Listas de medicamentos disponíveis no sistema público de saúde da Inglaterra e do Brasil para enfrentamento da carga de doenças

Lists of medicines available in the public health system in England and Brazil to address the burden of disease

Camila Rocha da Cunha Marismary Horsth De Seta Rodolfo de Almeida Castro Vera Lucia Luiza Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se comparar as listas de medicamentos oferecidos pelos sistemas públicos de saúde inglês e brasileiro, averiguando a amplitude das possibilidades terapêuticas em ambos os países. Na análise utilizou-se o subgrupo químico (4º nível) da classificação anatômica, terapêutica e química (Anatomic Therapeutic Chemical classification – ATC), com foco nas três principais causas de anos de vida perdidos ajustados pela incapacidade (Disability-Adjusted Life Years - DALYs) encontrados no estudo de Carga Global de Doenças de 2019, comuns a ambos os países: doenças cardiovasculares, músculo-esqueléticas e mentais. Da comparação entre a Drug Tariff de março de 2020 (Inglaterra) e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) 2020 (Brasil) emergiu que a Drug Tariff contém 3.620 apresentações farmacêuticas e a Rename, 921, sendo que 3.158 e 796 são monofármacos, respectivamente; um número 3,9 vezes maior de apresentações farmacêuticas que a Rename e duas vezes maior de substâncias ativas. A Rename e a Drug Tariff possuem 281 substâncias químicas ativas em comum, considerando o 5º nível da ATC. A lista de medicamentos financiados pelo NHS apresenta-se mais ampla que a do Brasil, tanto para doenças em geral, quanto para as doenças prevalentes nos dois países, podendo-se constituir uma possibilidade de aprimoramento para a Rename.

Palavras-Chave:
Assistência Farmacêutica; Política Nacional de Medicamentos; Sistemas Públicos de Saúde; Inglaterra; Brasil

Abstract

This study aimed to compare the lists of medicines offered by the England (National Health Service -NHS) and Brazilian (Sistema Único de Saúde - SUS) health systems. The analysis was performed using the chemical subgroup (4th level) of the Anatomical Therapeutic Chemical classification (ATC), focusing on the main causes of disability-adjusted life years (DALYs) found in the 2019 Global Disease Burden study for both countries: cardiovascular, musculoskeletal and mental disorders. The comparison between the Drug Tariff of March 2020 (England) and the Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) 2020 (Brazil) showed that the former contains 3,620 pharmaceutical presentations and Rename, 921, with 3,158 and 796 being monodrugs, respectively. Drug Tariff has 3.9 times more pharmaceutical presentations than Rename and 2 times more active substances in monodrugs than Rename. Rename and Drug Tariff have 281 active chemicals in common, considering the 5th level of the ATC. The list of medicines financed by the NHS is broader than that of Brazil, both for diseases in general and for diseases prevalent in both countries, which may constitute a possibility of improvement for Rename, keeping the need for more studies in-depth on the topic.

Keywords:
Pharmaceutical Services; National Formulary; National Medicines Policy; National Public Health Systems; England; Brazil

Introdução

A Assistência Farmacêutica (AF) é componente primordial da assistência à saúde, desempenhando papel central no acesso a medicamentos seguros e eficazes. A política de assistência farmacêutica deve ser consoante à política nacional de saúde dos países, sendo ambas fruto de componentes históricos, econômicos, políticos e culturais e de suas interações (Conill, 2012CONILL, E. M. Sistemas comparados de saúde. In: CAMPOS, G. W. S (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. 2. ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2012. p. 591-659.).

No Brasil e na Inglaterra, os sistemas de saúde são assegurados pelo Estado e financiados por impostos gerais, baseados no acesso universal e equânime, gratuito, de ampla abrangência, englobando ações de promoção, prevenção, cuidado, reabilitação, diagnóstico e tratamento e, no plano formal, ambos contam com vasta participação popular (Brasil, 1990BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF. p. 18055. 1990.; England, 2021ENGLAND. The NHS Constitution for England 2021. Department of Health and Social Care. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/publications/the-nhs-constitution-for-england/the-nhs-constitution-for-england>. Acesso em: 8 out. 2022.
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; Giovanella ., 2018GIOVANELLA, L. et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1763-1776, 2018.).

