Resumo
O estabelecimento do cérebro como matriz decodificadora do comportamento humano favoreceu o emprego de fármacos como estratégia de afrontamento de condições orgânicas, consideradas obstáculos para a produção e o consumo de bens e serviços. A vida tornou-se cerebral. Profissionais do “cérebro” entraram nas escolas e transformaram a personalidade e os comportamentais ditos “anormais” dos estudantes em problemas médicos Este artigo busca problematizar os desdobramentos da medicalização da vida acadêmica, sobretudo no que concerne à produção cognitiva imaterial, que encontra no estabelecimento de uma vida neuroquímica, fruto dos efeitos moleculares de estimulantes cerebrais, uma eugenia farmacêutica neoliberal que produz subjetividades fabricadoras de um bem imaterial, o conhecimento. Na contramão do atual movimento eugênico neoliberal, autores como Nikolas Rose, Paul Preciado, Antonio Negri e Maurizio Lazzarato, sinalizam que os ditos “inaptos” podem nos oferecem novos mapas, novas rotas para o estabelecimento de uma vida afirmadora da existência, resistente aos processos de encapsulamento da sociedade de controle e do farmacopoder. Este artigo materializa a filosofia do medicamento, um conceito absolutamente novo no Brasil e que elege a questão da produção cognitiva como objeto para se pensar os efeitos da medicalização da vida no tempo presente.
Palavras-chave:
Medicalização; Biopoder; Aprendizagem; Escola
Abstract
The establishment of the brain as a decoding matrix of human behavior favored the use of drugs as a strategy to face organic conditions, considered obstacles to the production and consumption of goods and services. Life has become cerebral. Professionals of the “brain” entered schools and transformed the so-called “abnormal” personality and behavior of students into medical problems a neurochemical life, the result of the molecular effects of brain stimulants, the establishment of a neoliberal pharmaceutical eugenics that produces subjectivities that produce an immaterial good, knowledge. Contrary to the current neoliberal eugenics movement, authors such as Nikolas Rose, Paul Preciado, Antonio Negri, and Maurizio Lazzarato, indicate that the so-called “unfit” can offer us new maps, new routes for the establishment of an existence-affirming life, resistant to the processes encapsulation of the society of control and pharmacopower. This article materializes the philosophy of medicine, a new concept in Brazil that chooses the issue of cognitive production as an object to think about the effects of the medicalization of life in the present time.
Keywords:
Medicalization; Biopower; Learning; School
Introdução
A medicalização exerce importantes efeitos na vida das pessoas, ela fez de nós o que somos (Rose, 2007ROSE, N. Beyond medicalisation. The Lancet, London, v. 369, n. 9562, p. 700-702, 2007.), e refere-se a um processo pelo qual fenômenos não médicos são definidos e tratados como problemas médicos (Petrina, 2006PETRINA, S. The Medicalization of Education: A Historiographic Synthesis. History of Education Quarterly, Bloomington, Vol. 46, No. 4, p. 503-531, 2006.). Organizando a vida em sociedade, a medicina estabelece taxonomias e regimes de conduta, na medida em que o corpo (individual e populacional) a ela se submete, na expectativa de normalizar-se e, consequentemente, prolongar sua existência (Preciato, 2018). Desse modo, a maneira como nos relacionamos com os outros, com o mundo e com as demais formas de vida que o habitam sofre as influências da medicalização. A vida foi assumida pela medicina como objeto de governo; mais do que diagnosticar e tratar afecções, ela modula nossos comportamentos (Foucault, 2002FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.). E a escola, espaço disciplinar, não escapou de seus efeitos.
A questão que orienta o presente trabalho é a integração da farmacoterapia a uma economia baseada da produção, distribuição e utilização do bem imaterial denominado conhecimento. Nosso objetivo é problematizar o emprego de fármacos como estratégia artificial de estimulação do trabalho cognitivo pelos escolares.
Quando Charles Bradley publicou suas observações sobre um grupo de crianças que obtiveram melhoras comportamentais, quando tratadas com Benzedrina® (dl-anfetamina), um medicamento psicoestimulante, Bradley inaugurava uma nova modalidade de governo do corpo populacional (Bradley, 1937). A intervenção de Bradley resultou naquilo que professores denominariam de “uma melhor performance escolar”. Na tentativa de curar encefalites, usando um fármaco estimulante do Sistema Nervoso Central (SNC), Charles Bradley acabou por fazer aparecer uma geração de indivíduos que encontraria nos medicamentos, a possibilidade de se excitarem, de terem seu estado de vigília aumentado. As próprias crianças denominariam a Benzedrina® de “arithmetic pills” (Brown, 1998BROWN, W. A. Charles Bradley, M.D., 1902-1979. The American Journal of Psychiatry. Arlington, v. 155, n. 7, p. 968, 1998., p. 968).
