Incorporação da PrEP no Brasil segundo a Teoria Fundamentada em Dados

Incorporation of PrEP in Brazil according to the Grounded Theory

Clarisse de Gusmão Castro Angela Fernandes Esher Moritz Luisa Arueira Chaves Maria Auxiliadora Oliveira Sobre os autores

Resumo

A profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP) no Brasil é uma das estratégias da prevenção combinada aprovada para incorporação no SUS em 2017. Dada a sua importância, este artigo tem como objetivo descrever e analisar a incorporação da PrEP no Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto, apresenta uma abordagem qualitativa, baseada nos pressupostos da Teoria Fundamentada em Dados. O processo de incorporação da PrEP no SUS foi apresentado em forma de figura, demonstrando as principais ações e argumentos de maneira cronológica. As principais categorias foram: atuação das organizações da sociedade civil e movimentos sociais; desenvolvimento das pesquisas; incorporação; implementação e ampliação da PrEP no Brasil; limites da prevenção focada no discurso sobre o uso do preservativo; principais temas de debate sobre PrEP; comunicação e níveis de informação; e contexto de desmonte das políticas de HIV/Aids. O conhecimento sobre os aspectos decisórios e de participação de atores interessados na trajetória da incorporação da PrEP pode contribuir em futuras experiências de incorporação e acesso de inovações à prevenção do HIV para as populações mais vulneráveis.

Palavras-Chave:
Profilaxia Pré-Exposição; HIV; Teoria Fundamentada em Dados; Incorporação de tecnologia em saúde

Abstract

Pre-Exposure Prophylaxis (PrEP) is an approved HIV combined prevention strategy incorporated in Brazil in 2017. Given its importance, this article aims to describe and analyze the incorporation of PrEP into the Unified Health System (SUS). The study presents a qualitative approach, based on Grounded Theory. PrEP incorporation process was presented through an explanatory figure, describing the main actions and arguments in a chronological manner. The main actions and arguments gathered into categories are the performance of civil society organizations and social movements; research development; incorporation; implementation and enhancement of PrEP in Brazil; limits of prevention focused on the discourse of condom use; key topics of debate on PrEP; communication and information levels; and context of dismantling of HIV/Aids policies. Knowledge about stakeholders’ decision-making and participation aspects in PrEP incorporation trajectory can contribute to future experiences in incorporating and accessing HIV prevention innovations for the most vulnerable populations.

Keywords:
Pre-Exposure Prophylaxis; HIV; Grounded Theory

Introdução

Avançamos para a quinta década da epidemia de HIV/Aids no Brasil e, apesar dos esforços, o número de novos casos ainda desafia a sociedade. Dados de 2020 do relatório da UNAIDS mostram que 1,5 milhão de pessoas infectaram-se pelo vírus HIV mundialmente (UNAIDS, 2021UNAIDS. Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS. Guia de Terminologia. 2017. https://unaids.org.br/terminologia/ Acesso em: 27 abr. 2020.
https://unaids.org.br/terminologia/...
).

No Brasil, segundo o Boletim Epidemiológico HIV/Aids de 2021, entre 2007 e junho de 2021, foram notificados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) 381.793 novos casos de infecção pelo HIV, 24,5% menos do que o registrado no ano anterior (Brasil/MS, 2021BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2021. Dez de 2021 http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2021/boletim-epidemiologico-hivaids-2021 Acesso em: 31 mar. 2022.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2021/bo...
). Além das subnotificações e baixo nível de testagem realizadas durante a pandemia de Covid-19 (ParentePARENTE, J. S. et al. O impacto do isolamento social na pandemia de COVID-19 no acesso ao tratamento e aos serviços de prevenção do HIV. Research, Society and Development, v. 10, n. 1, p. e28110111692, 13 jan. 2021.et al., 2021), estratégias de prevenção combinada podem ajudar a explicar tal redução.

A prevenção combinada, estratégia adotada pelo Brasil em 2013, considera as singularidades do indivíduo, definindo-a como “uma estratégia de prevenção que faz uso combinado de intervenções biomédicas, comportamentais e estruturais aplicadas no nível dos indivíduos, de suas relações e dos grupos sociais a que pertencem, mediante ações que considerem suas necessidades, especificidades e as formas de transmissão do vírus” (Brasil/MS, 2017a, p. 18).

Atualmente, as frentes de prevenção no Brasil são: testagem regular para o HIV; prevenção da transmissão vertical; diagnóstico, tratamento e imunização para as hepatites virais e infecções sexualmente transmissíveis (IST); programa de redução de danos; profilaxia pré-exposição (PrEP) e pós-exposição (PEP); o tratamento como prevenção (TcP) e uso de preservativos, lubrificante e gel (Brasil/MS, 2017bBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção Combinada do HIV/Sumário Executivo. Brasília: Ministério da Saúde, 2017b.). Apesar de evidências de pesquisas clínicas multicêntricas realizadas desde 2007 (Grant et al., 2010), o Brasil incorporou a PrEP em 1º. de dezembro de 2017, implementando-a a partir de 2018. O protocolo aprovado consiste na ingestão diária do medicamento Truvada® (tenofovir + emtricitabina).

Mundialmente, populações específicas, como homens que fazem sexo com homens (HSH), mulheres transexuais e travestis, e trabalhadoras do sexo podem ter, respectivamente, 25, 34 e 26 vezes mais chances de se infectar pelo HIV que outros grupos específicos (UNAIDS, 2021UNAIDS. Global HIV & AIDS statistics — 2021 fact sheet. Geneva: UNAIDS, 2021 https://www.unaids.org/en/resources/fact-sheet Acesso em: 01 abr. 2022.). No Brasil, estudos apontam na mesma direção, e a PrEP como estratégia essencial para redução da discrepância entre a prevalência dessas populações e da população geral (de 0,4%) (Brasil/MS, 2018).

