampliação do cuidado em saúde mental, articulada pelos dispositivos operados pelo NASF-AB – clínica ampliada, apoio matricial, PTS – e, especialmente, sua dimensão técnico pedagógica, na forma de uma estratégia de formação em serviço, são colocados sob forte ameaça (CEBES, 2020CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE, Novo financiamento da atenção básica: possíveis impactos sobre o Nasf-AB. 12 fevereiro. 2020. Disponível em: http://cebes.org.br/2020/02/novo-financiamento-da-atencao-basica-impactos-sobre-o-nasf-ab/. Acesso em: 15 jan. 2021.
http://cebes.org.br/2020/02/novo-financi...
; IGLESIAS; AVELLAR, 2019IGLESIAS, A.; AVELLAR, L. Z. Matriciamento em Saúde Mental: práticas e concepções trazidas por equipes de referência, matriciadores e gestores. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, p. 1247-1254, abr. 2019.).

Sob essa mesma égide de precarização e mercantilização, o campo da atenção psicossocial no Brasil sofre ataques graves e sistemáticos cujo objetivo é o desmonte e desarticulação das conquistas obtidas por meio do longo processo de luta da reforma psiquiátrica. A série de normativas que constituem a chamada “Nova Política Nacional de Saúde Mental” tem em seu escopo a mudança de paradigma do financiamento dos serviços com incentivo à internação psiquiátrica e a abordagens proibicionistas e punitivistas. Na lógica que norteia as decisões em saúde dos governos eleitos após 2016, opta-se pela inversão total do que a literatura tanto nacional como internacional apontam como efetivo e digno no cuidado em SM (CRUZ; GONÇALVEZ; DELGADO, 2019CRUZ, N. F. O.; GONCALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00285117, 2020.; PATEL, 2018PATEL, V. et al. The Lancet Commission on global mental health and sustainable development. The Lancet, v. 392, n. 10157, p. 1553–1598, out. 2018.). Esse cenário em reconfiguração engendra, também, impactos significativos para os trabalhadores da SM, seja por meio das condições e organização do trabalho, seja pelas formas de vínculo trabalhista ou em sua atuação profissional – a partir dos modelos assistenciais favorecidos pela lógica dominante – precarizando o trabalho cotidiano dos serviços e sua articulação em rede.

Diante das questões apontadas, e dialogando com o modelo preconizado pelo Ministério da Saúde até a época da pesquisa, este estudo buscou identificar e analisar, a partir da percepção de profissionais referência em SM que atuavam equipes de NASF de diferentes municípios da macrorregião Oeste de Minas Gerais, as dificuldades relativas ao processo de construção de uma política de saúde mental na ABS, especificamente relacionadas ao modelo assistencial, ao trabalho em equipe, a construção da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e ações de EPS.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória, organizada a partir de entrevistas semiestruturadas (MINAYO, 2013MINAYO, Maria. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013.). O estudo foi desenvolvido em parceria com a Superintendência Regional de Saúde Oeste da Secretaria Estadual de Saúde de MG (SRS/SES/MG) que participou na definição da amostra e operacionalização do estudo.

O campo de estudo compreendeu os 54 municípios da Macrorregião de Saúde Oeste de Minas Gerais, distribuídos em seis Regiões de Saúde (microrregiões). À época da pesquisa existiam 34 equipes de NASF implantadas e a opção por uma macrorregião pretendeu acessar um conjunto de experiências diversificadas e abrangentes das práticas a serem analisadas. Essa região possui 70% de seus municípios com menos de 20.000 habitantes e, portanto, sem financiamento para implantação de CAPS – Centro de Atenção Psicossocial.

Para operacionalização da proposta foram considerados dois municípios de cada uma das microrregiões, sendo um deles o município polo e o outro município foi sorteado. Nos municípios que possuíam mais de uma equipe de NASF, também foi feito sorteio para a definição de qual NASF seria incluído. Em cada equipe NASF dos municípios sorteados havia apenas um profissional que respondia como referência de SM. A amostra foi composta por 11 municípios da Macrorregião, uma vez que uma das Regiões de Saúde não contava com NASF implantado no município polo e possuía somente um NASF implantado em um dos demais municípios da região. Dentre os municípios que participaram deste estudo, cinco eram municípios polo, quatro deles de médio porte (acima de 50.000 hab.) e um único de pequeno porte (abaixo de 50.000 hab.); e todos os outros seis municípios sorteados eram de pequeno porte. Dentre os 7 municípios de pequeno porte que participaram deste estudo, a população variava entre 3.000 e 28.000 hab. (GAMA, 2020).

