Fibrose cística entre “nomes” e “sobrenomes”: a expressão do Biopoder na era das precisões

Cystic Fibrosis between “names” and “surnames”: the expression of Biopower in the era of precision

Katty Anne Carvalho Marins Martha Cristina Nunes Moreira Sobre os autores

Resumo

Na fibrose cística, a identificação da variabilidade genética (mutações) da CFTR - a qual difere quanto a síntese, tráfego, estabilidade e função da proteína e suas implicações na disfuncionalidade do gene - é a principal base para o desenvolvimento dos medicamentos moduladores e inovações na terapêutica. Tais inovações prometem um aumento da expectativa de vida com qualidade na era da biomedicina high tech. O argumento deste artigo se funda na ideia de que o poder-saber pelo conhecer da mutação fomenta a construção da identidade no “eu genético”. Metodologicamente, assume-se a Análise Crítica dos Discursos (ACD), interessada nas formações discursivas dos atores sociais, como uma comunidade de especialistas com vinculações diversas no campo da fibrose cística. Discute-se o quanto posições sócio-históricas e culturais, em correspondência com as práticas sociais, veiculam a centralidade do debate do direito à vida na era da medicina de precisão. A experiência compartilhada da FC, como uma condição de saúde rara, aponta para o (res)significar da cidadania em torno do bios.

Palavras-chave:
Fibrose cística; Biocidadania; Medicina de precisão

Abstract

In cystic fibrosis, the identification of genetic variability (mutations) of CFTR - which differs in terms of protein synthesis, trafficking, stability, and function and its implications for gene dysfunction - is the main basis for the development of modulating drugs and innovations in therapy. Such innovations promise an increase in quality life expectancy in the era of high-tech biomedicine. The argument of this article is based on the idea that power-knowledge through knowledge of mutation fosters the construction of identity in the “genetic self”. Methodologically, we assume Critical Discourse Analysis (CDA), interested in the discursive formations of social actors, as a community of experts with diverse links in the field of cystic fibrosis. We discuss how socio-historical and cultural positions, in correspondence with social practices, convey the centrality of the debate on the right to life in the era of precision medicine. The shared experience of CF, as a rare health condition, points to the (re)signification of citizenship around the bios.

Keywords:
Cystic fibrosis; Biocitizenship; Precision medicine

Introdução

O diagnóstico de uma condição de saúde rara se articula e se desdobra em inúmeras necessidades de vida. Estas estão presentes nos discursos dos atores sociais que atuam / vivem / militam no campo das condições de saúde raras, crônicas e complexas, dentre as quais se situa a fibrose cística (FC). Esses atores sociais, pertencentes a segmentos da sociedade civil organizada, constituem uma comunidade de especialistas na FC. Essa comunidade inclui desde profissionais de saúde, tomadores de decisão, pesquisadores, trabalhadores das indústrias farmacêuticas e pessoas vivendo com o diagnóstico e seus familiares, que se tornam ativistas por direitos. Estes últimos ocupam um lugar privilegiado, de proximidade, intimidade e urgência de luta. Um lugar que produz especialistas da e pela própria experiência (como pais, mães, avós, irmãos das pessoas que vivem com FC e/ou a própria pessoa com FC). Como especialistas da e pela experiência, assumem uma autoridade no campo, muitas vezes organizados em associações civis como locus de luta por direitos (Broom, 2005BROOM, A. Virtually healthy: The impact of internet use on disease experience and the doctor-patient relationship. Qualitative Health Research, v. 15, n. 3, p. 325-345, 2005.; Teshome , 2014TESHOME, E. et al. Participation and significance of self-help groups for social development: exploring the community capacity in Ethiopia. 2014. Disponível em: <http://www.springerplus.com/content/3/1/189> Acesso em: 3 abr. 2022.
http://www.springerplus.com/content/3/1/...
).

A posição de especialista da/pela própria experiência não é algo automático, de equivalência imediata entre “receber o diagnóstico” e passar a ser um ativista de suas causas. Esse processo é resultado de uma trajetória na qual o perceber-se sozinho frente a um diagnóstico, amedrontado com seus “sustos”, passa por uma reflexividade, encontros coletivos de base associativa, uma capacidade de desenvolver laços em que se faz necessário buscar outros e em uma simbólica associativa do comum (Moreira 2019MOREIRA, M. C. N. et al. Crianças e adolescentes com doenças raras: Narrativas e trajetórias de cuidado. São Paulo: Hucitec, 2019.a; Moreira, 2022; Moreira et al., 2019b).

Assumimos, portanto, o entendimento de que uma comunidade de especialistas conjuga aquilo que Goffman (1981GOFFMAN, E. Estigma - notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. 1981. Disponível em: <http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201702/20170214-114707-001.pdf.> Acesso em: 3 abr. 2020.
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) assume como uma interação entre iguais e informados. Onde os iguais são aqueles / aquelas que vivem com uma condição de saúde cujos estigmas demarcam marcas identitárias, e os informados são todos e todas aqueles e aquelas que se relacionam por parentesco, amizade, afinidade à causa e/ou vínculos profissionais em funções de cuidado, pesquisa, educação etc. Esse tecido de aproximações e interações constitui redes sociais, demarca vínculos e relações, disputas e influências, negociações de valores e identidades.

