Resumo
A prescrição farmacêutica avança no mundo, com diferentes países regulando a prática. No Brasil, essa regulação ocorreu em 2013, porém são escassas as informações sobre sua inserção no cotidiano do exercício farmacêutico. Este estudo objetivou analisar a prescrição farmacêutica no município de Vitória-ES, Brasil, e os fatores que influenciam na adesão da prática. Trata-se de um estudo qualitativo com 20 farmacêuticos e 10 gestores de farmácias comunitárias públicas e privadas, realizado a partir de entrevistas, com posterior análise de conteúdo temática para apreender percepções e opiniões. Os farmacêuticos desta pesquisa não prescreviam. Farmacêuticos e gestores identificaram facilitadores para a implementação da atividade, com destaque para os fatores: infraestrutura; fácil acesso ao farmacêutico; e boa receptividade à prescrição. Como barreiras, os fatores foram: número insuficiente de recursos humanos; falta de estímulo institucional à prescrição; e fatores individuais. Além da observação da não execução da prescrição farmacêutica, este estudo trouxe uma oportunidade para identificar elementos que podem estar contribuindo para que o exercício dessa atividade não seja realizado nas farmácias comunitárias. Adaptar rotinas ou contratar pessoal se mostraram as principais modificações necessárias. Paralelamente, ações destinadas a qualificar a formação por meio da educação permanente também se apresentam como necessárias.
Palavras-Chave:
Assistência Farmacêutica; Prática profissional; Farmacêuticos; Prescrições de medicamentos
Abstract
Pharmacist prescribing advances in the world with different countries regulating this activity. In Brazil, this regulation took place in 2013, but there is little information about its insertion in the routine of pharmacist practice. This study aimed to analyze the pharmacist prescribing in the city of Vitória, Espírito Santo state, Brazil, and the factors that influence adherence to the practice. This is a qualitative study based on interviews with 20 pharmacists and 10 managers of public and private community drugstores with subsequent content analysis to apprehend perceptions and opinions. The pharmacists in this research did not prescribe. Pharmacists and managers identified facilitators for the implementation of the activity, highlighting the following factors: infrastructure; easy access to the pharmacist; and good receptivity to the prescription. As barriers, the factors were insufficient number of human resources; lack of institutional stimulus to prescribing; and individual factors. In addition to the observation of non-execution of pharmacist prescribing, this study provided an opportunity to identify elements that may contribute to the non-existence of this activity in community drugstores. Adapting routines or hiring staff were the main necessary changes. At the same time, actions aimed at qualifying training through permanent education are also necessary.
Keywords:
Pharmaceutical Services; Professional practice; Pharmacists; Medical prescriptions
Introdução
Em todo o mundo, os farmacêuticos vêm desenvolvendo habilidades que os capacitam a assumir novos papéis com foco no atendimento ao paciente, sendo um deles a prescrição farmacêutica (Hoti; Hughes; Sunderland, 2011HOTI, K.; HUGHES, J.; SUNDERLAND, B. An expanded prescribing role for pharmacists - an Australian perspective. Australas Med J., v. 4, n. 4, p. 236-242, 2011.). A prescrição farmacêutica está inserida no contexto da prescrição não-médica, que vem sendo adotada em diversos países como forma de melhorar a integralidade da assistência à saúde. Os resultados esperados da prescrição não-médica centram-se na qualificação do cuidado ao paciente, fazendo o melhor uso das habilidades dos profissionais de saúde e reduzindo a carga de trabalho da equipe médica (McIntosh ., 2012MCINTOSH, T. et al. A cross sectional survey of the views of newly registered pharmacists in Great Britain on their potential prescribing role: a cautious approach. Br J Clin Pharmacol., v. 73, n. 4, p. 656-660, 2012.; Heuler ., 2020HEULER, A. et al. Aspectos conceituais, impacto e estado da arte da prescrição de dependentes no Brasil: revisão narrativa. Porto Biomedical Journal, v. 5, n. 3, e66, 2020.).
A prescrição farmacêutica já é uma realidade em muitos países desenvolvidos, a exemplo de Reino Unido, Canadá, Austrália, Estados Unidos e Nova Zelândia, com diferentes níveis de regulamentação das práticas, assim como diferentes vantagens e barreiras percebidas pela população, farmacêuticos, gestores e outros profissionais de saúde (Famiyeh; McCarthy, 2017FAMIYEH, I. M.; MCCARTHY, L. Pharmacist prescribing: a scoping review about the views and experiences of patients and the public. Res Social Adm Pharm., v. 13, n.1, p. 1-16, 2017.; Jebara ., 2018JEBARA, T. et al. Stakeholders’ views and experiences of pharmacist prescribing: a systematic review. Br J Clin Pharmacol., v. 84, n. 9, p.1883-1905, 2018.; Zhou ., 2019ZHOU, M. et al. Barriers to pharmacist prescribing: a scoping review comparing the UK, New Zealand, Canadian and Australian experiences. International Journal of Pharmacy Practice, v. 27, n. 6, p. 479-489, 2019.). Internacionalmente, existem diferentes modelos de prescrição farmacêutica, mas é possível classificá-la, simplificadamente, em dois tipos: a prescrição dependente e a independente. Na primeira existe um diagnóstico prévio, realizado por outro profissional de saúde (geralmente médico) e o farmacêutico segue um plano de manejo clínico. Já na prescrição independente, o farmacêutico é responsável por avaliar o paciente, iniciar a terapia e gerenciar os desfechos clínicos (Ramos ., 2022RAMOS, D. C. et al. Prescrição farmacêutica: uma revisão sobre percepções e atitudes de pacientes, farmacêuticos e outros interessados. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 09, p. 3531-3546, 2022.).