A despeito dessas similaridades, de se fundamentarem nos mesmos conceitos e de o sistema de saúde inglês ter servido de referência para o desenvolvimento do sistema brasileiro (Silva, 2017SILVA, O. J. B. É o Sistema Único de Saúde-SUS para os pobres? Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 6, n. 2, p. 180-192, 2017), os dois sistemas apresentam marcantes diferenças quanto ao financiamento e organização (Brasil, 1990BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF. p. 18055. 1990.; England, 2021ENGLAND. The NHS Constitution for England 2021. Department of Health and Social Care. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/publications/the-nhs-constitution-for-england/the-nhs-constitution-for-england>. Acesso em: 8 out. 2022.
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; Giovanella ., 2018GIOVANELLA, L. et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1763-1776, 2018.). Contudo, em ambos, a AF é direito assegurado por lei, com o fornecimento de medicamentos de modo gratuito ou subsidiado, através do National Health Service (NHS) inglês e do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) (Brasil, 1990BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF. p. 18055. 1990.; England, 2021ENGLAND. The NHS Constitution for England 2021. Department of Health and Social Care. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/publications/the-nhs-constitution-for-england/the-nhs-constitution-for-england>. Acesso em: 8 out. 2022.
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; Giovanella ., 2018GIOVANELLA, L. et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1763-1776, 2018.), e possuem listas próprias de medicamentos que objetivam atender à população, ainda que com diferenças importantes.

A Drug Tariff é a relação de medicamentos e insumos passíveis de pagamento pelo NHS, disponibilizando o preço máximo reembolsável, sendo direcionada às farmácias comunitárias privadas, responsáveis pela aquisição e dispensação de medicamentos para pacientes atendidos no sistema público de saúde (England, 2020ENGLAND. Drug Tariff. Department of Health and Social Care. 2020. Disponível em: <https://www.nhsbsa.nhs.uk/sites/default/files/2020-02/Drug%20Tariff%20March%202020.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2021.
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). O NHS se propõe a oferecer os melhores tratamentos disponíveis, considerando a viabilidade econômica, seguindo a premissa da escolha da melhor evidência científica ao menor custo. Outrossim, não se propõe a seguir a abordagem da essencialidade como preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (Fricker, 2017FRICKER, J. New NICE criteria for drug access. The Lancet Oncology, v. 18, n. 5, p. 576, 2017.).

No Brasil, é adotada uma lista de medicamentos desde 1964 (BRASIL, 1964BRASIL. Presidência da República. Decreto no 53.612, de 26 de fevereiro de 1964. Aprova relação de medicamentos essenciais para os fins previstos no Decreto n° 52.471, de 1963, e dispõe sobre a aquisição de medicamentos pela Administração Pública Federal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 1964.), consolidada com a designação de Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) desde 1973 (Brasil, 1973BRASIL. Presidência da República. Decreto no 72.552, de 30 de julho de 1973. Dispõe sobre as Políticas e Diretrizes Gerais do Plano Diretor de Medicamentos e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 1973.) e, posteriormente, definida como uma das diretrizes da Política Nacional de Medicamentos em 1998 (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos. Diário Oficial da União. 1998.). A Rename foi, primeiramente, orientada pela Lista de Medicamentos Essenciais da OMS (Essential Medicines List - EML). Em 2011, houve mudanças na legislação trazidas, basicamente, pela Lei nº 12.401 (Brasil, 2011bBRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei no 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 2011 b.) e pelo Decreto nº 7.508 (Brasil, 2011c). O processo de definição da lista sofreu alterações e a lista se ampliou, constando de 440 medicamentos na sua versão de 2012 (Figueiredo; Schramm; Pepe, 2014FIGUEIREDO, T. A.; SCHRAMM, J. M. de A.; PEPE, V. L. E. Seleção de medicamentos essenciais e a carga de doença no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, n. 11, p. 2344–2356, 2014.). Alguns autores opinam sobre o afastamento do critério de essencialidade como recomendado pela OMS (Osorio-de-Castro, 2017OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Rumo nebuloso para os medicamentos essenciais no Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. 9, 2017.).

O método de análise comparada de políticas e sistemas de saúde apresenta-se como ferramenta para conhecimento do panorama do setor saúde e suas prioridades, propiciando perspectivas mais amplas sobre a saúde e seus cuidados. Além disso, mediante um estudo comparado, é factível reconhecer as experiências de sucesso e as melhores práticas desenvolvidas mundo afora, sendo campo de estudo para pesquisadores e apoiando as decisões de planejadores e gestores da saúde (Conill, 2012CONILL, E. M. Sistemas comparados de saúde. In: CAMPOS, G. W. S (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. 2. ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2012. p. 591-659.)

Em geral, os estudos comparativos de listas de medicamentos essenciais em países de renda média e alta tomam como referência esse mesmo grupo de países (Conill, 2012CONILL, E. M. Sistemas comparados de saúde. In: CAMPOS, G. W. S (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. 2. ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2012. p. 591-659.) ou, menos frequentemente, consideram a lista modelo da Organização Mundial da Saúde (Giovanella ., 2018GIOVANELLA, L. et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1763-1776, 2018.).

