Territórios hostis e o atendimento à crise nos CAPS III na cidade do Rio de Janeiro

Hostile territories and crisis response in CAPS III in the city of Rio de Janeiro

Maria Fernanda Cruz Coutinho Gisele O’Dwyer Mônica de Oliveira Nunes Sobre os autores

Resumo

Apesar do avanço significativo do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, a assistência à pessoa em crise representa um nó ao cuidado dos portadores de transtorno mental, à medida que demanda da rede de atenção à saúde mental uma resposta distinta da clássica internação psiquiátrica. Este trabalho, a partir da análise de documentos e realização de entrevistas com gestores de nível central e local, procurou investigar como se dá o acolhimento à crise nos Centros de Atenção Psicossocial III do município do Rio de Janeiro. A análise dos dados tomou como referencial a Teoria da Estruturação de Giddens, relacionando as atitudes dos gestores com os recursos disponíveis. O trabalho identificou avanço em processos de implantação de CAPS III, contudo insuficiente e mal distribuído no território. Além disso, a violência territorial emergiu como variável importante no impacto da saúde mental da população e no desenvolvimento de ações de saúde. Conclui-se que é importante a implantação de mais CAPS III, sobretudo em regiões totalmente devastadas de serviços que acolham a crise.

Palavras-chave:
Intervenção na crise; Centro de Atenção Psicossocial; Saúde mental; Território

Abstract

Despite the significant progress of the Psychiatric Reform process in Brazil, assistance to people in crisis represents a node in the care of people with mental disorders, as it demands from the mental health care network a different response from the classic psychiatric hospitalization. This work, based on the analysis of documents and conducting interviews with managers at central and local levels, sought to investigate how the reception of the crisis takes place in the Psychosocial Care Centers III in the city of Rio de Janeiro. Data analysis was based on Giddens' Theory of Structuring, relating the attitudes of managers with available resources. The work identified advances in CAPS III implementation processes, however insufficient and poorly distributed in the territory. In addition, territorial violence emerged as an important variable in the impact of the population's mental health and in the development of health actions. It is concluded that it is important to implement more CAPS III, especially in regions totally devastated by services that host the crisis.

Keywords:
Crisis Intervention; Center of Psychosocial Attention; Psychosocial Attention; Mental Health; Territory

Introdução

Na dimensão assistencial do Processo de Reforma Psiquiátrica, a superação do aparato manicomial representou a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que tem como proposta que os serviços de saúde mental operem em lógica autenticamente substitutiva ao modo manicomial (Costa-Rosa, 2000). Para a efetiva concretização dessa rede, é fundamental que haja uma mudança na oferta e lógica do cuidado, de modo que a atenção em saúde mental seja remodelada a partir da qualificação das práticas e dos serviços, sobretudo no modo como a equipe opera nos componentes da RAPS.

O Centro de Atenção Psicossocial modalidade III (CAPS III), que constitui um dos dispositivos da RAPS, por ser serviço territorial com leitos para acolhimento 24 horas nos sete dias da semana, é decisivo para que essa rede possa prescindir de leitos em hospitais psiquiátricos, pois é capaz de assegurar a assistência a pacientes em crise.

Compreendida como uma sub rede de Atenção à Saúde, a RAPS e sua estruturação têm o intuito de promover maior integração dos diferentes níveis de atenção, visando aumentar a resolutividade dos problemas de saúde de uma dada população, reduzir os custos do sistema de saúde e sistematizar adequadamente o processo de referência e contrarreferência, tendo o usuário como centro da assistência (Viegas ., 2010VIEGAS, S. M. F. et al. O cotidiano da assistência ao cidadão na rede de saúde de Belo Horizonte. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 769-784, jul-set. 2010.; Mendes, 2011MENDES, E. V. As redes de Atenção à Saúde. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde, 2011.; Silva, 2013SILVA, S. F. (Org.). Redes de atenção à saúde: desafios da regionalização no SUS. Campinas: Saberes, 2013.; Gomes, 2014GOMES, R. M. Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária e a Organização Atual. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, dez. 2014.). Portanto, os serviços devem atuar a partir dos mesmos objetivos e de forma cooperativa, sem hierarquia, de modo que o cuidado seja continuado nos diferentes níveis de atenção e que o objetivo seja efetivamente melhorar a qualidade de atenção e vida dos usuários (Rosen; Han, 2008). Esta forma de organização, centrada no paciente e direcionada para os resultados, garante a continuidade e a integralidade do cuidado (Suter ., 2009SUTER, E. et al. Ten key principles for successful health systems integration. Health Q, Toronto, v. 13, p. 16-23, Oct. 2009.; Mendes, 2011).

A população é o que justifica a existência do sistema integrado de saúde, no sentido de que suas necessidades determinarão a melhor organização para a rede. Desse modo, torna-se essencial definir previamente a população adscrita para estruturar a rede, consequentemente, circunscrever previamente o território sanitário (Mendes, 2011MENDES, E. V. As redes de Atenção à Saúde. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde, 2011.; Silva, 2013SILVA, S. F. (Org.). Redes de atenção à saúde: desafios da regionalização no SUS. Campinas: Saberes, 2013.).

