Impactos da pandemia da Covid-19 sobre o puerpério: interações e dinâmicas de um grupo de apoio virtual

Impacts of the Covid-19 pandemic on the puerperium: interactions and dynamics of a virtual support group

Renatha Celiana da Silva Brito José Jailson de Almeida Junior Anna Cecília Queiroz de Medeiros Sobre os autores

Resumo

Este estudo buscou compreender o impacto da pandemia da Covid-19 sobre o puerpério a partir de interações em um grupo virtual. Pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, que analisou um grupo de nove mulheres usuárias dos serviços básicos de saúde de diferentes Estratégias Saúde da Família do município de Currais Novos-RN, Brasil. O corpus resultado das interações foi submetido a Análise da Classificação Hierárquica Descendente do software IRAMUTEQ, e a análise de conteúdo, segundo Bardin. A dimensão analisada foi denominada de Assistência à Saúde (25,5% das unidades de contexto elementar). No grupo analisado, a pandemia culminou em fragilização e precarização nos fluxos de atendimento, resultando em dificuldades encontradas no acesso a serviços básicos da rede pública de saúde. As participantes revelaram que o suporte virtual proporcionou vínculos de amizade e fortaleceu a rede de apoio necessária ao enfrentamento das dificuldades do puerpério, pela troca de experiências.

Palavras-Chave:
Puerpério; Apoio social; Apoio virtual; Infecção pelo coronavirus; Covid-19

Abstract

This study seeks to understand the impact of the pandemic on the puerperium from the point of view of interactions in a virtual group. This study presents research with a qualitative approach, an exploratory character and analyzed a group composed of 9 women users of basic health services of different Family Health Strategies in the Municipality of Currais Novos-RN, Brazil. The corpus resulting from the interactions was prepared, revised, corrected and, subsequently, submitted to the Descending Hierarchical Classification Analysis of the IRAMUTEQ software, followed by content analysis according to Bardin. The dimension now analyzed was called Health Care, comprising 25.5% of units of elementary context. In the analyzed group, the covid-19 pandemic culminated in weak and precarious care flows, resulting in a series of difficulties that mothers encountered in accessing basic public health services, as well as the need to develop other strategies to respond to this scenario. In this perspective, the participants revealed that the virtual support provided bonds of friendship and strengthened the support network necessary to face the difficulties of the puerperium based on the exchange of experiences.

Keywords:
Puerperium; Social support; Virtual support; Infection from coronavirus; Covid-19

Introdução

A pandemia da Covid-19, causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2), teve seu primeiro caso confirmado no Brasil em 16 de fevereiro de 2020 (WHO, 2020), gerando um cenário epidemiológico de medos e incertezas que levou a população mundial a desenvolver estratégias de enfrentamento desta realidade, implicando novos hábitos e formas de socialização (WANG ., 2020WANG, C. et al. Immediate psychological responses and associated factors during the initial stage of the 2019 coronavirus disease (COVID-19) epidemic among the general population in China. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 17, n. 5, p. 1729, 2020.). No entanto, os impactos econômicos, culturais, históricos e políticos da pandemia não repercutem igualmente em todos os grupos populacionais e estágios de vida (LIMA; MORAES, 2020LIMA, A.L.M.; MORAES, L.L. A pandemia de covid-19 na vida de mulheres brasileiras: emergências, violências e insurgências. Inter-Legere, v. 3, n. 28, 2020.).

Grávidas e puérperas compõem grupo vulnerável e com fator de risco para síndromes gripais e, por isso, devem redobrar os cuidados com a saúde (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Manual de Recomendações para a Assistência à Gestante e Puérpera frente à Pandemia de Covid-19. Brasília: Ministério da Saúde, 2020.). Nesse sentido, a restrição no acesso aos serviços (necessária em decorrência do distanciamento social) pode implicar em carências assistenciais e nos aspectos emocionais nesta fase da vida que, naturalmente, é marcada por desafios físicos e biopsicossociais, ocasionando, em potencial, prejuízos ao binômio mãe-filho. Portanto, no cenário da maternidade, os impactos da pandemia podem ser muito incisivos (ALFARAJ; AL-TAWFIQ; MEMISH, 2019ALFARAJ, S. H.; AL-TAWFIQ, J. A.; MEMISH, Z. A. Middle East Respiratory Syndrome Coronavirus (MERS-CoV) infection during pregnancy: Report of two cases & review of the literature. Journal of Microbiology, Immunology, and Infection, v. 52, n. 3, p. 501-503, 2019.).