Nesse processo complexo, a realidade social ganha em sentidos e significados, sem desconsiderar os lugares que ocupam nas relações de classe, de raça, de geração, dos valores culturais e das possiblidades de acesso à satisfação das necessidades de saúde nas arenas sociais. O diagnóstico é interacional e simbolicamente construído por influências e disputas de poder, as quais dinamizam os discursos e os ressignificam (Moreira, 2022MOREIRA, M. C. N. Redes e simbólicas associativas do ativismo na afirmação do direito à saúde das crianças e adolescentes vivendo com deficiências, doenças raras e complexas. Relatório de Pesquisa financiada pela Chamada CNPq N o 09/2018 - Bolsas de Produtividade 2019-202. Rio de Janeiro, 2022.).

A fibrose cística, como uma condição de saúde genética, rara, crônica e complexa, produz impactos socioeconômicos, culturais, subjetivos e identitários, em torno da experiência cotidiana e compartilhada. Isso se faz presente desde as trajetórias - não raramente acidentadas - de busca por uma definição diagnóstica, ao próprio ato de cuidar, haja vista a rotina de tratamento desafiante, com exigência de uma disciplina diária de medicamentos e fisioterapias respiratórias.

Por definição etiológica, a fibrose cística é uma doença genética rara, hereditária, autossômica recessiva e progressiva. Decorre de mutações localizadas no cromossomo 7q31.2, que altera a codificação do gene CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Regulator), ocasionando desequilíbrio na concentração de cloro e sódio das células que produzem as secreções do corpo, como o muco e o suor. A produção de muco mais espesso provoca alterações no funcionamento dos pulmões, pâncreas, fígado, intestino e sistema reprodutivo (Athanazio , 2017ATHANAZIO, R. A. et al. Brazilian guidelines for the diagnosis and treatment of cystic fibrosis. Jornal Brasileiro de Pneumologia, v. 43, n. 3, p. 219-245, 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562017000000065> Acesso em: 2 mar. 2020.
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; GBEFC, 2020).

Afeta mais de 70 mil pessoas em todo o mundo (CFF, 2020). No Brasil, pelo último Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC - 2020) existem aproximadamente 6.112 pessoas com FC. E estima-se uma prevalência de 1: 7.500-15.000 para cada indivíduo nascidos vivos (Athanazio , 2017ATHANAZIO, R. A. et al. Brazilian guidelines for the diagnosis and treatment of cystic fibrosis. Jornal Brasileiro de Pneumologia, v. 43, n. 3, p. 219-245, 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562017000000065> Acesso em: 2 mar. 2020.
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). Deste total, estima-se que 73,56% das pessoas com FC no Brasil correspondem à faixa etária inferior a 18 anos (GBEFC, 2021).

O diagnóstico ocorre pelo exame de triagem neonatal, teste do suor e o exame genético, além dos fatores clínicos e histórico familiar associado. Até o momento, inexiste cura, porém muitos investimentos em pesquisas estão em curso, principalmente nos tempos atuais da biomedicina high tech. O acesso ao tratamento medicamentoso com mucolítico (dornase alfa - desoxirribonuclease), reposição com enzimas pancreáticas e antibióticos inalatórios, somado ao diagnóstico precoce e o seguimento em centros de referência, tem permitido que as pessoas com FC vivam por mais tempo e alcancem a faixa etária adulta (GBEFC, 2020).

No entanto, se faz necessário um olhar para além das descrições clínicas e epidemiológicas de incidência populacional para iluminar os sujeitos em suas vidas, com os itinerários de diagnóstico e de cuidado. Isto é, o processo de luta por acesso à saúde, os aspectos culturais, socioambientais e econômicos que os situam na esfera da experiência socialmente compartilhada.

Na experiência socialmente compartilhada da (in)definição diagnóstica na FC há impactos no processo de socialização das crianças, dos adolescentes e dos jovens adultos com seus pares e nas diversas relações sociais. Uma vez que o diagnóstico apreendido como parte definidora dos sujeitos torna-se constructo de identidade - portanto, uma necessidade a ser nomeada para além das impressões físicas de seus corpos e dos sintomas, tais como a tosse constante e secreções, internações e/ou a precisão microbiológica das colonizações.

Desde quando a FC foi descrita pela primeira vez em 1938, passando por 1989 com a descoberta do gene CFTR aos tempos atuais das inovações advindas da medicina de precisão, a qual nos permite falar dos medicamentos moduladores e dos estudos de bancada em torno da terapia gênica - os anos de vida das pessoas com FC vêm aumentando gradativamente, deixando de ser uma condição de saúde da infância para alcançar a vida adulta. Contudo, os acréscimos de anos à vida devem merecer igual alcance de qualidade de vida, o que implica voltar-se para as necessidades de saúde em jogo no que diz respeito a escolaridade, carreira, sexualidade, planos de filhos, investimento em transplante, saúde mental, criação de centros de referência, carga de cuidados e em tudo o que é próprio da vida em sociedade.

Assim, o universo das precisões na FC - o qual apresenta-se, principalmente na identificação das mutações da CFTR e das possibilidades terapêuticas dos moduladores - também acende o olhar para a esfera das necessidades e demandas por saúde, enquanto elementos expressivos das forças sociais, interesses e disputas que merecem ser estudados neste contexto.

Cabe, portanto, iluminar no presente artigo as repercussões dos avanços tecnológicos da biomedicina high tech e seus impactos na construção da identidade em torno de um “eu genético”, o qual desponta para além da categorização genotípica em meio as mais de duas mil mutações do gene CFTR, para inscrever-se na busca por acesso aos meios de satisfação das necessidades de saúde. Por isso, ter um nome e sobrenome apresenta-se na pauta reivindicativa do direito à existência e à vida.