Se olharmos para a literatura médica, do final do século XIX à metade do século XX, se olharmos os manuais, as recomendações elaboradas por médicos para os profissionais que se ocupavam das dietas nas escolas, os higienistas, veremos que tais instruções ou lições, na realidade, eram pontos norteadores a serem aplicados por professores do ensino primário, como regras elementares da saúde escolar, justamente porque, quanto mais precoce fossem tais intervenções, maiores seriam as chances de modelarem a conduta dos escolares, porque o sistema nervoso, o sistema regulador das condutas, encontra-se em formação (Annotations, 1904; Tredgold, 1908TREDGOLD, A. F. Mental deficiency (Amentia). New York: William Wood & Co., 1908.). Este é, portanto, o princípio para o estabelecimento de uma vida neuroquímica.
Ocorre, entretanto, que a adoção de tais práticas, de tais disciplinas, e a presença do médico na escola, tudo isso, não foram suficientes para modificar o comportamento dos escolares, de torná-los aprendizes, aptos para o desempenho de papéis que a sociedade demanda. Foi justamente sob esse argumento, que se justificou a prescrição e uso de moléculas modificadoras das funções cerebrais.
Desde o início do século XX o cérebro foi concebido como a matriz do comportamento humano (Still, 1902STILL, G. F. Some abnormal psychical conditions in children. The Lancet, London, v.1, p.1008-1012, 1902.; Lucas, 1904LUCAS, R. C. The Wighthmen Lecture on the hereditary bias and early environment in their relation to the diseases and defects of children. The Lancet, London, v. 164, n. 4222, p. 278-283, 1904.; Warner, 1905WARNER, F. Mental faculty in the child: its growth and culture. The Lancet. London, v. 165, n. 4255, p. 711-712, 1905.; Ashby, 1905ASHBY, H. The Wighthmen Lecture on Some of the Neuroses of Early Life. The Lancet. London, v. 166, n. 4273, p. 207-210, 1905.; Richards, 1907RICHARDS, H. M. The practical purposes served by the medical inspection of schools. Public Health, Oxford, v. 19, p.728-730, 1907.; Morant, 1907MORANT, R. L. The medical inspection of school children, The Lancet, London, v. 170, n. 4396, p.1555-1557, 1907.). Um comportamento que, em séculos anteriores, já tinha sido analisado e explicado à luz de matrizes religiosa e jurídica. No século XX, entretanto, aparece uma outra matriz: a matriz biológica, uma matriz cujo centro é o SNC. Serão as funcionalidades do sistema nervoso o mais novo modelo de análise e de explicação dos comportamentos humanos. A vida tornava-se cerebral.
Embora a genética, como disciplina, encontrava-se em processo de instauração nesse período, e o conceito de hereditariedade já integrasse as grades curriculares de diversos cursos de graduação, foi a matriz neurológica que possibilitou o agenciamento entre diferentes modalidades de disciplinas, com o propósito de governo da conduta dos escolares. Psiquiatras, psicólogos e neurologistas entraram nas escolas e transformaram a personalidade, e os comportamentais ditos “anormais” dos estudantes, em problemas médicos (Cohen, 1983COHEN, S. The Mental Hygiene Movement, the Development of Personality and the School: The Medicalization of American Education. History of Education Quarterly. Bloomington, v. 23, n. 2, p. 123-149, 1983.).
O presente artigo está dividido em duas seções: a medicamentalização do corpo escolar e o circuito da produção imaterial e o fármaco-controle.
A medicamentalização do corpo escolar
Se olharmos para dentro das escolas e/ou universidades, constataremos que todas as atividades acadêmicas se conjugam num interior de redes informatizadas e telemáticas, única maneira de estabelecerem o ciclo de produção e organização dessas atividades. A força de uma Instituição de Ensino encontra-se sendo medida pela intelectualidade de seu corpo docente e discente.
No interior do espaço escolar encontramos o referenciamento do(a) estudante ‘indisciplinado(a)’ às autoridades normativas, sob a justificativa da ordem da inclusão. O escolar deve ser incluído num sistema educacional, com o escopo de que adquira e desenvolva habilidades que o possibilite, quando sair deste espaço, desenvolver ações em consonância com a demanda do mercado. O capitalismo precisa deste indivíduo. O capitalismo se nutre de corpos e de conhecimento.