Um desses possíveis prejuízos é a fragilização do apoio social ou rede de apoio, definido por Brito e Koller (1999BRITO, R. C.; KOLLER, S. H. Desenvolvimento humano e redes de apoio social e afetivo. In: CARVALHO, A. M. (org.). O mundo social da criança: natureza e cultura em ação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.) como um conjunto de fatores e de pessoas significativas que compõem elos de relacionamentos recebidos e percebidos pelo indivíduo enquanto fonte de apoio, envolvendo diferentes dimensões como o conforto, a assistência e a informação. Por isso, tais construtos têm sido objeto de estudos nos processos de enfrentamento (especialmente comunitário, que envolve um problema/experiência comum em um grupo social), buscando avaliar o impacto positivo ou negativo desses elos na saúde física e emocional (YUNES; GARCIA; ALBUQUERQUE, 2007YUNES, M. A. M.; GARCIA, N. M.; ALBUQUERQUE, B. de M. Monoparentalidade, pobreza e resiliência: entre as crenças dos profissionais e as possibilidades da convivência familiar. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 20, n. 3, p. 444-453, 2007.; LYONS ., 1998LYONS, R. F. et al. Coping as a Communal Process. Journal of Social and Personal Relationships, v. 15, n. 5, 1998.).

Quando se trata de gestantes e puérperas, alguns estudos mostram que, cada vez mais, estas mulheres estão sendo isoladas de sistemas de apoio tradicionais (SAYAKHOT; CAROLAN-OLAH, 2016), levando-as a buscar apoios em fóruns e comunidades online, destacando a busca por informações sobre a maternidade e compartilhamento de experiências (GLESSON; CRASWELL; JONES, 2019GLESSON, D. M.; CRASWELL, A.; JONES, C. M. Women’s use of social networking sites related to childbearing: An integrative review. Woman Birth, v. 3, n. 4, p. 294-302, 2019.), em que o apoio social contínuo parece ser capaz de diminuir possíveis sofrimentos em torno da gravidez e do puerpério, proporcionando melhoria na saúde e uma melhor experiência nesta fase da vida (ROMAGNOLO ., 2017ROMAGNOLO, A. N. et al. A família como fator de risco e de proteção na gestação, parto e pós-parto The family as a risk fator and protection during pregnancy and post partum. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 38, n. 2, p. 133-146, 2017.).

Sendo assim, as interações online em grupos de enfrentamento podem ser uma alternativa aos grupos tradicionais face a face (JOHNSON, 2015JOHNSON, S. A. “Intimate mothering publics”: comparing face-to-face support groups and Internet use for women seeking information and advice in the transition to first-time motherhood. Culture Health and Sexuality, v. 17, n. 2, p. 237-51, 2015.), caracterizando-se, portanto, como uma estratégia de relativa facilidade de implantação e de baixo custo (BRIDGES, 2016BRIDGES, N. The faces of breastfeeding support: experiences of mothers seeking breastfeeding support online. Breastfeed Rev J., v. 24, p. 1, p. 11-20, 2016.; 2018BRIDGES, N.; HOWELL, G.; SCHMIED, V. Exploring breastfeeding support on social media. Breastfeed Rev J., v. 13, p. 22, 2018.), considerado, ainda, como um universo marcado pelo dinamismo, fluidez e imediatismo de como a comunicação acontece e como os vínculos são estabelecidos e fortalecidos, com dinâmica própria e influenciando o campo social de seus usuários (LIMA ., 2016LIMA, N. L. et al. As redes sociais virtuais e a dinâmica da internet. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, v. 9, n. 1, p. 90-109, 2016.).

Assim, considerando as adaptações de relações e modos de conviver que foram necessárias em decorrência da condição sanitária enfrentada pelo Brasil e pelo mundo, o presente estudo tem o objetivo de compreender o impacto da pandemia da Covid-19 no puerpério de mulheres acompanhadas na Atenção Primária em Saúde (APS), através da integração de um grupo de apoio virtual no WhatsApp e identificar sua efetivação.

Métodos

Este é um estudo de abordagem qualitativa e exploratória sobre as interações de um grupo de apoio virtual no WhatsApp, composto por mulheres de idade entre 18 e 35 anos, usuárias dos serviços de APS de diferentes equipes da Estratégias Saúde da Família (ESF) do Município de Currais Novos, Rio Grande do Norte, Brasil.