Método

Este estudo é parte de uma pesquisa maior (Marins, 2021MARINS, K. A. C. Entre o raro e o (im)preciso na construção de uma linha de cuidados na fibrose cística. Dissertação (Mestrado) - Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz Rio de Janeiro, 2021.) e seu desenho metodológico baseou-se na perspectiva da Análise Crítica dos Discursos (ACD) de Norman Fairclough (Fairclough, 2005FAIRCLOUGH, N. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social. Methods of critical discourse analysis, v. 36, n. 7, p. 307-329, 2005. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v25i2p307-329.> Acesso em: 10 abr. 2020.
https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242....
, 2016).

Para a ACD, a linguagem é identificada a uma prática social, no exercício dialético das relações sociais, visto que as condições de produção do discurso advêm da posição sócio-histórica e cultural dos atores sociais. A diversidade de formas de construção de sentidos/significados presentes na linguagem visual, corporal e no discurso como irredutível dos processos sociais constitui a semiose. E, nessa rede interconectada de práticas sociais em sua diversidade econômica, política e cultural os elementos semióticos são formadores da prática social e do próprio discurso.

Desse modo, ACD apresenta uma perspectiva teórico-metodológica sobre a língua que excede a um método em si no artesanato da pesquisa. Norman Fairclough, ao propor a utilização do termo discurso considera a linguagem como uma forma de prática social, tornando, assim, o discurso um modo de ação. Uma ação que caracteriza a maneira das pessoas agirem sobre o mundo, sobre os demais indivíduos e nas representações. Implica na sua essência “uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social: a última é tanto uma condição quanto um efeito da primeira” (Fairclough, 2016, p. 95).

Para aproximação com os participantes da pesquisa, identificados como atores sociais, pertencentes à comunidade de especialistas na FC, recorreu-se a uma rede indicativa de universos familiares, na qual a cada um dos atores sociais foi solicitado que indicasse outros membros da comunidade de especialistas para constituir-se em participante da pesquisa. Torna, assim, identificável a existência de um conjunto específico de características presentes nos discursos que os definem e os aproximam em sentidos e significados.

Pela dinâmica empregada, chegou-se ao quantitativo de 42 indicações, sendo 11 pessoas indicadas mais de uma vez, como demonstra a Figura 1. A partir das indicações, foram contatadas 31 pessoas, sendo uma pessoa presencial e as demais através do aplicativo de mensagens instantâneas e chamada de voz (WhatsApp), à medida que os contatos eram passados ao final de cada entrevista. E ao retornar o contato manifestando o interesse, eram incluídos como participantes da pesquisa.

Figura 1
Rede indicativa de universos familiares

Participaram da pesquisa: 6 profissionais de saúde (S); 3 membros de Associações de pacientes com FC (A); 5 profissionais vinculados ao laboratório industrial farmacêutico (I); 1 Pesquisador(P). E aqueles considerados por identidade híbridas: 1 pessoa com FC e pesquisador (PFC); 1 pessoa com FC e membro de Associação (AFC); 1 familiar de pessoa com FC e pesquisador (PF); 1 familiar de pessoa com FC, membro de Associação e Pesquisador (APF). Conforme o quadro abaixo, produzimos uma localização de perfil dos (das) entrevistados(as).

Quadro 1
Participantes da Pesquisa

Entre janeiro e abril 2021, foram realizadas 19 entrevistas individuais: na modalidade presencial (1 entrevista) com gravação de áudio e na modalidade remota (on-line) mediada por plataformas digitais (Zoom - 11 entrevistas; e Meet - 7 entrevistas). O uso de plataformas digitais permitiu o acesso aos participantes, quando a distância territorial e/ou horários à realização das entrevistas não favoreceriam a dinâmica presencial.

As entrevistas seguiram um roteiro composto por: identificação e seguido de três afirmativas disparadoras, relacionadas a: (1) a aproximação com a FC; (2) a dimensão do diagnóstico; (3) e as necessidades de saúde na atual conjuntura da medicina de precisão. Todos(as) os(as) participantes atestaram a sua participação através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os nomes foram anonimizados. A pesquisa foi aprovava sob nº CAAE: 40374320.0.0000.526 e Parecer n. 4.472.657.

Resultados e Discussão

Há uma inegável centralidade do diagnóstico para as pessoas com FC, pois este as insere no universo da visibilidade da condição de saúde rara. E se o acesso ao “nome” (entendido como o diagnóstico) pode encerrar o itinerário da busca por uma definição diagnóstica, ele abre uma peregrinação de busca por garantir o tratamento e acesso aos direitos. No entanto, cabe considerar que o diagnóstico não se limita a sua definição biomédica, mas constrói-se na experiência coletiva. Como nos apresenta Jutel (2015JUTEL, A. Beyond the Sociology of Diagnosis. The British Journal of Sociology, v. 9, n. 1, p. 841-852, 2015. Disponível em: <https://www.academia.edu/15406462/Beyond_the_Sociology_of_Diagnosis> Acesso em: 3 abr. 2020.
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p. 845):

[...] os limites que traçamos em torno da saúde e doenças é entender o que esses limites nos dizem sobre quem somos e por que sofremos em cada diagnóstico, estudamos dentro de uma estrutura [...] aprendemos mais sobre a maneira como o diagnóstico serve para moldar uma experiência de doença, um retrato de doença, quais vozes são silenciadas, privilegiadas e por que ambos são importantes.

