Influência dos indicadores socioeconômicos na distribuição dos casos suspeitos de dengue no município de São Carlos-SP

Influence of socioeconomic indicators on the distribution of suspected dengue

Anete Medeiros de Lima Ana Paula de Vechi Corrêa Silvia Carla da Silva André Uehara Sobre os autores

Resumo

O estabelecimento definitivo do Aedes aegypti nas Américas está associado às mudanças ambientais, urbanização desorganizada, ausência de água e saneamento básico e deslocamentos populacionais, definindo, assim, a trajetória da doença. O objetivo deste estudo foi analisar a distribuição espacial dos casos suspeitos de dengue e a relação com indicadores socioeconômicos no município de São Carlos-SP. Trata-se de estudo ecológico, realizado nesse município, em que foram utilizados dados secundários do Sistema de Informação sobre Agravos de Notificação no período de 2016 a 2017 e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do Censo Demográfico de 2010. Os dados foram analisados por meio da Análise de Componentes Principais pelo software Statistica 12.0 e os mapas temáticos foram gerados pelo software Arcgis versão 10.5. Os resultados mostraram elevadas taxas de casos suspeitos de dengue em áreas de ponderação com condições sociais adequadas e taxas reduzidas em áreas de ponderação com iniquidades sociais. Concluiu-se que o perfil de casos suspeitos por dengue na população de São Carlos não está relacionado a baixos indicadores socioeconômicos, uma vez que a dinâmica e a mobilidade populacional relacionadas ao elevado fluxo de universitários podem influenciar no padrão de distribuição espacial da doença.

Palavras-Chave:
Vírus da dengue; Indicadores sociais; Indicadores econômicos; Análise espacial

Abstract

The definitive establishment of Aedes aegypti in the Americas is associated with environmental changes, disorganized urbanization, lack of water and basic sanitation and population displacement, thus defining the trajectory of the disease. The aim of this study was to analyze the spatial distribution of the dengue suspected cases and understand its correlation with the socioeconomic indicators in the city of São Carlos (SP). This is an ecological study, carried out at the São Carlos (SP). Secondary data from the Information System on Notifiable Diseases in the period from 2016 to 2017 and from the Brazilian Institute of Geography and Statistics of the 2010 Demographic Census were used. The data were analyzed using Principal Component Analysis (ACP) by the software Statistica 12.0 and the thematic maps were generated by the software Arcgis version 10.5. The results showed high rates of suspected dengue cases in areas with adequate social conditions and reduced rates in areas with worst social condition. It was concluded that the outline of suspected dengue cases in the population of São Carlos (SP) is not related to low socioeconomic indicators, once the population dynamics and mobility related to the high flow of university students can influence the pattern of spatial distribution of the disease.

Keywords:
Dengue virus; Social indicators; Economic indicators; Spatial analysis

Introdução

As arboviroses representam uma ameaça à saúde pública e diversos fatores contribuem para a transmissão viral, como mudanças climáticas, desmatamentos clandestinos, ocupações populacionais desordenadas, condições sanitárias inadequadas e dificuldade de implementação de medidas sanitário-educativas para prevenção dessas doenças e controle efetivo dos vetores (Cleton ., 2012CLETON, N. et al. Come fly with me: Review of clinically important arboviruses for global travelers. J. Clin. Virol., 2012, v. 55, n. 3, p.191–203.).

O mosquito Aedes aegypti (Linnaeus, 1762) é o principal vetor de transmissão do vírus Dengue, infectando mais de 390 milhões de pessoas anualmente no mundo. É transmitido aos seres humanos por meio da picada do mosquito fêmea do A. aegypti infectado (Chotiwan ., 2015CHOTIWAN, N. et al. Impact of Dengue Virus Infection on Global Metabolic Alterations in the Aedes aegypti Mosquito Vector. New Horizons in Translational Medicine, 2015, v. 2, n. 4, p.130.). O estabelecimento definitivo do A. aegypti nas Américas está associado às mudanças climáticas, desmatamentos, urbanização desorganizada, ausência de água e saneamento básico e deslocamentos populacionais. Esses fatores definem a trajetória das doenças, influenciados pela pressão da mutação viral e adaptações genéticas dos vírus e hospedeiros, vetores e novos ambientes (Donalisio; Freitas, 2016DONALISIO, M. R.; FREITAS, A. R. R.; VON ZUBEN, A. P. B. Arboviroses emergentes no Brasil: desafios para a clínica e implicações para a saúde pública. Rev Saúde Pública, 2017, v. 31, n. 30, p.10-5.).