Inicialmente, foi realizado o levantamento da população elegível a participar do estudo, a partir do perfil de atendimentos de pré-natal fornecido pelos profissionais de saúde integrantes das equipes de ESF. Em seguida, durante a espera para os atendimentos na Unidade Básica de Saúde (UBS), as participantes foram abordadas e convidadas à aplicação de um questionário estruturado, com o objetivo de avaliar a adequação aos seguintes critérios de inclusão: estar realizando o pré-natal na APS do município de Currais Novos-RN; estar com as consultas de pré-natal em dia; estar no terceiro trimestre gestacional; estar em uma gestação com risco considerado habitual; ser alfabetizada; ser casada ou estar em uma união estável; ter acesso a internet por meio de smartphone; não ter participado anteriormente de nenhum grupo de convivência para gestantes, seja na UBS ou em centros de referência no município; e não ter histórico de utilização de medicamentos psicotrópicos ou diagnóstico de depressão.

Adicionalmente, também foi aplicado o instrumento de rastreio Self-Report Questionnaire-20 (SRQ-20) (MARI; WILLIAMS, 1986MARI, J. D. J.; WILLIAMS, P. A Validity Study of a Psychiatric Screening Questionnaire (SRQ-20) in Primary Care in the city of Sao Paulo. British Journal of Psychiatry, v. 148, p. 23, 1986.; WHO, 1950), visando não incluir no grupo do estudo mulheres identificadas com transtornos mentais comuns (TMC). Durante essa fase da pesquisa, as mulheres identificadas com TMC foram encaminhadas para avaliação psicológica na rede de saúde do município.

Estes critérios foram adotados para que a amostra fosse composta por mulheres que não se conhecessem previamente, mas que tivessem contextos de vida similares, com o objetivo de aumentar as chances de sucesso na interação e diminuir as chances de possíveis vieses. Além disso, como se trata de uma fase da vida que, necessariamente, envolve assistência em saúde, foi necessário que todas as participantes usufruíssem dos serviços públicos, especificadamente no período pré-parto (pré-natal) e pós-parto, contexto em comum a todas elas.

O grupo virtual foi intitulado de “Papo de mãe” e constituído por nove mulheres a partir da 35ª semana gestacional, com idade média de 27 anos. Durante todo o período da coleta de dados a pesquisadora integrou o grupo, mas apenas na condição de observadora e administradora do grupo. Não houve participação de nenhum profissional da APS ou de outros equipamentos de assistência no grupo virtual, pois não era objetivo do estudo propagar informações ou orientações técnicas. Assim, as participantes puderam interagir de forma livre quanto a conteúdos e formatos (seja imagens, áudios, vídeos e textos), sem prazo estipulado de tempo diário para se relacionarem e sem intervenção da pesquisadora.

As interações entre as participantes através do grupo virtual, objeto deste estudo, foram acompanhadas durante cinco meses (10 de janeiro a 30 de junho de 2020), perpassado pelo início da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), que se deu por volta de fevereiro de 2020. Desde a sua concepção, um dos objetivos da pesquisa era explorar possibilidades de constituição e efetivação de redes de apoio virtual no puerpério, o que levou a criação do “Papo de Mãe”. Porém, o contexto sanitário inerente a pandemia por Covid-19 revestiu o grupo virtual, que já estava em andamento, de uma nova importância, além de impactar sobremaneira em sua dinâmica.

Cabe explicitar que os bebês nasceram entre o final de janeiro e início de fevereiro 2020, ou seja, as interações são referentes ao final da gestação e primeiros meses puerperais, início da pandemia. Por fim, apesar de o grupo virtual ter sido iniciado especificamente para realização desta pesquisa, após o período de coleta o grupo permaneceu ativo por decisão e vontade das participantes, que seguem interagindo até o momento da escrita deste artigo.

Ao final do mês de junho, período determinado como fim da coleta, foi realizado o download das interações (corpus) dos cincos meses anteriores e o material foi preparado para a análise, procedendo-se a codificação numérica das participantes, revisão e correção do texto para a língua portuguesa, bem como transcrição de áudios, imagens e vídeos. Em seguida, o corpus foi examinado via Análise de Classificação Hierárquica Descendente (ACHD), sendo utilizado para tanto o software IRAMUTEQ. Esta análise mostra o contexto em que as classes de palavras estão inseridas.