Como a maioria das políticas e ações de enfrentamento ao HIV no Brasil, a incorporação da PrEP contou com a interação entre pesquisa, academia, governo e sociedade civil. Assim, este artigo tem como objetivo descrever e analisar a incorporação da PrEP no Sistema Único de Saúde (SUS).

Método

Este estudo faz parte da dissertação intitulada “Sociedade Civil e a Política da Profilaxia Pré-Exposição ao HIV no Brasil”, defendida em agosto de 2020, e apresenta uma abordagem qualitativa, baseada nos pressupostos da Teoria Fundamentada em Dados (TFD) na vertente construtivista, proposta por Charmaz (2006CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. London; Thousand Oaks, Calif: Sage Publications, 2006.).

Foram utilizadas, como fonte de dados, entrevistas semiestruturadas com 17 participantes, entre os quais estavam representantes de organizações da sociedade civil (OSC), gestores do governo das esferas central e estadual no momento da formulação ou incorporação da PrEP e pesquisadores vinculados aos ensaios clínicos da PrEP no Brasil.

As entrevistas foram conduzidas entre novembro de 2019 e janeiro de 2020, explorando aspectos da percepção do entrevistado sobre os argumentos e ações dos principais atores envolvidos no processo de incorporação da PrEP no SUS. O uso de roteiro semiestruturado deu liberdade aos entrevistados para discorrer sobre o tema. Utilizaram-se três grupos de perguntas: o primeiro, com questões sobre o histórico profissional do entrevistado e início do trabalho com a PrEP; o segundo, sobre a percepção pessoal no primeiro momento de contato com a discussão e como se posicionavam os principais atores no entorno; e o terceiro, com questões que recuperaram a construção de posicionamentos institucionais, buscando a memória dos principais conflitos de ideias e atividades desenvolvidas sobre a PrEP.

Análise dos dados

Após a coleta de dados, o material foi transcrito e organizado utilizando o software R no módulo RQDA. Seguindo orientações de Charmaz (2006CHARMAZ, K. Constructing grounded theory. London; Thousand Oaks, Calif: Sage Publications, 2006.), relatos de seis entrevistas foram analisados e codificados linha a linha, utilizando frases no gerúndio para observar os processos e ações que pertencem à incorporação da PrEP no Brasil. Essa codificação inicial objetivou criar códigos que emergiram estritamente dos relatos dos entrevistados e o afastamento das pesquisadoras na construção de códigos preconcebidos.

Na segunda etapa, realizou-se a codificação reorientada com as demais entrevistas; depois, foram selecionados códigos mais significativos ao objeto do estudo, reorganizando a grande quantidade de dados em códigos. Os códigos foram regularmente comparados entre si, de forma a refinar seus conceitos, propriedades, atributos e relações.

Após a codificação de todas as entrevistas, realizaram-se revisão e comparação entre os códigos, de maneira que pudessem ser agrupados em categorias, selecionando, novamente, aqueles códigos mais relevantes para o objeto do estudo. Nesta categorização, houve a preocupação de realizar o agrupamento em categorias que pertenciam a dois grandes grupos: argumentos e discussões sobre o tema e ações.

Todo esse processo foi acompanhado da escrita de memo que ajudou a relatar a descrição teórica dos códigos e, ao fim, todas as categorias e subcategorias foram apresentadas em uma imagem, de forma a explicar, de maneira visual, o fenômeno analisado nesta pesquisa.

Questões éticas

A pesquisa foi registrada com CAAE 14134919.50000.5240, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz, com o parecer número 3.427.883.

Resultados e Discussão

A transformação dos dados das entrevistas em códigos e categorias permitiu construir uma figura explicativa que apresenta as especificidades do processo de incorporação e implementação da PrEP como uma estratégia da prevenção combinada no Brasil (Figura 1). Neste artigo, serão apresentados os resultados e discussão de categorias e códigos dispostos até a fase de incorporação da PrEP.

Figure 1
Figura explicativa sobre o processo de formulação, incorporação e implementação da PrEP no Brasil

Para a configuração da figura, categorias e códigos foram dispostos em ordem cronológica dos acontecimentos, porém, entendendo que algumas ações ou discussões perpassam diversos momentos nessa linha do tempo. A relação entre diferentes momentos foi representada por setas pontilhadas na figura ou inseridas duas setas nas categorias em que foram observadas ações ao longo de toda linha do tempo.

As categorias apresentadas dentro de retângulos representam as principais ações ou momentos mais importantes do processo. São elas: atuação das OSC e movimentos sociais; desenvolvimento das pesquisas; incorporação; implementação e ampliação da PrEP no Brasil. As categorias apresentadas em círculos representam discussões e argumentos identificados ao longo de todo o processo. São elas: limites da prevenção focada no discurso sobre o uso do preservativo; principais temas de debate sobre PrEP; comunicação e níveis de informação; e intensificação do contexto de desmonte e silenciamento das políticas de HIV/Aids. Os códigos foram apresentados como desdobramentos das categorias ao longo da linha do tempo.

PrEP como estratégia da prevenção combinada

Apesar de o foco deste estudo ser a incorporação da PrEP, houve destaque, nas entrevistas, para a necessidade de que todas as formas de prevenção estejam acessíveis às populações. A PrEP seria mais uma estratégia da mandala de possibilidades e, por isso, destacamos como categoria norteadora na figura, o código PrEP como estratégia da prevenção combinada.

As entrevistas apontaram que são diversas as situações do indivíduo lidar com sua sexualidade e relações afetivas ou profissionais, e que podem levá-lo a não usar o método. Terto Jr. afirma que “diferentes tecnologias, métodos e estratégias são necessários para garantir a adesão cada vez maior de indivíduos e grupos vulneráveis” (Terto Jr., 2015TERTO JR., V. Different preventions methods lead to different choices? Questions on HIV/AIDS prevention for men who have sex with men and other vulnerable populations. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 18, n. Suppl 1, p. 156-168, 2015., p. 160). Logo, aumentar as alternativas para a escolha do indivíduo à prevenção ou redução do dano valoriza a autonomia e aumenta a oportunidade de se prevenir.