Segundo Gondim e Monken (2017GONDIM, G. M. M.; MONKEN, M. Território e territorialização. In: GONDIM, G. M. M.; CHRISTÓFARO, M. A. C.; MIYASHIRO, G. M. (Org.). Técnico de vigilância em saúde: contexto e identidade. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. p. 21-44.), no Brasil, desde o início do século XX, o território é reconhecido pelo Estado como espaço produtor de desequilíbrio entre o homem e o ambiente - e consequentemente, de doenças e mortes, desencadeando uma série de ações de saúde para os âmbitos individual e coletivo. Desde então, esses elementos passam a ser considerados para a organização de serviços e sistemas de saúde visando ao enfrentamento dos problemas e a garantia ao atendimento às pessoas a partir de recortes territoriais específicos.

No final dos anos 80 e no decorrer dos anos 90, com a implantação do SUS, a rede de serviços de saúde no Brasil é orientada e organizada a partir de critérios de delimitação de áreas para a saúde através da definição de áreas político-administrativas, não somente para controle da saúde, mas também visando incorporar dimensões do território, tais como política, econômica, social, cultural, sanitária (Gondim; Monken, 2017GONDIM, G. M. M.; MONKEN, M. Território e territorialização. In: GONDIM, G. M. M.; CHRISTÓFARO, M. A. C.; MIYASHIRO, G. M. (Org.). Técnico de vigilância em saúde: contexto e identidade. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. p. 21-44.). Nesse sentido, o uso do conceito de território é estratégico para caracterizar não apenas o tipo de atenção de saúde, como também estruturá-la.

Na Saúde Mental, o termo “território” adquiriu particular relevância com a reforma psiquiátrica e a contraposição entre serviços centrados no hospital psiquiátrico e serviços comunitários, no sentido do progresso do processo de desinstitucionalização (Delgado, 1999DELGADO, P. G. G. Atendimento psicossocial na metrópole: algumas questões iniciais. Cadernos IPUB-UFRJ, v. 14, p. 113-122, 1999.; Amarante, 2011AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2011.). Contudo, não há consenso entre os atores desse campo acerca das concepções, princípios e modos de operar desse termo, conforme nos aponta Dutra (2015DUTRA, V. F. D.; OLIVEIRA, R. M. P. Revisão integrativa: as práticas territoriais de cuidado em saúde mental. Aquichan, v. 15, p. 529-40, 2015.).

Furtado . (2016FURTADO, J. P. et al. A concepção de território na Saúde Mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 9, p. 1-15, 2016.) destacam, no campo científico, quatro acepções de território. A mais usual é a concepção de território como sendo determinada área de cobertura e ação de serviços extra-hospitalares, tomando território como espaço fora do hospital psiquiátrico e adjacente ao serviço de saúde. A segunda acepção é a de território como um conjunto de recursos terapêuticos identificados e articulados pelos profissionais de saúde, como espaços públicos, vizinhanças, associações etc. A terceira acepção é o território existencial, constituído a partir da história pessoal de cada indivíduo, no qual se evidenciam construções simbólicas do sujeito acerca, sobretudo, do pertencimento. E por último, o território aparece como um sistema de objetos e ações, derivado sobretudo das teorias de Milton Santos.

Para a Geografia Crítica, o conceito de território evoca determinações não apenas de espaço como também de poder (Furtado ., 2016FURTADO, J. P. et al. A concepção de território na Saúde Mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 9, p. 1-15, 2016.). Souza (2000SOUZA, M. J. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2000. p. 77-116.) sugere que, em uma aproximação inicial, o território pode ser compreendido como “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (p. 78). Perguntar por território, territorialidade ou territorialização significa perguntar “quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como” (p. 79). O conceito de território implica a consciência de que o poder sempre se exerce em determinado espaço e por meio dele, seja um Estado-nação, sejam territórios menos evidentes, como aqueles do tráfico de drogas ou da indústria imobiliária de luxo. Mais à frente, no mesmo texto, o autor afirma que o território não deve ser confundido com o espaço concretamente percebido e objetivado, mas como “[...] as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial” (p. 97).

Pensar a RAPS e o papel do CAPS III como substituto manicomial requer, necessariamente, que se pense o papel do território no cuidado e, mais do que isso, que se estabeleça uma caracterização sobre a forma como a rede de atenção à saúde mental está territorialmente organizada.

O presente artigo compreende o território não apenas como uma área geográfica, mas a designação das pessoas, das instituições, das redes e dos cenários nos quais se dão a vida comunitária (Brasil, 2005). O objetivo consistiu em analisar o acolhimento à crise em saúde mental nos CAPS III do município do Rio de Janeiro, abordando a problemática da atenção à crise. Dentre as categorias encontradas como resultado, destaca-se o território.

Metodologia

Tratou-se de um estudo qualitativo, resultado de uma tese de doutorado, que envolveu análise documental e entrevistas semiestruturadas que foram posteriormente analisadas a partir do referencial teórico da Teoria da Estruturação (TE) de Giddens.

A pesquisa teve como sujeitos todos os 13 gestores (diretores e coordenadores técnicos) dos CAPS III da cidade do Rio de Janeiro, bem como a equipe da superintendência de saúde mental do município vigente entre os anos de 2020/2 e 2021/1, composta por oito profissionais totalizando 21 entrevistados.