Fizeram parte deste estudo, portanto, os 11 profissionais que respondiam como referências de SM nas equipes NASF e que aceitaram o convite para participar. Foi construído um roteiro baseado nas ações previstas na portaria do NASF e na Edição dos Cadernos da Atenção Básica – Núcleo de Apoio à Saúde da Família (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 116 p. (Cadernos de Atenção Básica, n. 39).).

As entrevistas foram realizadas de junho a agosto de 2017, com duração média de 1 hora e 30 minutos. Elas foram gravadas, transcritas e o material analisado a partir da Análise Temática ou Categorial de acordo com o referencial de Bardin. Foram consideradas as etapas de preparação das informações coletadas; organização das informações a partir de estruturas de relevância agrupadas em unidades e categorias; análise final das categorias que articula informações coletados e referenciais teóricos, com o objetivo de responder aos objetivos fixados pelo estudo (BARDIN, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011.). Do processo de análise resultaram duas categorias: 1) Dificuldades da organização e condições do trabalho em saúde mental do NASF; 2) NASF e os desafios na construção de uma política de saúde mental na ABS. As análises e reflexões construídas a partir dos resultados se desenvolveram em articulação com os referenciais e produções teóricas da Atenção Psicossocial e da Saúde Coletiva.

Foi utilizado sistema de códigos (letras e números) para identificar as narrativas dos profissionais que exemplificam os resultados, porém, não foram identificadas as categorias profissionais ou outras informações que pudessem colocar em risco o sigilo dos mesmos. Na apresentação e discussão de resultados a seguir, optou-se pela utilização do termo NASF, uma vez que à época da coleta dos dados (2017), a nomenclatura ainda estava em processo de transição.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa envolvendo seres humanos (CAAE 47083915.9.0000.5545) e financiado pelo Fundação de Amparo à Pesquisa de MG (FAPEMIG) sendo o sigilo garantido durante todo o processo.

Resultados

Foram entrevistados 7 mulheres e 4 homens, com idades entre 23 e 55 anos (média de 37 anos). Participaram 9 psicólogos, 1 terapeuta ocupacional e 1 nutricionista e o tempo de graduação dos mesmos variou de 6 meses a 27 anos, com média de 12 anos. A maioria dos participantes atuava há pouco tempo no NASF e apenas 3 deles trabalhavam nesse serviço há mais de 2 anos. Quanto às experiências anteriores em Saúde Pública, o cenário era inverso: 9 participantes já haviam trabalhado nessa área, em diferentes segmentos, enquanto apenas 2 tiveram no NASF suas primeiras experiências profissionais. A maioria não recebeu informações sobre o NASF durante sua formação acadêmica, o que é compatível com o tempo desde sua graduação – superior a 10 anos e anterior à criação do NASF, em janeiro de 2008.

Dificuldades da organização e condições do trabalho em saúde mental do NASF

O primeiro ponto a ser destacado se relaciona às formas precárias de contratação que produziam alta rotatividade profissional. A maioria dos entrevistados era contratada sem concurso público, não tendo estabilidade ou garantia de progressão de carreira. Em muitos casos, a carga horária de trabalho foi considerada insuficiente para realização das atividades, e o valor da remuneração, considerado baixo.

Um entrevistado avaliou que existia um impacto negativo direto advindo da baixa remuneração e múltiplos vínculos trabalhistas por eles adquirida afetando a forma como o trabalho era realizado:

[...] a gente é muito mal remunerado e aí a gente tem que trabalhar muito em dois ou três lugares [...] Então às vezes aquela dedicação que você poderia ter às vezes não tem né [...] Então acho que às vezes não funciona a lógica antimanicomial porque o profissional não tem tempo pra trabalhar a lógica antimanicomial” (S3)

Avaliou ainda que os profissionais precisavam ter tempo e disponibilidade para barrar as internações, que são mais fáceis de realizar – para a família e para o profissional de saúde – do que o manejo dos casos a partir dos dispositivos da rede comunitária de atenção.