O Brasil tem acompanhado esse movimento de expansão da atuação clínica do farmacêutico, com a profissão em processo de transição de sair da gestão do produto para adquirir mais responsabilidades no cuidado (Freitas ., 2016FREITAS, G. R. M. et al. Principais dificuldades enfrentadas por farmacêuticos para exercerem suas atribuições clínicas no Brasil. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde, v. 7, n. 3, p. 35-41, 2016.; Melo ., 2017MELO, A. C. et al. Pharmacy in Brazil: Progress and Challenges on the Road to Expanding Clinical Practice. Can J Hosp Pharm., v. 70, n. 5, p. 381-390, 2017.). Esse movimento resultou, em 2013, nas resoluções CFF nº 585/13 e CFF nº 586/13, do Conselho Federal de Farmácia, que regulamentam, respectivamente, as atribuições clínicas do farmacêutico e a prescrição farmacêutica (CFF, 2013a; 2013b).
O CFF adotou um conceito ampliado de prescrição farmacêutica, definido como um ato pelo qual o farmacêutico seleciona e documenta terapias farmacológicas e não farmacológicas, além de outras intervenções relativas ao cuidado à saúde do paciente, como o encaminhamento para outros serviços profissionais e solicitação de exames do paciente. A Resolução CFF nº 586/13 detalha quais os produtos envolvidos e as possibilidades de prescrição. No Brasil, a prescrição farmacêutica independente está restrita aos medicamentos isentos de prescrição (MIPs). Para os outros medicamentos (tarjados), a resolução faz exigências características da prescrição dependente (CFF, 2013b; Melo ., 2017MELO, A. C. et al. Pharmacy in Brazil: Progress and Challenges on the Road to Expanding Clinical Practice. Can J Hosp Pharm., v. 70, n. 5, p. 381-390, 2017.).
Apesar de a regulamentação da prescrição farmacêutica no Brasil completar 10 anos em 2023, o cenário atual é de escassez de estudos no país que mostrem o grau de adesão dos profissionais e dos serviços de saúde à prática. Algo bem diferente do cenário internacional, cuja expansão do escopo de prescrição pelo farmacêutico é acompanhada por aumento significativo de produção científica sobre a prática (Ramos ., 2022RAMOS, D. C. et al. Prescrição farmacêutica: uma revisão sobre percepções e atitudes de pacientes, farmacêuticos e outros interessados. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 09, p. 3531-3546, 2022.).
Estando a prescrição farmacêutica no Brasil inserida em um cenário de escassez de estudos que revelem a sua inserção no cotidiano do exercício farmacêutico, a investigação dessa prática deve passar, primeiramente, pela observação da execução (ou não) da atividade e dos fatores que se relacionam. Dessa forma, um olhar avaliativo de um Estudo de Avaliabilidade, aquele que é capaz de estabelecer metas da intervenção e como se espera que sejam alcançadas (Brunner; Craig; Watson, 2019), poderá auxiliar farmacêuticos e gestores, tanto no planejamento como na execução da atividade, criando estratégias que visem promovê-la dentro dos sistemas públicos de saúde assim como nos estabelecimentos farmacêuticos privados pelo país.
Nesse contexto, este estudo tem como objetivo analisar a prescrição farmacêutica no município de Vitória, Espírito Santo (ES), Brasil, e os fatores que influenciam na adesão da prática.
Metodologia
Trata-se de um estudo de avaliabilidade, de abordagem qualitativa, que faz parte do projeto “Avaliabilidade da prescrição farmacêutica no município de Vitória-ES”, tese de doutorado que segue o modelo proposto por Leviton . (1998LEVITON, L. C. et al. Teaching Evaluation Using Evaluability Assessment. Evaluation, v. 4, n. 4, p. 389-409, 1998.) para estudos de avaliabilidade. O presente artigo representa a etapa de análise e comparação entre a realidade da intervenção e seu Modelo Lógico. Etapas anteriores incluem uma revisão de literatura sobre a prescrição farmacêutica e a construção e validação do Modelo Lógico da prescrição farmacêutica no Brasil.
As unidades de análise que compõem este trabalho referem-se a dois perfis de farmácias comunitárias. O primeiro perfil é formado pelas farmácias públicas inseridas nas Unidades de Saúde da Família (USF). O município de Vitória, no ano de 2022, possuía 22 farmácias desse perfil, todas com farmacêuticos cadastrados (CNES, 2022CNES. Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br/pages/estabelecimentos/consulta.jsp. Acesso em: 25 out. 2022.
http://cnes.datasus.gov.br/pages/estabel... ). Já o segundo perfil refere-se às farmácias comunitárias de direito privado. Vitória apresentava, no período da pesquisa 91 farmácias comunitárias privadas (CRF-ES, 2021CRF-ES. Conselho Regional de Farmácia do Espírito Santo. Base de dados do Conselho Regional. Informação cedida ao pesquisador via correio eletrônico, 2021.).
Para a seleção dos participantes desta pesquisa, foram selecionados: farmacêuticos que atuam em farmácias comunitárias públicas e privadas em Vitória-ES, com atendimento direto aos usuários do estabelecimento; e gestores com relação direta ou indireta com o estabelecimento desses farmacêuticos. Os gestores aqui são: o(a) gerente da farmácia comunitária privada de um dos farmacêuticos participantes; o(a) diretor(a) da USF de um dos farmacêuticos participantes; o(a) gerente de Atenção à Saúde e o(a) gerente de Assistência Farmacêutica do município. Assim, formaram-se quatro grupos de participantes: farmacêutico do setor privado, farmacêutico do setor público, gestor do setor privado e gestor do setor público.
Como critérios de inclusão, o farmacêutico deveria ter no mínimo seis meses de experiência na atual farmácia comunitária e atuar em uma carga horária de trabalho de no mínimo 30 horas semanais. Para os gestores, possuir atuação de, no mínimo, seis meses na função. Foi considerado como critério de exclusão para farmacêuticos e gestores se no momento da coleta dos dados o participante não estivesse disponível, por estar de férias ou de licença do trabalho.
Ao todo, participaram do estudo 30 sujeitos, sendo dez farmacêuticos e cinco gestores para cada umas das duas categorias de farmácias mencionadas. O número de indivíduos a fazer parte da pesquisa foi predeterminado e planejado previamente por conveniência, tendo sido confirmado, posteriormente, pelo princípio da amostragem por saturação (Fontanella; Ricas; Turato, 2008FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, n. 1, p 17-27, 2008.).