Outro aspecto observável, dentro da escola, é que esta inclusão, que ocorre dentro de um espaço disciplinar, se dá pelo confinamento, pela vigilância, pela avaliação, pelo exame do especialista, ou seja, é preciso que o escolar, que suas práticas, que seus comportamentos, enfim, que sua conduta, sejam analisados por um determinado saber, por uma determinada autoridade.
O que é avaliado pelo sistema escolar, na realidade, não são somente os enunciados escritos pelos estudantes, são os relatos, as queixas, as denúncias expressas em relatórios que dizem da impossibilidade do professor em lidar com a conduta do escolar, que dizem da carência formativa do docente em lidar com os comportamentos desobedientes, agressivos, não ressonantes ao modelo pedagógico vigente em sala de aula.
O não cumprimento das expectativas da criança ou do jovem indócil, agitado, com dificuldade em aprender, em relação à escola é concebido como sua incapacidade ou deficiência, sua dificuldade em se moldar a regimes domésticos ou em reproduzir comportamentos moralmente estabelecidos, valorados, e tudo isso é visto como condição justificável para o seu encaminhamento ao campo médico. Escola e escolares tornam-se medicalizados.
Outro aspecto que é preciso mencionar é que a medicalização da escola aparece como condição para que esta cumpra uma expectativa social, que é a de produzir indivíduos assimiláveis pelo mercado e pela sociedade, na medida em que os escolares se desenvolvam intelectualmente, na medida em que se tornem mais afáveis e estejam em condições de viverem em sociedade. Este seria um dos aspectos positivos da função normalizadora da escola.
O aspecto negativo, é que a Escola subsiste na medida em que apareçam na sociedade os anormais, na medida em que os diagnósticos de transtornos do aprendizado façam aparecer indivíduos que serão referenciados aos aparelhos escolares, justificando dessa maneira a importância da escola e da educação especializada.
Na escola também se realizam diagnósticos. Nela também se administram medicamentos a estudantes sob acompanhamento médico. Ela acompanha a evolução clínica, ela diz à medicina se suas intervenções estão sendo certeiras, efetivas. Os registros escolares são na realidade práticas de vigilância do corpo infantil na instituição escolar, anotações dos julgamentos de valores sobre as condutas dos escolares em sala de aula. Ora, o que ocorre é que os especialistas ao receberem os encaminhamentos escolares, que contém queixas, diagnósticos, descrição dos comportamentos, solicitação de intervenção, pois bem, os especialistas se sentirão condicionados a responderem, a intervirem, a darem um feedback.
Diversos trabalhos acadêmicos já evidenciaram que a escola foi medicalizada (Flannery ., 2017FLANNERY, A. J.; LUEBBE, A. M.; BECKER, S. P. Sluggish Cognitive Tempo is Associated with Poorer Study Skills, More Executive Functioning Deficits, and Greater Impairment in College Students. Journal of Clinical Psychology, Brandon, v. 73, n. 9, p. 1091-1113, 2017.; Jangmo ., 2019JANGMO, A. et al. Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder, School Performance, and Effect of Medication. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, Baltimore, v. 58, n. 4, p. 423-432, 2019.; Johnson ., 2021JOHNSON, M. et al. Long-term medication for ADHD and development of cognitive functions in children and adolescents. Journal of Psychiatric Research. Oxford, v. 142, p. 204-209, 2021.). E como demonstrou Stephen Petrina, o processo de medicalização nas escolas foi estabelecido mediante “inter-relações complexas e sutis entre zeladores, enfermeiros, pediatras, patologistas, farmacêuticos, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e professores durante o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX” (Petrina, 2006, p. 503).
As crianças tratadas por Bradley, segundo o próprio autor, tinham uma inteligência considerada “normal” e não houve, na população estudada, um aumento do coeficiente de inteligência dos indivíduos que a constituíam. O que houve foi uma excitação, uma procura por um estado de vigilância. As crianças pesquisadas por Bradley, encontravam-se diante em um espaço mutante, um espaço onde se dava um ritual, com regras próprias, únicas, com instrumentos e personagens com papéis definidos. Este espaço foi o Emma Pendleton Bradley, o primeiro hospital neuropsiquiátrico dos Estados Unidos. Um cenário que, na verdade, é uma célula mutante de um organismo vivo que é o Estado.
É possível encontrar-se na escola e no hospital, ao mesmo tempo. É possível ser tratado em espaços onde se estuda. A escola está dentro do hospital. A demonstração disso é que no Emma Pendleton Bradley encontravam-se professores, além de médicos, enfermeiros, técnicos, medicamentos e instrumentos de diagnóstico. É justamente essa indiscernibilidade que permitiu que, as crianças investigadas sentiram-se “à vontade” diante das intervenções e observações.