A escolha de comparar as listas de medicamentos financiados pelos governos da Inglaterra e do Brasil, países com marcantes diferenças econômicas, na organização dos sistemas de saúde e na assistência farmacêutica, ocorre pelas semelhanças na concepção dos sistemas de saúde. Assumindo que o NHS serviu de referência para o desenvolvimento do SUS e ambos são sistemas de saúde universais, financiados por impostos gerais, baseados na integralidade das ações e gratuitos (Brasil, 1990BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF. p. 18055. 1990.; England, 2021ENGLAND. The NHS Constitution for England 2021. Department of Health and Social Care. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/publications/the-nhs-constitution-for-england/the-nhs-constitution-for-england>. Acesso em: 8 out. 2022.
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), mas que esses sistemas nacionais têm sido contra reformados desde os anos 1990/2000, torna-se relevante desvendar, na atualidade, as repercussões – ainda que por meio de aproximações sucessivas – para esses sistemas no que concerne à lista medicamentos ofertados nos sistemas públicos, aspecto este central na AF.

O objetivo deste artigo é analisar a amplitude das possibilidades terapêuticas dos sistemas públicos de saúde da Inglaterra e do Brasil, por meio da comparação das listas de medicamentos disponíveis no NHS e no SUS.1

Métodos

Trata-se de uma análise comparativa entre a Drug Tariff (março de 2020) (England, 2020ENGLAND. Drug Tariff. Department of Health and Social Care. 2020. Disponível em: <https://www.nhsbsa.nhs.uk/sites/default/files/2020-02/Drug%20Tariff%20March%202020.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2021.
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) e a Rename 2020 (Brasil, 2019), ancorada em análise documental e bibliográfica.

Primeiramente, foi feita uma comparação das características gerais das listas, como quantidade de substâncias ativas, de apresentações farmacêuticas, de monofármacos, que são aquelas com apenas uma substância ativa, e de associações, que apresentam mais de uma substância ativa, entre outros. Em seguida, utilizando os dados do estudo de Carga Global de Doença de 2019 (GBD – Global Burden of Disease) (IHME, 2019IHME. Global Burden Disease (GDB). Institute for Health Metrics and Evaluation. 2019. Disponível em: <http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare>. Acesso em: 10 dez. 2020.
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), foram identificadas as cinco primeiras causas de DALYs (Disability-Adjusted Life Years) perdidos nos dois países e selecionadas para análise as três que foram comuns a ambos: doenças cardiovasculares, doenças músculo-esqueléticas e doenças mentais.

As neoplasias foram excluídas da análise, apesar de se encontrarem entre as principais causas de DALY nos dois países. No Brasil, os medicamentos disponíveis no SUS para seu tratamento figuram, principalmente, em listas específicas dos centros especializados na Assistência de Alta Complexidade em Oncologia, que não constam na Rename.

A comparação entre a Rename e a Drug Tariff foi feita utilizando a classificação ATC (Anatomic Therapeutic Chemical classification), método adotado pela OMS para categorização hierárquica de substâncias terapeuticamente ativas. Os fármacos são classificados em 5 níveis. O primeiro corresponde ao grupo anatômico principal (1º nível ATC). Cada grupo anatômico é dividido em subgrupos terapêuticos (2º nível ATC) os quais se desdobram em subgrupos farmacológicos (3º nível ATC) que, por sua vez são divididos em subgrupos químicos (4º nível ATC) e, finalmente, nas substâncias químicas propriamente ditas (5º nível ATC) (WHO, 2020WORLD HEALTH ORGANIZATION. 2020 Anatomical, Therapeutic and Chemical Classification (ATCC). Disponível em: <https://www.whocc.no/atc_ddd_index/>. Acesso em: 29 nov. 2020.
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).

Foram excluídas da análise as apresentações farmacêuticas com mais de uma substância ativa (associações), fitoterápicos, insumos e outros (excipientes, adjuvantes e substâncias ativas puras). As associações foram também excluídas por conterem, na maioria das vezes, as substâncias isoladas na análise, o que poderia gerar duplicidade, influenciando os resultados. Os fitoterápicos não têm, em sua maioria, código ATC, estrutura base da análise. O grupo “Vários” foi excluído por conter diferentes tipos de substâncias, com diversas finalidades terapêuticas ou diagnósticas, deste modo dificultando a análise enquanto grupo e subgrupos da classificação ATC.

As substâncias presentes nas duas listas de medicamentos foram classificadas conforme o código ATC até o 5º. nível. Para a análise foi escolhido o 4º nível da classificação ATC (subgrupos químicos) pelo fato de as substâncias contidas em cada subgrupo pertencerem aos mesmos subgrupos terapêutico, farmacológico e químico e, à princípio, poderem ser substituídas umas pelas outras, considerando a semelhança dos efeitos farmacológicos e desfechos clínicos que substâncias da mesma classe farmacológica possuem (efeito de classe) (Soares; Carneiro, 2002SOARES, I.; CARNEIRO, A. V. Efeitos de Classe de Medicamentos: Definição e Aplicações Práticas. Rev Port Cardiol., v. 21, n 9, p. 1031-1042, 2002.). É importante salientar que pertencer à mesma classe farmacológica não significa, necessariamente, dispor da mesma eficácia e segurança (Rumel; Nishioka; Santos, 2006RUMEL, D.; NISHIOKA, S. de A.; SANTOS, A. A. M. Intercambialidade de medicamentos: abordagem clínica e o ponto de vista do consumidor. Revista de Saúde Pública, v. 40, n. 5, p. 921-927, 2006).