Posteriormente, a partir dos resultados da ACHD, o material foi submetido as etapas de pré-análise, exploração e interpretação dos conteúdos resultantes, de acordo com Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70. 2011.), que considera a análise de conteúdo uma técnica que pode ser aplicada a diversos perfis de discursos, buscando compreender as características por trás dos determinados fragmentos. Dessa maneira, o corpus foi organizado em dimensões, e cada uma delas agrupou suas respectivas interações e contextualizações. Na perspectiva de Bardin, a análise de conteúdo requer esforços duplicados quanto ao entendimento da intenção de comunicar e a ampliação da capacidade de olhar para além do fragmento textual, buscando outros significados para o que foi dialogado.

Os aspectos éticos foram seguidos conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e o estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o protocolo CAAE de nº: 20150819.8.0000.5568. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esta pesquisa é resultado de uma dissertação de mestrado em Saúde Coletiva, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que deu origem a um conjunto de artigos de diferentes aspectos.

Resultados e Discussão

A ACHD indicou uma convergência de características em torno de três temas, sendo a classe 2 – referente a “Assistência à saúde” e totalizando 25,5% das unidades de contexto elementar (UCE) do corpus total – o objeto de interesse do presente estudo, cujo Dendrograma está delineado na Figura 1.

Figura 1
Dendograma

A assistência à saúde da mulher e da criança foram especialmente levantadas em discussão nesta classe de UCE, uma vez que a condição epidemiológica e sanitária em decorrência do período de pandemia da Covid-19 perpassou o período de coleta, sendo, portanto, assuntos que encabeçaram as dimensões de “atendimento” e “unidade básica de saúde”: “Estou muito aflita com essa pandemia” (participante 8), “Eu também estou me sentindo muito ansiosa com essa situação” (participante 7), “Eu estou bastante preocupada, até comentei com meu marido” (participante 1).

A falta de estabilidade em suas condições de vida, as tensões financeiras incidentes na família e a falta de eventos da vida social devidos às restrições são as principais preocupações identificadas entre as mulheres puérperas em um estudo realizado por Eleftheriades e seus colaboradores na Grécia (2022ELEFTHERIADES, M. et al. Physical Health, Media Use, Stress, and Mental Health in Pregnant Women during the COVID-19 Pandemic. Diagnostics, v. 12, p. 1125, 2022.), corroborando com o nosso estudo. Eles também observaram que puérperas que se preocupavam com a Covid-19 eram mais propensas a relatar níveis mais altos de estresse, assim como aumento dos sintomas de ansiedade e alterações de humor.

Diante deste cenário, foi possível identificar uma descontinuidade nos fluxos de atendimentos na APS, que se revelou a partir das dificuldades que as mães encontraram em acessar serviços básicos, como vacinação dos bebês e consultas de rotina pós-parto na área de pediatria e ginecologia, o que gerou preocupações e angústias. As dimensões de “vacinas” e “médico pediatra”, incluídas no Dendograma da classe, foram serviços de assistência diretamente afetados: “Essa situação da pandemia vai atrasar todas as vacinas dos nossos bebês” (participante 7). Ao mesmo tempo em que a pandemia requer o isolamento social físico para prevenção e controle na transmissão da doença (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Manual de Recomendações para a Assistência à Gestante e Puérpera frente à Pandemia de Covid-19. Brasília: Ministério da Saúde, 2020.), ela proporciona várias limitações de acessos fundamentais à saúde das crianças e puérperas, que podem comprometer o desenvolvimento correto das crianças e prevenir de outras patologias características desse ciclo da vida, sendo um dos maiores motivos de preocupação das mães, [...] nossos bebês precisam das vacinas, deveria ter um agendamento para ninguém ser prejudicado” (participante 2).

“Na unidade básica de saúde do meu bairro os atendimentos de crescimento e desenvolvimento estão suspensos, está sendo atendimento exclusivo para os suspeitos de coronavírus”, disse a participante 4, que buscou alternativas inseguras sobre uma situação clínica em que sua filha se encontrava: “Sei que não é o recomendado, mas pesquisei no google hoje para tentar descobrir o que minha bebê tem, baseado nos sintomas dela, já que fui na UBS semana passada para marcar para o pediatra e os atendimentos estão suspensos”. [...] Estão focando muito no coronavírus e esquecendo as outras doenças”, desabafou a participante 5. Estes relatos sugerem uma fragilidade existente na APS, agora evidenciada pela situação de pandemia, sobre a capacidade de resposta em termos de reorganização nos fluxos de atendimentos, no sentido de suprir necessidades básicas de saúde da população. Sarti e colaboradores (SARTI ., 2020SARTI, T.D. et al. Qual o papel da Atenção Primária à Saúde diante da pandemia provocada pela Covid-19? Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília. 2020.) apontam que é necessário aprender com a crise, e que a APS precisa assumir, de fato e com urgência, o protagonismo de ordenadora do cuidado, especialmente voltada à reorganização dos fluxos de usuários nos serviços.