No ano de 2016, o Brasil enfrentou uma grande epidemia de dengue, na qual foram registrados 1.500.535 casos, com incidência de 733,4 casos/100 mil habitantes (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Monitoramento dos casos de dengue, febre de chikungunya e febre pelo vírus Zika até a Semana Epidemiológica 52, 2016.). Já em 2017, foram registrados 252.054 casos de dengue no país, com incidência de 122,3 casos /100 mil habitantes (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Monitoramento dos casos de dengue, febre de chikungunya e febre pelo vírus Zika até a Semana Epidemiológica 52, 2017.). Em 2020, com o advento da pandemia de Covid-19, houve queda no número de casos notificados da doença no mesmo momento em que as ações contra a Covid-19 se iniciaram (LeandroLEANDRO, C. dos S.; BARROS, F. B. de; CÂNDIDO, E. L.; AZEVEDO, F. R. de. Reduction of dengue incidence in Brazil in 2020: control or sub notification of cases due to COVID-19? Research, Society and Development, v. 9, n. 11, p. e76891110442, 2020. DOI: 10.33448/rsd-v9i11.10442.et al., 2020). Entretanto, com a diminuição dos casos de Covid-19, o Brasil vem passando por um aumento significativo nos casos de dengue, sendo que até a primeira semana de abril de 2022 ocorreram 393.967 casos prováveis de dengue, com uma taxa de incidência de 184,7 casos/100 mil hab. Quando analisados os dados do mesmo período de 2021, houve aumento de 95,2% de casos registrados (Brasil, 2022BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Monitoramento dos casos de arboviroses até a semana epidemiológica 14 de 2022. Boletim Epidemiológico, 2022, v. 53, n.14.).

O impacto das arboviroses na morbimortalidade se intensifica à medida que extensas epidemias acometem grande número de indivíduos, com implicações sobre os serviços de saúde, principalmente diante da ausência de tratamento, vacinas e outras medidas efetivas de prevenção e controle (Donalisio; Freitas, 2016). A aceitação de que determinantes biológicos, socioeconômicos e ambientais estão associados à dispersão da maioria das arboviroses exige estratégias de caráter intersetorial que transcendem às ações exclusivas de controle químico do vetor (Caprara ., 2015CAPRARA, A. et al. Entomological impact and social participation in dengue control: a cluster randomized trial in Fortaleza, Brazil. Trans R Soc Trop Med Hyg, 2015, v. 109, n. 2, p. 99-105.).

A associação entre os casos de dengue e fatores socioeconômicos e ambientais; bem como em comunidades com maior densidade demográfica, piores fatores socioeconômicos e deficiência no abastecimento de água e saneamento básico apresentam uma maior taxa de incidência da doença (Causa ., 2020CAUSA, R. et al. Emerging arboviruses (dengue, chikungunya, and Zika) in Southeastern Mexico: influence of socio-environmental determinants on knowledge and practices. Cad. Saúde Pública, 2020, v. 36, n. 6, p. 7.). Assim, a relação entre determinantes ambientais e fatores climáticos sob a dinâmica das endemias e epidemias, devido à alta densidade vetorial, presença de indivíduos susceptíveis e intensa circulação de pessoas em áreas endêmicas, aumentam a possibilidade de ocorrência de doenças infecciosas (Mendonça et al., 2009).

A melhor forma de prevenção da dengue é o controle de vetores, sendo o domicílio e peridomicílio os principais locais onde são encontrados os criadouros do A. aegypti. Portanto, é fundamental o envolvimento da população e órgãos públicos no desenvolvimento de ações que eliminem criadouros, sendo essas ações disparadas a partir da identificação de casos suspeitos da doença (Brigadão; Correa, 2017). A infecção pelo vírus dengue gera um alto índice de suspeita clínica, logo, os casos suspeitos devem ser classificados e tratados como possível dengue, avaliando os sinais de alarme que determinam a conduta clínica. A estrutura e a gestão do cuidado devem considerar uma característica importante da doença, que é sua rápida evolução para formas graves. Com isso, os sinais de alarme devem ser revistos rotineiramente pelos profissionais de saúde a fim de reduzir a morbimortalidade (Frantchez ., 2016FRANTCHEZ, D. V. et al. Dengue en adultos: diagnóstico, tratamiento y abordaje de situaciones especiales. Rev Méd Urug, 2016, v. 32, n. 1, p. 43-51.).