O recrutamento da amostra ocorreu pela amostragem em bola de neve, uma forma de amostra não probabilística que utiliza cadeias de referência. A coleta começa com o uso de um ou mais informantes-chave, que responde(m) à solicitação do pesquisador para localizar algumas pessoas com o perfil necessário para a pesquisa, a partir de sua própria rede pessoal, dentro da população-alvo da pesquisa. Em seguida, o entrevistado indicado passa a ser um novo informante-chave (Vinuto, 2014VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.). Para dar início à formação dos dois grupos de farmacêuticos participantes (público e privado), os primeiros informantes-chave foram escolhidos por conveniência.
O contato do pesquisador com todos os sujeitos recrutados para esta pesquisa foi feito por e-mail e/ou telefone pessoal, disponibilizados pelos informantes-chave. O pesquisador buscou selecionar os participantes levando em consideração a distribuição geográfica de seus locais de trabalho, perfazendo na seleção uma distribuição heterogênea das farmácias comunitárias públicas e privadas que contemplasse as seis Regiões de Saúde do município. Dessa forma, buscou-se possibilitar a inclusão de diferentes contextos, que podem estar relacionados ao ambiente de trabalho e ao público atendido.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais, sendo utilizados, como instrumentos, dois roteiros-guia de entrevista, um para o cargo de farmacêutico e outro para o de gestor. Esses instrumentos foram testados por teste-piloto com dois indivíduos que atendiam aos critérios de inclusão e exclusão, e que por fim não foram incluídos na amostra final. As entrevistas aconteceram no mês de junho de 2022 e foram realizadas de maneira presencial (n=24) ou por videoconferência (n=06), em dia e horário de preferência do participante.
A análise dos dados buscou a compreensão e a interpretação das opiniões e experiências a partir dos registros falados dos entrevistados. O material coletado por meio de gravação do áudio das entrevistas foi transcrito utilizando o software pago Transkriptor e revisado pelo pesquisador utilizando o software gratuito Otranscribe. As 30 entrevistas totalizaram 821 minutos de áudio, com uma média de 27 minutos por gravação.
O material foi analisado segundo a Análise de Conteúdo Temática, nas três etapas constitutivas do método: Pré-Análise; Exploração do Material e Tratamento dos Resultados Obtidos e Interpretação (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.). Os dados foram organizados e sistematizados em categorias e unidades de registro, e realizada uma análise crítica das categorias que surgiram. Utilizou-se o software MAXQDA, versão 2022, para otimizar a organização dos registros e facilitar a análise pelos pesquisadores.
Os sujeitos passaram por uma codificação para manter o anonimato na divulgação dos resultados em: FPR (farmacêutico de farmácia privada); FPU (farmacêutico de farmácia pública); GPR (Gestor de farmácia privada); GPU (gestor de farmácia pública). A esse código foi acrescida uma numeração que indica um sequenciamento de sujeitos naquela categoria de classificação.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro de Ciências da Saúde, da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o parecer de número 5.439.309. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A definição de prescrição farmacêutica utilizada neste trabalho é a apresentada pela Resolução CFF nº 586/13 (CFF, 2013b). Nenhum dos 20 farmacêuticos participantes da pesquisa realizava a prescrição farmacêutica ou relatou tê-la realizado em algum momento passado no estabelecimento atual ou anterior.
As características dos participantes da pesquisa estão descritas na Tabela 1.
Seguindo o objetivo do trabalho, que é observar fatores com potencial de influenciar na adesão à prescrição farmacêutica, os temas que emergiram foram categorizados em dois grupos: 1. Facilitadores para a prescrição farmacêutica; e 2. Barreiras para a prescrição farmacêutica.
Facilitadores para a prescrição farmacêutica
Durante a entrevista, os participantes foram convidados a apontar facilitadores atuais para a execução da prescrição farmacêutica no município de Vitória. Três categorias se destacaram: a) infraestrutura; b) fácil acesso ao farmacêutico; e c) boa receptividade à prescrição.
Infraestrutura
Na categoria “Infraestrutura”, profissionais do campo privado e público deram destaque a facilitadores diferentes. No SUS, tanto farmacêuticos quanto gestores destacaram a existência do Sistema de Gestão Informatizado Rede Bem-Estar, um sistema municipal de informações de pacientes e serviços de saúde prestados pela rede a esses pacientes. O sistema fornece cadastro único de pacientes, prontuário eletrônico, registro de medicamentos, registro de exames laboratoriais, entre outros.
Já para os farmacêuticos do campo privado, houve destaque em relação à estrutura física da farmácia. Nesse campo, o que eles destacavam como facilitador era a existência de uma sala disponível para atendimento individual, onde poderia ocorrer a prescrição farmacêutica. É preciso evidenciar que, segundo os depoimentos, a minoria dos estabelecimentos privados possuía esse cômodo. Na ocasião dessa ausência, os farmacêuticos informavam que os outros estabelecimentos da rede possuíam, ou informavam que havia um plano de investimento da rede para adaptação/criação dessas salas de atendimento. Apesar de os farmacêuticos e gestores da rede privada considerarem a existência da sala privativa como algo positivo na infraestrutura da farmácia, esse espaço, mesmo quando existia, não era utilizado para a prescrição farmacêutica.
Fácil acesso ao farmacêutico
Na categoria “Fácil acesso ao farmacêutico”, tantos os profissionais do setor privado quanto do público destacaram que o farmacêutico é um profissional acessível e, por isso, prescrever seria uma possibilidade que poderia se encaixar na rotina do profissional.
Os farmacêuticos e gerentes do SUS destacaram que o município de Vitória tem uma característica importante, que é um facilitador para a implementação da prescrição farmacêutica: a presença de farmacêuticos em todas as unidades de saúde.