Outro ponto a considerar é o acesso ao sequenciamento de nova geração (NGS) já no diagnóstico, como uma forma de atenuar os itinerários de busca por diversos especialistas e submissão a exames, favorecendo a abordagem terapêutica anterior às manifestações sintomáticas. Isto se traduz em investimentos na melhoria da qualidade de vida, redução de custeios subutilizados dos serviços públicos de saúde, a dispêndio de investimentos financeiros por parte dos sistemas de saúde (Bayanan et al., 2017). Além de, modificar as formas de socialização pela construção de uma identidade genética e reivindicativa de uma biocidadania.

É importante o segundo, de alguma forma; a própria médica percebe isso: você ter as duas e dizer “ah, o meu nome é fibrose cística com esse e com esse sobrenome, está faltando um” [...] Estava fechado, então essa semana que vem eu vou organizar para a gente tentar encontrar esse segundo sobrenome aí. Mas é importante (APF).

Cabe, portanto, trazer à reflexão o lugar que a identificação das mutações ocupa no campo dos discursos sobre a FC: ter o “nome” e o “sobrenome”. Isto é, pensar em termos da hereditariedade, do que designa como recebido de pai e de mãe, em um processo que nomear um diagnóstico também significa definir identidades, determinar relações sociais e dinamizar a condição de sujeito na sociedade.

Pela etimologia da palavra “sobrenome”, entende-se o que se constrói no super, em cima ou sobre o que acresce ao nome. Em meio às designações genômicas do diagnóstico na FC, abre-se em possibilidade como o que acresce à identidade pelo conhecimento das mutações, em torno de um biopoder na era das precisões.

Para Foucault (1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1226/foucault_historiadasexualidade.pdf> Acesso em: 4 abr.2021.
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), a construção do biopoder pode ser pensada ao longo da história da humanidade. No período clássico, aos soberanos por ocasião de ameaça e/ou a contestação do seu poder, era dado o direito de dispor da vida e da morte dos seus súditos em defesa da soberania. O poder sobre a vida exercido por um soberano estava no domínio das coisas, do tempo, dos corpos e da vida a fim de submetê-la. Estava, portanto, no direito de “dar causa a morte ou de deixar viver” (Foucault, 1988, p. 128).

Embora, na era moderna ocidental, se tenham vivenciado terríveis guerras - os massacres bélicos se colocavam na ordem da defesa da necessidade de viver mútua das populações, e não mais da sustentação da vida do soberano, a morte de uma população remetia ao inverso da permanência de outra. Desloca-se do status jurídico da soberania para a esfera biológica de uma população, como uma exigência de um poder gerador de vida e ordenado nesta função, ou seja, como um direito de garantia da própria vida em sua manutenção e desenvolvimento (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1226/foucault_historiadasexualidade.pdf> Acesso em: 4 abr.2021.
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha...
).

Este biopoder se converte do direito de causar a morte ou deixar viver para o de “causar a vida ou desenvolver a morte” (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1226/foucault_historiadasexualidade.pdf> Acesso em: 4 abr.2021.
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, p. 130). Estabelece em dois polos principais que atuam interligados nesse poder organizador da vida, que são: a disciplina do corpo e a regulação das populações. A disciplinarização dos corpos busca uma integração anátomo-política aos sistemas econômicos e de controle. Já na regulação das populações estão expressas as intervenções e controles em torno de uma biopolítica, da qual o corpo é tomado como um suporte dos processos biológicos (nascimento, mortalidade, longevidade e nível de saúde).

O conceito de biopoder foucaultiano unifica-se na ideologia regulada do corpo social como expressão da disciplina e das regulações, cuja finalidade está em intervir em todas as dimensões da vida através do agenciamento da tecnologia do poder. Esse biopoder apropriado pelo capitalismo (do seu surgimento à contemporaneidade neoliberal) torna a vida objeto político, ajustada nos processos de produção e reprodução (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1226/foucault_historiadasexualidade.pdf> Acesso em: 4 abr.2021.
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). Também inscreve nas correlações de forças o reivindicar do direito à vida em sua integralidade, bem como os meios para satisfação das necessidades.

Então, em que medida podemos relacionar o biopoder foucaultiano à importância da designação de um nome e sobrenome pelo saber das mutações do gene na FC em suas classificações? Pois bem, numa intenção inicial de resposta, podemos considerar o que se estabelece nos meandros do poder-saber. Ou seja, o que se define na biopolítica como transformador da vida e se coloca por acessível do viver, não restrito à submissão de uma técnica por si só limitada diante da abrangência do que é a vida. Mas no “fato do poder encarregar-se da vida, mais do que a ameaça da morte, que lhe dá acesso ao corpo” (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1226/foucault_historiadasexualidade.pdf> Acesso em: 4 abr.2021.
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, p. 134).

O que no sentido do discurso o “sobrenome” assume pela mutação estar no filiar-se à “vida de ser vivo” como uma questão (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1226/foucault_historiadasexualidade.pdf> Acesso em: 4 abr.2021.
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). Portanto, estabelece em força motriz nas práticas sociais cuja fundamentalidade é a garantia da vida. Essa vida é posta em efervescência nas arenas de disputas, a exemplos dos movimentos: “Minha vida não tem preço” na busca por fomentar os debates na sociedade quanto os medicamentos de alto custo, em sua maioria ainda não disponibilizados pelo SUS e em processo de judicialização; pela universalização e qualidade da oferta da triagem neonatal; às recentes campanhas veiculadas nas mídias sociais com esforços incansáveis das associações de FC por pressionar o laboratório industrial farmacêutico a submeter os medicamentos moduladores de CFTR à avaliação da ANVISA; e no incentivo à participação das consultas públicas pela incorporação dos medicamentos no SUS e reformulação do protocolo clínico e diretrizes terapêuticas.