Os CAPS operando na modalidade III na cidade do Rio no momento do estudo eram CAPS III Manoel de Barros, CAPS III João Ferreira da Silva Filho, CAPS III EAT Severino dos Santos, CAPS III Clarice Lispector, CAPS III Fernando Diniz, CAPS III Franco Basaglia, CAPS III Maria do Socorro, CAPS III Bispo do Rosário, totalizando oito unidades.

A escolha por essa cidade diz respeito a seu volume populacional, que representa 33,9% da população do estado do Rio de Janeiro, além de ser um dos locais precursores no processo de Reforma Psiquiátrica, com número importante de serviços substitutivos já instituídos.

Os CAPS III foram selecionados por possuírem recursos formais específicos para atenção à crise e assistência 24h, o que os torna um local estratégico para a apreensão dos modos de acolhimento e resolução de crises em saúde mental, sobretudo por serem reconhecidos como serviços que supostamente atendem de modo satisfatório essas situações.

Para análise documental, utilizaram-se os Accountabilities 2021, primeiro quadrimestre, de todos os CAPS III do município cadastrados como tais até janeiro de 2021, fornecidos pelos gestores dos referidos serviços. Esse documento interno da Secretaria de Saúde do município consiste em um conjunto de mecanismos que permitem aos gestores prestar contas e que sejam responsabilizados pelos resultados de suas ações. Desse modo, está relacionado a responsabilização, fiscalização e controle social.

A outra fonte documental acessada foi o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES).11 http://cnes.datasus.gov.br/pages/sobre/institucional.jsp#:~:text=Cadastro%20Nacional%20de%20Estabelecimentos%20de%20Sa%C3%BAde Trata-se de uma base de dados na qual estão cadastrados estabelecimentos de saúde públicos, conveniados e privados em todo território brasileiro, que possibilita ao gestor o conhecimento real da rede assistencial, e consequentemente, melhor planejamento de ações. O CNES serviu para levantamento do número de leitos em hospitais psiquiátricos públicos do município do Rio de Janeiro e de leitos de acolhimento noturno em CAPS modalidade III.

Foram realizadas 21 entrevistas remotamente, utilizando a plataforma digital Google Meets, em função do período de isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. As entrevistas aconteceram a partir de dois roteiros. Um deles foi dirigido ao nível central de gestão, identificado como GC, buscando levantar informações sobre a estruturação, planejamento, concepções e funcionamento da atenção à crise na RAPS. O outro roteiro serviu para entrevistar os gestores de nível local, identificados como GL e teve como eixos concepções e manejo da crise nos CAPS III.

A utilização da TE para análise do material empírico se deu porque, segundo O´Dwyer (2015, p. 178), a sistematização dos elementos conceituais envolvidos com a TE (Giddens, 1984GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1984. 458 p.) indica que utilizá-la como estratégia metodológica permite a análise das práticas no SUS, que são sustentadas por recursos legais e documentais e que estão sempre contextualizadas por circunstâncias da ação. Ouvir os entrevistados a partir da consciência discursiva de Giddens foi fundamental para a análise das entrevistas à medida que é uma forma privilegiada para acessar o conhecimento do agente e refere-se ao que ele é capaz de expressar verbalmente, acerca das condições sociais, incluindo as condições de sua própria ação (Giddens, 1984).

O argumento central na TE é de que não há um dualismo entre sujeito e objeto, entre ação e estrutura, mas sim uma “dualidade da estrutura”, em que as propriedades estruturais do sistema social são compreendidas, ao mesmo tempo, como meio e resultado das práticas que elas recursivamente organizam, só existindo na medida em que formas de conduta social são reproduzidas através do tempo e do espaço (Giddens, 1984GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1984. 458 p.).

Para Giddens (1984GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1984. 458 p.), os sistemas sociais não são criações de sujeitos individuais, nem são determinados pela sociedade. Eles são determinados pela interação entre ambos, ou seja, entre a influência da sociedade no indivíduo (estrutura coercitiva) e a liberdade do indivíduo para agir e influenciar a sociedade (liberdade de ação), estando cronicamente envolvidas em sua produção e reprodução (Giddens, 1984). Estrutura e ação estão, dessa forma, indissociavelmente ligadas, ou seja, uma não tem prioridade sobre a outra.

Considerando o objeto de análise aqui proposto, o contexto da RAPS no Rio de Janeiro terá elementos que apresentam características facilitadoras e coercitivas para a ação que incluem fenômenos materiais e sociais. No que se refere a essa tese, pode-se dizer que há variáveis existentes na RAPS e no território que podem ser facilitadoras ou restritivas ao sucesso do cuidado às pessoas em crise, e que impactarão os serviços, gestores e especialmente os usuários. As variáveis seriam os recursos e regras disponíveis para os atores atuarem.

Os principais recursos que compõem a RAPS são: Unidade Básica de Saúde; Núcleo de Apoio a Saúde da Família; Consultório de Rua; Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório; Centros de Convivência e Cultura. Centros de Atenção Psicossocial nas suas diferentes modalidades. As regras são executadas por meio dos profissionais de saúde mental disponíveis: superintendência de saúde mental e unidades de serviços territoriais como os CAPS III. Com vistas a explicitar os aspectos centrais desta análise, decidiu-se agrupar os elementos estruturais (regras, recursos, fatores restritivos e facilitadores) e as ações dos gestores por meio da monitoração reflexiva, observadas no contexto do cuidado e das interações entre agente e estrutura. Cabe ressaltar que a estrutura nunca é apenas coercitiva, no sentido de restrição. Ela é sempre, simultaneamente restritiva e facilitadora.