No geral, os entrevistados relataram que a distribuição de suas cargas horárias se concentrava nas atividades assistenciais, sobrando pouco tempo para ações de organização e planejamento da rede, preparação para o trabalho, promoção da saúde, e atividades grupais. Expressaram insatisfação com as condições de trabalho e discutiram que a sobrecarga com a qual lidavam advinha também da persistência do modelo biomédico que impactava a organização do serviço e se expressava na arraigada tradição de atendimento individual. Havia a pressão de gestores, da população e de outros profissionais de saúde da ABS para que os profissionais do NASF acolhessem grande número de demanda por atendimentos individuais.

Porque a gente fica batendo na tecla: o NASF é só o apoio, né, à Saúde da Família, não é um atendimento individual, não é ambulatório, é um atendimento grupal, prioritariamente, de prevenção mesmo. A gente sempre fala isso na educação permanente e, mesmo assim, ainda chega muito encaminhamento individual… (S11)

Um entrevistado comentou que, apesar da grande demanda por atendimentos individualizados, o NASF vinha conseguindo ampliar a oferta de outras modalidades de atendimento das demandas em SM. Sobre o modelo de atendimentos individualizados no início do funcionamento do NASF, comenta:

Todos os profissionais do NASF com aquela agendinha de atendimento individual, todo mundo fazendo consultório dentro do PSF! Não tinha nada de promoção e prevenção, tava todo mundo apagando incêndio. (S1)

Sobre o manejo dos casos graves em SM, os entrevistados relataram uma série de dificuldades de articulação entre os membros da equipe e entre os pontos da RAPS, dificultando a atenção ao usuário, quais sejam: falta de interação dos profissionais com os médicos; dificuldades de acesso ao psiquiatra; falta de leito psiquiátrico em hospital geral; manejo inadequado das situações de crise em hospitais gerais; existência de uma cultura de internação; falta de vagas no CAPS para receber usuários em crise (o que resulta em encaminhamentos diretos ao hospital psiquiátrico em Belo Horizonte); falta de convênio dos pequenos municípios com CAPS de outro município. O impacto desses problemas pode ser exemplificado na fala a seguir:

[...] esse furo acaba assim, colocando de certa forma assim, em xeque, a própria questão da reforma psiquiátrica. Às vezes a crise aparece de uma forma tal que você não tem lugar pra levar e acaba optando por internar [...] (S9)

A alta rotatividade dos profissionais impactava negativamente nos investimentos dos municípios em ações relacionadas às diferentes formas de capacitação para o trabalho em SM. Os profissionais mencionaram que era comum o investimento de recursos financeiros na realização de cursos pontuais sobre temáticas da área de SM; todavia, por falta de condições de trabalho para a manutenção desses profissionais na ABS, os municípios lidavam constantemente com a perda dos profissionais que haviam participado dessas iniciativas.

Todos os entrevistados consideraram que o NASF estava em processo de implantação, apresentando, na macrorregião, diferentes momentos de incorporação e desenvolvimento das ferramentas previstas. O Apoio Matricial não estava incorporado plenamente pelos serviços. Na maioria dos municípios, era realizado de maneira informal em situações nas quais as informações eram compartilhadas entre poucos profissionais, na sala de consulta, entre uma consulta e outra – quando sobrava tempo. Nessa perspectiva, algumas das estratégias do Apoio Matricial, como os atendimentos compartilhados e visitas domiciliares com equipe multidisciplinar eram realizadas de maneira irregular, somente em situações muito pontuais, não se configurando como um dispositivo incorporado ao cotidiano das ações desenvolvidas.

O projeto terapêutico singular (PTS) era realizado por alguns municípios também de forma não sistematizada, alguns sem registro das informações ou a partir de registros realizados pelos profissionais separadamente, sem discussão conjunta. Nenhum entrevistado mencionou a inclusão do usuário, familiares ou ACS na elaboração e condução do PTS.

[...] até precisava porque às vezes vai se perdendo, né... engraçado, PTS é uma coisa que sempre se fala tanto... e ele formalmente, ele não vai... (S8)

A única ferramenta utilizada pela maioria das equipes eram os grupos de atividades de promoção em saúde, organizados de acordo com a demanda local (tabagismo, diabetes, atividades físicas, obesidade, gestantes, entre outros). Apesar de ainda não estarem incorporadas de maneira plena no cotidiano de trabalho, as estratégias de Apoio Matricial foram mencionadas como ferramentas que potencializavam a atenção aos usuários e que poderiam contribuir para mudar a lógica de intervenção e de atuação profissional.