Ou para aqueles que chegavam para mim: “Mas doutora, eu não posso mais amar.” [...], mas a gente não podia fazer nenhuma recomendação robusta para além do uso da camisinha. Então, eu acho que a PrEP traz esperança, ela traz esperança de liberdade dessas relações. (Representante de Governo)

Além de reconhecida como uma alternativa para pessoas com limitada autonomia na negociação do uso de preservativos, como as que vivem em contexto de violência ou trabalho sexual, pode ser ainda usada de forma conjugada para parceiros(as) de pessoas vivendo com HIV com carga viral detectável ou desconhecida e que usam preservativos de forma inconsistente (ZucchiZUCCHI, E. M. et al. Da evidência à ação: desafios do Sistema Único de Saúde para ofertar a profilaxia pré-exposição sexual (PrEP) ao HIV às pessoas em maior vulnerabilidade. Cad Saúde Pública [Internet]. 2018;34(7):e00206617. Available from: https://doi.org/10.1590/0102-311X00206617et al., 2018).

Limites da prevenção focada no discurso sobre o uso do preservativo

A proposição do uso do preservativo como estratégia de prevenção ao HIV surgiu nos anos 1980, como resistência do movimento gay dos EUA às políticas de abstinência e isolamento propostas pelas autoridades de saúde pública (Pinheiro; Calazans; Ayres, 2013PINHEIRO, T. F.; CALAZANS, G. J.; AYRES, J. R. C. M. Uso de Camisinha no Brasil: um olhar sobre a produção acadêmica acerca da prevenção de HIV/Aids (2007-2011). Temas em Psicologia, p. 815-836, 2013.). As entrevistas apontaram que, assim como qualquer outra nova tecnologia (anticoncepcional, PEP etc.), a introdução do preservativo como método de prevenção passou por conflitos e resistências de setores da população. Porém, até o momento, o preservativo continua sendo a estratégia mais acessível e disponível em todo o mundo para a prevenção do HIV e demais IST.

Para alguns profissionais de saúde e ativistas entrevistados, a “doutrinação” do uso da camisinha, ou insistência em campanhas e orientações massivas pelo uso do preservativo como único método de prevenção tem se mostrado ineficaz para controlar a epidemia. Pinheiro e colegas (2013, p. 817) identificam esse fenômeno como “fadiga do preservativo”. Apesar de esses profissionais reconhecerem o importante papel do preservativo, sobretudo na transmissão de outras IST, ponderam que sobretudo as populações mais vulneráveis têm dificuldade de utilizar ou negociar o uso do preservativo.

Eu nunca vi os dados do uso do preservativo superarem os 40%. Isso mostra que as pessoas não utilizavam preservativo de forma que se prevenissem. [...] O mantra ‘Use camisinha!’ se mostrou ineficaz e não estava funcionando mais. (Integrante de equipe de Pesquisa Clínica)

Temas de debate relacionados à PrEP

Galea, Baruch e Brown (2018GALEA, J. T.; BARUCH, R.; BROWN, B. ¡PrEP Ya! Latin America wants PrEP, and Brazil leads the way. Lancet HIV, v. 5, n. 3, p. e110-e112, fev. 2018., p.111) indicam que o “conhecimento insuficiente entre os formuladores de políticas, medo do aumento dos gastos associados à PrEP, criminalização de comportamentos sexuais, e estigma e discriminação” contribuíram para o atraso na implementação da PrEP nos países da América Latina. No Brasil, atreladas a esses temas, questões relativas à análise da patente do Truvada®, sua aprovação pela Anvisa e algumas decisões como a priorização da mudança no tratamento e o quantitativo da primeira compra do medicamento marcaram a postergação do início da implementação da PrEP pelo SUS.

As entrevistas mostraram que, após mais de quinze anos dos primeiros anúncios sobre a PrEP e inúmeros dados científicos comprobatórios sobre sua eficácia, custo-efetividade, aderência; posicionamentos individuais e institucionais, questionadores da PrEP ainda podem ser escutados em debates atuais e na mídia.

O tema medicalização da prevenção” merece destaque, pois, de acordo com entrevistados, a tecnologia de prevenção não deve vir sozinha, mas acompanhada do aconselhamento, do atendimento acolhedor, além de ações para solucionar questões como acesso, vulnerabilidades e desigualdades econômicas e sociais.

Nós sempre tivemos e temos uma crítica contra esse olhar puramente biomédico sem ver todo o contexto social e estrutural. [...] é nosso discurso até hoje, contra esse discurso biomédico sem ver toda uma série de questões estruturais e da prevenção combinada como um todo. (Ativista OSC HIV/Aids)

Seffner e Parker (2016SEFFNER, F.; PARKER, R. A neoliberalização da prevenção do HIV e a resposta brasileira à Aids. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ORG.). MITO VS REALIDADE: SOBRE A RESPOSTA BRASILEIRA À EPIDEMIA DE HIV E AIDS EM 2016. RIO DE JANEIRO: ABIA. P. 22-30, JUL. 2016.), saúdam os avanços na terapêutica da aids, mas se preocupam com o estreitamento da resposta nacional cada vez mais marcada por uma abordagem medicalizante da doença. Assim, Parker (2015PARKER, R. O fim da AIDS? Em: 8° Encontro Estadual das ONGS/AIDS do Rio de Janeiro. Abia; Rio de Janeiro, ago. 2015. http://abiaids.org.br/o-fim-da-aids/28618 Acesso em: 14 fev. 2019.
http://abiaids.org.br/o-fim-da-aids/2861...
) questiona o discurso do fim da aids atrelado a uma resposta estritamente biomédica, pois considera que esses métodos de prevenção serão realmente implementados a partir de decisões econômicas, políticas e sociais.