A pesquisa seguiu as normas éticas sendo aprovada por dois Comitê de Ética de Pesquisa sob os pareceres nº 3.723.033 e nº 4.046.876.

Resultado e Discussão

Organização da RAPS: o CAPS III no Rio de Janeiro

De acordo com um dos gestores entrevistados, o planejamento inicial, ainda no final da década de 90, previa a criação de pelo menos um CAPS em cada área programática (AP), onde cada serviço seria responsável pelo atendimento de até 150 pessoas e suas famílias. Passados os primeiros anos de CAPS na cidade, essa cobertura populacional precisou ser redefinida, de modo que assumissem a responsabilidade plena do território que estava localizado.

Com base no mapa de distribuição de serviços e nos dados sobre composição da clientela produzidos pelo Censo dos Internos nos Hospitais Psiquiátricos em 1995, os CAPS começaram a ser construídos nas regiões de baixa oferta assistencial (zona oeste do Rio) e com o tempo se expandiram para todas as áreas programáticas (Fagundes, 1999FAGUNDES, H. M. Os CAPS de Campo Grande e Santa Cruz e a consolidação da rede de atenção psicossocial na cidade do Rio de Janeiro. Cadernos IPUB, n. 14, p. 31-39, 1999.; Fagundes Júnior; Desviat; Silva, 2016; Rio de Janeiro, 2022).

Ao todo, a cidade do Rio de Janeiro conta, atualmente, com 18 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), 6 Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPSad) - dois deles com unidades de acolhimento adultos (UAA) - e 7 Centros de Atenção Psicossociais Infantis (CAPSi), totalizando 31 unidades especializadas próprias. Outras três das redes estadual e federal (1 CAPS tipo II, 1 CAPSi II e 1 CAPSad II) completam a rede de 34 CAPS dentro do município do Rio de Janeiro. Sob gestão municipal existem 10 CAPS tipo II, voltados para o atendimento de adultos com transtorno mental grave, 8 CAPS tipo III, além 7 CAPSi e 6 CAPSad, sendo 2 do tipo II e 4 do tipo III (Rio de Janeiro, 2022). Os primeiros CAPS III são implantados no município do Rio de Janeiro em 2010, mesma época do programa de aceleração do crescimento.

O aumento no número de CAPS está associado a variáveis importantes no processo de Reforma e no processo de desinstitucionalização, tais como a redução do número de leitos psiquiátricos, o crescimento do número de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e a expansão da cobertura de Estratégia de Saúde da Família (ESF). Essas variáveis apontam para o esforço do município em desmontar paulatinamente os leitos em hospitais psiquiátricos, consolidando a desinstitucionalização como política municipal efetiva a partir de 1996, com a implantação dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial.

De acordo com outro entrevistado, a RAPS do Rio conta efetivamente, uma vez que não corresponde aos dados encontrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), com 175 leitos, sendo apenas 85 leitos em institutos municipais, o que ele considera como número modesto para uma cidade de mais de seis milhões e seiscentos mil habitantes.

Apesar da tendência de crescimento no número de CAPS III e de o Ministério da Saúde considerar a cobertura de CAPS por cem mil habitantes boa, tanto Fagundes Júnior, Desviat e Silva (2016) quanto Elia (2013ELIA, D. S. O CAPS fora de si: um estudo sobre a atenção à crise no município do Rio de Janeiro. 2013. p. 181. Dissertação (Mestrado) - Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2013.) consideram baixo o número desses serviços na cidade, o que justifica a taxa de ocupação dos leitos em hospitais psiquiátricos ainda se manter alta. Nesse sentido, torna-se fundamental construir uma rede de atenção às crises, sobretudo aquelas mais graves, em dispositivos localizados em hospitais gerais e em serviços de base comunitária, mais especificamente os CAPS III.

Em função da amplitude territorial do município do Rio de Janeiro e para melhor gestão, a Rede de Atenção Psicossocial está organizada sobre uma divisão em três RAPS, a saber, Zona Norte, Centro-Sul e a Zona Oeste, que por ser muito extensa, com áreas de grande ocupação populacional foi subdividida. A RAPS Zona Norte é responsável pelas APs 3.1, 3.2 e 3.3; a RAPS Centro Sul cuida das APs 2.2, 2.1, 1.0 e a RAPS Zona Oeste que engloba as APs 5.1, 5.2, 5.3 e 4.0.

A Raps Zona Oeste foi subdividida por apresentar uma grande extensão territorial, um alto número de dispositivos terapêuticos e uma população muito vulnerável. A superintendência, com o intuito de propiciar uma melhor gestão, colocou as áreas programáticas 5.1, 5.2, e 5.3 sob cuidado de uma coordenadoria e a área 4.0 sob outra coordenação. Na RAPS Centro-Sul, encontram-se apenas dois CAPS III, a saber, CAPS Maria do Socorro, localizado na Rocinha e o CAPS Franco Basaglia.