No estudo coordenado por Charles Bradley, foram selecionados 30 pacientes que sofriam de transtornos comportamentais, e que já se encontravam hospitalizados há pelo menos um mês. Foram estudados 21 meninos e nove meninas, cujas idades variaram de 5 a 14 anos. Os distúrbios comportamentais das crianças hospitalizadas variavam desde deficiências educativas, esquizofrenias até epilepsias associadas à agressividade. A observação e os registros dos comportamentos foram realizados por enfermeiras e professoras. Durante a segunda semana de observação, uma dose matinal diária de Benzedrina® foi administrada a cada paciente ao acordar. As doses variaram de 10 mg a 30 mg, a depender do relato de efeitos indesejáveis (Bradley, 1937).
O modelo investigativo inaugurado por Charles Bradley é próprio da sociedade de controle mencionada por Deleuze (Deleuze, 1992DELEUZE, G. Conversações (1972-1990). São Paulo: Ed. 34, 1992.).
Alguns anos depois do estudo de Bradley, veremos estudantes universitários fazendo uso da Benzedrina® com a finalidade de obterem melhores desempenhos escolares. O artigo The Effects of Benzedrine Sulphate and Caffeine Citrate on the Efficiency of College Students (Flory; Gilbert, 1943FLORY, C. D.; GILBERT, J. The effects of benzedrine sulphate and caffeine citrate on the efficiency of college students. The Journal of Applied Psychology. Washington, v. 27, n. 2, p. 121-134, 1943.) é bastante esclarecedor para a questão da farmacologização do aprendizado, visto que encontramos, já na década de 1940, a busca e o emprego de Benzedrina® e de outras substâncias com propriedades psicoestimulantes, por parte de estudantes universitários, com o objetivo de auxiliá-los na realização das atividades ou na resolução de exercícios educacionais.
O trabalho de Flory & Gilbert (1943FLORY, C. D.; GILBERT, J. The effects of benzedrine sulphate and caffeine citrate on the efficiency of college students. The Journal of Applied Psychology. Washington, v. 27, n. 2, p. 121-134, 1943.) se refere às experiências autorrelatadas de estudantes com a Benzedrina® no período de avaliações escolares. Pois bem, historicamente, o fenômeno da farmacologização do corpo estudantil iniciou-se na década de 1930 com Bradley. A busca pelo aprimoramento cognitivo farmacológico, conceituado como sendo “o uso por indivíduos saudáveis de medicamentos prescritos para o aprimoramento da cognição” (Oliveira; Nunes, 2021OLIVEIRA, R. C.; NUNES, R. Pharmacological cognitive enhancement: a promising or an inevitable future? Revista Bioética, Brasília, v. 29, n. 1, p. 87-99, 2021., p. 88), é um fenômeno recente. Mas, não é recente, a busca pelo melhor desempenho, pela produção e pelo consumo.
Na perspectiva de Paul Beatriz Preciado, o emprego de medicamentos como estratégia de governar a vida humana é característica do biopoder (Preciado, 2018). Foi Michel Foucault quem empregou o conceito de biopoder para descrever uma modalidade de governo do corpo populacional, uma maneira do Estado regular a vida humana a partir de suas condições biológicas (Foucault, 2002). E esta modalidade de poder se materializa com a ascensão do capitalismo, de modo que é incontestável, a partir das perspectivas do pensador, a conexão entre biopoder e capitalismo. Todavia, o que nos parece problemático é o papel que fármacos, sobretudo aquelas moléculas com propriedades neuromoduladoras, desempenham na interface entre mercado e produção cognitiva. Fármacos são tecnologias artificiais, e como tais, podem definir nossa existência. Quando tais tecnologias agenciam-se ao produtivismo acadêmico, experimentamos uma outra dimensão do biopoder, que é o farmacopoder (Preciado, 2018).
O sistema financeiro adotou a produção cognitiva como um critério para recompensar financeiramente os intelectuais. O salário-verdade para ser mantido, depende da produtividade cognitiva do intelectual assalariado. Todavia, na sociedade do excesso, onde centenas de artigos, ditos científicos, são publicados diariamente, não nos é ofertado o tempo para o pensamento. Somos condicionados a produzir, ininterruptamente. “Sem tempo” para pensar, estamos em déficit. Paradoxalmente, estamos em dívida com o campo científico, na medida em que não sabemos, se o que é publicizado é, na realidade, conhecimento.