De igual modo, os farmacêuticos das farmácias privadas afirmaram que a farmácia é um estabelecimento de saúde acessível. Argumentaram que é comum que as pessoas, em certas ocasiões, priorizem a farmácia no lugar da unidade pública de saúde, ou um consultório particular. Isso foi apontado como um facilitador para que a prescrição aconteça no cenário da farmácia comunitária privada. Destacaram que o fácil acesso ao estabelecimento acompanha o fácil acesso ao farmacêutico.
A pessoa não vai no médico por causa de dor de cabeça. O fator seria esse, o fato da farmácia ainda ser linha de frente de procura para essas coisas pequenas. (FPR-2)
Boa receptividade à prescrição
Os farmacêuticos do SUS concordaram entre si que a implementação da prescrição farmacêutica no serviço teria boa aceitação entre os outros profissionais prescritores, como médicos e enfermeiros. Além da confiança no trabalho do farmacêutico, esses profissionais supostamente aprovariam uma diminuição de demanda de consultas. Um argumento frequentemente utilizado pelos farmacêuticos era que nas unidades já é institucionalizada e realizada com grande frequência a prescrição pelos enfermeiros, com destaque para as renovações de prescrição em doenças crônicas.
Os farmacêuticos do SUS acreditavam que os gestores seriam bem receptivos à prática no município. Essa ideia foi confirmada pelos gestores participantes da pesquisa, que se mostraram favoráveis a um cenário no qual o farmacêutico prescreveria e visualizavam, inclusive, benefícios dessa prescrição à prestação de serviços na unidade de saúde.
[...] Nesses casos de prescrições continuadas acredito que eles poderiam atuar muito bem [...] É complicado saber que eles poderiam fazer e não estão fazendo. Porque ajudaria bastante. (GPU-2)
Apesar desse apoio, os gestores, segundo os farmacêuticos, nunca se mobilizaram para que isto fosse uma realidade, talvez até mesmo por desconhecimento, pois foi resposta comum os gestores desconhecerem a existência da prescrição farmacêutica.
Já os farmacêuticos das farmácias comunitárias privadas deram destaque à boa aceitação dos pacientes. Relataram existência de uma boa aceitação dos pacientes à indicação farmacêutica que eles já realizam de MIPs, prática resultante de uma demanda significativa no cotidiano das farmácias trazida pela automedicação.
A maioria confiaria (se refere à prescrição feita por farmacêuticos) [...] Todas as indicações que eu faço elas são muito bem acolhidas. A maioria. Entendeu? (FPR-4)
Barreiras para a prescrição farmacêutica
Três categorias se destacaram no tema “barreiras para a prescrição farmacêutica”. São elas: a) número insuficiente de recursos humanos; b) falta de estímulo institucional à prescrição; e c) fatores individuais.
Número insuficiente de recursos humanos
Para a execução da prescrição farmacêutica, a barreira mais importante verificada neste trabalho foi o número insuficiente de recursos humanos (RH) para basicamente a mesma função: a dispensação de medicamentos para um grande volume de pacientes. Nas farmácias públicas e privadas, a necessidade apontada pelos participantes é de mais assistentes de farmácia.
Para os farmacêuticos do SUS, o quadro reduzido de pessoal já é limitante para um bom funcionamento da farmácia. Os farmacêuticos afirmam realizar muitas atividades administrativas e ainda precisam, devido às circunstâncias, dividir uma parte considerável do seu tempo ao atendimento de uma demanda de público que o assistente de farmácia não consegue cobrir. E apesar de haver relatos dos farmacêuticos de que a contratação de mais um farmacêutico seria benéfico para o serviço, a extensa maioria deixou mais claro que a ausência mais sentida é a do assistente de farmácia.
Na minha rotina, tendo uma farmacêutica e uma assistente, que a maioria trabalha assim, é muito difícil da gente colocar isso dentro das nossas oito horas, tá? [...] Então aí às vezes eu falo assim: isso me desmotiva. Porque assim, você tem que dar conta de um monte de coisa. (FPU-8)
Considerando um cenário hipotético de implementação de uma nova atividade e rotina (prescrição farmacêutica), a situação de quadro reduzido de pessoal narrada por esses farmacêuticos se torna um importante limitante para o movimento de implementação. Segundo os farmacêuticos, para que a prescrição farmacêutica fosse realidade, precisaria haver uma reestruturação da dinâmica de trabalho, com o farmacêutico disponibilizando uma agenda de marcação de consultas para o atendimento ao paciente. Alguns farmacêuticos apontaram que seria interessante a contratação de um farmacêutico exclusivo para executar o atendimento farmacêutico passível de haver prescrição farmacêutica.
Porque se eu for fazer, eu consultar e fazer uma prescrição, vou ter que sentar com essa pessoa na minha sala, conversar com ela, abrir um prontuário dela, ver os prontuários, avaliar e fazer a prescrição. Enquanto isso tem que ter alguém na retaguarda para estar atendendo a receita que o médico acabou de fazer no consultório. (FPU-5)
Essa quantidade pequena de profissionais na farmácia (geralmente 1 farmacêutico e 1 assistente) apresenta um quadro destoante com a própria organização da Unidade de Saúde da Família, como pontua uma farmacêutica:
Mas assim, por exemplo, aqui a gente vê, achamos três equipes. O território é nove mil pessoas, está dividido em três equipes, ou seja, em torno de três mil pessoas por equipe. Tem três enfermeiros [...] E profissional farmacêutico você só tem um para nove mil. (FPU-7)
Quando os gestores foram perguntados sobre barreiras que impediam a prescrição farmacêutica cerca de 4/5 não apontaram problemas de RH.
Nas farmácias privadas, o cenário mais comum relatado pelos participantes era de um farmacêutico recebendo as demandas dos clientes, em uma dinâmica de atendimento similar ao balconista: uma atenção, por vezes, rápida e superficial. Para os farmacêuticos entrevistados, a situação era ocasionada por um fluxo intenso de clientes no estabelecimento ou pelo número reduzido de funcionários, quadro que levava a uma perda de qualidade na atenção disponibilizada pelo farmacêutico.