NASF e os desafios na construção de uma política de saúde mental na ABS

No que diz respeito à preparação para o início das atividades no NASF, os entrevistados relataram não terem participado de quaisquer tipos de atividades dessa natureza promovidas pelo poder público municipal imediatamente após ingressarem no NASF. Informaram que não houve qualquer tipo de ação para a apresentação da proposta do NASF, suas diretrizes e discussões sobre o processo de implementação das estratégias de Apoio Matricial. Alguns relataram ter recebido algum tipo de material de apoio após terem iniciado suas atividades, como os Cadernos de Atenção Básica do MS nº 39. (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 116 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Cadernos de Atenção Básica, n. 39).). Mencionaram também reuniões com a SRS/SES/MG e eventos pontuais relacionados ao NASF, algumas orientações da gestão, e o aprendizado a partir das experiências na prática cotidiana de trabalho. Alguns buscaram algum tipo de formação complementar sobre o NASF por iniciativa própria, e citaram cursos oferecidos pela Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNASUS), Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e Telessaúde.

De modo geral, percebeu-se uma ausência de políticas articuladas de EPS na maioria dos municípios investigados. Embora algumas ações pontuais de educação continuada tenham sido citadas, não foi possível identificar nada que apontasse na direção de uma estratégia político-pedagógica, mas somente tímidas tentativas de abordagem de algumas demandas surgidas, envolvendo algumas categorias profissionais e sem a participação dos usuários. Tais ações variaram bastante entre os municípios, de acordo com a composição e permanência dos membros das equipes, variações das políticas partidárias, e com o interesse de cada gestão municipal.

Entretanto, apesar das poucas ações de preparação para o trabalho relatadas por alguns entrevistados, todos reconheceram a importância e necessidade do desenvolvimento de ações de Educação Permanente em Saúde para o desenvolvimento do trabalho no NASF e para promover mudanças nos diferentes pontos da rede. Reconheceram que as ações de EPS eram fundamentais para empreender algumas mudanças na lógica de atendimento em SM pelos profissionais do NASF, possibilitando-se a passagem de um foco exclusivo em atendimentos individuais para um foco voltado também para a promoção à saúde e trabalho com grupos. Avaliaram que era necessário ampliar as discussões clínicas de casos e identificaram a necessidade de ações de educação em saúde voltadas tanto para os profissionais quanto para os usuários, pois existiam dificuldades de todos para incorporar novos conceitos, mudanças tecnológicas e mudanças no processo de trabalho.

Segundo os entrevistados, o NASF poderia auxiliar mais tanto no atendimento que os profissionais da ABS realizavam, por meio do apoio matricial e da clínica ampliada, quanto na articulação com o CAPS. Afirmaram que o NASF representava uma ferramenta importante na mudança da lógica de intervenções em SM, fazendo uma ponte entre ela e a ABS e melhorando o atendimento nessa área. Reconheciam a potência do NASF para ampliar as possibilidades de atenção para a população e melhorar o planejamento de ações na área; para promover um trabalho compartilhado; para o estabelecimento de parcerias e ações intersetoriais.

Identificaram que um grande desafio para o cuidado em SM na ABS era o preconceito em relação aos sujeitos em sofrimento psíquico, compartilhado inclusive pelos profissionais de saúde e que se expressava na dificuldade em lidar com as queixas clínicas desses usuários:

Os profissionais da ABS deixam de visitar o paciente ou de marcar consulta para exames de rotina porque resume as demandas desses pacientes à renovação de receita (S9).

Esse paciente tá com uma queixa clínica, mas aí leva pro lado: não, tadinho, que ele tem problema psiquiátrico, isso né nada não. Não! Pera aí. Ele tem um corpo físico também, né, então essa queixa dele tem que ser escutada, tem que ser analisada, às vezes ele precisa de um exame (S3).

No entanto, destaca-se que a maioria dos entrevistados não se percebia como participante ativo da EPS, tampouco a dimensão pedagógica do NASF em seu papel na transformação das práticas em SM na ABS. A maioria deles acreditava que o matriciamento não estava acontecendo exclusivamente por um fator externo faltante, seja pela falta de profissionais; de condições de trabalho; de articulação entre os profissionais; mas especialmente pelo não oferecimento de ações de EPS pelos diferentes níveis de gestão em saúde para o próprio NASF.