No Brasil, há poucos trabalhos que discutem casos suspeitos de dengue e associação com variáveis socioeconômicas, destacando-se alguns estudos realizados no âmbito hospitalar (Duarte; França, 2016DUARTE, H. H. P.; FRANÇA, E. B. Qualidade da vigilância epidemiológica da dengue em Belo Horizonte, MG. Rev Saúde Pública, v. 40, n. 1, p. 134-142, 2016.; Nascimento ., 2015NASCIMENTO, L. B. et al. Caracterização dos casos suspeitos de dengue internados na capital do estado de Goiás em 2013: período de grande epidemia. Epidemiol. Serv. Saúde, v. 4, n.3, p. 475-484, 2015.). Em Belo Horizonte-MG, estudo analisou a qualidade dos dados de casos suspeitos hospitalizados, contidos no sistema de vigilância epidemiológica (Duarte; França, 2016DUARTE, H. H. P.; FRANÇA, E. B. Qualidade da vigilância epidemiológica da dengue em Belo Horizonte, MG. Rev Saúde Pública, v. 40, n. 1, p. 134-142, 2016.). Já em Goiânia-GO, foi analisado o perfil clínico-epidemiológico e distribuição espacial dos casos suspeitos de dengue hospitalizados (Nascimento ., 2015NASCIMENTO, L. B. et al. Caracterização dos casos suspeitos de dengue internados na capital do estado de Goiás em 2013: período de grande epidemia. Epidemiol. Serv. Saúde, v. 4, n.3, p. 475-484, 2015.). Em Teresina (Piauí), pesquisa avaliou o perfil clínico epidemiológico dos casos suspeitos de dengue em um bairro do município (Ribeiro; Sousa; Araujo, 2008).

Estudos supracitados trazem resultados referentes aos casos suspeitos de dengue, porém, apresentam lacunas por não investigarem a relação entre distribuição dos casos suspeitos de dengue e indicadores socioeconômicos (Duarte; França, 2016DUARTE, H. H. P.; FRANÇA, E. B. Qualidade da vigilância epidemiológica da dengue em Belo Horizonte, MG. Rev Saúde Pública, v. 40, n. 1, p. 134-142, 2016.; Nascimento ., 2015NASCIMENTO, L. B. et al. Caracterização dos casos suspeitos de dengue internados na capital do estado de Goiás em 2013: período de grande epidemia. Epidemiol. Serv. Saúde, v. 4, n.3, p. 475-484, 2015.; Ribeiro; Sousa; Araujo, 2008RIBEIRO, P.C.; SOUSA, D. C.; ARAUJO, T. M. E. Perfil clínico-epidemiológico dos casos suspeitos de Dengue em um bairro da zona sul de Teresina, PI, Brasil. Rev Bras Enferm., v. 61, n. 2, p. 227-32, 2008.). Nesse contexto, este estudo visa minimizar essa lacuna, além de ressaltar a importância de estudos realizados com casos suspeitos de dengue, uma vez que as ações de prevenção e controle da doença são planejadas a partir da suspeita da doença, a fim de reduzir o seu impacto na população e nos serviços de saúde. Assim, este estudo teve como objetivo analisar a distribuição espacial dos casos suspeitos de dengue e a relação com os indicadores socioeconômicos no município de São Carlos-SP.

Métodos

Trata-se de um estudo ecológico com medidas múltiplas de análise (Fronteira, 2013FRONTEIRA, I. Estudos Observacionais na Era da Medicina Baseada na Evidência: Breve Revisão Sobre a Sua Relevância, Taxonomia e Desenhos. Acta Médica Portuguesa, 2013, v. 26, n. 2, p. 161-170.). Essa metodologia considera que a unidade de análise é formada por grupos de indivíduos em uma área geográfica definida (Magalhães, 2012MAGALHÃES, G.B.O. Uso do Geoprocessamento e da Estatística nos Estudos Ecológicos em Epidemiologia: O Caso da Dengue em 2008 na região metropolitana de Fortaleza. Hygeia, v. 8, n. 15, p. 63-77, 2012.).