A gente tem bastante demanda. Parece pouca coisa, mas não é. Ainda mais uma farmácia que dá bastante movimento como a minha. Tem muito movimento. Então fica muito corrido. Às vezes eu não consigo nem dar conta das coisas que eu tenho que fazer no dia porque eu tenho que ficar no balcão atendendo. (FPR-3)
Os farmacêuticos apontaram, também, uma sobrecarga de funções na farmácia que seriam barreiras para eles se voltarem a uma atuação mais clínica. Uma delas é a atividade de gestão do estabelecimento, mesmo o cargo de gerente existindo no local e sendo exercido por outra pessoa.
Existe um momento em que a gente não é farmacêutico, a gente deixa um pouco de ser farmacêutico pra cuidar do fluxo de loja, da parte gerencial, que o farmacêutico ele é o que coordena tudo, mesmo ele não sendo o gerente. (FPR-10)
Igualmente aos gestores das farmácias públicas, os da rede privada não apontaram problemas de RH quando perguntados sobre barreiras que impediam a prescrição farmacêutica. Houve apenas uma exceção que confirmou que o farmacêutico de sua loja possui muitas atribuições de gestão, mesmo não sendo o gerente.
A falta de um suporte proporcionado pela equipe de trabalho, no qual ela possa dividir as tarefas adequadamente com os farmacêuticos participantes desta pesquisa se revelou a principal barreira. Na ausência de maior número de funcionários, o farmacêutico com frequência ocupava duas posições: a) diversas atividades e funções administrativas e gerenciais, especialmente nas farmácias privadas; b) disponibilidade prolongada no balcão para dar conta de atender a todos os clientes dentro de um tempo aceitável de espera, em ambas as farmácias.
Falta de estímulo institucional à prescrição
Os farmacêuticos do SUS explicaram que o tema prescrição farmacêutica não é pautado no contexto da atenção primária em Vitória, ausente em treinamentos e reuniões, tanto no universo da unidade de saúde como da Secretaria de Saúde. Para eles, provavelmente os outros profissionais de saúde nem saibam que o farmacêutico possa prescrever.
Alguns farmacêuticos alegaram que não prescreviam porque não podiam prescrever, devido a um suposto impedimento legal.
Não, eu não prescrevo, porque no SUS Vitória nós farmacêuticos não podemos prescrever, tá? Existe uma portaria municipal de prescrição e dispensação e essa portaria não contempla o farmacêutico na prescrição. (FPU-9)
A portaria a que o farmacêutico se refere é a Portaria Municipal nº 53/2012, expedida pela Secretaria Municipal de Saúde de Vitória, que não cita um impeditivo para o farmacêutico prescrever. A portaria regula sobre a dispensação de medicamentos no âmbito das unidades de saúde, que deve ser executada mediante apresentação de prescrição de profissional prescritor. Só que em seu artigo 2º define como profissional prescritor apenas “cirurgião-dentista, enfermeiro e médico da rede de serviços municipal do SUS”.
Um dos fatores que contribuem como barreira para o farmacêutico da rede privada prescrever é a falta de estímulo da empresa para a atividade.
Isso eu falo com tranquilidade. Não existe. Não existe nenhum estímulo para questão de prescrição farmacêutica. (FPR-10)
Um deles disse que a empresa não acredita no potencial da prescrição farmacêutica e outros disseram que a empresa prefere manter o farmacêutico no balcão atendendo o máximo possível, mesmo com a empresa demonstrando interesse em operacionalizar salas privativas para o farmacêutico atender alguns clientes fora do balcão.
Eu acho até contraditório. Aqui no estado, as redes, elas tão começando a visar um consultório farmacêutico, mas elas não batem na tecla da prescrição farmacêutica. Seria um consultório para que você exerça serviço farmacêutico. Aferição de pressão, glicemia capilar, furar orelha, vacina, mas elas não batem na tecla da prescrição farmacêutica. (FPR-10)
Não havia nenhuma medida proibitiva ou intencionalmente desestimulante por parte da gestão dos estabelecimentos (públicos e privados) para o farmacêutico prescrever, apesar de tampouco haver estratégias ou posicionamentos para promover a atividade. Quando os farmacêuticos dos setores público e privado eram perguntados se por parte da gestão havia sido tomada alguma estratégia de implementação, a resposta negativa era unânime.
Fatores individuais
Um limitador importante para a prescrição farmacêutica ocorrer vem do próprio farmacêutico. Farmacêuticos e gestores dos dois campos concordaram sobre a responsabilidade da própria categoria pela não execução da prescrição farmacêutica. Para eles, a categoria segue sem se movimentar pela inclusão da prescrição farmacêutica como uma realidade para a profissão.
Teria que ter uma mobilização, né? Uma mobilização. A mobilização dos profissionais, porque eu acho que dependeria da gente. (FPU-6)
Isso pode estar ocorrendo pela dificuldade de uma mudança de cultura, que é necessária, mas também por um medo de assumir uma responsabilidade desafiante, por ser inovadora.
Uma coisa é eu te orientar e falar assim olha “eu acho que você poderia usar esse e esse medicamento” e te vender. Outra coisa é colocar aquilo no papel, que aquilo ali é um registro né? Aí aconteceu alguma coisa está registrado ali que você prescreveu. Então acho que tem um pouco desse receio desse medo mesmo, de fazer essa prescrição. (FPU-1)
Outro fator apontado como parcela de responsabilidade pelo não desenvolvimento da atividade foi a deficiência na formação dos farmacêuticos, seja a formação acadêmica inicial, como também a falta de treinamento na área.
A gente não tem uma formação específica para isso. (FPU-10)
Eu não me acho preparada para fazer uma prescrição. Então assim, com o conhecimento que eu saí da faculdade eu não acho que eu estaria apta a isso. (FPR-3)
Discussão
Este estudo descreve a percepção dos farmacêuticos sobre a prescrição farmacêutica, observando como esses profissionais, e os gestores diretamente ligados a eles, enxergam os desafios e as possibilidades para a implementação em dois ambientes de trabalho do farmacêutico: a farmácia comunitária pública e a privada.