O capitalismo não só se ocupou em garantir, com o auxílio da medicina, que o corpo populacional se inserisse no processo de produção e consumo de bens materiais. Ele descobriu, com o advento da industrialização da produção de medicamentos, com a descoberta da capacidade de modulação promovida por esses produtos, uma nova maneira de estimular, de excitar à produção e ao consumo do conhecimento. Observem que, é em função dessa modalidade, que as anfetaminas, que os estimulantes do sistema nervoso central, são empregadas por acadêmicos e por outros grupos de estudantes.
No filme Sem Limites (Limitless, 2011), vemos a extrapolação dos efeitos da farmacologização do SNC. Teríamos enormes dificuldades em contabilizar quantos livros e artigos, quantos contos e poemas, quanto material cognitivo são disponibilizados a cada dia. É impossível, absolutamente impossível, lermos todas as informações diariamente publicizadas. Mas, isto pouco importa. O que importa é a capacidade em produzir, em fabricar conhecimento, em disseminar informações. Assistimos uma supervalorização na capacidade de produção cognitiva de muitos profissionais. É o capitalismo cognitivo. E o derivado anfetamínico, oriundo de um paradigma de produção industrial, conecta os corpos, individual e populacional, a um outro paradigma, o paradigma de produção imaterial, cognitiva.
Esse capitalismo cognitivo é fruto de uma energia intelectual e linguística de indivíduos que se assujeitaram, que se encontraram em uma necessidade de criarem conteúdos que, lançados em redes de comunicação, adquirem valoração, e à medida que são distribuídos e consumidos, os trabalhadores intelectuais são recompensados.
Até o final do século XIX e começo do século XX, tínhamos um modelo de consumo que tinha em seu cerne a fabricação de objetos. Tínhamos o conhecimento e a economia numa relação com finalidade de produção de bens. O conhecimento encontra-se a serviço da produção há muitos anos. É pelo conhecimento que pessoas e máquinas são controladas. No ciclo do capitalismo clássico, temos aqueles que consomem conhecimentos, que por sua vez valorizam o trabalho dos que o produzem, como temos aqueles que valorizam os bens produzidos, decorrente dos processos administrados pelo conhecimento. Mas, enquanto no capitalismo clássico existe uma ameaça de escassez de matérias-primas para a produção de bens, no capitalismo cognitivo, o bem-produzido, que é conhecimento, não corre o risco de extinguir-se.
Ele, o conhecimento, não é escasso, e a cada dia sua produção se eleva. Basta compreendermos que ele, o conhecimento, não é algo natural. Não temos como estabelecer um valor exato, fixo, para o conhecimento. A aprendizagem é um processo dinâmico, com resultados aleatórios. Uma vez que o conhecimento é produzido, e não sendo um bem escasso, o que o torna valorado, é o modo pelo qual as pessoas terão acesso a ele.
O circuito de produção imaterial e o fármaco-controle
Existem meios e critérios que regulam o ingresso do conhecimento nas redes de circulação. Os espaços por onde o conhecimento circula são privados, monopolizados, que para se ter acesso, com o direito a copiar, difundir e reinventar o conhecimento produzido, é preciso pagar. Então, essa escassez do conhecimento é fictícia. Há, portanto, um poder que regular o acesso ao conhecimento produzido, que barganha, mas que excita, que estimula sua produção, que recompensa os que o produzem.
Com o advento dos estimulantes do SNC ocorreu um aumento na velocidade, e consequentemente uma redução no tempo, da realização de certas atividades. Na produção cognitiva, o valor do conhecimento encontra-se associado a velocidade em sua produção. O valor do conhecimento tende a reduzir-se no tempo, de modo que para que este adquira maior valor, é necessário fazer com este seja empregado o mais rápido possível, pelo maior número de indivíduos e instituições. Será preciso fazê-lo circular por todos os meios possíveis. Mas, aquele que o produziu, deve ocupar-se em difundi-lo, e retardar sua socialização. Pois a socialização pressupõe a queda das barreiras para o acesso, e quanto maior o acesso, menor o valor do bem que produziu. Pois bem, é neste cenário, que somos convidados a pensar a farmacologização da produção cognitiva.
A farmacologização do Sistema Nervoso Central, particularmente, essa excitação do corpo pelo uso de estimulantes, que foi perfeitamente verificada durante a Segunda Guerra Mundial, se iniciou, pelo uso de medicamentos, no final da década de 1930, e ainda hoje, encontra-se em nossa sociedade.