Estudo realizado no Serviço de Vigilância Epidemiológica do município de São Carlos (SP). Os dados referentes aos casos suspeitos de dengue foram provenientes do Sistema de Informação sobre Agravos de Notificação (SINAN), no período de 2016 a 2017. Considera-se que o Ministério da Saúde define como caso suspeito de dengue toda pessoa que apresenta febre com duração média de sete dias e a presença de pelo menos mais dois sintomas característicos da doença, além de ter visitado ou morar em área em que esteja ocorrendo a transmissão de dengue ou tenha a presença de A. aegypti nos últimos 15 dias (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretoria Técnica de Gestão. Dengue: diagnóstico e manejo clínico – adulto e criança. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/dengue_diagnostico_manejo_adulto_crianca_3ed.pdf>.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

Para coleta dos dados, foi utilizado um checklist com base nas informações contidas na ficha de investigação de dengue do Ministério da Saúde. Para este estudo, foram coletadas as informações referentes a data da notificação, município de notificação, escolaridade, município de residência, bairro e logradouro. Os casos notificados que não residiam no município de São Carlos-SP foram excluídos.

As variáveis selecionadas relacionadas às dimensões renda, escolaridade e acesso à água foram selecionadas dos arquivos de Resultados Gerais da Amostra disponibilizadas no Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2017INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades, 2017. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-carlos/panorama>. Acesso em: 19 abr. 2019.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sa...
).

Os indicadores socioeconômicos incluem renda e escolaridade e o indicador ambiental de acesso à água foi excluído, uma vez que todas as APOND do município têm acesso à água canalizada, ou seja, não existem domicílios e/ou população sem acesso à água; logo, essa variável não interferiu nas análises (IBGE, 2017INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades, 2017. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-carlos/panorama>. Acesso em: 19 abr. 2019.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sa...
). Portanto foram analisados apenas os indicadores socioeconômicos (Tabela 1).

Tabela 1
Variáveis socioeconômicas das áreas de ponderação de São Carlos-SP, segundo o Censo Demográfico 2010, selecionadas para a construção dos indicadores sociais e ambientais

Para a construção dos indicadores socioeconômicos e ambientais foram utilizados dados oriundos da unidade de análise de 14 Áreas de Ponderação (APOND) de São Carlos, delineados pelo Censo Demográfico de 2010. Ressalta-se que foi excluída a APOND 14, por se tratar da área rural do município, não contemplada neste estudo.

A organização dos indicadores socioambientais foi processada no software Statistica versão 12.0, utilizando-se a técnica de Análise de Componentes Principais (ACP) que possibilitou por combinações lineares a seleção das variáveis mais representativas em cada indicador ou componente (Spencer, 2014SPENCER, N. H. Essentials of Multivariate Data Analysis. CRC Press: Taylor & Francis Group, 2014. 180 p.). No que se refere à seleção dos indicadores ou componentes foi utilizado o critério proposto por Kaiser (1958KAISER, H.F. The varimax criteria for analytical rotation in factor analysis. Psychometrica, v.23, p. 141-51, 1958.) no qual somente foram considerados autovalores acima de um, pois geram componentes com quantidade relevante de informações das variáveis originais (Ferraudo, 2012).

Após a seleção dos componentes e/ou indicadores socioeconômicos e ambientais e verificação das características dos mesmos quanto à composição (variância) de variáveis originais, procedeu a realização do cálculo dos escores (indicadores socioeconômicos) para as APOND, com posterior obtenção dos mapas temáticos.

A geocodificação dos casos suspeitos de dengue foi obtida pela exportação das tabelas do Excel para o Fusion Tables da Google; posteriormente, foi realizado a importação da lista para o Google Earth Pro que adicionou as coordenadas nos pontos decodificados. Foi obtida uma base cartográfica do município de São Carlos, com as divisões das APOND, no formato shapefile. Na sequência, por meio de manipulação do Google Earth, os casos suspeitos geocodificados foram distribuídos nas respectivas APOND.