A produção desse material exploratório carrega uma contribuição especial por inserir-se num cenário de escassez da abordagem do tema da percepção da prescrição farmacêutica na literatura nacional. Pegando emprestado as palavras de um farmacêutico entrevistado: “A academia precisa escrever sobre isso. Ela precisa publicar sobre isso. Ela precisa mostrar resultados viáveis disso. É essa a função da academia.” (FPU-2)
A expansão da prescrição farmacêutica no Reino Unido, Canadá e Estados Unidos e a significativa produção científica sobre o tema nesses países têm estimulado a produção científica em países que ainda não regulamentaram a prática, ou que buscam uma expansão da regulamentação já existente. Assim, os pesquisadores desses países têm-se mobilizado para produzir informações relevantes que possam sustentar o planejamento da incorporação dessa inovação, como as expectativas dos farmacêuticos e a identificação de fatores que possam interferir na implementação da prática ou das novas atribuições (Ramos ., 2022RAMOS, D. C. et al. Prescrição farmacêutica: uma revisão sobre percepções e atitudes de pacientes, farmacêuticos e outros interessados. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 09, p. 3531-3546, 2022.). Estudos assim surgem, por exemplo, na Nigéria (Auta ., 2018AUTA, A. et al. Pharmacist prescribing: a cross-sectional survey of the views of pharmacists in Nigeria. Int J Pharm Pract., v. 26, n. 2, p. 111-119, 2018.), no Qatar (Diab ., 2020DIAB, M. I. et al. Perspectives of future pharmacists on the potential for development and implementation of pharmacist prescribing in Qatar. Int J Clin Pharm., v. 42, n. 1, p. 110-123, 2020.) e em Israel (Yariv, 2015YARIV, H. The case of pharmacist prescribing policy in Israel. Isr J Health Policy Res., v. 4, n. 49, 2015.).
É importante ressaltar que mesmo após implementado uma intervenção em saúde, o processo de avaliação não cessa, já que toda mudança requer observação e análise. Stewart . (2017STEWART, D. et al. Future perspectives on nonmedical prescribing. Ther Adv Drug Saf., v. 8, n. 6, p. 183-197, 2017.) consideram crucial na implementação de novas práticas de prescrição não-médicas o desenvolvimento de pesquisas de avaliação robustas e rigorosas.
Estudos científicos têm tido um papel importante para uma leitura do contexto de aplicação e sinalização de barreiras e facilitadores para que isso ocorra. A observação pode ocorrer nos campos de atuação do farmacêutico, mas também pode incorporar o próprio processo formativo, analisando expectativas dos estudantes de graduação para a prática (Charrois ., 2013CHARROIS, T. et al. Pharmacy student perceptions of pharmacist prescribing: a comparison study. Pharmacy, v. 1, n. 2, p. 237-247, 2013.) ou avaliando se o currículo dos cursos de farmácia está orientado para a prescrição farmacêutica (Abdallah ., 2020ABDALLAH, O. et al. Evaluating prescribing competencies covered in a Canadian-accredited undergraduate pharmacy program in Qatar: a curriculum mapping process. BMC Med Educ., v. 20, n. 253, 2020.).
Neste estudo, entre os sujeitos da pesquisa, não havia a prática da prescrição farmacêutica. Os dados não são representativos ou censitários, e não é possível afirmar categoricamente que nenhum farmacêutico em Vitória exerça a atividade. Mas, restringindo-se à rede pública municipal, diante dos dados coletados, é seguramente possível afirmar que, nesta rede, muito provavelmente ninguém prescreva. Essa afirmação pode ser ancorada no manifestado desconhecimento, entre os farmacêuticos e a gestão da assistência farmacêutica do município, de que algum farmacêutico da rede municipal prescreva e na interpretação recorrente da Portaria Municipal nº 53/2012 como um impeditivo legal.
A autorização para a prescrição farmacêutica no Brasil não trouxe, de maneira automática, um cenário em que o farmacêutico prescreve de maneira assídua. Muito pelo contrário, neste estudo notou-se limitações multifatoriais importantes à prática. Mesmo nos países onde o farmacêutico possui autorização há mais tempo, o que se observa é um número ainda pequeno de farmacêuticos aderindo à prescrição, com maiores dificuldades nos farmacêuticos menos experiente (Lloyd; Parsons; Hughes, 2010).
Um facilitador importante, apontado de maneira convicta por farmacêuticos e gestores do SUS, é uma suposta boa receptividade dos outros profissionais de saúde à prescrição pelo farmacêutico. Estudos mostram que quando não há apoio, o farmacêutico encontra dificuldades para prescrever (Grindrod ., 2011GRINDROD, K. A. et al. Pharmacy owner and manager perceptions of pharmacy adaptation services in British Columbia. Can Pharm J., v. 144, n. 5, p. 231-235, 2011.; Makowsky ., 2013MAKOWSKY, M. J. et al. Factors influencing pharmacists’ adoption of prescribing: qualitative application of the diffusion of innovations theory. Implement Sci., v. 8, issue 109, 2013.) e quando há o suporte dos médicos, a prescrição pelo farmacêutico ocorre com tranquilidade no estabelecimento de saúde (Faruquee; Khera; Guirguis, 2020FARUQUEE, C. F.; KHERA, A.S.; GUIRGUIS, L. M. Family physicians’ perceptions of pharmacists prescribing in Alberta. J Interprof Care., v. 34, n. 1, p. 87-96, 2020.). Os médicos costumam apoiar a prescrição dependente, mas mantêm ressalvas sobre a prescrição independente (Lloyd; Hughes, 2005LLOYD, F.; HUGHES, C. Pharmacists’ and mentors’ views on the introduction of pharmacist supplementary prescribing: a qualitative evaluation of views and context. Int J Pharm Pract., v. 15, issue 1, p. 31-37, 2005.). Para Henrich . (2011HENRICH, N., et al. Family physicians’ perceptions of pharmacy adaptation services in British Columbia. Can Pharm J., v. 144, n.4, p. 172-178, 2011.), os médicos não são devidamente informados sobre a prescrição farmacêutica, dando margem a crenças especulativas sobre a prática.