[...] o exame genético é parte do diagnóstico. A gente chegou a um nível de evolução científica que não basta dizer você tem fibrose cística […]. É como eu disse, são mais de 2 mil mutações, se hoje as medicações são catalogadas de acordo com a mutação, de que adianta o Estado apontar no teste do pezinho “você tem fibrose cística”, se você não diz que tipo de mutação, que tipo de deleção que dá a ela o direito a medicação? É como você ter um plano de saúde, o plano de saúde autorizar para você fazer uma cirurgia, mas não autorizar a placa de titânio que você vai botar na cabeça que é necessária na cirurgia. É o acessório que tem que seguir o principal. Eu vejo a mesma coisa, o exame genético é um “acessório” e com aspas bem grande, é indispensável. Eu acho um absurdo o Estado não ser obrigado a fazer. Outra briga aí, viu? (A-2)

Mas ainda que a gente saiba disso, o fato é: existe uma classificação de grave que vai pela função pancreática, pela função pulmonar e isso só o diagnóstico genético, o exame genético vai apontar. É um direito do paciente. (A-2)

A metáfora do “nome” e “sobrenome” na FC dialoga com o conceito de biopoder, no significado que assume relacionado à vida, lembrada como direito fundamental. Isso torna o “diagnóstico genético” não um complemento, mas essencial por realçar uma característica necessária e “indispensável”. Uma vez que diagnosticar tem por premissa o tratar, com agilidade. E, se hoje o tratar está na precisão, conhecer as mutações não pode mais ser encarado como “acessório”.

O exame genético torna-se uma necessidade reivindicada como “parte do diagnóstico”, não qualquer parte, mas elemento que compõe o todo no diagnóstico e o “acessório” esteja no ter acesso a “um direito do paciente”. Como direito, constitui objeto de disputas políticas, simbolicamente tomada nos discursos por “outra briga”, que desencadeia novas discussões em torno da sua indispensabilidade. Assim, no “outra” dentre tantas demandas, temos o resignar-se atuando na contramão de uma estrutura societária que abriga em latência de novas roupagens o dar “causa a morte ou deixar viver” (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1226/foucault_historiadasexualidade.pdf> Acesso em: 4 abr.2021.
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha...
, p. 130).

A genômica, pelos discursos dos atores sociais, expõe em significação o seu caráter vital para FC, numa linguagem construída entre o biológico e os aspectos socioeconômicos. Permeado nas relações de poder contemporâneo, o “bios” é tomado como um elemento mediador à cidadania, cujo potencial está no que se (re)define em identidade e (re)atualiza em necessidades. Assim, em inconclusas reflexões, interrogamos, pela biomedicina tecnológica (a qual possibilita hoje pensarmos em precisões nos moduladores de CFTR), quais as inferências na caracterização da “fibrose cística como o ecossistema ideal” (I-3).

O termo “ecossistema” hoje comumente empregado na linguagem empresarial, constitui por definição a unidade elementar de estudo da ecologia. Formado por um conjunto diversificado dos seres vivos de determinado local que interagem entre si e com o meio ambiente, estabelece um sistema estável, em equilíbrio e autossuficiente. Sua adoção metafórica na FC remete, nos discursos, ao fato de ser possível observar a existência de meios para o diagnóstico já definidos, diretrizes terapêuticas que envolvem medicamentos e abordagem multidisciplinar em centros de referência especializados, associações de pacientes, um grupo de estudos e pesquisa que reúne especialistas renomados do país e responsável pela coordenação do registro nacional da FC no Brasil. Traduz-se, assim, nas interações da clínica, da assistência, da representação política, da pesquisa e da inovação.

No entanto, adjetivado por “ideal” permite-nos significar como um modelo, se comparado de forma implícita com as demais condições de saúde raras. Ainda podemos significar como uma perfeição idealizada que aspira por ser alcançada em termos de estabilidade, equilíbrio e sustentabilidade. É nesta segunda acepção que nos interessa iluminar, à medida que rearranjos e instabilidades são potencialmente forjados entre o “bios” e a “polis” (Filipe, 2010FILIPE, A. M. Entre bios e polis? Debates contemporâneos sobre saúde, biomedicina e biocidadania. Prisma Júridico, v. 9, p. 75-89, 2010. Disponível em: <https://periodicos.uninove.br/prisma/article/view/2188> Acesso em: 4 jun. 2021.
https://periodicos.uninove.br/prisma/art...
) quando no empreendimento da vida está o “fazer viver’” (Rabinow; Rose, 2006RABINOW, P.; ROSE, N. O Conceito de Biopoder hoje. Revista De Ciências Sociais - Política & Trabalho [online], 2006. v. 24. p. 27-57. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/6600>. Acesso em: 30 mar. 2021.
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p. 37).