Devido ao distanciamento social necessário, cada UBS disponibilizou um contato de WhatsApp para que as demandas pudessem passar por uma triagem e agendamento prévio através do meio virtual, segundo a classificação de risco. Esta alternativa foi pensada enquanto uma maneira de auxiliar na superação de barreiras impostas pelo distanciamento físico, visando facilitar o contato entre serviço e comunidade, e proporcionar comunicação direta e contínua entre os usuários e os serviços de saúde. Vale lembrar que esse contato disponibilizado pelo serviço não tem relação com o grupo acompanhado no presente estudo.

No entanto, tendo em vista que a oferta de serviço foi focada nas demandas voltadas à Covid-19, esse recurso, que deveria ser bastante utilizado neste período, parece ter encontrado dificuldades de operacionalização. Isso foi possível de ser percebido a partir das interações entre as mães que demonstram mudanças de opiniões relativas ao período gestacional e puerperal sobre a qualidade e a cobertura dos serviços de saúde, uma vez que o pré-natal e parto foram realizados antes da pandemia, sendo no puerpério onde as dificuldades e insatisfações sobre os serviços e, principalmente no sucesso de acesso, começaram a surgir, como vacinação e consultas pediátricas de rotina.

Além de uma ferramenta de troca de informações e vivências entre indivíduos em contextos semelhantes (como é o caso do grupo “Papo de Mãe” que por si só caracteriza-se como uma potente rede de apoio), apesar de não ter sido objetivo específico desse estudo utilizar as redes sociais como meio para propagação de informações técnicas, não podemos deixar de enfatizar que elas podem, inclusive, ser utilizadas como Objetos Virtuais de Aprendizagem (OVAs), definido como qualquer recurso digital que possa ser utilizado como apoio no processo de ensino-aprendizagem para diversos temas e públicos, inclusive para promoção de saúde (PACHECO; AZAMBUJA; MONAMIGO, 2018PACHECO, K. C.; AZAMBUJA, M. S.; MONAMIGO, A. W. The construction of learning objects on communicable diseases for community health agents. Rev Gaucha Enferm., v. 38, n. 4, e20170073, 2018.).

Nesse sentido, para o dinamismo e fortalecimento de vínculo entre comunidade e serviços de saúde, principalmente em condições sanitárias que exigem distanciamento social, esses espaços virtuais podem permitir que as orientações sejam compartilhadas por profissionais de uma forma prática em um formato mais acessível do que os convencionais (PEREIRA NETO ., 2017PEREIRA NETO, A. F. et al. Avaliação participativa da qualidade da informação de saúde na internet: o caso de sites de dengue. Cien Saude Colet., v. 22, n. 6, 2017.). Para isso, além da disponibilidade de um canal on-line de contato, é preciso refletir que tais iniciativas precisam também contemplar um planejamento para sua devida efetivação, no tocante da logística de acompanhamento e resposta às demandas originadas a partir desse elo de contato, ou tal recurso poderá cair em descrédito.

Santiago e colaboradores (2020SANTIAGO, R. F. et al. Avaliação de objeto virtual de aprendizagem sobre pré-natal para adolescentes grávidas na atenção básica. Acta Paul Enferm., v. 33, p.1-12, 2020.) utilizaram a internet para implementar um suporte virtual sobre demanda do pré-natal para adolescentes gestantes, usuárias da atenção básica, e observaram resultados positivos quanto a sua eficácia. Já no estudo realizado por Cabral e seus colaboradores (2020), também realizado através de uma rede social com mulheres no puerpério, porém voltado para os aspectos em torno do aleitamento materno, identificaram através das falas das participantes a necessidade de uma rede de apoio oferecida pelos serviços de saúde que proporcionasse autonomia e reconheciam o meio virtual como uma alternativa viável, corroborando com o nosso estudo. Isso porque as metodologias tradicionais de educação em saúde, como salas de espera presenciais no próprio setor, possuem caráter estritamente informativo e prescritivo, sendo ineficazes para contemplar os desafios da maternidade, por exemplo, relacionados a amamentação, e não oferecendo suporte continuado para superação dessas dificuldades (ALMEIDA; LUZ; UED, 2015ALMEIDA, J. M.; LUZ, S. D.; UED, F. D. Apoio ao aleitamento materno pelos profissionais da saúde: uma revisão de literatura. Rev Paul Pediatr., v. 33, n. 3, p. 356-63, 2015.).