Na etapa final do processo de análise, para a geração dos mapas temáticos, os dados foram importados para o software Arcgis no formato shapefile. Ainda, foram calculadas as taxas de casos suspeitos (equação 1) multiplicando o número de casos suspeitos por 10.000 em cada ano estudado, e dividindo-se pelo total da população residente em cada APOND (Taxa de casos suspeitos = no de casos da doença x 10.000 / população total).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Carlos, CAAE 68686017.9.0000.5504.

Resultados

Foram registrados nos anos de 2016 e 2017, respectivamente, 4552 e 1114 casos suspeitos de dengue, totalizando 5.666 casos suspeitos nos dois anos.

Na análise dos indicadores socioeconômicos, por meio do cruzamento das variáveis quantitativas de Resultados Gerais de Amostra do IBGE, juntamente com a delimitação das APOND do município e das cargas dos componentes principais dos indicadores de renda e escolaridade foi possível inferir as características das áreas de ponderação. A junção dos dados permitiu mostrar as APOND com melhores condições socioeconômicas, devido a maior carga e representatividade de cada variável.

Para o indicador de renda, no componente PC1, as variáveis mais representativas foram V6 (Proporção de domicílios com renda per capita mensal de três a cinco salários mínimos), V7 (Proporção de domicílios com renda per capita mensal de mais de cinco salários mínimos) e V5 (Proporção de domicílios com renda per capita mensal de dois a três salários mínimos), explicando juntos 94,72% da variância total (Tabela 2).

Tabela 2
Cargas dos componentes principais para o indicador renda

Dentre as áreas de ponderação com maior concentração desse indicador, destacam-se: Vila São José, Vila Isabel, Jardim Beatriz, Vila Prado, Jockey Clube e Sabará. Ressalta-se que nessas APOND estão concentrados bairros de classe média e, neste estudo, a renda da maioria dos casos suspeitos foi de três a mais de cinco salários mínimos. A APOND 8 Cidade Aracy foi considerada a área com menor renda, sendo a mais distante das variáveis representativas.

No indicador de escolaridade, os componentes PC8 e PC9 explicam, juntosm 93,94% da variância total, indicando as variáveis mais representativas. Logo, para PC8 a variável mais representativa é a variável V11 (Proporção de pessoas de dez anos ou mais de idade com nível superior completo) e para PC9 são as variáveis V8 (Proporção de pessoas de dez anos ou mais de idade sem instrução e ensino fundamental incompleto) e V9 (Proporção de pessoas de dez anos ou mais de idade com ensino fundamental completo e médio incompleto) (Tabela 3).

Tabela 3
Cargas dos componentes principais para o indicador escolaridade

As variáveis V8 e V9 estão concentradas nas APOND Maria Stella Fagá, Cruzeiro do Sul e Jardim Beatriz, caracterizadas por bairros periféricos da cidade, que foram agrupados devido à baixa escolaridade (pessoas sem instrução até o ensino médio incompleto). Já as APOND 1, 2, 5 e 11 correspondentes as regiões Centro, Cidade Jardim, Sabará e Planalto Paraíso foram representadas na V11, que indica maior escolaridade (ensino superior completo).

Assim, as APOND com melhores indicadores socioambientais foram Cidade Jardim, Planalto Paraíso, Vila Prado, Sabará, Jardim Beatriz, Vila São José, Jockey Clube e Sabará. Por outro lado, a análise retratou que as demais APOND exprimiram condições inferiores de moradia, baixa renda e baixa escolaridade. Foi possível identificar as APOND que não associaram com as variáveis mais representativas, logo, foram consideradas áreas com maior vulnerabilidade social, sendo as APOND da Cidade Aracy, Cruzeiro do Sul, Maria Stella Fagá e Vila Isabel, caracterizadas por uma distribuição irregular de renda e consequente desigualdade social.

De um total de 5.666 casos suspeitos de dengue nos dois anos, 3.779 (66,70%) casos foram identificados na base cartográfica do Google Earth, ocorrendo perda de 1.576 (27,81%) casos suspeitos referentes a endereços incompletos registrados no SINAN, e 311 (5,50%) casos suspeitos com perdas de endereços fora dos limites das APOND.