[...] a própria compreensão do que é medicina de precisão, ou, o que significa? Como o seu tratamento vai mudar com isso? Essas questões, o que vai mudar pelo acesso, o que vai mudar na sua vida. (PFC)

Compreendemos as mutações na FC no significado da precisão pelas lentes das dimensões do biopoder foucaultiano e na proposta atualizada desse biopoder por Rabinow e Rose (2006RABINOW, P.; ROSE, N. O Conceito de Biopoder hoje. Revista De Ciências Sociais - Política & Trabalho [online], 2006. v. 24. p. 27-57. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/6600>. Acesso em: 30 mar. 2021.
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). Ao fato de ser estratégico em combinar: o discurso de verdade de um conjunto de autoridade reconhecidamente competente para falar; as intervenções coletivas em nome da vida; e o que se inscreve a subjetivação pela atuação através das práticas do self, em nome da vida ou da saúde individual e coletiva. De modo que, na relação entre o “bios” e a “polis” posta em reflexão por Filipe (2010FILIPE, A. M. Entre bios e polis? Debates contemporâneos sobre saúde, biomedicina e biocidadania. Prisma Júridico, v. 9, p. 75-89, 2010. Disponível em: <https://periodicos.uninove.br/prisma/article/view/2188> Acesso em: 4 jun. 2021.
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) nos permite atribuir construções de sentidos, presentes nos discursos, em torno do que “vai mudar com isso” pelo tratamento, ou seja, “pelo acesso” o que “vai mudar a vida”.

Assim, longe de buscar uma aplicabilidade anistórica do conceito de biopoder, o identificamos por mediador para abordagem de precisão na gestão da vida e na coletividade, em meio às proposições de uma biossocialidade e da biocidadania na FC.

Na retórica, “o que vai mudar na sua vida” remete-nos a olhar para FC nessa perspectiva molecular presente no século XXI que codifica uma “economia política de esperança”, assim denominada por Carlos Novas (Rose; Martins, 2010ROSE, N.; MARTINS, E. R. P. A biomedicina transformará a sociedade? O impacto político, econômico, social e pessoal dos avanços médicos no século XXI. Revista Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 3, p. 628-638, 2010. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300024> Acesso em: 3 mar. 2021.
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). Isto é, esse poder-saber da vida, expresso a nível molecular na FC em capacidade de dar a conhecer as mutações, também torna possível identificar prognósticos e redefinir perspectivas de tratamento também a nível molecular. Permite, agora, ser apropriado em realidade nas inovações tecnológicas e assim esperançar a vida, pois no presente se coloca “ao que vai mudar pelo acesso” (PFC), porém numa projeção potencial que redimensione a própria etiologia da FC.

Ter na FC, pelo acesso ao exame genético, o poder-saber das mutações em suas classes abre-se em possibilidades, ao que Rose e Martins (2010ROSE, N.; MARTINS, E. R. P. A biomedicina transformará a sociedade? O impacto político, econômico, social e pessoal dos avanços médicos no século XXI. Revista Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 3, p. 628-638, 2010. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300024> Acesso em: 3 mar. 2021.
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) apresentam por maximização da saúde através do gerenciamento da vitalidade humana, na qual o artifício molecular se transforma em tecnologias de saúde. E, assim, infere nas formas de socialização, redirecionando as arenas de disputas em termos biossociais, fazendo emergir formas negociadas de discursos e práticas que tem nos mecanismos de pesquisa genômica uma via de compartilhamento da condição genética. Seu ápice está em fazer da biologia molecular meio para entender e intervir o que reúne em vitalidade a própria vida.

Em aspectos biossociais na FC, podemos considerar que através das classes das mutações fazem coexistir uma bio-identidade em tensão e cooperação das definições a nível molecular com dimensões socioculturais de raça, gênero, idade etc. A apropriação individual e coletivizada dessa bio-identidade, por sua vez, tende a inferir na própria noção de cidadania pelo “bios” que agora a prefixa, os tornando cidadãos biológicos (Filipe, 2010FILIPE, A. M. Entre bios e polis? Debates contemporâneos sobre saúde, biomedicina e biocidadania. Prisma Júridico, v. 9, p. 75-89, 2010. Disponível em: <https://periodicos.uninove.br/prisma/article/view/2188> Acesso em: 4 jun. 2021.
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).

Segundo Filipe (2010FILIPE, A. M. Entre bios e polis? Debates contemporâneos sobre saúde, biomedicina e biocidadania. Prisma Júridico, v. 9, p. 75-89, 2010. Disponível em: <https://periodicos.uninove.br/prisma/article/view/2188> Acesso em: 4 jun. 2021.
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), a expressão “cidadão biológico” foi cunhada por Adriana Petryna (2002), referindo-se ao movimento reivindicativo dos sobreviventes do acidente nuclear de Chernobyl e as respostas em direitos compensatórios pelo estado ucraniano. Porém, a expressão em muito auxilia a refletir no âmbito das cidadanias apoiadas numa concepção biológica ou de saúde. E, neste estudo em particular, permite a reflexão em torno das mutações e cidadania na FC, na era da precisão.

A cidadania biológica na FC tem no “bios” da significação genética uma mobilização ativa de um capital cultural, que busca por elencar e (fazer ser reconhecido) os meios potenciais de maximização de suas vidas (Rose; Martins, 2010ROSE, N.; MARTINS, E. R. P. A biomedicina transformará a sociedade? O impacto político, econômico, social e pessoal dos avanços médicos no século XXI. Revista Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 3, p. 628-638, 2010. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300024> Acesso em: 3 mar. 2021.
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). Nesta, dita cidadania genética (RAPP, 2003 apud Rose; Martins, 2010), as pessoas com FC e suas famílias mobilizam-se para socializar conhecimentos baseados na experiencia compartilhada no diagnóstico, mas também na abordagem genética da condição de saúde. A partir de intervenções estratégicas terapêuticas tomadas por essenciais, emergem valores que redefinem o cuidado como direito básico à equidade.