Com as duas listas classificadas segundo subgrupos químicos, foram selecionados os subgrupos que constam apenas na Drug Tariff. Nesse momento, os subgrupos que continham “outros” foram excluídos por abrigarem substâncias de diferentes grupos químicos.

Dentre os subgrupos químicos restantes, verificou-se se as substâncias aí presentes possuíam registro válido no Brasil, por ele ser condição indispensável para inclusão na Rename. Esta consulta foi feita no sítio eletrônico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2021ANVISA. Consultas Medicamentos. Disponível em: <https://consultas.anvisa.gov.br/#/medicamentos/>. Acesso em: 10 jun. 2021.
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), utilizando o caminho: Assuntos > Medicamentos > consulta de medicamentos regularizados > medicamentos registrados, com aplicação do filtro “Monodroga - sim; Situação do registro – válido”. O subgrupo químico que não apresentou ao menos um medicamento registrado no Brasil foi excluído da análise.

Resultados

A Drug Tariff contém, no total, 3.620 apresentações farmacêuticas e a Rename, 921, sendo que 3.158 e 796 são monofármacos, respectivamente. A Drug Tariff apresenta número 3,9 vezes maior de apresentações farmacêuticas que a Rename e duas vezes maior de substâncias ativas nos monofármacos. Considerando a categorização dos medicamentos na classificação ATC, a Rename e a Drug Tariff possuem 281 substâncias químicas ativas em comum no 5º nível da ATC (Brasil, 2019; England, 2020ENGLAND. Drug Tariff. Department of Health and Social Care. 2020. Disponível em: <https://www.nhsbsa.nhs.uk/sites/default/files/2020-02/Drug%20Tariff%20March%202020.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2021.
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). A Drug Tariff dispõe de mais de uma dosagem e/ou apresentação farmacêutica para várias substâncias ativas, comparativamente à Rename (Brasil, 2019; England, 2020ENGLAND. Drug Tariff. Department of Health and Social Care. 2020. Disponível em: <https://www.nhsbsa.nhs.uk/sites/default/files/2020-02/Drug%20Tariff%20March%202020.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2021.
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) (Tabela 1).

Tabela 1
Tipos de produtos presentes na Drug Tariff (março/2020) e na Rename (2020), segundo natureza. Brasil e Inglaterra, 2020

A Drug Tariff disponibiliza medicamentos orais líquidos em maior número que a Rename e oferece a possibilidade de se obter medicamentos fabricados por meio de manipulação magistral, segundo prescrição de um profissional habilitado (England, 2020ENGLAND. Drug Tariff. Department of Health and Social Care. 2020. Disponível em: <https://www.nhsbsa.nhs.uk/sites/default/files/2020-02/Drug%20Tariff%20March%202020.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2021.
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). Possui 64 subgrupos químicos, com 180 substâncias ativas no total, pertencentes ao grupo anatômico N (Sistema Nervoso), sendo este o maior entre todos. Como menor grupo está o P (produtos antiparasitários, inseticidas e repelente) com oito subgrupos químicos e 14 substâncias ativas.

Na Rename, o maior grupo anatômico com maior participação é o J (anti-infecciosos para uso sistêmico), com 49 subgrupos químicos e 117 substâncias ativas. Seis subgrupos químicos, com 13 substâncias ativas pertencentes ao grupo H (preparações para o sistema hormonal, excluindo hormônios sexuais e insulinas) e seis subgrupos químicos, com oito substâncias ativas pertencentes ao grupo M (Sistema Músculo-esquelético), formam os menores grupos da Rename (Tabela 2).

Tabela 2
Número de subgrupos químicos (٤º nível ATC) presentes na Rename e na Drug Tariff, segundo grupo anatômico (1º nível ATC). Brasil e Inglaterra, 2020

No que diz respeito aos medicamentos com ação no sistema nervoso (Grupo N), 31 subgrupos químicos estão presentes na Drug Tariff e não estão na Rename. Dezoito subgrupos dos medicamentos destinados ao uso no sistema cardiovascular (C) e 17 subgrupos dos destinados ao sistema músculo-esquelético estão presentes na Drug Tariff e não estão na Rename (Tabela 2).