Segundo gestor entrevistado, AP4.0 possui 44 residências terapêuticas, 20 moradias assistidas e ainda o polo manicomial do Instituto Municipal de Assistência à Saúde (IMAS) Juliano Moreira. Na Zona Oeste, os CAPS III estão concentrados na AP 4.0, que são o CAPS III Manoel de Barros e o CAPS III Arthur Bispo do Rosário, ambos localizados dentro do IMAS Juliano Moreira. Além dessas duas unidades, a RAPS ainda conta com o CAPS AD Mussum e a Unidade de Acolhimento Cacildis, que são acionados pelos CAPS das áreas 5.1, 5.2, e 5.3 sempre que precisam de acolhimento noturno para algum usuário.

A Figura 1 apresenta a cidade do Rio de Janeiro por RAPS, Institutos e CAPS III.

Figura 1
Distribuição dos serviços nas áreas programáticas das três Redes de Atenção Psicossocial do município do Rio de Janeiro em 2021

A Figura 1 revela a extensa área geográfica do município do Rio de Janeiro, onde não existe nenhum serviço territorial com leitos de acolhimento noturno.

[...] a ideia que se tem, que se almeja é que todos ou quase todos (os CAPS) sejam III [...] mas não só por conta dos leitos, é porque a gente entende que o CAPS III tem muito mais robustez para fazer atenção à crise... (GC 3)

A ideia da gestão de saúde mental do município, segundo entrevistado, “a gente tem como estratégia que a gente não tenha mais CAPS sem leitos no município, que possa ter equipes de atenção psicossocial disponíveis 24h (GC2)”.

A redução do número de leitos psiquiátricos e a importância de se tratar pessoas com transtorno mental em serviços territoriais é um norte que orienta a RP no Brasil. A atenção à crise é um aspecto extremamente importante dessa abordagem, pois envolve fornecer cuidados intensivos e de curto prazo para pessoas em sofrimento intenso, a fim de evitar internações. Portanto, o foco prioritário nos cuidados territoriais é algo central para a construção de uma rede integrada que não seja centrada no hospital psiquiátrico, fato inteiramente validado pela investigação científica das últimas décadas (Almeida, 2019ALMEIDA, J. M. C. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública, v. 35, n. 11, 2019.).

No entanto, a mera transformação de modalidades de CAPS de II para III será insuficiente se os gestores não levarem em consideração, para implementação de serviços, variáveis como distribuição de recursos no território, população de abrangência de cada CAPS onde está localizado, além da distância que o usuário terá que se deslocar para obter atendimento. Esses pontos são absolutamente relevantes quando se verificam, a partir da Figura 1, os enormes vazios territoriais que existem nas áreas programáticas.

Torna-se essencial, para a construção da rede de atenção à crise e implantação de CAPS III, que se pense em variáveis como número de habitantes por área programática (AP), dados de cobertura de atenção primária e acesso, que não foram constatados pelas entrevistas. Tal resultado faz com que o processo de implantação da rede de saúde mental seja questionado no município do Rio de Janeiro, sobretudo porque essas variáveis importam muito aos serviços territoriais.

O processo de implementação não aconteceu da mesma maneira em todos os CAPS, no sentido de que cada serviço esteve submetido a um processo histórico particular, sofrendo influências de variáveis políticas e sociais, que impactaram dentre outras coisas seu perfil populacional e profissional. Há apenas dois CAPS III que são fundados nessa modalidade. Todos os demais ou derivaram de serviços existentes dentro de hospitais psiquiátricos ou de CAPS II, e trazem consigo uma clientela e profissionais bastante marcados pela vida manicomial.

A diversidade de origem dos serviços, possivelmente, se relaciona com a existência do aparato manicomial de longa data, mas também são signo do processo de Reforma Psiquiátrica em curso no município desde a década de 80. A transformação dos CAPS II para a modalidade III é uma aposta importante para que a crise cada vez mais possa ser acolhida em serviços territoriais, sobretudo em função de estrutura desses serviços. Contudo, é fundamental implantar CAPS originalmente III em todo território municipal, considerando a abrangência geográfica da cidade e da carência de serviços, que não será suprida apenas com a estratégia de transformação.

Em uma metrópole como o Rio de Janeiro, com uma área territorial de 43.750 km², a quarta menor do território nacional, e com uma rede de serviços que enfrenta uma série de problemas em decorrência do subfinanciamento - como por exemplo, insuficiência de recursos para transporte -, torna-se difícil tanto fazer o deslocamento do usuário de uma unidade para outra como o transporte do técnico para visita ao paciente em outra instituição, ou mesmo uma visita domiciliar. Portanto, se está diante de uma rede de saúde ainda insuficiente para a necessidade de resposta à demanda e com um tempo de deslocamento enorme entre um ponto e outro dela, ainda que haja pontos de interseção e nenhuma restrição de acesso (Diaz, 2013DIAZ, A. R. M. Atenção à crise em Saúde Mental: clínica, planejamento e gestão. 2013. 201 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.; Almeida, 2019ALMEIDA, J. M. C. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública, v. 35, n. 11, 2019.; Sampaio; Bispo Júnior, 2021SAMPAIO, M. L.; BISPO JÚNIOR, J. P. Rede de Atenção Psicossocial: avaliação da estrutura e do processo de articulação do cuidado em saúde mental. Cad. Saúde Pública, v. 37, n. 3, 2021.).