A taxa de casos suspeitos de dengue, em 2016, em São Carlos foi maior do que no ano de 2017. Para os dois anos, as maiores taxas de morbidade concentraram-se nas APOND Centro e Cidade Jardim, respectivamente, com 290,94 e 259,10 casos suspeitos/10.000 habitantes para o ano de 2016 e, respectivamente, 43,68 e 52,91 casos suspeitos/10.000 habitantes no ano de 2017 (Tabela 4).

Tabela 4
Taxa de casos suspeitos de dengue, por área de ponderação, no município de São Carlos-SP, nos anos de 2016 e 2017

A Figura 1 mostra a distribuição espacial dos casos suspeitos de dengue nas APOND, mostrando a concentração dos casos nas regiões com melhores indicadores socioeconômicos, nos anos de 2016 e 2017, respectivamente.

Figura 1
Distribuição espacial dos casos suspeitos de dengue em 2016 e 2017, por área de ponderação

Discussão

As condições existentes em regiões de vulnerabilidade social representam riscos para a saúde da população, visto que a saúde é um produto social, influenciada pelo espaço urbano, tornando as pessoas vulneráveis a surtos de doenças infecciosas e causadas por vetores, como as arboviroses, que têm sua presença relacionada às características ambientais existentes no local (Mendonça et al.,2009).

Neste estudo, enfatiza-se que algumas APOND caracterizadas com bons indicadores socioeconômicos, também foram apontadas nesse cenário de desigualdade social, como Jockey Clube, Planalto Paraíso e Cidade Jardim. A presença de desigualdades social, econômica e ambiental na cidade é comum, como nos mais diversos municípios brasileiros.

A relação entre arboviroses e indicadores sociais, econômicos e ambientais implica em maiores taxas de incidência dessas doenças em populações expostas a maior vulnerabilidade social. Nesse contexto, condições socioeconômicas adequadas podem ser consideradas fatores protetores em relação à dengue (Mendonça et al.,2009; Causa ., 2020CAUSA, R. et al. Emerging arboviruses (dengue, chikungunya, and Zika) in Southeastern Mexico: influence of socio-environmental determinants on knowledge and practices. Cad. Saúde Pública, 2020, v. 36, n. 6, p. 7.).

Pesquisa sobre a distribuição espacial e temporal dos casos de dengue no Brasil entre 2001 e 2012, revelou associação inversa entre o Produto Interno Bruto (PIB) e o risco de dengue, ou seja, quanto maior o PIB menor o risco de dengue (Rodrigues, 2016RODRIGUES, N. C. P. et al. Temporal and Spatial Evolution of Dengue Incidence in Brazil, 2001-2012. PLoS ONE, v. 11, n. 11, 2016.). Além disso, mostrou uma associação direta entre os níveis do índice de Gini (utilizado para medir a desigualdade de distribuição de renda) e o risco de dengue, ou seja, quanto maior o índice de Gini, maior o risco de dengue, e associação inversa entre a existência de rede de esgoto e o risco de dengue, ou seja, quanto menor a taxa de rede de esgoto, maior o risco de dengue (Rodrigues, 2016).

Por outro lado, estudos realizados nos estados da Paraíba e Maranhão mostraram que o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) teve correlação positiva com altos coeficientes de incidência por dengue. Esse resultado pode estar relacionado à melhor infraestrutura sanitária e acesso facilitado aos serviços de saúde, contribuindo para maior identificação e notificação dos casos de dengue (Silva ., 2020SILVA, E. T. C. et al. Análise espacial da distribuição dos casos de dengue e sua relação com fatores socioambientais no estado da Paraíba, Brasil, 2007-2016. Saúde Debate, v. 44, n. 125, p. 465-477, 2020.; Costa ., 2018COSTA, S. S. B. et al. Spatial analysis of probable cases of dengue fever, chikungunya fever and zika virus infections in Maranhão State, Brazil. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo, 2018, v.60, p. e62.). A ausência de associação entre incidência de dengue e fatores socioeconômicos também foi observada em estudo realizado em São José do Rio Preto-SP, levantando-se uma hipótese que a incidência da dengue pode estar relacionada a realidade particular de cada município e região (Mondini; Chiaravalloti, 2007MONDINI, A.; CHIARAVALLOTI NETO, F. Variáveis socioeconômicas e a transmissão de dengue. Rev. Saúde Pública, v. 41, n. 6, p. 923-930, 2007.).