Em relação à articulação da rede, percebeu-se que não havia a adoção de estratégias facilitadoras da continuidade do cuidado em SM, bem como das interconexões entre seus pontos de atenção. Um dos entrevistados, que havia trabalhado no CAPS anteriormente ao NASF, relatou:

[...] pra você ter ideia como as coisas em rede não funcionam muito bem né, eu trabalhando no CAPS... nós não tínhamos muito contato, conhecimento do trabalho do NASF...” [...] “...e eu vejo nesses quatro anos que estou lá dentro, nós ainda estamos batendo cabeça, quebrando cabeça, tentando descobrir os caminhos do NASF. (S10)

A maioria dos entrevistados avaliou que a política de SM na região era incipiente, não sistematizada e desarticulada. Afirmaram existir uma grande demanda em SM nos seus municípios, e relataram que os usuários não eram atendidos adequadamente, havendo necessidade de melhorar o fluxo para o acolhimento das demandas e os encaminhamentos para a atenção especializada. Os relatos descreveram que os serviços que compunham a RAPS se encontravam fragmentados e sem organização entre si. As atividades vinculadas ao atendimento em SM estavam sendo desenvolvidas de forma isolada, setorizada, sem interação e comunicação. Afirmaram ainda que a sistematização das informações em saúde era muito precária, impossibilitando um diagnóstico das demandas do território e um planejamento das ações em SM.

De forma geral, os principais problemas da RAPS mencionados pelos entrevistados estavam relacionados à falta de compartilhamento e integração dos serviços e dos profissionais e, especialmente, dificuldades na articulação entre NASF, eSF e CAPS. Destacaram o problema da ausência de discussões de caso entre os serviços e a desarticulação entre a saúde e outras áreas. Muitos entrevistados mencionaram que os problemas enfrentados na articulação da RAPS poderiam estar relacionados ao fato de que a rede era recente, com pontos falhos e muito burocrática, conforme exemplificado na fala a seguir:

Ela muita das vezes é muito burocrática, ela existe, mas às vezes ela tende a falhar em alguns pontos. (S9)

Relataram que a relação eSF – NASF – CAPS possuía peculiaridades conforme o município; no entanto, de forma geral, a relação dos profissionais da eSF com o CAPS apresentava dificuldades. A maioria dos municípios não recebia apoio matricial do CAPS e, muitas vezes, os encaminhamentos não eram aceitos, com alegação que os pacientes “não tinham perfil para frequentar o CAPS” (S5). Alguns profissionais afirmaram que o CAPS funcionava numa lógica biomédica sem compartilhamento de saberes, e que só aceitava pacientes em crise. “...impressão de que somente o paciente que está em surto pode frequentar o CAPS” (S5). A falta de comunicação e de abertura do CAPS acabava fazendo com que a eSF procurasse outras alternativas para os casos.

Discussão

Neste estudo foram identificadas várias dificuldades que são convergentes com os achados do estudo de revisão de Treichel et al. (2019), que identificaram impasses e desafios para consolidação e efetividade do apoio matricial na ABS por meio do NASF. Considerando a produção científica nacional, os autores abordaram os 10 anos da instituição do NASF em seu papel de vetor do apoio matricial nas redes de saúde, encontrando um conjunto de obstáculos que acompanha a história de sua implantação. Esses obstáculos foram reunidos em domínios que envolvem temas afins e foram classificados como: estruturais, subjetivos e culturais; decorrentes do excesso de demanda e da carência de recursos; epistemológicos, políticos e de comunicação. Considerando o conjunto de desafios identificados pelos 11 profissionais de SM dos NASF, elementos relacionados a todos esses tipos de obstáculos estiveram presentes. Essas dificuldades são convergentes também com os resultados da revisão de Mazza et al. (2020), demonstrando o impacto destas como obstáculos ao trabalho compartilhado e a construção e fortalecimento de uma política de SM na ABS.