[...] discurso de “ah, está aí os pacientes querendo um tratamento super caro enquanto eu não consigo dar tratamentos mais básicos ainda”. Bom, é um desafio, a gente não escolheu ter uma doença rara, a gente não escolheu esse tratamento, a gente não escolheu ter. Parece, às vezes, que a gente está falando de um privilégio, mas a gente está falando de questões muito graves, que trazem muita limitação para a vida das pessoas que a gente acompanha e a nossa mesma. (A-1)

O que se apresenta à cena das precisões na FC no diálogo com a biocidadania vai além das abordagens reducionistas de medicalização da vida, agora pensada em termos de geneticização. Uma vez que não se trata de direitos a “privilégios” na pauta das reivindicações, mas do conceder o “mais básico ainda”, quando viver com FC não se trata de uma escolha.

Não se trata de fundamentar “privilégios” em torno de uma condição de saúde rara genética como a FC, na dimensão de uma tática individualizante centrada nas mutações do gene CTFR e tomada em sujeição. Ou, ainda deslocada do contexto social aonde as relações e disputas acontecem por reconhecimento e efetivação de direitos. Aqui, ter o direito a uma identidade genética não significa objetificar as pessoas com FC ou retirar suas subjetividades, mas sim ampliar a condição de sujeitos ativos, dando-lhes pelo saber um poder de decisão não mais aprisionada numa passividade resignada na doença (Novas; Rose, 2000NOVAS, C.; ROSE, N. Genetic risk and the birth of the somatic individual. Revista Economia e Sociedade, v. 29, 2000. Disponível em: <https://doi.org/10.1080/03085140050174750> Acesso em: 6 jun. 2021.
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).

Portanto, “as questões muito graves”, das quais se fala, não estão restritas a medicalização precisa, a qual pelos determinantes genéticos se elevariam em predileções e/ou exclusões daqueles não elegíveis. Contudo, aponta-se ao velho “desafio” que não está individualizado no gene, e sim coletivizado nas desigualdades humanas e sociais. Logo, o que se propõem está na associação do biológico e do social frente aos desafios éticos de garantia da vida.

Tal como ressaltam Rabinow e Rose (2006RABINOW, P.; ROSE, N. O Conceito de Biopoder hoje. Revista De Ciências Sociais - Política & Trabalho [online], 2006. v. 24. p. 27-57. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/6600>. Acesso em: 30 mar. 2021.
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), mesmo nos países desenvolvidos o acesso às tecnologias básicas em saúde ainda é negado para milhões de pessoas, pois bem se sabe que os interesses são formados no âmbito político e econômico deixando aquém o social. Com as inovações da precisão na FC, não seria em nada diferente ao que ocorre com tantos outros avanços em termos da terapêutica (seja para doenças raras, prevalentes ou negligenciadas). Logo, “se o êxito é parcial e desigual, se as esperanças são esvaziadas, se o capital de risco e os investimentos na bolsa de valores se deslocam para outros lugares, isto ainda não quer dizer que nada de novo surgirá” (Rabinow; Rose, 2006, p. 52)

Então, o que de inovador desponta no “ecossistema” da FC na era da precisão, visto não serem novos os atores sociais, nem as forças políticas e econômicas em disputas no âmbito das inovações tecnológicas na saúde? O que de inovador aponta em meio as diversidades de ações que envolvem investimentos governamentais, dos laboratórios industriais farmacêuticos, das associações de pacientes, as estratégias e táticas do advocacy e/ou dos grupos de pressão que fazem lobby em nome das tecnologias da esperança?

A um primeiro olhar, na metáfora do ecossistema na FC percebemos rearranjos dos fatores “bióticos e abióticos” que o compõem. Assim, consonante com as reflexões de Rabinow e Rose (2006RABINOW, P.; ROSE, N. O Conceito de Biopoder hoje. Revista De Ciências Sociais - Política & Trabalho [online], 2006. v. 24. p. 27-57. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/6600>. Acesso em: 30 mar. 2021.
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, p. 50), podemos considerar que vivenciamos na FC “uma racionalidade biopolítica modificada em relação à saúde [que] está claramente se formando, na qual o conhecimento, o poder e a subjetividade estão entrando em novas configurações, algumas visíveis, outras potenciais.”

Elborn (2013ELBORN, J. S. Personalised medicine for cystic fibrosis: treating the basic defect. Europe Respiratory Review, v. 22, n. 127, p. 3-5, 2013. Disponível em: <https://err.ersjournals.com/content/22/127/3> Acesso em: 2 mar. 2020.
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) e Paranjape; Mogayzel (2018PARANJAPE, S. M.; MOGAYZEL, P. J. Cystic fibrosis in the era of precision medicine. Paediatric Respiratory Reviews [online], v. 25, p. 64-72, 2018. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28372929/> Acesso em: 25 jul. 2021.
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) sinalizam não ser a personalização da terapêutica o inovador da medicina de precisão na FC, por já ser presente desde a identificação diagnóstica, ao considerar fatores como: idade, etnia, alimentação, as colonizações por microbactérias e meio ambiente como determinantes ao cuidado e que interferem no prognóstico. O inovador se faz no “medicamento estratificado”, e nós aqui consideramos mais além. Ou seja, o perfil molecular tomado em possibilidade para adaptar estratégias terapêuticas difunde uma precisão que transcende o desenvolver do medicamento certo, no momento certo para a pessoa certa, mas assume uma nova racionalidade de pensar a vida e a condição do necessário para se viver.