A partir da causalidade estabelecida entre sistemas neuroquímicos e o comportamento humano, novos processos de normalização passam a ser desenhados por corporações sob a demanda de uma nova moralidade. A vida melhorada tornou-se um artefato. Com o estabelecimento de uma nova moral, novos formatos da existência passam a ser concebidos na medida em que novos moduladores dos sistemas neuroquímicos são sintetizados.
As novas camisas de força são neuroquímicas, a vida neuroquímica é a nova modalidade de controlar os impulsos ameaçadores dos interesses sociais. O fármaco, esse antigo dispositivo de controle e normalização, é revestido de novos significados, e com ele, surgem novas práticas médica e farmacêutica. Um exemplo desse fármaco-controle, é a regulação da serotonina, que no neurocircuito da agressão, é considerada a chave mestra sobre a qual é necessário manejar. É a normatividade passando pelo uso de fármacos; o melhoramento de uma performance cognitiva mediada pelo uso de medicamento.
O aprendizado tornou-se ao longo dos últimos dois séculos, uma atividade mediada por especializações, por tecnologias e pela farmacologia. A autoadministração de estimulantes do SNC, como o metilfenidato e a anfetamina, por acadêmicos, em espaços escolares, é a expressão de como a vigilância médica tornou-se uma prática irradiada dos núcleos prescritivos aos postos de vivência dos indivíduos. A gestão farmacoterapêutica é, sob essa perspectiva, a resposta do indivíduo às instâncias de normalização. O fármaco tornou-se ao longo dos séculos, um artefato de promoção da inserção de indivíduos na cadeia produtiva, em outras palavras, o fármaco equipara corpos para funcionarem com eficiência, dentro de uma proposta historicamente construída e estabelecida pelo capitalismo.
Paul Beatriz Preciado apresentou-nos o conceito de farmacopoder ao contextualizar a quimioprofilaxia na regulação da sexualidade (Preciado, 2018). No farmacopoder, o farmacêutico é um agente de vigilância, um tipo de inspetor. Ele observa e registra o modo como a sociedade emprega medicamentos, além de repassar informações elaboradas pelo sistema médico-normativo sobre o modo como tais tecnologias devem ser empregadas. Esse modo, denominado de Uso Racional de Medicamentos, aparece como estratégia farmacopolítica de garantia do consumo de insumos farmacêuticos.
A ideia da vigilância é fazer o indivíduo sentir-se observado, sob o controle e monitoramento de um olhar que tudo sabe da doença e do seu tratamento, de modo que o indivíduo adote determinado comportamento, cujo objetivo seria sua proteção. Essa proteção, recebe a denominação de cuidado. Ora, ocorre que esse entendimento de cuidado, não considera mais o doente, ou cliente, um agente passivo, mais gestor de seu estado de saúde e de seu tratamento. Delegando ao indivíduo a responsabilidade de gerenciar farmacologicamente o seu estado mórbido, o que o biopoder faz é transferir a responsabilidade pela gestão dos gastos e do sucesso do tratamento. A cura é a compensação pela obediência; o fracasso farmacoterapêutico, o oposto. A ideia do monitoramento farmacoterapêutico é evitar a necessidade de encontros mais frequentes, pois ao incorporar como sendo suas as normas repassadas, o doente ou cliente, vigia a si mesmo, sob a denominação de gestão medicamentosa.
A gestão do tratamento farmacoterapêutico, que antes se dava dentro de instituições fechadas, agora se dá dentro de espaços abertos. Na realidade, as instituições tornaram-se corporações e o controle se propaga por todos os espaços. Os resultados, agora, devem ser alcançados em curto prazo. O mercado não pode esperar por um disciplinamento de um corpo e nem por uma contenção da indocilidade a longo prazo, daí o privilégio da regulação neuroquímica comportamental. Ela é mais efetiva do que os discursos escolares normativos, do que os bons conselhos das famílias e igrejas.
Acontece que essa regulação não se concentrará em toda a população, como o fazia o Estado. As corporações se concentram sobre certos subgrupos, produzindo determinadas subjetividades. O objetivo não é formar indivíduos emocionalmente estáveis e tecnicamente competentes, mas torná-los hábeis em empregar, de maneira adequada, medicamentos, para atender aos interesses daqueles que o fabricaram. Nesse sentido, as habilidades do farmacêutico podem ser úteis hoje, mas à medida que o mercado muda, na medida em que mudam o modo como se manejam as afecções, eles podem ser dispensados amanhã. É o que Deleuze denominou de modulação (Deleuze, 1992DELEUZE, G. Conversações (1972-1990). São Paulo: Ed. 34, 1992.).