O papel do território na organização do cuidado em saúde mental

Pensar as redes de atenção psicossocial e o papel do CAPS III como substituto manicomial requer, necessariamente, que se pense o papel do território no cuidado e, mais do que isso, que se estabeleça uma caracterização sobre a forma como a rede de atenção à saúde mental está territorialmente organizada.

Antes de um aprofundamento sobre essas particularidades territoriais da rede de atenção psicossocial na cidade do Rio de Janeiro, é importante ter em mente que essa é uma metrópole dividida e marcada política e socialmente pelas diferentes paisagens geográficas, que cresceu desordenadamente, variando entre as regiões pontos de infraestrutura, tais como abastecimento de água, rede de esgoto e distribuição de energia elétrica, implicando discrepantes índices de desenvolvimento humano (IDH). Apesar de ser possível apontar vários determinantes sociais da saúde que impactam diretamente na saúde da população carioca, o que se destacou no âmbito das entrevistas foi a violência armada exercida pela polícia, mas sobretudo por traficantes e pela milícia.

Neste ponto, cabe ressaltar que a violência relacionada a organizações criminais, com diferentes características, tamanhos e formas de controle social e territorial, é algo que acomete a maioria das metrópoles da América Latina, segundo informam Adorno & Alvarado (2022). Os autores insistem que os desafios para esses governos urbanos vão além do combate às organizações criminosas e não se reduzem ao controle territorial, social ou coercitivo. Assim, quando se aponta o aspecto da violência armada do Rio de Janeiro, está se destacando algo inerente a uma metrópole, mas com as idiossincrasias de sua geografia e ocupação.

Curiosamente, o leitor poderá verificar que a violência armada destacada pelos entrevistados se refere ao poder paralelo, e não ao poder do Estado. A dimensão da violência do poder paralelo é algo que faz parte do cotidiano do serviço de saúde, à medida que são necessários pactos e autorizações para que a equipe possa acessar seus usuários que estão no território.

O Complexo do Alemão não é mais como era em 2010 [...] quando a gente entra, existia uma organização da bandidagem no território [...]. Bom, todas as UPPs são corrompidas [...] novos bandidos vão chegando no território. E aí, o território fica muito diferente [...] a gente não tem mais um diálogo. (GL1)

A gente fala: ela se trata ali no CAPS. Ela tira a roupa, ela grita. Quando for assim, manda ela para o CAPS. Ela mesma dá uma sossegada no território. (GL1).

E interfere diretamente nas ações de saúde:

Não vai mais sozinho. A gente recebeu duas agentes territoriais... Ficar mais junto das equipes, para que não subam sozinhas, elas não conhecem o território. Mesmo assim, semana passada, a gente para tudo, Manguinhos estourou a bomba aqui, está tendo invasão, é um reflexo lá para o Alemão, a gente para tudo, não dá para fazer (GL1)

Pesquisa realizada entre 2018 e 2020, nas 16 favelas que compõem a Maré, chamada “Construindo Pontes”, afirma que pessoas em situações de violência são mais vulneráveis ao sofrimento mental. O medo de que alguém próximo seja atingido por arma de fogo, por exemplo, chega a 71% dos entrevistados. Estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são alguns dos transtornos frequentes (Boletim, 2020).

Gestores relatam violência territorial como gerador ou desencadeante de crise em saúde mental de usuários:

Ele se sente ameaçado por algum desgaste na comunidade com algum vizinho, por uma certa relação já desgastada com a família e que esse cara começa a ficar vulnerável no território; está jurado de morte por alguma questão... Situações que o cara chega no CAPS não necessariamente com essa crise aguda, psicótica, mas já chega com um certo pedido de acolhimento daquela situação e daqui a pouco aquilo vai virar sim, um quadro agudo. (GC3).

Evidentemente que a violência armada é apenas uma das violências as quais esses sujeitos estão submetidos no seu cotidiano e que impactam a saúde mental. A Superintendência de Saúde Mental prevê como planejamento para 2022 iniciar uma série de estudos para traçar ações nessa direção, conforme informa entrevistado.

Uma vez situado o território em que esses CAPS III estão inseridos, cabe compreender quem são os usuários desses serviços. Cavalcanti (2009CAVALCANTI, M. T. et al. Critérios de admissão e continuidade de cuidados em centros de atenção psicossocial, Rio de Janeiro, RJ. Revista de Saúde Pública, v. 43, supl. 1, p. 23-28, 2009.) afirmam que, até dezembro de 2007, a rede de atenção contava em sua maioria com uma clientela jovem, de ambos os sexos, entre 20 e 50 anos (majoritariamente entre 30 e 49 anos, 63,8%) com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico (F20-29 CID-10).

O Gráfico 1, a seguir, apresenta o percentual de pacientes cadastrados em cada CAPS no primeiro semestre de 2021, permitindo vislumbrar o perfil populacional em termos de sexo e idade dos usuários desses serviços. Não estão incluídos dados do CAPS III João Ferreira da Silva Filho e do CAPS III Franco Basaglia pois não foi possível extrair do accountability dados para gerar o gráfico.