Os termos e conceitos usados em documentos oficiais (Brasil/MS, 2017aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Prevenção Combinada do HIV: bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde. 2017a.; UNAIDS, 2021UNAIDS. Global HIV & AIDS statistics — 2021 fact sheet. Geneva: UNAIDS, 2021 https://www.unaids.org/en/resources/fact-sheet Acesso em: 01 abr. 2022.) como população-chave e população prioritária também são objetos de debates, pois para alguns entrevistados e representantes dos grupos beneficiados pela PrEP, esses termos podem aumentar o estigma sobre esses grupos.

Atuação das OSC e movimentos sociais

As OSC e movimentos sociais no Brasil são parte importante da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids. De Carvalho e colegas (2021)DE CARVALHO, F.; VILLARDI, P.; TERTO JR, V. Fighting for PrEP: The Politics of Recognition and Redistribution to Access AIDS Medicines in Brazil. In: BERNAYS, S. et al. (eds). Remaking HIV Prevention in the 21st Century. Social Aspects of HIV, vol 5. Springer, Cham, 2021. discutem como o ativismo conseguiu se inserir em espaços políticos de participação em políticas de acesso, democratizando os processos de incorporação, compra e produção de medicamentos. Reforçam que o acesso a novas tecnologias, incluindo a PrEP, depende da luta contra barreiras morais e de mercado.

As entrevistas apontaram para a atuação dessas organizações transitando por todo o processo de incorporação da PrEP em diferentes frentes, como: prestação de serviços de prevenção; participação e promoção do debate sobre a PrEP; mobilizações e reivindicações; e a translação dos achados científicos para a sociedade.

Apesar da boa aceitação da PrEP entre as OSC, as entrevistas também mostraram que existiram e ainda existem vozes de resistência à estratégia por parte de algumas lideranças, sobretudo entre as mulheres trabalhadoras sexuais. Inicialmente, temas como a participação em pesquisa de uma estratégia inovadora, interesse financeiro da indústria farmacêutica, desabastecimento, efeitos colaterais, aumento das ISTs, entre outros, impulsionaram a preocupação entre as populações que integraram os estudos. Posteriormente, debates e produção de materiais realizados em parceria entre governo, pesquisadores e ativistas dirimiram essas preocupações.

Eu me lembro de uma oficina em Porto Alegre, que houve resistência: ‘Não, porque a camisinha é o melhor’. Então a gente rebatia: “É melhor para quem usa, para quem não usa, é bom que tenha outras opções de prevenção, e talvez vá encontrar uma que seja mais adequada à vida que a pessoa leva ou aos seus sentimentos. (Ativista OSC HIV/Aids)

[...] eu não faria uso porque eu não vejo necessidade nenhuma e falei para as meninas. Eu não faria uso da PrEP por nada, porque tenho certeza de que o meu organismo não iria aguentar. (Ativista representante das trabalhadoras sexuais)

Prestação de serviços de prevenção

Uma parceria que vem sendo executada há anos entre OSC e governo é o projeto de testagem Viva Melhor Sabendo. O projeto oferece testes rápidos em ambientes mais acessíveis às populações mais vulneráveis, tendo em vista que muitas dessas pessoas não acessam os serviços de saúde. Os profissionais das OSC são treinados para fazer os testes e exercerem funções de prestar informações sobre prevenção combinada (Silva-SantistebanSILVA-SANTISTEBAN; et al. HIV prevention among transgender women in Latin America: Implementation, gaps and challenges. Journal of the International AIDS Society, v. 19, n. 3, supl 2, 2016.et al., 2016).

Alguns entrevistados comentam sobre o êxito desse tipo de cooperação para a aceitação da testagem, especialmente devido ao acolhimento diferenciado na escuta e aconselhamento, tanto para abordar as informações sobre os métodos de prevenção, entre eles a PrEP, como para o direcionamento ao serviço. Apesar do sucesso desse tipo de parceria, foram apresentadas críticas relacionadas às organizações que não agregam saberes ou prática para um serviço mais acolhedor relacionado à vivência daquelas populações.

Prestando serviço, mas do mesmo jeito que o governo oferece. Não sou contra, mas tem que ser diferente, entende? [...] tem que ser do jeito que realmente deveria ser, acolhedora. (Ativista OSC HIV/Aids)

Participação e promoção do debate

Algumas falas destacaram o engajamento de atores da sociedade civil em diversos fóruns de discussão. São eles: comissões participativas (extintas em 2019), comitês comunitários das pesquisas, conferências e fóruns internacionais de aids e prevenção.

No sentido da participação, houve a representação de OSC no grupo de especialistas para elaboração do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da PrEP. Segundo alguns relatos, essa participação garantiu avanços na discussão para além do âmbito da PrEP, pois instaurou a discussão sobre indetectável ser igual a intransmissível (I=I), forçando o MS a ter uma posição formal e pública sobre o tema.

Mobilizações e reivindicações

As OSCs participaram e organizaram mobilizações, ações e ou atividades que reivindicavam a incorporação da PrEP no SUS, o barateamento do medicamento, registro do medicamento genérico e a ampliação do acesso (ABIA, 2015ABIA, 2015. ABIA critica atraso brasileiro na adoção da PrEP para a prevenção do HIV no SUS. Disponível em: https://abiaids.org.br/abia-critica-atraso-brasileiro-na-adocao-do-truvada-para-a-prevencao-do-hiv-no-sus/28802. Acesso em: 12 jun. 2023.
https://abiaids.org.br/abia-critica-atra...
).