Em relação ao modelo assistencial, foi possível perceber que as queixas de carga horária insuficiente e problemas no manejo da demanda em SM nos municípios investigados estavam relacionadas também à lógica de atendimentos individualizados. O modelo biomédico tradicional, cuja lógica é centrada no atendimento individual e na figura do médico, tem baixa capacidade para atender às necessidades comunitárias. Em contrapartida, o modelo proposto pelo NASF, que preconiza o apoio matricial, a clínica ampliada e diversas outras ferramentas que propiciam potência e resolutividade ao atendimento, tornam possível que a vultosa demanda em saúde mental geralmente imposta aos serviços da ABS seja atendida de forma mais efetiva. Dessa forma, não se pode endereçar o problema da carga horária apenas pensando em sua ampliação, sem que se pensem, também, propostas de mudanças no modelo de assistência. A despeito disso, a literatura aponta que os profissionais da ESF continuam desenvolvendo um modelo assistencial biomédico de estrutura curativa, cuja centralidade está na doença e na medicalização. A justificativa para a adoção desse modelo está relacionada a sentimentos de angústia, impotência e despreparo para a realização das ações de cuidado em SM, o que compromete a autonomia desses profissionais e a resolutividade do serviço (LANCMAN ., 2013LANCMAN, S. et al. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev. Saúde Pública, v. 47, n. 5, p. 968-975, out. 2013.; ROTOLI, 2019ROTOLI, A. et al. Saúde mental na Atenção Primária: desafios para a resolutividade das ações. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, e20180303, 2019.).

É importante destacar que a mudança do modelo assistencial se faz à medida em que avança o apoio matricial que pressupõe o compartilhamento dos casos e corresponsabilização pelo cuidado dos usuários (FAGUNDESFAGUNDES, G. S.; CAMPOS, M. R.; FORTES, S. L. C. L. Matriciamento em saúde mental: análise do cuidado às pessoas em sofrimento psíquico na atenção básica. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 6, p. 2311-2322, 2021.et al., 2021). Essas possibilidades de mudança esbarram, no entanto, em aspectos como a fragmentação ou baixa integração da rede; a dificuldade de fluxo entre os serviços e a alta rotatividade profissional que impedem o vínculo entre os trabalhadores e o território, fazendo com que se perpetue a lógica dos encaminhamentos (TREICHEL et al, 2019).

A complexidade da articulação entre NASF e eSF, bem como os desafios circunscritos ao trabalho compartilhado e à construção do cuidado em SM na ABS exigem tempo e investimento nas condições concretas de trabalho que permitam a construção de novos modos de fazer em saúde. A literatura aponta que a sobrecarga da eSF e a desarticulação da RAPS foram identificados como fatores que contribuem para que haja uma pressão sobre os profissionais do NASF para que atuem na perspectiva assistencial e ambulatorial. Além disso, pesquisas identificaram expectativas dirigidas ao NASF como uma instância que viria a suprir um vazio assistencial, fazendo com que as equipes de ESF estabeleçam uma prática de repasse dos casos complexos, especialmente os casos de SM ao NASF, o que dificulta e inviabiliza o desenvolvimento de uma atuação compartilhada e corresponsabilizada entre as duas equipes. (LANCMAN ., 2013LANCMAN, S. et al. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev. Saúde Pública, v. 47, n. 5, p. 968-975, out. 2013.; TREICHEL et al, 2019). Situação semelhante foi anunciada pelos profissionais dos NASF entrevistados deste estudo, sob a forma da pressão pelo acolhimento da demanda de atendimentos individualizadas e pelas dificuldades relacionadas ao isolamento profissional para lidar com as demandas de SM e para a construção de novas formas de trabalho na ABS que envolvam a superação do modelo biomédico e uma atuação em SM compartilhada.

Cabe destacar que o desafio de construção de trabalho compartilhado não é tarefa simples, uma vez que envolve tanto a articulação entre os próprios integrantes da equipe do NASF, quanto a articulação destes com outras equipes para a produção de novos modos de fazer em saúde. Esse processo implica ainda em transformação e reinvenção dos próprios modos de fazer de cada profissional, muitas vezes formados a partir dos modelos de cuidado individualizados (LANCMAN ., 2013LANCMAN, S. et al. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev. Saúde Pública, v. 47, n. 5, p. 968-975, out. 2013.; LEITE; OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2016LEITE, D. F.; OLIVEIRA, M. A. C.; NASCIMENTO, D. D. G. O Trabalho do Núcleo de Apoio à Saúde da Família na perspectiva dos trabalhadores. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 15, n. 3, p. 553-560. Jul/set. 2016.; NASCIMENTO; CORDEIRO, 2019NASCIMENTO, A. G.; CORDEIRO, J. C. Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica: Análise do Processo de Trabalho. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, e0019424, 2019.; TREICHEL et al 2019). É possível depreender que a complexidade desse processo de transformação e reinvenção dos próprios modos de fazer era parte da realidade de muitos dos entrevistados deste estudo, uma vez que o tempo de graduação da maioria pode guardar maior relação com modelos de atuação ancorados no modelo biomédico.