Gráfico 1
Distribuição dos pacientes cadastrados nos CAPS III do Rio de Janeiro, por sexo e faixa etária, primeiro semestre 2021

De um modo geral, é possível observar que os usuários estão concentrados na faixa entre 20 e 59 anos, mas há uma preponderância em alguns CAPS de usuários mais jovens, como é o caso no Fernando Diniz, no Maria do Socorro e no Arthur Bispo. Portanto, não se verifica diferença significativa entre os perfis de sexo e faixa etária nos anos de 2007, encontrados por Cavalcanti (2009CAVALCANTI, M. T. et al. Critérios de admissão e continuidade de cuidados em centros de atenção psicossocial, Rio de Janeiro, RJ. Revista de Saúde Pública, v. 43, supl. 1, p. 23-28, 2009. e 2021), publicados no Accountability.

No que diz respeito à análise do diagnóstico dos pacientes dos CAPSIII, foi possível notar uma diferença dos CIDs prevalentes entre os diversos CAPS estudados, conforme demostra o Gráfico 2.

Gráfico 2
Comparativo por CAPS do percentual de usuários por diagnóstico CID com cadastro ativo no serviço no primeiro semestre de 2021

O início do Programa de Saúde Mental no município do Rio de Janeiro, na década de 1990, por meio de CAPS e serviços residenciais, privilegiou ações dirigidas ao cuidado dos pacientes com transtornos mentais severos e persistentes. Não há consenso, na literatura, sobre a definição para paciente com transtorno mental severo e persistente (TMSP). No entanto, as portarias do Ministério da Saúde classificam um paciente com TMSP como elegível para o CAPS (Portaria n. 224, de 29 de janeiro de 1992/MS e n. 336, de 19 de fevereiro de 2002/MS).

Cavalcanti (2009CAVALCANTI, M. T. et al. Critérios de admissão e continuidade de cuidados em centros de atenção psicossocial, Rio de Janeiro, RJ. Revista de Saúde Pública, v. 43, supl. 1, p. 23-28, 2009.), a partir de uma série de estudos, concluíram que a definição de TMSP acaba recaindo sobre o diagnóstico de psicose, deixando de considerar uma proporção grande de pacientes no planejamento de serviços. Nesse sentido, o Gráfico 2 parece revelar não apenas uma mudança no perfil populacional dos CAPS III, como também mudança na gestão dos serviços acerca do manejo da crise em saúde mental, à medida que passa a receber o sofrimento mental intenso, a qual independe de sua forma de expressão, como poderá ser constatado em relatos de entrevistados.

Um dado que surge sobre as situações de procura pelas pessoas em crise foi acerca da violência auto infligida, ou seja, o suicídio. Pôde-se verificar ao longo das entrevistas que havia a percepção, de maior incidência desse desfecho chegando ao CAPS como crise, sobretudo nos últimos dois anos.

Eu acho que isso é uma coisa da rede, não especificamente, do nosso território, que são situações de tentativa de suicídio, muitos neuróticos e não psicóticos, não com histórico de tratamento em saúde mental, e de uns tempos para cá... a gente cobre um território de uma classe média mais alta que de uns tempos para cá, com a perda de dinheiro, com a perda econômica começou a precisar se utilizar do SUS, modificando a clientela. (GL4).

Na superintendência de saúde mental, o problema do aumento dos casos de tentativa de suicídio também não passa desapercebido:

Mais intensificada de 2017, 2018 para cá, eu acho. Tem dois anos que a gente vem enfrentando de forma absurda essa coisa das violências autoprovocadas e muitas situações vinculadas à crise econômica, a uma perda de uma situação econômica mais confortável, a dificuldade nas relações também assim, nas relações amorosas e familiares também provocadas por isso, por uma perda de um lugar no trabalho, sabe (GC3).

Para este entrevistado:

[...] com a pandemia, isso se intensificou muito porque pessoas que se viram em casa, ou trabalhando de casa ou não trabalhando, pessoas que perderam os seus empregos e estão tendo que se reestruturar [...] uma espécie de solidão... (GC4).

Evidentemente, os TMSP não desapareceram, como podemos constatar no Gráfico 2 e no relato do gestor:

A maior parte dos casos que a gente atende são quadros de psicóticos graves. Quadros de desorganização psíquica com presença de risco para ele ou para outros. Algumas situações em que está se colocando em risco (GL7).

Tanto os dados apresentados no accountability, quanto os relatos daqueles que estão na ponta da assistência à saúde mental sugerem uma mudança no perfil de usuários nos últimos 15 anos, desde a criação dos CAPS, uma vez que os deprimidos e suicidas passam a chegar a esse serviço com demanda de atenção à crise.

O Boletim Epidemiológico 002/2019, da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, destaca que os suicídios no estado vêm aumentando a posição no ranking das maiores causas de morte nas faixas etárias até 59 anos, embora com menor expressão do que a estatística nacional, além de ter apresentado aumento no coeficiente de mortalidade por suicídio de 81% de 2009 a 2018. Esses dados parecem corroborar a análise documental e a percepção dos gestores.

Desse modo, gestão central entende que os CAPS não são lugares apenas para aqueles que sofrem de algum transtorno mental severo e persistente. Para a Superintendência de Saúde Mental, a função do CAPS é acolher o sofrimento humano. Nesse sentido, não há perfil, não há função e o lugar é o território.