As entrevistas destacam o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI/Rebrip), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), como importante ator que promoveu a campanha “Truvada® Livre”, além de ações como a oposição ao pedido de patente para a combinação TDF+FTC no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Villardi; Fonseca, 2018).

As entrevistas também permitem perceber que esses movimentos defendiam o compartilhamento de informações científicas, a despeito das controvérsias que surgiam, mas como forma de garantir o acesso à informação de forma ética e a assegurar tomadas de decisões autônomas.

Translação

Destacamos, nas entrevistas, a enorme contribuição das OSC na produção de materiais informativos que transformam as descobertas científicas sobre PrEP em informações acessíveis, agregando o conhecimento de quem acompanha a epidemia pelas experiências e saberes das pessoas que vivem com HIV e grupos mais vulnerabilizados. Mesmo com dificuldades financeiras e estruturais, as OSC ainda promovem cursos e conhecimento para seus parceiros e liderança.

Zucchi et al (2018) enfatizam a necessidade de translação do conhecimento obtido em estudos de eficácia e demonstrativos à realidade dos serviços e das populações em maior vulnerabilidade. Somente desta forma será possível efetivar mudança social esperada, possibilitando uma ampla cobertura da PrEP.

Desenvolvimento das Pesquisas de PrEP no Brasil

Consideramos o início das pesquisas como um primeiro passo para a incorporação e implementação da PrEP pelo SUS. Cabe registrar, entretanto, que alguns códigos indicando os estudos incluídos aqui foram realizados concomitantemente a outras categorias. Assim, escolhemos inserir esta categoria no início da linha do tempo com inserção de duas setas indicando continuidade das pesquisas durante todo o processo, e conectando ao período correto na linha do tempo da Figura 1.

Percepção do impacto do medicamento no controle da epidemia

Para alguns entrevistados, a ideia de que o medicamento poderia contribuir na prevenção já estava em pauta antes mesmo dos primeiros estudos sobre PrEP. Para eles, isso ocorre a partir do momento em que o Brasil adota o acesso universal aos antirretrovirais em 1996 e o crescimento da epidemia começa a diminuir e mudar a curva de crescimento projetada inicialmente. Assim, a profilaxia foi percebida por esses atores como uma aliada na prevenção.

Em meados dos anos 1990, começa a produção de resultados das pesquisas envolvendo profilaxia, abrindo novos caminhos para os métodos de prevenção biomédica como conhecemos hoje. O estudo ACTG076, que comprovou a redução do risco da transmissão materno-infantil do HIV (ConnorCONNOR, E. M. et al Reduction of maternal-infant transmission of human immunodeficiency virus type 1 with zidovudine treatment. Pediatric AIDS Clinical Trials Group Protocol 076 Study Group. New England Journal of Medicine, 18. v. 331, p. 1173-80, nov. 1994.et al., 1994), foi primordial para começar a vislumbrar os avanços da profilaxia como prevenção do HIV.

Principais pesquisas no Brasil

A primeira e talvez mais relevante pesquisa para comprovar a eficácia da PrEP oral no Brasil foi o ensaio clínico de fase III, conhecido como iPrEx (Iniciativa à Profilaxia Pré-Exposição) (GrantGRANT, R. M. et al. Uptake of pre-exposure prophylaxis, sexual practices, and HIV incidence in men and transgender women who have sex with men: a cohort study. Lancet Infect Dis, v. 14, n. 9, p. 820-9, jul. 2014.et al., 2010). Iniciada em 2007, tinha como objetivo avaliar a segurança e eficácia do uso oral diário da combinação FTC+TDF para a prevenção entre HSH e mulheres transexuais (GrantGRANT, R. M. et al. Preexposure Chemoprophylaxis for HIV Prevention in Men Who Have Sex with Men. New England Journal of Medicine, v. 363, n. 27, p. 2587-2599, 30 dez. 2010.et al., 2010).

O primeiro estudo que incluiu trans foi o nosso. Não tinha trans no iPrEx no mundo inteiro, nós colocamos as mulheres trans. Em pequeno número, mas colocamos as mulheres trans. Elas começaram a vir e nós começamos a ver que tinha que colocar. (Integrante de equipe de Pesquisa Clínica)

Dando sequência ao iPrEX, foi realizado o iPrEx OLE (Open Label Extension), estudo de coorte com HSH e mulheres transsexuais, HIV negativos e que fizeram parte de algum estudo com PrEP anterior e que tinha como objetivo verificar a aceitação e adesão do medicamento entre os participantes (Grant et al., 2014).

Terminou o iPrEx Ole lá em 2012, 13, aí ele falou: “Nós e o pessoal da Fiocruz estamos pensando em fazer um projeto demonstrativo chamado PrEP Brasil, financiado pelo MS que vai ser como se fosse um piloto para saber como seria a implementação da PrEP aqui no Brasil. (Integrante de equipe de Pesquisa Clínica)

Em 2014, o MS, por meio da Fiocruz, do CRT-DST/AIDS- SP e da Faculdade de Medicina da USP, iniciou, entre outros projetos demonstrativos, o Projeto chamado “PrEP Brasil” para “avaliar a viabilidade da administração oral diária da combinação de medicamentos à HSH e mulheres transexuais em alto risco para HIV no SUS” (GrinsztejnGRINSZTEJN, B. et al. Retention, engagement, and adherence to pre-exposure prophylaxis for men who have sex with men and transgender women in PrEP Brasil:48-week results of a demonstration study. Lancet HIV, v.5, n.3, p. e136-e145, Mar. 2018.et al., 2018). Foi o primeiro estudo demonstrativo da América Latina incluindo a população vulnerável em condições reais de atendimento no SUS (Galea; Baruch; Brown, 2018).