Tabela 3
Classificação dos subgrupos químicos (4º nível ATC) que estão presentes na Drug Tariff, mas não estão presentes na Rename, segundo abordagem no estudo

Dos subgrupos químicos presentes na Drug Tariff e ausentes na Rename, o grupo N possui 15 destes com, ao menos, uma substância registrada no Brasil. Os subgrupos químicos N02CC (Analgésicos – Preparações para enxaqueca – Agonistas seletivos da serotonina) e N06BA (Psicoanalépticos - Psicoestimulantes, agentes utilizados em transtorno do déficit de atenção com hiperatividade e nootrópicos – Simpaticomiméticos de ação central) possuem, cada um, quatro substâncias registradas no Brasil (Quadro 1).

Quadro 1
Substâncias ativas com ação nos sistemas nervoso, cardiovascular e músculo-esquelético, que possuem registro válido no Brasil, presentes na Drug Tariff e ausentes na Rename, segundo subgrupo químico (códigos de 4º nível) da classificação ATC. Brasil, 2020

Os grupos C e M possuem, respectivamente, oito e dez subgrupos químicos com, ao menos, uma substância registrada no Brasil, tendo destaque para os subgrupos químicos C05CA (Vasoprotetores - Agentes estabilizadores dos capilares – Bioflavonoides) com três substâncias registradas, e M02AA (Produtos de uso tópico para dores articulares e musculares (1º e 2º níveis) - Preparações anti-inflamatórias não esteroides para uso tópico) com seis (Quadro 1).

Discussão

Foi possível identificar as principais convergências e divergências entre a Drug Tariff (março/2020) e a Rename (2020) em grupos de doenças de alta carga em ambos os países.

Para que um medicamento ou produto para a saúde seja financiado pelo NHS, é necessária prévia autorização do National Institute for Health and Care Excellence (NICE), órgão governamental que tem a prerrogativa de aprovar ou não a utilização de novas tecnologias no sistema público de saúde inglês (Thokala; Carlson; Drummond, 2020).

A seleção de medicamentos para compor a lista de reembolso do NHS é feita através de rigorosa análise de evidências clínicas e de estudos de avaliação econômica (custo-utilidade/custo-efetividade) para embasar o processo de tomada de decisão. Esses estudos utilizam a razão incremental de custo-efetividade (RICE) na comparação entre medicamentos diferentes, visando oferecer a melhor tecnologia disponível a um custo adequado aos recursos limitados do NHS (McCabe; Claxton; Culyer, 2008MCCABE, C.; CLAXTON, K.; CULYER, A. J. The NICE Cost-Effectiveness Threshold: What it is and What that Means. PharmacoEconomics, v. 26, n. 9, p. 733-744, 2008). A razão incremental de custo-efetividade mede o custo adicional por cada ano de vida ganho ajustado por qualidade (Quality-Adjusted Life Year - QALY). Para que o medicamento seja coberto pelo NHS, o RICE deve respeitar um limite padrão (threshold) entre £20,000 e £30,000 por QALY, para as tecnologias em saúde em geral (Paulden, 2017PAULDEN, M. Recent amendments to NICE’s value-based assessment of health technologies: implicitly inequitable? Expert Review of Pharmacoeconomics & Outcomes Research, v. 17, n. 3, p. 239–242, 2017.).

No Brasil, o Ministério da Saúde é o órgão responsável pela elaboração da Rename, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), com o intuito de garantir o acesso aos medicamentos, em atendimento às doenças e agravos no escopo do SUS, de forma gratuita ou subsidiada, e de promover o seu uso apropriado (Brasil, 2011aBRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto no 7.646 de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 2011 a., 2019). A Rename é atualizada periodicamente e os medicamentos que a compõem são eleitos dentre os registrados no país. Além da relação nacional, Estados, Distrito Federal e municípios devem elaborar suas próprias listas de medicamentos essenciais baseando-se na Rename (Brasil, 1998BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos. Diário Oficial da União. 1998.).

A Conitec analisa estudos sobre a eficácia, efetividade, acurácia e segurança do objeto de pedido de incorporação, e de avaliação econômica, como custo-efetividade e impacto orçamentário (Brasil, 2011bBRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei no 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 2011 b.; 2019). Após análise e recomendação preliminar, o parecer é disponibilizado para a sociedade em consulta pública e suas sugestões avaliadas pela plenária da Conitec, culminando com a análise e aprovação (ou não) pelo Secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (SCTIE) (Brasil, 2016BRASIL. Entendendo a Incorporação de Tecnologias em Saúde no SUS: como se envolver. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Brasília: MS, 2016.).