Outro facilitador destacado pelos farmacêuticos da rede privada foi a provável aceitação do usuário a uma implementação da prescrição farmacêutica, baseando-se em uma credibilidade já existente e perceptível em suas rotinas. Mas há desafios. Estudos internacionais mostraram que o usuário manifesta apoio variável quanto à prescrição do farmacêutico: concordam mais facilmente com a prescrição farmacêutica em intervenções menos complexas como a prescrição emergencial e a renovação de prescrição, diminuindo o apoio para situações que envolvam mudanças de plano de tratamento para pacientes já diagnosticados, ou início de novos planos de tratamento (Perepelkin 2011PEREPELKIN, J. et al. Public opinion of pharmacists and pharmacist prescribing. Can Pharm J., v. 144, p. 86-93, 2011.; Famiyeh ., 2019FAMIYEH, I. M. et al. Exploring pharmacy service users’ support for and willingness to use community pharmacist prescribing services. Res Social Adm Pharm., v. 15, n. 5, p. 575-583, 2019.).
Em estudos realizados fora do Brasil, as principais barreiras citadas pelos farmacêuticos, como razão relevante para eles não aderirem à prescrição, poucas vezes são recursos humanos insuficientes. Porém, em estudos nacionais, é uma barreira muito relevante para o farmacêutico assumir atividades clínicas (Dosea ., 2017DOSEA, A. S. et al. Establishment, implementation, and consolidation of clinical pharmacy Services in Community Pharmacies: perceptions of a Group of Pharmacists. Qual Health Res., v. 27, n. 3, p. 363-73, 2017.; Hipólito Júnior et al., 2017; Santos JúniorSANTOS JÚNIOR, G. et al. Perceived barriers to the implementation of clinical pharmacy services in a metropolis in Northeast Brazil. PloS one, v. 13, n. 10, e0206115, 2018.et al., 2018). Uma estratégia que faria diferença seria a alteração das responsabilidades e atividades dos assistentes de farmácia, o que diminuiria o tempo do farmacêutico gasto com algumas atividades delegáveis e o profissional estaria mais livre para implementar novas atividades e serviços na farmácia (Doucette ., 2012DOUCETTE, W. R. et al. Organizational factors influencing pharmacy practice change. Res Soc Adm Pharm., v. 8, n. 4, p. 274-284, 2012.).
Uma barreira narrada pelos sujeitos, e também importante, foi a falta de estímulo institucional à prescrição. A implementação de qualquer nova intervenção em saúde será uma barreira grande demais se não houver um apoio dos gestores dos estabelecimentos e da rede de serviços. Afinal, o conhecimento do serviço pelo gestor é imperativo para que o mesmo lidere as atividades necessárias para o processo de oferta do serviço, ou a sua qualificação (D’Andrea; Wagner; Schveitzer, 2022).
O apoio institucional, quando falamos do espectro das farmácias públicas, passa também pelo apoio da equipe de saúde, que é uma equipe multiprofissional. Atingir, assim, todo o potencial da interprofissionalidade no cuidado, na atenção básica, passa pela inclusão dos farmacêuticos na gestão clínica dos usuários desse nível de atenção à saúde. Os farmacêuticos desta pesquisa que atuam no SUS acreditam que receberiam apoio dos outros profissionais da equipe de saúde para exercer a prescrição farmacêutica. Mas, ao mesmo tempo, opinam que os profissionais de saúde pouco conhecem sobre o que eles podem fazer. O desconhecimento da equipe de saúde na atenção primária quanto às atividades clínicas do farmacêutico foi notado também no trabalho de Santos Júnior et al. (2018).
Uma parte do desafio para a prescrição parte da iniciativa do profissional em prescrever. Compreender os fatores individuais que acabam por influenciar a adoção, ou não, da prescrição pelo profissional é especialmente importante para o desenvolvimento de programas de educação continuada adaptados especificamente para esse grupo.
Fatores individuais podem ser barreiras importantes para a implementação de iniciativas de mudanças de prática profissional, como a prescrição farmacêutica. Nesse campo, são fatores individuais importantes a autopercepção dos farmacêuticos sobre o que fazem (Rosenthal ., 2011ROSENTHAL, M. M. et al. Pharmacists’ self-perception of their professional role: insights into community pharmacy culture. J Am Pharm Assoc., v. 51, n. 3, p. 363-367, 2011.) e até mesmo traços de personalidade dos sujeitos podem ter relação com predisposição a adotar certas posturas profissionais (Rosenthal ., 2015ROSENTHAL, M. M. et al. Prescribing by pharmacists in Alberta and its relation to culture and personality traits. Res Social Adm Pharm., v. 11, n. 3, p. 401-411, 2015.; Hall ., 2013HALL, J. et al. Personality traits of hospital pharmacists: toward a better understanding of factors influencing pharmacy practice change. Can J Hosp Pharm., v. 66, n. 5, p. 289-95, 2013.).
Dosea . (2017DOSEA, A. S. et al. Establishment, implementation, and consolidation of clinical pharmacy Services in Community Pharmacies: perceptions of a Group of Pharmacists. Qual Health Res., v. 27, n. 3, p. 363-73, 2017.) visualizaram, em seu estudo, farmacêuticos que se autoavaliaram como desprovidos de conhecimento e habilidades, passando a experimentar sentimentos de vergonha e medo, o que ocasionou sensação de insegurança para a prestação de serviços clínicos. Os farmacêuticos do presente estudo que aparentavam possuir mais segurança para prescrever eram os do SUS, talvez por trabalharem em equipe e se sentirem menos sozinhos em suas atividades. A influência da segurança do farmacêutico em prescrever foi observada em outras pesquisas e esteve relacionada não só ao ambiente de trabalho, como também ao tipo de prescrição. Ambientes nos quais o farmacêutico trabalhava em colaboração e situações de prescrições dependentes eram as duas situações nas quais o farmacêutico manifestava maior conforto para iniciar ou manter uma atividade prescritiva (Lloyd; Parsons; Hughes, 2010; McIntosh, Stewart, 2016).