[...] medicina de precisão ou os esses medicamentos personalizados que estão no mercado e espera-se que venham muito mais por aí são um grande avanço no tratamento da fibrose cística porque antes disso você tinha tratamentos focados apenas nos sintomas das doenças, e agora você está tratando “a causa” da doença. Eu falo em aspas porque você não está tratando gene, isso seria terapia gênica, mas você está ali pertinho. Você tem que pensar que existe uma cascata de eventos para todos aqueles sintomas e com esses moduladores você está no comecinho daquela cascata, então você está impedindo de várias coisas. (PF)

Os médicos prescrevem, mas aí os pacientes tomam essa pílula mágica, e esquecem dos outros tratamentos. Eu não tenho como garantir que ela vai ser tão mágica assim. Se ele não seguir o que foi feito no estudo. (I-1)

Eu tentei tirar um pouco deles essa questão. É só isso, vamos correr atrás e esquecer o resto. Então, eu deixei eles muito conscientes: “Não depende de nós, depende de uma instância maior, depende do teste genético, depende de muitas coisas. ‘Então, não é que eu tirei a esperança deles, de forma alguma, mas assim, a gente estava vendo umas falas como se fosse a tábua da salvação. (S-5)

[...] não é assim porque não é uma preocupação da medicina de precisão se ocupar dos aspectos básicos porque justamente a medicina de precisão não quer trazer uma resposta para além daquele tratamento que hoje é só o tratamento de sintomas. (A-1)

O que está presente por “grande avanço no tratamento” está na mudança de foco da terapêutica, a qual busca atingir a causa que desencadeia a “cascata” de sintomas, através do desenvolvimento de medicamentos estratificados, utilizando os termos de Elborn (2013ELBORN, J. S. Personalised medicine for cystic fibrosis: treating the basic defect. Europe Respiratory Review, v. 22, n. 127, p. 3-5, 2013. Disponível em: <https://err.ersjournals.com/content/22/127/3> Acesso em: 2 mar. 2020.
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), ou mais comumente denominados de “medicamentos personalizados ou de precisão”. Em paradoxo, o que impede a “cascata de eventos para todos aqueles sintomas” desencadeia os acontecimentos com propósitos específicos e organizados, cada vez mais especializados e que busca ir além do tratamento.

Contudo, ainda se “depende de muitas coisas” para tornar uma realidade efetiva. Esta dependência envolve diferentes práticas sociais e procedimentos necessários, desde o início da causa (o “teste genético”) até sua conclusão (o acesso ao medicamento), embora não se fale de uma “pílula mágica” na metáfora de um fenômeno extraordinário, nem em tons redentoristas da “tábua de salvação”, dado o fascínio de o ver possível à clínica algo que em comparativo “está ali pertinho” do ideal de cura. Mas, sim, o mágico que se abriga no singular e no inovador das possibilidades que se abrem em nome e sobrenome em termos de garantia da vida.

Conclusão

Compreender a variabilidade genética da CFTR pode significar (re)estabelecer a relação entre diagnóstico e tratamento da FC, bem como desencadear outras demandas por saúde e o reconhecimento das necessidades de saúde urgentes. Desse modo, as promessas da medicina de precisão, para serem mais bem aproveitadas na FC, hão de conjugar as consequências funcionais de cada mutação do gene CFTR às variabilidades fenotípicas e o medicamento-alvo com a vida que se vive, não só com a vida que se trata.

É na vida que se vive, que a identidade é definida e redefinida. Logo, se o diagnóstico passa a estar inscrito a nível molecular, ter um nome e sobrenome em dimensão genotípica passa a ganhar importância, tanto como aspecto subjetivo e social, quanto como um diferencial na construção da identidade na FC.

Estamos, pois, a defender que os avanços da biomedicina high tech em termos de precisão genotípica sejam considerados como aliados no tratamento preciso e elementos constitutivos da sociabilidade na FC. No entanto, cabe voltarmos aos olhares na direção do que Rose e Martins (2010ROSE, N.; MARTINS, E. R. P. A biomedicina transformará a sociedade? O impacto político, econômico, social e pessoal dos avanços médicos no século XXI. Revista Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 3, p. 628-638, 2010. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300024> Acesso em: 3 mar. 2021.
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) apontam nessa biomedicina high tech com os avanços das técnicas biomédicas, desde a reprodução assistida, ao sequenciamento do genoma e o desenvolvimento dos medicamentos alvos, sem deixar de observar de forma crítica o fascínio que fomenta o slogan da “tecnologia da esperança” (termo cunhado por Sarah Franklin em 1997) e ao que se vincula por “uma economia política de esperança”, denominada por Carlos Novas (2001).

Desse modo, o que colocamos em debate na era das precisões extrapola as abordagens biomédicas que possa tender a aprisionar pelas classes de mutações do gene CFTR. Assim, apreendem-se melhor os sujeitos que se constroem em termos de uma biocidadania, onde ter um “eu genético” se torna força motriz para assegurar na FC o que é preciso a garantia da vida.11 K. A. C. Marins: desenvolveu a pesquisa, analisou o acervo e redigiu o artigo. M. C. N. Moreira: orientou o desenho metodológico, revisou o acervo e redigiu o artigo. Agradecimentos ao Projeto de Fortalecimento Institucional à Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher, no âmbito da FAPERJ, ref.: E-26/211.040/2021, no apoio à publicação deste artigo.

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  • 1
    K. A. C. Marins: desenvolveu a pesquisa, analisou o acervo e redigiu o artigo. M. C. N. Moreira: orientou o desenho metodológico, revisou o acervo e redigiu o artigo. Agradecimentos ao Projeto de Fortalecimento Institucional à Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher, no âmbito da FAPERJ, ref.: E-26/211.040/2021, no apoio à publicação deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2022
  • Revisado
    10 Set 2023
  • Aceito
    16 Nov 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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