Em relação aos indicadores socioeconômicos, destaca-se que São Carlos apresentou em 2010 um IDHM de 0,805, classificado na faixa de Desenvolvimento Humano Muito Alto (IDHM entre 0,800 e 1). A dimensão que mais contribuiu para o IDHM do município foi a longevidade, com índice de 0,863, seguida de renda, com índice de 0,788 e educação com índice de 0,766. A cidade ocupa a 28ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros segundo o IDHM (IBGE, 2017INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades, 2017. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-carlos/panorama>. Acesso em: 19 abr. 2019.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sa...
). Apesar do município de São Carlos ser polo educacional, o que contribui para níveis de escolaridade elevados da população, como apresentado neste estudo, no IDHM, a renda é considerada mais representativa do que a escolaridade. Porém, deve-se considerar a elevada mobilidade urbana, ou seja, a população acadêmica flutuante da cidade reflete em um menor índice da escolaridade comparado à renda.

Os sistemas econômicos concentradores de renda promovem não só desterritorialização, mas também, precarização das condições de vida da população. Territórios vulneráveis são caracterizados por oferta irregular de esgotamento sanitário, abastecimento de água, coleta de resíduo e drenagem de águas pluviais que potencializam a ocorrência de arboviroses, cuja determinação social está associada a baixos padrões de saneamento ambiental e condições de vida (Fernandes, 2018FERNANDES, V. R. et al. Desnaturalizar as ‘endemias de estimação’: mobilização social em contextos das arboviroses no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2018, p. 1-20.).

Outro fator que se associa com uma maior incidência de arbovirose é o nível de escolaridade. Estudo sobre dengue em Alfenas-MG, mostrou que a maioria dos casos possuía uma maior escolaridade, contrariando estudos que relacionaram maior número de casos de dengue com menor escolaridade (Silva ., 2019SILVA, A. C. R. et al. Informação sobre dengue entre usuários da estratégia saúde da família. Biológicas & Saúde, v. 9, n. 29, 2019.). Os autores inferiram que esse resultado poderia estar relacionado ao fato de que maior escolaridade e maior renda condicionam maior mobilidade geográfica às pessoas (trabalho, passeios, turismo), consequentemente, pessoas nessa situação poderiam estar mais expostas a ambientes com maior infestação do vetor. Uma segunda hipótese seria que pessoas com maior escolaridade possuem maior acesso a meios de confirmação diagnóstica, por ser o maior número de usuários de planos de saúde (Silva ., 2019SILVA, A. C. R. et al. Informação sobre dengue entre usuários da estratégia saúde da família. Biológicas & Saúde, v. 9, n. 29, 2019.).

Outra semelhança entre a cidade de Alfenas-MG e São Carlos-SP é serem reconhecidas como cidades universitárias e elevada concentração estudantil. Assim, a elevada escolaridade dos casos suspeitos de dengue no município de São Carlos, bem como a alta taxa de casos suspeitos, principalmente nas APOND com maior concentração de estudantes e próximas aos centros educacionais, faz deduzir a existência de associação e influência das universidades na dispersão e concentração da dengue.

Nesse cenário, a compreensão do papel das universidades como agente da (re)estruturação urbana e econômica das cidades torna-se importante, tanto em razão do volume de recursos financeiros movimentados, quanto pela modificação de dinâmicas intraurbanas (moradia, circulação) e do cotidiano dos moradores (Baumgartner, 2015BAUMGARTNER, W. H. Cidades Universitárias, Cidades Médias, Cidades Pequenas: Análises Sobre o Processo de Instalação de Novos Campi Universitários. Espaço Aberto, PPGG-UFRJ, 2015, v. 5, n.1, p. 73-93.).

Pela realidade de São Carlos, supõe-se que a alta mobilidade populacional pode influenciar na difusão da dengue, visto que, de um lado maiores taxas de casos suspeitos se concentraram em APOND com bons indicadores socioeconômicos, regiões que abrigam parte das repúblicas estudantis. A alta aglomeração de pessoas e a mobilidade acadêmica nessas regiões, provavelmente é uma condição favorável a maior dispersão e morbidade da dengue.