Em 2017, a PrEP é incorporada e gradualmente implementada no SUS. Em 2018, inicia-se o projeto ImPrEP, estudo para avaliar a viabilidade e implementação da PrEP entre HSH e mulheres transsexuais, com participação de centros de pesquisa e MS do Brasil, México e Peru (TorresTORRES, T. S. et al Factors associated with willingness to use pre-exposure prophylaxis in Brazil, Mexico, and Peru: web-based survey among men who have sex with men. JMIR Public Health Surveill, v.5 p. e13771, Jun, 2019.et al., 2019). Nas entrevistas é possível perceber que, na verdade, seu início se confunde com a inauguração do estudo de implementação da PrEP.

Essa era minha proposta na época com os pesquisadores, que se o ImPrEP começasse junto com o PrEP SUS, nós iríamos ter depois de um ano, uma avaliação de como que o programa estava funcionando [...] Claro que hoje o PrEP SUS tem muito mais unidades que o ImPrEP, mas no início, a gente começou com as mesmas unidades de saúde[...] porque no PrEP Brasil, já tinha uma rede formada, o pessoal já capacitado, depois bota mais unidades. (Representante de Governo)

Controle social

A garantia de acesso pós estudo é um aspecto de grande importância na regulação da ética em pesquisa no Brasil. E essa também sempre foi uma das principais preocupações de representantes da sociedade civil, principalmente daqueles que integravam os Comitês Comunitários.

Eu vejo como todo mundo deveria ver, se aquela pesquisa é ética ou não é ética. Isso foi o que me interessou no primeiro momento [...] nós fomos sempre fortes falando que se medicamento se mostrava eficaz para a prevenção, teria que ser disponibilizado para todas as pessoas que participavam da pesquisa, todos voluntários. (Ativista OSC HIV/Aids)

Alguns entrevistados mostraram que estão atentos às questões relacionadas à ética nas pesquisas. Ativistas monitoram as pesquisas e inovações que estão sendo conduzidas no Brasil e no mundo, avaliando os impactos e viabilidade dessas novas tecnologias para a sociedade. No caso das pesquisas relacionadas à PrEP, houve a necessidade de uma atenção especial, pois o medicamento estudado não tinha registro no Brasil, o que poderia significar uma dificuldade no fornecimento do medicamento pós-pesquisa.

Mas acompanhei toda parte de PrEP, desde o início, o tema relacionado ao Tenofovir com Emtricitabina, que era um medicamento que não estava nem registrado no Brasil e começaria a ser pesquisado aqui para a PrEP. E que isso poderia trazer algum problema futuro (Ativista OSC HIV/Aids)

O Comitê Comunitário Assessor (CCA), ou Comitê de Acompanhamento Comunitário (CAC) ou Community Advisory Board (CAB), dependendo da instituição à qual a pesquisa esteja vinculada, se apresenta como um canal de contribuição e fiscalização da sociedade civil no desenrolar de pesquisas clínicas. Pode ajudar a fortalecer a capacidade local para responder às necessidades críticas das pesquisas (HPTN, 2016HIV Prevention Trials Network (HPTN). Leadership and Operations Center Community Involvement Program. Community Advisory Board Fact Sheet, 2016 Disponível em: https://www.hptn.org/sites/default/files/201605/Community %20Advisory%20Board%20Fact%20Sheet.pdf Acesso em: 28 jul 2022.
https://www.hptn.org/sites/default/files...
).

Segundo explicações fornecidas nas entrevistas, os centros de pesquisa contam com esse canal de participação social quando são financiados por instituições dos EUA. A pesquisa iPrEx foi financiada pelo NIH (National Institutes of Health) dos EUA através da rede HPTN (HIV Prevention Trials Network); logo, contou com a formação desse tipo de comitê por representantes de OSC, representantes das populações interessadas na pesquisa ou usuários do SUS.

Um pesquisador conta a história de uma reunião dos chefões do iPrEx, em que uma menina trans que estava ali como representante da população de mulheres trans do CAC, se levantou e foi embora no meio porque o estudo se chamava: Estudo de Profilaxia Pré- Exposição para Homens que fazem sexo com Homens. E aí ela falou, eu não sou um homem que faz sexo com homem. Por causa disso o nome do estudo mudou para homens que fazem sexo com homens e mulheres transgênero. (Integrante de equipe de Pesquisa Clínica)

Apesar de os entrevistados reconhecerem a importância e contribuição do CCA, sobretudo para as questões éticas na pesquisa, foram mencionadas algumas críticas relacionadas à sua efetividade.

O CCA é um espaço formal que toda pesquisa precisa ter. Mas não de fato um espaço que tenha algum tipo de ingerência ou ação concreta. é um espaço que é consultivo que a gente dá uma devolutiva para o movimento social [...] o CCA acaba sendo uma coisa pro forma, ele tem que existir, mas que de fato, eu acho que ainda existe um distanciamento desses membros do CCA com o projeto em si. (Ativista OSC LGBTQIA+)

Participação nas pesquisas clínicas

A participação numa pesquisa clínica é motivada pela oportunidade de conhecimento e divulgação da nova tecnologia para seus pares e quase sempre pelo acesso à assistência fornecida por um serviço de saúde de referência. Nas pesquisas de PrEP no Brasil, a sociedade civil esteve presente como participante de pesquisa; e recrutadores e difusores da informação da pesquisa. A parceria entre OSC e pesquisadores na metodologia de recrutamento pode ser comprovada quando autores afirmam que potenciais participantes para as pesquisas clínicas foram encaminhados a partir de testagens realizadas por OSC LGBTQIA+ como a Arco-Íris (HoaglandHOAGLAND, B. et al. Awareness and Willingness to Use Pre-exposure Prophylaxis (PrEP) Among Men Who Have Sex with Men and Transgender Women in Brazil. AIDS and Behavior, v. 21, n. 5, p. 1278-1287, 2017.et al., 2017).