Olhando o aspecto da farmacologização do aprendizado, veremos que na borda da sociedade, próprio na periferia, encontram-se indivíduos considerados anormais e que se ligam ao sistema econômico, pela extremidade de seus corpos. Os medicamentos são justamente esses conectores, essas linhas de junção entre os anormais e o Estado, entre os medíocres intelectuais e o mercado. A escola, historicamente, fez aparecer inaptos e os mantém ligados a si. A questão é: como escapar? Como ir para fora? Como constituir um corpo?
Os inaptos provocam mal-estar, justamente porque eles ameaçam as estruturas instituídas para a prevenção e o combate aos fracassos. A palavra de ordem é: não fracasse neste devir. Esta é a palavra de ordem do Estado. Não fracasse como pai, como mãe, como esposo, como esposa, como filho, como filha… enfim: não fracasse. Acontece que experimentamos formigamentos, inflamações, pruridos e o corpo busca ligar-se às bordas, aos espaços de aprendizagem, por outros meios que não seja pelos medicamentos. É possível ocupar um território sem fixar-se nele? Pensemos, por exemplo, nas decisões tomadas pelos pacientes após o conhecimento de um diagnóstico, de um resultado laboratorial, sem o consentimento de seus médicos. Essas decisões, numa perspectiva deleuziana, é o que denominaríamos de desterritorialização.
Uma vez que o paciente desterritorializa, o que fará o vigilante? Ora, o que os organismos mais temem é esse processo de desterritorialização. Para isso temos o seguimento farmacoterapêutico, o monitoramento da adesão, e tantas outras estratégias que foram elaboradas com o escopo de fixar uma linha que busca fugir. A máquina binária do Estado preza pelo princípio da unidade, daí a identificação dos elementos ou dos componentes a serem normalizados. Aquele que foge, que escapa, se diferencia e torna-se nômade. Não é este o louco? O nômade sempre está ocupando outro território, sua fuga é criação e conquista.
O mundo científico é uma tradução de todos esses fluxos e de uma linguagem, uma linguagem codificadora dos processos desterritorializantes e reterritorializantes. Assim, os enunciados científicos, publicados em revistas e periódicos, são tentativas de organizar os significados, mas, não traduzem os movimentos reais, pois “Não adianta dizer o que se vê; o que se vê não habita jamais o que se diz” (Deleuze; Guatarri, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia - Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995., p. 84).
Um dos efeitos dos medicamentos, não mencionados em suas bulas, é a fixação dos pacientes, dos anormais, aos pontos de subjetivação e de domínio. Suas consciências e corpos vinculam-se aos organismos, pelos efeitos da farmacologização. Paralisados, cessam-se os movimentos. A farmacologização pode, a depender das moléculas, inibir processos de desterritorializações. Acontece que o processo de deslocamento nunca ocorre sozinho, ele requer dois termos. É possível que o corpo adquira potência ao se conectar a uma molécula. É o corpo ocupando a molécula.
Sabemos que a automedicação nunca foi bem-vista, justamente porque se trata de uma ocupação não autorizada. O processo de normalização pelos fármacos se dá dentro de um interior de escolhas sucessivas. Do ponto de vista do médico, não existe o anormal, o anormal não pode existir, só pode existir o sadio. A anormalidade é justamente não ser sadio. O médico é o porta-voz do grande olho que captura tudo o que foge da norma.
Para Deleuze & Guattari (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.), o conhecimento é produção circunstancial, ele se dá na tentativa de compreendermos o que torna possível um acontecimento. Nessa busca de compreensão, abrir mão das certezas impostas e abrir-se aos saberes de outras áreas, é imbricar-se, emaranhar-se em saberes destituídos de prerrogativas de nuclearidade. Ao trilhar um caminho, para o qual não foram estabelecidos pontos, inicial e final, o indivíduo estabelece uma rede pluridirecional que esses pensadores denominaram de rizoma. Os inaptos rizomáticos não são suportados pela escola.
Como disseram Deleuze & Guattari (2004DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia - Vol. 3. São Paulo: Ed. 34, 2004., p. 48): “uma criança que corre, que brinca, que dança, que desenha não pode concentrar sua atenção na linguagem e na escrita, ela tampouco será um bom sujeito”. A medicamentalização é produtora de subjetividades. No ambulatório médico ou na escola, sob o olhar medicalizante, dão-se subjetividades: hiperativo, desatento, idiota, autista.