Diferentemente da Inglaterra, que possui um limiar de custo-efetividade para incorporação, o Brasil ainda não possui um limite estabelecido (Thokala; Carlson; Drummond, 2020). Utiliza-se, muitas vezes, de 2 a 3 vezes o PIB per capita do país, como vem sendo proposto em alguns outros países (Laranjeira; Petramale, 2013LARANJEIRA, F. de O.; PETRAMALE, C. A. A avaliação econômica em saúde na tomada de decisão: a experiência da CONITEC. BIS, Bol. Inst. Saúde, v. 14, n. 2, p. 6, 2013). Esforços de cooperação entre a Conitec e o NICE tendem a aproximar a atuação das duas instituições, assim como uma oficina realizada em março de 2020 para a adoção de um limiar de custo-efetividade no Brasil (Novaes; Soárez, 2020NOVAES, H. M. D.; SOÁREZ, P. C. D. A Avaliação das Tecnologias em Saúde: origem, desenvolvimento e desafios atuais. Panorama internacional e Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 9, p. e00006820, 2020).

As listas de medicamentos, essenciais ou não, balizam os governos e instituições de saúde na elaboração de políticas, no financiamento, fabricação, aquisição, estocagem, prescrição e/ou dispensação de medicamentos, dependendo do modo como a AF está organizada e, se constituem como determinantes da saúde relevantes em todo o mundo (Osorio-de-Castro, 2017OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Rumo nebuloso para os medicamentos essenciais no Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. 9, 2017.; Persaud ., 2019PERSAUD, N. et al. Comparison of essential medicines lists in 137 countries. Bulletin of the World Health Organization, v. 97, n. 6, p. 394-404C, 2019.). Cabe ressaltar que constar em uma lista oficial não significa ter acesso assegurado ao medicamento, mormente no Brasil em que, não raro, ocorre desabastecimento na atenção primária à saúde prestada nas unidades públicas.

Comparações entre listas de medicamentos são alvos frequentes de estudos científicos que, em geral, procuram explorar países com similaridades, no intuito de identificar possíveis lacunas, ou excessos, e apontar caminhos para o aprimoramento das listas (Piggott ., 2022PIGGOTT, T. et al. Global status of essential medicine selection: a systematic comparison of national essential medicine lists with recommendations by WHO. BMJ Open, v. 12, n. 2, p. e053349, 2022.; Steiner ., 2020STEINER, L. et al. A comparison of national essential medicines lists in the Americas. Revista Panamericana de Salud Pública, v. 44, p. e5, 2020.; Taglione; Persaud, 2021TAGLIONE, M. S.; PERSAUD, N. Assessing variation among the national essential medicines lists of 21 high-income countries: a cross-sectional study. BMJ Open, v. 11, n. 8, p. e045262, 2021.).

De acordo com Duong . (2015DUONG, M. et al. Essential Medicines in a High Income Country: Essential to Whom? PLOS One, p. 14, 2015.), o conceito da lista de medicamentos essenciais tem se modificado, ao longo do tempo, por influência das associações de direitos dos pacientes, do aparecimento de doenças epidêmicas e de valores sociais. Questões como a individualização da farmacoterapia e o tratamento de pessoas com várias comorbidades, situação para a qual os medicamentos testados e aprovados para uma única enfermidade, podem não ser amplamente eficazes, também podem intervir na seleção de medicamentos da lista.

Além disso, a oferta de novas opções no mercado farmacêutico também contribui para a ampliação das listas de medicamentos subsidiados dos países de alta renda, com várias opções de medicamentos para mesmas enfermidades (Duong ., 2015DUONG, M. et al. Essential Medicines in a High Income Country: Essential to Whom? PLOS One, p. 14, 2015.), o que pode explicar, em parte, a Drug Tariff compreender, quase quatro vezes mais, o número de medicamentos da Rename.

Persaud . (2019PERSAUD, N. et al. Comparison of essential medicines lists in 137 countries. Bulletin of the World Health Organization, v. 97, n. 6, p. 394-404C, 2019.), na comparação entre as listas de medicamentos essenciais de 137 países, encontraram diferenças substanciais na sua composição e extensão, fato que foi parcialmente justificado pelas características epidemiológicas de cada país.

Outro fator que influenciou a constituição e o tamanho das listas de medicamentos essenciais foi a renda média dos países, sendo, com raras exceções, mais amplas quanto maior for a renda, conforme comprovado por Taglione e Persaud (2021TAGLIONE, M. S.; PERSAUD, N. Assessing variation among the national essential medicines lists of 21 high-income countries: a cross-sectional study. BMJ Open, v. 11, n. 8, p. e045262, 2021.).