Em relação às dificuldades relatadas pelos participantes desta pesquisa a respeito do manejo de situações de crise é relevante mencionar que uma investigação realizada sobre a implantação da RAPS na mesma região abordada pelo presente estudo apontou a incipiente implantação de serviços de atenção psicossocial que ofereçam funcionamento 24h; insuficiência de desenvolvimento de ações compartilhadas entre as eSF, NASF e CAPS, além do maior espaço que serviços como os Hospitais Psiquiátricos têm ganhado dentro da RAPS. Este estudo constatou dificuldade das equipes da ABS em absorver os casos mais graves incluindo os momentos de crise na medida que, na maioria das vezes, não existe retaguarda secundária (CAPS) e terciária (LHG – Leitos em Hospital Geral e leitos noites em CAPS III) (GAMA ., 2020GAMA, C. A. P. et al. A implantação da rede de atenção psicossocial na Região Ampliada de Saúde Oeste de Minas Gerais-BR. Cad. saúde colet., Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 278-287, jun. 2020.). Este problema foi identificado também em outros estudos e pode ser considerado um dos grandes desafios a ser superado pela política de saúde mental na medida em que a melhora na assistência a esses pacientes evita a internação e, além dos benefícios no tratamento do paciente grave, diminui o custo do sistema. A superação desta questão inclui mais investimento em serviços 24 horas como CAPS III com leito noite; mais proximidade entre APS e CAPS levando em conta que muitas vezes o CAPS pertence a Região de Saúde e a valorização das práticas de EPS que a partir dos casos presentes no território pode criar condições para que profissionais de todos os níveis de atenção saibam como fazer o manejo da crise dentro da RAPS (BRASIL 2016bBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPES. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde Mental no SUS: Cuidado em Liberdade, Defesa de Direitos e Rede de Atenção Psicossocial. Relatório de Gestão 2011-2015. Ministério da Saúde, Brasília. Maio, 2016b, 143 p.; ZEFERINO ., 2016ZEFERINO, M. T. et al. Percepção dos trabalhadores da saúde sobre o cuidado às crises na Rede de Atenção Psicossocial. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, jul-set. 2016.; GAMA ., 2020GAMA, C. A. P. et al. A implantação da rede de atenção psicossocial na Região Ampliada de Saúde Oeste de Minas Gerais-BR. Cad. saúde colet., Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 278-287, jun. 2020.).

Por fim, apesar de todas as dificuldades identificadas pelos participantes deste estudo em relação aos desafios do NASF na construção de uma política de SM na ABS é fundamental ressaltar que estes reconheceram as conquistas da Saúde Pública e da Atenção Psicossocial no cuidado em SM. Do conjunto de elementos brevemente elencados, se entrecruzam aspectos políticos, de financiamento, de envolvimento da população e da necessidade de desenvolver formas de resistência à mercantilização da saúde. Diante das dificuldades apresentadas, são necessários investimentos maciços na formação de profissionais de saúde e a EPS representa o caminho necessário para a transformação das práticas cotidianas dos trabalhadores do SUS em diálogo permanente com a população e na relação que se constrói e reconstrói com o território (TREICHEL et al., 2019).

No entanto, mesmo que os participantes deste estudo tenham reconhecido a importância das propostas de EPS, não se perceberam como promotores dessas ações. Assim, conforme preconizado pelo Caderno 39, ressalta-se a necessidade do desenvolvimento da dimensão do aprendizado no e para o trabalho, assim como o desenvolvimento da dimensão pedagógica presente na prática clínica cotidiana dos profissionais do NASF, em sua potência no exercício EPS, envolvendo o contato com as equipes ABS, seja nas reuniões da equipe, seja nas ações de matriciamento (BRASIL, 2014). As dificuldades relatadas pelos entrevistados, tanto em relação à organização e condições de trabalho, quanto ao modelo assistencial e desafios na construção da articulação em rede, poderiam e deveriam ser abordadas nos espaços de EPS, conforme preconizam diversas propostas colocadas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. 152 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Caderno de Atenção Básica, n. 27).; BRASIL, 2014).