Uma grande preocupação por parte das puérperas foi sobre o início da utilização de métodos contraceptivos após o parto, para retomar as relações sexuais de forma segura e prevenir futuras gestações: “Agora eu preciso me acostumar com o anticoncepcional para não engravidar novamente nem tão cedo” (participante 4). De modo geral, as dúvidas versavam sobre quando iniciar a contracepção, qual método mais indicado (fisiológica e financeiramente falando) e quais os efeitos sobre a amamentação, sendo “anticoncepcional” uma dimensão da classe ora analisada: “Qual o anticoncepcional que você toma?”, “Será que esse é seguro?”, “Tem alguma reação?”, “Vende sem receituário?”, “Pode tomar durante a amamentação?”, “É caro o que você toma?”, “Precisa esperar a menstruação chegar para iniciar o anticoncepcional?”.

Como a participante 2 foi a primeira que iniciou a contracepção, foi ajudando a sanar as dúvidas baseada em sua própria experiência atual. “Muito bom então, vou tomar esse anticoncepcional já que é mais barato, obrigada” concluiu a participante 4 baseada na experiência da colega, sem receber orientação individualizada e técnica vinda de um profissional da saúde, pois não conseguiu acessar o serviço: “Eu iria me informar com o médico pediatra sobre qual o melhor anticoncepcional que não atrapalhasse a amamentação, mas não deu certo, porque os atendimentos estão suspensos” (participante 5).

Essas falas relacionadas a falta de orientação quanto ao uso de métodos contraceptivos revelam a imprescindibilidade de colocar em prática os temas como planejamento familiar e contracepção no acompanhamento de pré-natal, em especial naqueles realizados no último trimestre de gestação, bem como na visita puerperal, como prediz as políticas públicas voltadas à saúde da mulher (ANDRADE ., 2015ANDRADE, R. D.; SANTOS, J. S.; MAIA, M. A. C.; MELLO, D. F. Fatores que repercutem na saúde da criança. Esc Anna Nery, v. 19, n. 1, p. 181-186, 2015.). Outrossim, os profissionais da saúde são considerados como membros importantes para contribuir com redes sociais de apoio à mulher durante a maternidade, principalmente no que diz respeito a um canal prático e de diálogo (CABRAL ., 2020CABRAL, C. S. et al. Inserção de um grupo virtual na rede social de apoio ao aleitamento materno exclusivo de mulheres após a alta hospitalar. Interface (Botucatu), v. 2, e190688 2020.), necessidade evidenciada a partir das dificuldades relatadas pelas participantes em acessar os serviços.

O período pós-parto é, naturalmente, muito desafiador para as mulheres. Todas as descobertas e vivências físicas e emocionais tornam-se algo bastante íntimo e muitas vezes solitário, desencadeando a sensação de que as pessoas que estão ao seu redor nunca entenderão, de fato, tudo que está acontecendo (MARQUES; SOUZA; VERÍSSIMO, 2019). Por sua vez, a pandemia intensificou todos esses sentimentos de medo, angústia e preocupação, aliados à imprevisibilidade sobre a gravidade e controle da doença, e à desinformação a cerca dela, gerando estresse, ansiedade e uma carga emocional muito forte (BITTENCOURT, 2020BITTENCOURT, R. N. Pandemia, isolamento social e colapso global. Rev Espaço Acadêmico, v. 19, n. 221, p. 168-78, 2020.). Nesse contexto, apenas uma outra mãe, também em isolamento, poderia compreender, uma vez que o distanciamento social impediu as atividades presenciais de apoio e socialização.

Um estudo realizado por Wu e seus colaboradores (2020WU, Y. et al. Perinatal depressive and anxiety symptoms of pregnant women along with COVID-19 outbreak in China. Am J Obstet Gynecol., v. 223, n. 2, p. 240, 2020.) com puérperas chinesas revelou que, devido ao afastamento social e as incertezas acerca da Covid-19 e seus impactos negativos, estas mulheres apresentaram um aumento bastante significativo nos quadros de sintomas depressivos, quando comparados a resultados deste mesmo público em um momento sem pandemia. Outro estudo evidenciou que sintomas mais graves de ansiedade foram associados a maiores preocupações sobre as possíveis ameaças da Covid-19 ao binômio mãe-filho e a preocupação sobre os impactos no pré-natal e puerpério ligados ao isolamento social (LEBEL ., 2020LEBEL, C. et al. Elevated depression and anxiety symptoms among pregnant individuals during the COVID-19 pandemic. J. Affect. Disord, v. 277, p. 5–13, 2020.).