Como observado neste estudo, em se tratando das causas mais comuns de incapacidade e morte no Brasil e na Inglaterra, a Rename não possui substâncias ativas para todos os mesmos grupos químicos presentes na Drug Tariff, utilizados no tratamento das doenças que atingem os sistemas cardiovascular, músculo-esquelético e nervoso. Este estudo, no entanto, não tem elementos para avaliar de forma mais ampla as implicações terapêuticas, ainda que seja possível inferências com base em algumas pistas. Deste modo, apesar das diferenças econômicas entre Brasil (país de renda média alta) e Inglaterra (país de renda alta), o estudo demonstra haver oportunidades de aprimoramento da Rename, considerando os medicamentos registrados no país, e guardando a necessidade de evidências clínicas robustas e da aprovação dos estudos econômicos

Como exemplo, pode-se destacar o tratamento da migrânea, ou enxaqueca, doença com prevalência estimada de 15,8% na população brasileira. A migrânea encontra-se entre as cefaleias primárias e é a variedade que causa mais prejuízos às atividades dos doentes, sendo as mulheres as mais atingidas e o nível de incapacidade proporcional à intensidade da dor (Cruz ., 2020CRUZ, M. C. DA et al. Migrânea: revisão de literatura. Archives of Health Investigation, v. 10, n. 2, p. 307–314, 2020.; Queiroz; Silva Junior, 2015QUEIROZ, L. P.; SILVA JUNIOR, A. A. The Prevalence and Impact of Headache in Brazil. Headache: The Journal of Head and Face Pain, v. 55, p. 32-38, 2015.). Diante desta realidade, Queiroz e Júnior (2015) alertam para a necessidade do desenvolvimento de ações voltadas para a minimização do impacto das cefaleias na população brasileira. Destacam o avanço significativo que os programas de saúde do Ministério da Saúde, destinados às doenças crônicas, como diabetes e hipertensão arterial, têm alcançado, e que não há nenhuma iniciativa semelhante para o tratamento das cefaleias. Esta afirmação é confirmada pela ausência de medicamentos específicos para seu tratamento na Rename 2020.

O melhor balanço quanto ao número de itens na lista de medicamentos essenciais segue sendo uma preocupação dos governos, tanto pela questão do acesso aos medicamentos pela população quanto pela factibilidade e sustentabilidade dos mecanismos de financiamento. Assim, quanto menor uma lista de medicamentos essenciais, tende a ser maior a necessidade de desembolso de recursos próprios para a sua aquisição, o que, muitas vezes, não é possível, principalmente para as pessoas mais pobres (Santana; Lupatini; Leite, 2017SANTANA, R. S.; LUPATINI, E. de O.; LEITE, S. N. Registro e incorporação de tecnologias no SUS: barreiras de acesso a medicamentos para doenças da pobreza? Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 5, p. 1417-1428, 2017). Por outro lado, listas muito amplas, em especial com itens de alto custo, podem representar desafio ao financiamento sustentável.

A adoção de uma lista de medicamentos mais limitada quanto às concentrações e quanto às formulações de uma mesma substância ativa pode causar prejuízo à terapia de certos grupos populacionais e em certas condições patológicas. Um exemplo desta dificuldade é a frequente escassez de formulações pediátricas como soluções orais, suspensões e xaropes, o que prejudica a administração de medicamentos a esses pacientes.

Huckle (2020HUCKLE, R. Managing the supply of unlicensed medicines to patients in the UK. Regulatory Rapporteur, v. 17, n. 7/8, p. 4, 2020.) destacou que, em indivíduos com disfagia (dificuldades de deglutição), a identificação de erros de medicação foi três vezes maior que em pacientes sem disfagia. A explicação está na necessidade de adequação caseira das formas farmacêuticas sólidas para formas líquidas, feitas por familiares e cuidadores.

É importante ressaltar, também, que uma relação mais restrita pode contribuir, em parte, para o aumento da judicialização, visto que os medicamentos mais judicializados são os que não estão incorporados nessa lista, seguidos pelos medicamentos que não estão disponíveis nas unidades de saúde, mesmo integrando a Rename (Dias et al., 2019; Oliveira ., 2021OLIVEIRA, Y. M. da C. et al. Judicialização no acesso a medicamentos: análise das demandas judiciais no Estado do Rio Grande do Norte, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 1, 2021).

Cabe ressaltar que a Rename, já em 2014, disponibilizava a totalidade das vacinas recomendadas pela OMS para as doenças encontradas no país e, entre 2006 e 2014, o número de medicamentos para tratamento das chamadas “doenças da pobreza” aumentou em 46%, seguindo, ao menos em parte, as recomendações da OMS, nas quais a lista de medicamentos essenciais deve ser concisa, porém abrangente quanto às necessidades terapêuticas, e visar ao uso racional de medicamentos (Santana; Lupatini; Leite, 2017).

Por outro lado, a literatura brasileira sinaliza a crítica quanto a amplitude da Rename e a operacionalização dos critérios de incorporação, mencionando que a lista estaria assumindo uma magnitude em tamanho e tipos de itens incorporados que desafiam a capacidade de financiamento pelo estado (Osorio-de-Castro, 2017OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Rumo nebuloso para os medicamentos essenciais no Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. 9, 2017.).

As características das listas de medicamentos do Brasil e da Inglaterra resultam de escolhas políticas adotadas pelos dois países, as quais são tanto baseadas no modelo de organização da AF utilizado quanto no orçamento disponível para o setor saúde de cada país, o que impacta diretamente no modo de financiamento da AF em cada um deles (Brasil, 2000). A despeito do sistema de saúde inglês ter sido uma inspiração para a organização do SUS, o mesmo não acontece em relação aos medicamentos visto que, desde a seleção até a dispensação, existem marcantes diferenças entre os dois sistemas.