Tanto é que eu uso PrEP hoje, eu sou o primeiro voluntário do projeto Combina em SP. Muito mais para entender a lógica da PrEP, para poder ajudar as pessoas a entenderem a lógica da PrEP, e para poder recomendar a PrEP. (Ativista OSC LGBTQIA+)

Isso foi um fator que me motivou a participar, porque eu sabia que se eu tivesse de marcar qualquer consulta eu teria o acesso [...] foi um motivador a possibilidade de estar atrelado à Fiocruz acessando os serviços da própria Fiocruz [...] eu brinco que a Fiocruz é como se fosse um plano de saúde, porque em comparação com o SUS, fora da Fiocruz, a gente tem uma série de dificuldades de acesso. (Ativista OSC LGBTQIA+)

Problemas no acesso ao medicamento para participantes de pesquisa

Finalizado o PrEP Brasil, a PrEP ainda não estava incorporada, e ainda não havia o registro do medicamento na Anvisa. As entrevistas possibilitaram identificar que a continuidade do fornecimento de medicamento para os participantes foi um problema que gerou desgaste, mas que foi solucionado e deu-se continuidade ao projeto até que se tivesse a implementação da PrEP no SUS.

Ao final do PrEP Brasil, houve um comunicado para todos os participantes que o projeto estava sendo encerrado e em virtude disso, os voluntários deixariam de ter acesso ao Truvada, o que gerou um incômodo. (Ativista OSC LGBTQIA+)

Aí de repente criou-se aquilo que se chamou de “extensão”. E aí eram, todas as visitas de novo, visita 1, visita 12, visita 24, que eram as semanas né? 12ª semana, 24 ª semana com um E depois que era um E de extensão. (Integrante de equipe de Pesquisa Clínica)

Incorporação da PrEP

Preparação dos instrumentos

As diretrizes do marco legal para incorporação de nova tecnologia no SUS dispõem sobre a necessidade de o processo ser baseado em evidências científicas e submetido ao fluxo de avaliação na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), tendo como base os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) (Brasil, 2011BRASIL. Lei nº. 12401/2011, de 28 de abril de 2011. Dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 4, 29 abr 2011.).

No caso da PrEP, essas evidências foram resultado das pesquisas clínicas que, além de subsidiar a incorporação, cumpriram também o papel de municiar os gestores da saúde e outras lideranças com argumentos de convencimento. No contexto de crescente tentativa de dessexualização da epidemia (Ferraz; Paiva, 2015FERRAZ, D.; PAIVA, V. Sex, human rights and AIDS: an analysis of new technologies for HIV prevention in the Brazilian context. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 18, p. 89–103, set. 2015.), conservadorismo e disseminação de notícias falsas, as evidências científicas produzidas pelas pesquisas são cruciais para diminuir resistências às políticas relacionadas à sexualidade e às populações LGBTQIA+.

Então eu vejo assim, que as pesquisas são sim uma pavimentação importante para fazer com que isso torne política pública, que tenha adesão da sociedade civil, que a sociedade civil apoie e foi assim que a gente conseguiu colocar a PrEP, num momento político tão adverso, digamos assim, que poderia ser tão difícil, mas foi isso. (Representante de Governo)

Como parte da construção de evidências necessárias à incorporação da PrEP, a Fiocruz, em parceria com o MS, realizou estudo cujo resultado demonstrou que a utilização da PrEP entre HSH e mulheres trans com alto risco de infecção pelo HIV é custo efetivo no Brasil (LuzLUZ, P. M. et al. The cost-effectiveness of HIV pre-exposure prophylaxis in men who have sex with men and transgender women at high risk of HIV infection in Brazil. Journal of the International AIDS Society, v. 21, n. 3, 2018.et al., 2018).

[...] é menos uma infecção, menos um tratamento, comprovadamente mais barato, e não vai faltar medicamento para pessoas com HIV. (Ativista OSC HIV/Aids)

O PCDT estabelece critérios para o diagnóstico, tratamento, mecanismos de controle clínico e acompanhamento dos resultados terapêuticos. De acordo com os resultados das entrevistas, em 2015, constituiu-se um grupo de especialistas para elaborar os protocolos em termos clínicos e as populações que seriam o foco da PrEP. Em diversos momentos houve a participação da sociedade civil, representantes das populações que seriam beneficiadas pela PrEP e outros ativistas neste grupo.

Era o grupo de especialistas que tinham os pesquisadores, enfim todas as pessoas na verdade que são os autores do PCDT de PrEP. Eles já começaram a gestar e escrever em 2015, 2016. (Representante de Governo)

Eu participei dessas últimas cinco reuniões. O texto estava pronto, os especialistas cuidaram da parte da profilaxia, e de como se daria esse processo médico e nós ajudamos na perspectiva do movimento social sobre a política. (Ativista mulheres transsexuais e travestis)

[...] eu fiz uma imersão, li todos os protocolos, traduzi fichas de atendimento de vários hospitais e serviços de saúde diferentes, eu entrevistei muita gente [...] muito desses materiais que eu trouxe de São Francisco, e a gente foi adaptando aqui [...] Claro que num contexto de saúde pública muito distinto do Brasil. (Representante de Governo)

Tomada de decisão

Embora com algumas etapas avançadas, a prioridade em incorporar a PrEP foi adiada em prol da mudança no tratamento das pessoas vivendo com HIV, com a adoção e disponibilização do Dolutegravir pelo SUS. Iniciativa ressaltada pela OMS em documento oficial apresentado na conferência IAS de 2017, que menciona a experiência do Brasil como um dos primeiros países a introduzir Dolutegravir para o tratamento de primeira linha do HIV (WHO, 2017WORLD HEALH ORGANIZATION (WHO). Transition to new antiretroviral drugs in HIV programmes: clinical and programmatic considerations. Geneva: WHO; 2017 Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/255887/WHO-HIV-2017.23-eng.pdf;jsessionid=3E42F9155BFE5A6665C4D92A78593F68?sequence=1 (acessado em 28/07/2022)
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl...
).