Alguns estudos mostram que apenas o fato de as mulheres estarem inseridas em um grupo virtual com pessoas em situações de vida semelhantes já desperta um senso de autoidentidade e estimulam um sentimento de valor, empatia, gratidão, apoio e conforto, sendo o fator mais atrativo no suporte virtual a disponibilidade em horários diversos e a liberdade de interação (WAGG; CALLANAN; HASSETT, 2019WAGG, A. J.; CALLANAN, M. M.; HASSETT, A. Online social support group use by breastfeeding mothers: A content analysis. Heliyon, v. 5, e01245, 2019.). Uma análise de conteúdo a partir de redes de apoio virtual realizada por Braasch (2018BRAASCH, M. Stressbewaltigung und Social Support no Facebook: Der Einfluss sozialer Onlime-Netzwerke auf die Wahrnehmung und Bewaltigung von Stress. Berlim: Springer. 2018.), indicam essa estratégia virtual para interações como sendo positiva no enfrentamento direto de estressores comum a seus pares, mesmo que não haja uma relação prévia ao grupo, ou seja, mesmo entre pessoas que não se conheciam anteriormente, quando se encontram virtualmente são capazes de estabelecer laços fortes.

A interação criou um vínculo entre as mulheres, fazendo com que elas validassem a importância que o grupo trouxe para a experiência do puerpério, especialmente diante das dificuldades de acesso aos serviços e ao distanciamento social (que estiveram presentes no Dendograma como as dimensões “informar”, “conhecer” e “grupo”), despertando nelas o desejo de se conhecerem pessoalmente: “Gostaria muito de poder encontrar todas vocês” (participante 8), “Agradeço pela iniciativa de criar o grupo, está nos ajudando muito” (participante 7), “Também gostaria de me encontrar com vocês, agradeço por ter criado esse vínculo entre a gente” (participante 4), “diante de tudo isso, nem consigo imaginar como estaria sendo esse momento sem o apoio de vocês” (participante 3).

Uma revisão de literatura elaborada por Glesson e seus colaboradores (2019MARQUES, A. C. M.; SOUZA, L. F.; VERÍSSIMO, M. R. G. Gestação e seus fatores emocionais. [Trabalho de conclusão de curso em Psicologia]. Anápolis: Centro Universitário de Anápolis – Uni Evangélica 2019.) investigou o uso de redes sociais por mulheres grávidas e puérperas e observaram que as mulheres nessa fase da vida estão cada vez mais atraídas por este ambiente online por proporcionar que elas se conectem com outras mulheres distantes geograficamente. Nesse sentido, o grupo virtual é visto pelas participantes como uma válvula de escape para a rotina atribulada, em que as interações diárias são capazes de influenciar suas decisões cotidianas relacionadas a maternidade (GLESSON; CRASWELL; JONES, 2022), pelo levantamento de questões e dúvidas, além de proporcionar confiança para desabafos, fortalecendo este verdadeiro vínculo virtual de amizade.

Em decorrência de construções sociais acerca da maternidade, a rede de apoio à mulher é restrita e solitária (PRATES; SCHMALFUSS; LIPINSKI, 2015PRATES, L. A.; SCHMALFUSS, J. M.; LIPINSKI, J. M. Rede de apoio social de puérperas e amamentação. Esc Anna Nery, v. 19, n. 2, p. 310-315, 2015.; SILVA; MELO, 2020SILVA, J.; MELO, M.F.A.Q. Um espelho de duas faces: ser ou não ser mãe? Rev Polis Psique, v. 10, n. 1, p. 85-106, 2020.) – e se tornou ainda mais em meio a uma pandemia – caracterizada por uma grande instabilidade e vulnerabilidade emocional e psicológica, de forma geral, a partir das várias mudanças e adaptações pessoais, sociais e familiares (FROTA ., 2020FROTA, C. A. et al. A transição emocional materna no período puerperal associada aos transtornos psicológicos como a depressão pós-parto. Rev Eletrôn Acervo Saúde, v. 48, supl: e3237, 2020.). Esse contexto está, muitas vezes, associada a ineficaz implementação das políticas públicas que priorizem a atenção à estas famílias, deixando, nas entrelinhas, que elas enfrentem solitariamente os desafios e descobertas da maternidade, como amamentação, planejamento familiar, crescimento e desenvolvimento da criança, entre outros aspectos, acrescidos das tarefas diárias de cuidados do(s) filho(s), do cônjuge, da casa e de si mesma, sem orientações e apoio, quando deveriam ser estimuladas a um protagonismo guiado.