A comparação entre a lista de medicamentos do NHS e do SUS comprova a disputa, definida por Duong . (2015DUONG, M. et al. Essential Medicines in a High Income Country: Essential to Whom? PLOS One, p. 14, 2015.), entre a compreensão de uma lista de caráter individualizado em contraponto a outra com abordagem utilitária, com intuito de suprir as necessidades da população.

A Rename possui maior número de subgrupos de 4º. nível no grupo anatômico P (produtos antiparasitários, inseticidas e repelentes) que a Drug Tariff, fato esse consistente com os dados da Carga Global de Doenças. A despeito de, no Brasil, as doenças tropicais negligenciadas e malária ocuparem 21º. lugar entre as enfermidades que mais afetam o país, e, na Inglaterra, 22º, a grande diferença entre os países está no seu impacto na população que corresponde a 244,84 e 4,34 anos de vida perdidos por incapacidade (DALYs) por 100 mil pessoas no Brasil e na Inglaterra, respectivamente (IHME, 2019IHME. Global Burden Disease (GDB). Institute for Health Metrics and Evaluation. 2019. Disponível em: <http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare>. Acesso em: 10 dez. 2020.
http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare...
). Além disso, as taxas de mortalidade por doenças tropicais negligenciadas e malária no ano de 2019, no Brasil, foi 4,2 por 1.000 habitantes, enquanto na Inglaterra, foi zero (Marques; Johansen, 2021MARQUES, C.; JOHANSEN, I. C. Saúde e pesquisas domiciliares no Brasil e Inglaterra: a Pesquisa Nacional de Saúde e a Health Survey for England. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, n. 9, p. 3943-3954, 2021.). As doenças tropicais negligenciadas atingem grande número de brasileiros, como é o caso da Doença de Chagas cuja estimativa era de 1,9 a 4,6 milhões de infectados em 2022, média de 4.000 mortes/ano (Neto, 2022NETO, P. T. Panorama de desenvolvimento de novos medicamentos para o tratamento de doenças negligenciadas com ênfase na tuberculose: desafios e oportunidades para o SUS. Tese de Doutorado—Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz, 2022).

Para o grupo anatômico J (anti-infecciosos para uso sistêmico), os dois países se aproximam em relação ao número de subgrupos de 4º. nível (Rename, 49; Drug Tariff, 52). Este fato se relaciona ao perfil epidemiológico dos dois países, que têm as doenças transmissíveis (infecções respiratórias e tuberculose, HIV/AIDS, infecções entéricas e outras infecções), entre as principais enfermidades que acometem a população, ainda que o impacto dessas doenças seja maior no Brasil (IHME, 2019IHME. Global Burden Disease (GDB). Institute for Health Metrics and Evaluation. 2019. Disponível em: <http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare>. Acesso em: 10 dez. 2020.
http://vizhub.healthdata.org/gbd-compare...
).

Dentre as limitações deste estudo está a possibilidade de existirem listas de medicamentos específicas de municípios e Estados, que não foram inseridas nesta pesquisa, podendo influenciar nos resultados encontrados, ainda que de modo irrisório em se tratando do Brasil como um todo. Além disso, as listas de medicamentos utilizadas foram criadas com diferentes objetivos e a comparação entre Inglaterra e Brasil, por suas diferenças na organização e no financiamento tanto da assistência à saúde quanto da assistência farmacêutica, também se apresenta como uma limitação visto que comparações são, preferencialmente, feitas entre países com maiores semelhanças.

Além disso, devido à opção pela exclusão de medicamentos associados, alguns recursos terapêuticos para tratamento de condições epidemiologicamente relevantes podem não ter sido considerados na análise.

Considerações finais

Na comparação das listas de medicamentos financiados pelo NHS e pelo Brasil, a Drug Tariff se mostrou mais abrangente quanto ao número de opções terapêuticas, permitindo ao profissional de saúde e aos pacientes um amplo conjunto de possibilidades de tratamento, envolvendo um maior número de enfermidades. No entanto, em se tratando de um país de menor disponibilidade de recursos financeiros, como o Brasil, a adoção de uma lista de medicamentos orientada para o tratamento das doenças prevalentes seria uma escolha mais racional.

Sugere-se o desenvolvimento de estudos detalhados de comparação entre as listas para os casos em que, tratando-se das doenças prevalentes em ambos os países, não há nenhuma alternativa terapêutica na Rename quando comparada à Drug Tariff

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    A publicação deste artigo contou com o apoio financeiro do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (PPGSP/ENSP) da Fiocruz.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2023
  • Aceito
    28 Set 2023
  • Revisado
    03 Set 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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