Então eu tinha essa decisão, eu ia falar primeiro com o Ministro sobre PrEP ou eu iria primeiro falar sobre o Dulotegravir. Eu decidi que era melhor e mais justa a questão do tratamento das pessoas vivendo [...] e acabou que nós postergamos a questão da PrEP. (Representante de Governo)

Após a disponibilização do Dolutegravir, o MS retoma a PrEP como prioridade e utiliza-se da opinião pública e pressão da sociedade para demonstrar a necessidade de levar a PrEP para aprovação da Conitec.

Então, no meio da coletiva de imprensa do lançamento do Dulotegravir, saiu que o cara lá da OMS também estava falando de PrEP. Foi uma bela jogada! Às vezes a gente acerta, né? E lembro que eu falei em determinado momento: “agora vamos trabalhar nisso em breve” e foi manchete de jornal no Brasil inteiro essa história. “Governo diz que vai implantar PrEP” e ainda bem que saiu! (Representante de Governo)

Cumprimento das etapas de incorporação

A Conitec é um órgão colegiado permanente, que assessora o MS na incorporação, exclusão ou alteração das tecnologias em saúde e seus protocolos (Brasil/MS, 2023BRASIL. Ministério da Saúde. Conheça a Conitec — Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – CONITEC, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/a-comissao/conheca-a-conitec. Acesso em: 12 jun. 2023.
https://www.gov.br/conitec/pt-br/assunto...
). Assim, para ser incorporada, a PrEP teve que cumprir algumas etapas de avaliação que contou com alguns percalços para sua aprovação.

O processo teve protagonismo da esfera federal, sobretudo do Departamento HIV/Aids e de representantes da Fiocruz pelo projeto PrEP Brasil. A PrEP foi para avaliação da plenária da Conitec em outubro de 2016 e, apesar de a Ata oficial n. 49/2016 informar que a apreciação estava suspensa até o medicamento ter aprovação na ANVISA, atores entrevistados identificam uma rejeição da PrEP por forte juízo de valor.

A frase que mais me impactou foi: “Na atenção básica, não tem nem gotinha para os ouvidos das crianças, vocês querem que a gente compre e gaste dinheiro com esse remédio para essas pessoas”. Então assim, só para você entender que era uma barreira, uma questão de juízo de valor das pessoas que estavam ali para decidir se isso ia ser ou não incorporado. (Representante de Governo)

Na ata mencionada, há referência à publicação de priorização de avaliação da ANVISA no registro do Truvada®. Relatos também mencionam mudanças na direção da Conitec e movimentos do próprio ministro da Saúde para uma segunda avaliação em plenária da PrEP. Resolvidos os entraves iniciais, houve o encaminhamento para consulta pública.

De fevereiro a março de 2017, ficaram abertas duas Consultas Públicas para receber contribuições ao PCDT e outra sobre evidências do medicamento (Brasil, 2017aBRASIL. Consulta Pública n.04 de 21 de fevereiro de 2017. Dispõe sobre consulta para manifestação da sociedade civil relativa à proposta de protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para a PrEP. Diário Oficial da União, Seção 1, n. 38, p. 49-50, 22 fev 2017a.; 2017bBRASIL. Consulta Pública n.05 de 21 de fevereiro de 2017. Dispõe sobre consulta para manifestação da sociedade civil relativa à proposta de proposta de incorporação do tenofovir associado a emtricitabina (TDF/FTC 300/200mg) como profilaxia pré-exposição para populações sob maior risco de adquirir o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Diário Oficial da União, Seção1, n. 38, p. 50, 22 fev 2017b.). Segundo relatos das entrevistas, corroborado pela página oficial da Conitec, foram mais de 3.500 contribuições entre profissionais da saúde, organizações e indivíduos.

Após análise das contribuições, foram realizadas adequações ao PCDT, como: mudança do termo sorodiscordante” para sorodiferente”; retirada das pessoas heterossexuais, vulneráveis por terem multiplicidade de parceiros; e a retirada de pessoas que usam álcool e outras drogas. Nos dois últimos casos, segundo relatos, a plenária alegou não haver evidências científicas realizadas no Brasil. Após adequações e registro do medicamento na ANVISA, a PrEP (medicamento e PCDT) foi aprovada para incorporação no SUS.

Como limitação do estudo, houve maior participação de entrevistados da sociedade civi, o que pode ter feito o enfoque ser maior nas experiências desses atores.

Conclusão

Após mais de cinco anos da incorporação da PrEP no Brasil, este artigo continua inédito e relevante, pois é o primeiro que aborda a temática na perspectiva da Teoria Fundamentada em Dados e apresenta sua sistematização de maneira cronológica por meio de uma figura representativa.

A utilização do método e a representação do processo da incorporação e implementação da PrEP no Brasil por meio de uma imagem auxiliaram a organização e análise de suas ações e argumentos, mostrando-se uma importante ferramenta que poderá ser utilizada em estudos futuros.

Assim, o estudo cumpriu o objetivo de descrever e analisar a trajetória da incorporação da PrEP no Brasil, deixando evidente a relevante participação e pressão constante dos ativistas e pesquisadores na construção da estratégia de prevenção.

Finalmente, descrever e analisar a trajetória da PrEP a partir da contribuição daqueles que estiveram ativos, acompanhando seus impactos e benefícios, contribuirá para o aprimoramento de ações futuras envolvendo inovações à prevenção do HIV, fazendo com que as tecnologias necessárias ao combate à epidemia cheguem às populações mais vulneráveis.

Agradecimento

Agradecemos o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (PPGSP/ENSP) – Fiocruz.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2022
  • Aceito
    10 Jul 2023
  • Revisado
    23 Jun 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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