Quando analisados os fatores de risco e de proteção relacionados aos aspectos da maternidade, Romagnolo e seus colaboradores (2017) observaram que o ambiente familiar e suas relações, desde antes da gestação, é o que tem maior carga influenciadora para o sucesso do ciclo gravídico-puerperal. Diante das falas das participantes, ficou explicito a necessidade e importância dessa rede de apoio familiar e do cônjuge, tanto pela divisão de tarefas, quanto pelo simbolismo em si, pois relataram sentir-se felizes, cuidadas, acolhidas e apoiadas. Em contrapartida, quando essa rede esteve deficiente, sentiram-se inseguras, incapazes e entristecidas.

Nesse sentido, é possível perceber que mesmo o cuidado sendo uma atividade culturalmente desempenhada e exclusiva da mulher, é necessária uma maior atenção sobre as consequências negativas que isso pode causar, especificadamente neste período da vida da mulher. Que corrobora com os resultados do presente estudo, em que o vínculo estabelecido a partir da troca de experiências foi capaz de, de alguma forma e a partir dos relatos de gratidão pela iniciativa, preencher os vazios de apoio que elas poderiam estar em déficit naquele momento.

Tanto na sua utilização como canal para orientações técnicas por profissionais quanto como rede de apoio entre amigas para troca de experiências (ambos eficazes para promoção de saúde), os grupos virtuais parecem ser eficazes, ainda, para proporcionar o companheirismo, diminuir a solidão, o estresse e aumentar a autoconfiança de serem capazes de lidar com as demandas diárias (PALMÉM; KOURI, 2012PALMÉM, M.; KOURI, P. Maternity clinic going online: Mothers’ experiences of social media and online health information for parental support in Finland. Journal of Communication in Healthcare, v. 5, n. 3, 2012.), não devendo, portanto, esse recurso ser subestimado em seus valores de apoio emocional, psicossocial e instrumental (GLESSON; CRASWELL; JONES, 2022).

Considerações finais

Os resultados do presente estudo tornaram mais tangíveis o impacto direto da pandemia da Covid-19 sobre o acesso aos serviços de saúde na atenção primária, necessários ao acompanhamento de mulheres e crianças na fase puerperal, em especial no tocante à vacinação, atendimento pediátrico e planejamento familiar.

As redes de apoio podem impactar de formas diferentes a saúde de cada mulher, tendo em vista que cada uma enfrenta experiências únicas. No entanto, a partir das interações, percebe-se que esse compartilhamento de vivências foi importante para diminuir os níveis de medo, ansiedade, irritabilidade e estresse causados pela maternidade, particularmente diante da pandemia do novo coronavírus. Por isso esse é um espaço que não deve ser subestimado quanto a sua eficácia enquanto rede de apoio, uma vez que tem grande potencial de identificar e lidar com fragilidades da maternidade.

No presente estudo, os profissionais não foram incluídos no grupo, pois não era objetivo (neste momento e através deste objeto) proporcionar um espaço técnico, e sim entender os entraves encontrado a partir da própria vivência das puérperas e de uma maneira informal e em livre demanda, que elas se sentissem à vontade para conversar sobre temas diversos que desejassem, e assim aconteceu.

No entanto, a partir dos resultados encontrados, sugere-se que este seja um bom veículo também para educação em saúde, especialmente da atenção básica, desde que bem planejados para ser inseridos no serviço de forma eficaz. Por exemplo, com a criação de grupos fechados e pontuais enquanto as mulheres vivenciam o período gestacional e puerperal.

A internet e as redes sociais, que antes já eram bastante utilizadas, tornaram-se fundamentais neste período de isolamento, como uma forma de utilizar a tecnologia a favor da aproximação de amigos, familiares e dos próprios serviços de saúde, uma vez que nesta fase da vida da mulher é essencial manter a saúde física e mental. Dessa forma, este estudo identificou possíveis fragilidades nas redes municipais de atenção básica de saúde, de modo a estimular o aperfeiçoamento da qualidade dos serviços, principalmente diante de situações epidemiológicas que podem comprometer diretamente a saúde e qualidade de vida da mulher e da criança. Além disso, evidenciou a viabilidade e importância da oferta de uma rede de apoio virtual às mulheres puérperas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2021
  • Aceito
    27 Dez 2022
  • Revisado
    22 Set 2022
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