Quando se observam os dois grupos de farmacêuticos desta pesquisa (público e privada), uma característica que os diferencia é a formação acadêmica. O farmacêutico da pública tem um tempo médio de formação de 21,4 anos e não vivenciou, em sua graduação, o período de expansão da formação clínica na área farmacêutica. Logicamente, isso não o limita a desenvolver qualidades e formações necessárias à atividade, mas curiosamente foi uma justificava comum entre esses farmacêuticos para não prescreverem a afirmação: “não tive formação para isso”. Podemos atentar aqui para a importância e necessidade de uma educação continuada, que capacitaria e estimularia esses farmacêuticos a se encontrar nessas “novas atividades” farmacêuticas.
Já os farmacêuticos das privadas possuíam um tempo de formação médio de 2,9 anos. Ou seja, eles foram formados quando a resolução que regulamenta a prescrição farmacêutica já havia mais de cinco anos de vigência. Mesmo assim, a formação desses farmacêuticos não ofereceu, segundo eles, uma preparação para essa nova atividade. Esse cenário de falta de formação específica constituindo uma barreira para a execução de atividades clínicas foi encontrado também em outros trabalhos nacionais (Freitas ., 2016FREITAS, G. R. M. et al. Principais dificuldades enfrentadas por farmacêuticos para exercerem suas atribuições clínicas no Brasil. Rev Bras Farm Hosp Serv Saúde, v. 7, n. 3, p. 35-41, 2016.; D’Andrea et al., 2022; Santos Júnior et al., 2018).
Para preparar o farmacêutico para desempenhar suas novas funções, mais voltadas à clínica e atendendo às expectativas do sistema de saúde, o profissional precisa ter acesso a uma formação de qualidade na graduação e continuando sua qualificação com a capacitação em serviço (Brasil, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Cuidado Farmacêutico na Atenção Básica: aplicação do método clínico. Brasília: Ministério da Saúde, 2020.). Aspectos relacionados à formação também foram vistos em trabalhos internacionais, com o farmacêutico costumando apontar uma formação inadequada como fator limitante para prescrever, mesmo possuindo grande interesse em fazê-lo (Isenor ., 2018ISENOR, J. E. et al. Identification of the relationship between barriers and facilitators of pharmacist prescribing and self-reported prescribing activity using the theoretical domains framework. Res Social Adm Pharm., v. 14, n. 8, p. 784-791, 2018.; Makowsky ., 2013MAKOWSKY, M. J. et al. Factors influencing pharmacists’ adoption of prescribing: qualitative application of the diffusion of innovations theory. Implement Sci., v. 8, issue 109, 2013.; Schindel ., 2019SCHINDEL, T. J. et al. Pharmacists’ learning needs in the era of expanding scopes of practice: evolving practices and changing needs. Res Social Adm Pharm., v. 15, n. 4, p. 448-458, 2019.).
Uma observação importante a se fazer é que nas respostas dos sujeitos havia uma descrição da execução da prescrição farmacêutica acontecendo de forma indissociável da consulta farmacêutica e da prestação de serviços farmacêuticos, apesar de ser pouco usual o uso desses dois termos pelos profissionais. Isso transparecia, por exemplo, na necessidade de mais tempo para atendimento e de uma sala reservada para a atividade. Apesar de não ser obrigatória essa relação (mesmo que muito próxima), a percepção dos sujeitos sinaliza que é muito relevante para o sucesso da implementação da prescrição farmacêutica a implementação de serviços farmacêuticos, como o manejo de problema de saúde autolimitado e o acompanhamento farmacoterapêutico.
Considerações finais
Neste trabalho, a captura das percepções, opiniões e relatos dos farmacêuticos sobre a dinâmica da sua prática profissional, além da observação da não execução da prescrição farmacêutica, trouxe uma oportunidade para identificar alguns dos fatores que podem estar impedindo o exercício dessa atividade nas farmácias comunitárias públicas e privadas. Os resultados, ao fim, mostraram que a implementação da prescrição farmacêutica ultrapassa a iniciativa individual do profissional e necessita de estratégia junto à equipe do estabelecimento, assim como na gestão. Adaptar rotinas ou contratar pessoal se mostraram as principais modificações necessárias. Paralelamente, urgem ações destinadas a melhorar a formação e a educação continuada do farmacêutico, abrindo o campo profissional para novos horizontes de atuação e o desenvolvimento de um farmacêutico seguro para performar em novas atribuições da profissão.
Apesar de um estudo de avaliabilidade normalmente anteceder um estudo de avaliação, este último pode não acontecer, já que os resultados do primeiro podem identificar problemas que inviabilizam a avaliação, como incompatibilidades no modo de conceber o programa. Pode, ainda, mostrar que os dados necessários para a avaliação não são passíveis de serem coletados, que é o caso deste estudo. Por essas características, os estudos de avaliabilidade asseguram que os recursos limitados destinados à avaliação possam ser utilizados da maneira mais apropriada e no momento certo (Colussi ., 2021COLUSSI, C. F. et al. Estudo de avaliabilidade do Programa Multicêntrico de Qualificação Profissional em Atenção Domiciliar a Distância (PMQPAD). Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 10, e00081920, 2021.). Esta é uma contribuição deste estudo.
Podem-se apontar algumas limitações na realização deste estudo: os dados aqui são localizados em Vitória, não sendo possível extrapolá-los para outras regiões do país; pode ter ocorrido viés de seleção da amostra pelo recrutamento dos sujeitos ter sido feito pela amostragem em bola de neve; e por fim, a percepção de facilitadores e barreiras é de farmacêuticos que não realizam a prescrição, não sendo possível prever qual a percepção que farmacêuticos prescritores teriam sobre a prescrição farmacêutica.
No ano de 2023, a regulamentação da prescrição farmacêutica faz 10 anos. Sendo assim, mais estudos são necessários para ampliar a compreensão sobre o cenário atual e construir caminhos para uma implementação da prescrição farmacêutica no SUS e nas numerosas farmácias comunitárias privadas presentes pelo país.1
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
09 Fev 2023 - Aceito
06 Jun 2023 - Revisado
23 Abr 2023