Ainda que haja um aumento real no número de casos de tentativas de suicídio, que pode ser considerado como uma variável territorial, uma vez que a população de uso dos serviços públicos vem se modificando e adentrando a classe média, há que se considerar o trabalho realizado pela superintendência para que esses casos chegassem aos CAPS. Nesse sentido, pode ser que a percepção dos entrevistados relativa a esse aumento esteja sendo impactada por esse redirecionamento.

Outra hipótese é que há algum tempo o suicídio vem sendo discutido amplamente pela mídia, substituindo o silêncio e preconceito em torno do tema por discussões abertas e democráticas, fato que tem levado muitas pessoas a procurar serviços de saúde a procura de ajuda. De qualquer forma, o trabalho da superintendência tomou dois caminhos. Um deles voltado à Atenção Primária, no sentido de treinar a equipe para identificar o continuum de comportamentos suicida; e outro caminho de possibilitar que a equipe do CAPS III identificasse se se tratava de um sujeito psicótico ou não.

Os serviços de saúde mental ligados à atenção psicossocial não nasceram do vazio e, apesar do arcabouço teórico e ideológico que são intrínsecos à sua formulação, tanto os formuladores de políticas públicas quanto os trabalhadores de saúde mental trazem em sua bagagem todo um conjunto de expectativas, representações e pré-conceitos. Esses fatores se articulam com as relações e vivências que os usuários estabelecem com o território, impactando fortemente o tipo de prática desenvolvida nos serviços.

Portanto, compreender a origem do serviço, sua localização, a formação e trajetória profissional da equipe técnica importa à medida que impacta diretamente como eles podem lidar com as crises dos usuários, em termos de promover uma abordagem que viabilize processos de desinstitucionalização e concomitante inclusão em espaços diversificados da vida social, ambos pressupostos contidos na Reforma Psiquiátrica, como apontado por Santos e Nunes (2011SANTOS, M. R. P.; NUNES, M. Território e saúde mental: um estudo sobre a experiência de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, Salvador, Bahia, Brasil. Interface, Botucatu, v. 15, n. 38, p. 715-726, 2011.).

Conclusão

Achados desta pesquisa permitem constatar que a RAPS do município, apesar dos esforços que estão sendo feitos na via de reverter o modelo manicomial, ainda tem uma rede mais complementar do que substituta, apontando desafios para a rede de saúde mental. Por isso, precisa avançar para que se possa prescindir do hospital psiquiátrico.

Apesar de todos os progressos alcançados, subsistem desafios importantes, e só poderão ser enfrentados se for possível definir uma política centrada nas necessidades prioritárias das populações, baseada no conhecimento científico mais atualizado e alinhada com instrumentos internacionais de direitos humanos. É necessário envolver em sua implementação todos os atores relevantes no campo da saúde mental. Nesse contexto, todos os esforços deverão ser empreendidos para a construção de um consenso alargado, que permita dar continuidade aos progressos já alcançados com base Reforma Psiquiátrica e nas recomendações técnico-científicas das organizações internacionais competentes nessa matéria.

Torna-se importante a implantação de mais CAPS III, sobretudo em regiões totalmente desprovidas de serviços que acolham a crise, como é o caso de algumas áreas programáticas situadas na zona oeste da cidade. Essa ampliação de serviços com capacidade de acolher o usuário 24 horas pelos sete dias da semana é fundamental porque a atenção à crise extra-hospitalar continuará a ser insuficiente enquanto os serviços fecharem às cinco horas da tarde.

A partir da perspectiva da TE, pode-se afirmar que os CAPS III têm legitimidade para cumprir o papel de atender à crise em saúde mental. Os gestores utilizam da melhor forma possível os insuficientes recursos disponíveis para o atendimento. Há coerção no que diz respeito ao recurso humano e ao acesso ao leito. A monitoração reflexiva superou alguns desafios e outros são contextuais, como a violência, porém têm sido enfrentados.

As entrevistas com os gestores revelaram-se importantes à medida que são eles que dispõem dos recursos autoritativos necessários para capacitarem os CAPS III cumprirem sua missão na assistência à crise, conferindo legitimidade ao serviço.

Há coerção no que diz respeito ao acesso ao leito, uma vez que os CAPS III não são bem distribuídos nas áreas geográficas do município, nem possuem leitos suficientes para dar conta da população carioca.

A violência, como grande desafio à monitoração reflexiva e contextual, é algo inerente a todo território carioca, mas muitas vezes fica estigmatizada nas favelas, nos lugares onde residem pessoas adoecidas e que dependem exclusivamente do SUS.

Espera-se que este estudo tenha, além de elucidado questões importantes sobre o modo de operar a crise no município do Rio de Janeiro, levantado pontos fracos e fortes dos CAPS III como espaço privilegiado para o acolhimento de pessoas em sofrimento intenso, trazendo mais inquietações a gestores e pesquisadores.22 M. F. C. Coutinho: concepção, delineamento, redação e revisão do artigo. G. O’Dwyer: redação e aprovação da versão final a ser publicada. M. de O. Nunes: aprovação da versão final a ser publicada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2023
  • Revisado
    15 Out 2023
  • Aceito
    16 Nov 2023
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