Pode-se constatar, ademais, que a ausência de uma agenda sistematizada para ações de EPS nos municípios que compuseram esse estudo é compatível com estudos que apontam a insuficiência dos momentos de formação (ALVAREZ; VIEIRA; ALMEIDA, 2019ALVAREZ, A. P. E.; VIEIRA, A. C. D.; ALMEIDA, F. A. Núcleo de Apoio à Saúde da Família e os desafios para a saúde mental na atenção básica. Physis, Rio de Janeiro, v. 29, n. 4, e290405, 2019.; ARAÚJO; NETO, 2019ARAÚJO, C. B.; NETO, J. L. F. Apoio matricial do NASF: uma revisão sistemática de literatura. Psicologia em Revista, v. 25, n. 2, p. 626-646, maio 2019.; CHAZAN ., 2019CHAZAN, L. F. et al. O apoio matricial na Atenção Primária em Saúde no município do Rio de Janeiro: uma percepção dos matriciadores com foco na Saúde Mental. Physis, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, e290212, 2019.; TREICHEL et al., 2019; MAZZA ., 2020MAZZA, D. A. A. et al. Aspectos macro e micropolíticos na organização do trabalho no NASF: o que a produção científica revela? Physis, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, e300405, 2020.) e são um indício de que, embora a implantação do NASF tenha sido efetuada, não foram fornecidas as condições necessárias para seu funcionamento adequado. Nessa perspectiva, destacam-se as discussões que apontam que as condições de implantação do NASF não se fazem sem a reorganização do processo de trabalho em saúde mediante o compartilhamento de saberes e práticas entre os profissionais e os usuários. Somente a partir do desenvolvimento da dimensão pedagógica presente no cotidiano dos profissionais de saúde é possível reinventar as práticas conforme as demandas e peculiaridades de cada situação. Nessa perspectiva, o apoio matricial, a clínica ampliada e os projetos terapêuticos individuais e coletivos são as formas para construir parcerias entre as equipes, produzir novas formas de olhar para a realidade e propor ações que possam transcender a lógica biomédica (LANCMAN ., 2013LANCMAN, S. et al. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Rev. Saúde Pública, v. 47, n. 5, p. 968-975, out. 2013.; BARROS ., 2015BARROS, J. O. et al. Estratégia do apoio matricial: a experiência de duas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) da cidade de São Paulo, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 9, p. 2847-2856, set. 2015.).

Entende-se que a não inclusão de usuários, gestores ou outros profissionais da ABS na pesquisa limitam a capacidade analítica do cenário estudado e devem ser exploradas em pesquisas futuras, entretanto a investigação da percepção dos profissionais do NASF de uma macrorregião do estado de MG pôde evidenciar alguns desafios práticos vivenciados na atenção em saúde mental na ABS e as potencialidades da proposta da educação permanente em saúde nessa área. Evidenciou-se ainda a necessidade de investimentos, por parte de diferentes esferas da gestão em saúde pública, em condições concretas para mudar a organização do trabalho desses profissionais – condições sem as quais as políticas públicas efetivas em SM perdem sua potência e retrocedem.

Considerações finais

Este estudo possibilitou o mapeamento de diversos desafios que se colocam no processo de implantação e funcionamento do NASF e da RAPS, e da atuação dos profissionais de SM em municípios da macrorregião Oeste de Minas Gerais. Tais fatores contribuem para a manutenção de uma lógica biologicista e mercantilista, centrada na clínica individual e que dificulta o desenvolvimento de um modelo que preconize ações intersetoriais e interdisciplinares e cujo escopo seja a construção de uma clínica coletiva. Entretanto, para viabilizar mudanças no processo de trabalho em saúde que ampliem são necessárias não somente uma mudança de perspectiva dos profissionais e usuários, mas também a adoção e a valorização de estratégias de gestão relacionadas à Educação Permanente em Saúde, além de adequadas condições de trabalho aos profissionais.

No entanto, o atual cenário coloca vultosos desafios para que os avanços no atendimento em SM e mudanças nas práticas profissionais se sustentem e possibilitem avanços na consolidação do trabalho interdisciplinar e intersetorial, no matriciamento ou integração da rede na realidade dos municípios aos quais os entrevistados estavam vinculados. Diante das mudanças na configuração e financiamento da ABS e das políticas de SM introduzidas recentemente no Brasil, será necessária uma avaliação cuidadosa dos rumos da atenção em SM no país.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2021
  • Revisado
    15 Dez 2021
  • Aceito
    05 Jul 2022
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