Estudos realizados no Espírito Santo e interior de São Paulo mostraram que áreas com maior densidade populacional contribuem positivamente para o aumento no número de casos de dengue (Mondini; Chiaravalloti, 2007MONDINI, A.; CHIARAVALLOTI NETO, F. Variáveis socioeconômicas e a transmissão de dengue. Rev. Saúde Pública, v. 41, n. 6, p. 923-930, 2007.; HonoratoHONORATO, T. et al. Análise espacial do risco de dengue no Espírito Santo, Brasil, 2010: uso de modelagem completamente Bayesiana. Rev Bras Epidemiol., 2014, v. 17, n. supl2, p. 150-159.et al., 2010). A aglomeração de pessoas pode ser vista como fator determinante no alto número de casos suspeitos nas APOND próximas aos centros universitários da cidade e também nas APOND com intensa movimentação como nas regiões centrais e comerciais. Estudos evidenciaram o aumento na ocorrência da dengue e presença do vetor em ambientes com maior aglomeração de pessoas, como escolas, salas de aula, cinemas, mercados, igrejas e arredores (Ratanawong ., 2016RATANAWONG, P. et al. Spatial Variations in Dengue Transmission in Schools in Thailand. PLoS ONE, v. 11, n. 9, p. e0161895, 2016.; JohansenJOHANSEN, I. C.; CARMO, R. L.; ALVES, L. C. Desigualdade social intraurbana: implicações sobre a epidemia de dengue em Campinas, SP, em 2014.Cad. Metrop., 2016, v.18, n. 36.et al., 2016).

Um maior número de suspeitos nas APOND com os melhores indicadores socioeconômicos no município de São Carlos, também se baseia na maior proporção de casas térreas nessas regiões do que prédios. Estudo mostrou que a oviposição do mosquito é menor em construções mais altas, o que torna a participação dos prédios pequena nos índices de infestação pelo A. aegypti (Mondini; Chiararvalloti, 2007).

Os casos suspeitos de dengue no município de São Carlos estavam concentrados em APOND com melhores indicadores socioeconômicos, assim, ao considerar que as pessoas residentes nessas regiões possuem um acesso facilitado aos serviços de saúde e a planos privados, há consequentemente um aumento no número de notificações de casos suspeitos.

Por outro lado, as APOND que apresentaram taxas menores de casos suspeitos de dengue, são áreas que apresentam maior vulnerabilidade social e a maioria da população é dependente dos serviços de saúde oferecidos pelo Sistema Único de Saúde. Tendo em vista a elevada demanda de usuários aos serviços de saúde pública e o quadro de profissionais insuficiente, infere-se que parte dos casos suspeitos podem ser subnotificados, bem como não serem confirmados devido à escassez de exames laboratoriais, especialmente em epidemias. Este estudo, no entanto, mostra que as peculiaridades do município relacionadas a elevada escolaridade da população e acentuada mobilidade urbana proveniente da comunidade acadêmica, foram fatores determinantes para a elevada taxa de casos suspeitos em APOND com melhores indicadores socioeconômicos.

As limitações deste estudo referem-se às lacunas existentes no preenchimento da ficha de notificação de dengue. A inconsistência dos dados em campos e variáveis importantes, como por exemplo, endereço, além do preenchimento como “ignorado” ou sem preenchimento, dificultou a realização de análise em uma menor unidade geográfica.

Este estudo mostrou que o município de São Carlos apresenta diversidade na distribuição dos casos suspeitos de dengue em relação aos indicadores socioeconômicos, refletindo, possivelmente, a peculiaridade do município. Ressalta-se que outras variáveis não elucidadas neste estudo estão envolvidas com a ocorrência de dengue, como variação climática, índice de infestação pelo vetor, grau de imunidade da população, além de hábitos e atitudes da população.

A elevada taxa de casos suspeitos de dengue residentes em regiões com bons indicadores socioeconômicos mostra que a relação entre a distribuição dessa arbovirose e a relação entre os determinantes sociais, econômicos e ambientais ainda é controversa, dependendo sobretudo da realidade de cada município.

Agradecimento

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2021
  • Aceito
    10 Jul 2023
  • Revisado
    29 Abr 2022
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