E se, em vez de orientações e de medicamentos, fossem repassadas aos estudantes linhas secretas de fuga? Linhas que possibilitem passagens de espaços normalizantes, patologizantes, para espaços vitais. Na realidade o maior desafio para as pessoas é, elas próprias, construírem suas próprias linhas de fuga, criarem seus mapas, suas modalidades de viver e de enfrentarem as adversidades do existir. Nem toda a farmacoterapia é castradora ou aniquiladora do existir, mas adquirir essa compreensão requer esforço. Pais, professores e responsáveis pelos escolares precisam ter escolhas, sem escolhas não há possibilidade de afirmação da vida.
A Sociedade e o Estado não tiram seus olhos do mercado, eles precisam de suas características para classificar os escolares. Observem os termos empregados para classificá-los: improdutivo, interativo, dinâmico, autônomo, útil, inteligente, atento, promissor. Toda uma classificação oriunda de um sistema de produção. É a mesma taxonomia empregada para os professores universitários. A anormalidade define-se em função dessas características. Ora, um dos primeiros efeitos da farmacologização é o sequestro do desejo e, por conseguinte, a obstacularização do devir, pois sendo processo de desejo, não se efetua. Sem desejo não há movimento, não ocorre desterritorialização, pois as percepções estão bloqueadas, inibidas. Escutem os pacientes: “estou desorientado”; é justamente a perda da percepção, do pensamento. Ocupar outro lugar na vida é fazer zigue-zague, na sua própria velocidade e lentidão, aspectos que os fármacos modificam.
A capacidade de modificar a natureza é uma das características dos fármacos. O phármakon é um agente do devir. Existe a psicanálise, mas não existe ainda a fármaco-análise, ou seja, o acolhimento dos significados e das perspectivas dos pacientes ou usuários em suas experiências com fármacos. O fármaco pode remeter o sujeito a uma experimentação, substituindo as interpretações construídas pelos profissionais de saúde. Não que cessem as interpretações, mas essas serão tecidas pelo próprio usuário. Aqui o desejo do paciente torna perceptível o que era imperceptível, o dualismo sucesso-fracasso terapêutico recebe outros significados. A linha de fuga é relativa.
Os fármacos estabelecem um corpo bem distinto daquele antes da exposição. O problema da Clínica é que o corpo do qual se ocupam é o corpo normal, o parâmetro das pesquisas e intervenções. O corpo estabelecido pelos fármacos não é pensado. Por isso que os corpos não param de recair naquilo que os médicos queriam livrá-los: uma fixação cada vez mais acirrada do processo patologizante, uma fragmentação mais dura, alimentando o ciclo da medicalização. Por isso temos necessidade de escolhermos bem as moléculas. Os fármacos podem ser concebidos como agentes constitutivos de um ethos. Trata-se de um aspecto que mereça a atenção dos pesquisadores das humanidades em interface com a saúde.
Para finalizar, indagamos: que moléculas nos auxiliam a libertar-nos dos pontos de captura? Que moléculas nos potencializam a fazer rizoma? A nos desterritorializarmos e reterritorializarmos? Somos capazes de identificá-las? Ou, para que isso ocorra, ainda precisamos saber o que seja um phármakon? “A história só é feita por aqueles que se opõem à história (e não por aqueles que se inserem nela, ou mesmo a remanejam” (Deleuze; Guatarri, 2005DELEUZE G.; GUATTARI, F. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 2005., p. 94). Pagamos um alto preço por aceitarmos a incumbência de representarmos um mundo que pode ser mensurado (quantitativamente e qualitativamente), expresso em publicações, em normas, diretrizes, legislações e disciplinas. Diferentemente dessa representação, as criações são abstrações que escapam dessa tarefa, são linhas mutantes que estabelecem outras realidades.
Considerações finais
Desde Sócrates fora atribuído ao saber e ao conhecimento a força de uma medicina universal, de modo que a impossibilidade de aprender e de saber é concebida como um estado de desrazão. A mais nobre ocupação humana é o emprego da razão. A existência é justificada pela racionalidade, ou seja, a justificativa da existência só pode ser racional, neural, cognitiva. Todo o esforço da pedagogia, e por isso a vemos recorrer à medicina, é tornar o homem um ser capaz de produzir e encontrar a verdade, de torná-lo capaz de refletir sobre seus erros, de fazê-lo percorrer o caminho certo, de torná-lo amigo do verdadeiro. A vida humana, aqui adquire um propósito, conhecer o bem, obviamente que essa empreitada ele não o fará sem suas faculdades cognitivas.
O papel da educação, desde muito cedo, foi demonstrar que o erro, que o mal é resultado da desrazão, da ignorância. Demonstrar que ninguém erra voluntariamente. Erramos por desconhecimento. A educação sempre se empenhou em fazer o homem acreditar que o seu objetivo na vida é fazer o bem, conhecer a verdade para realizar o que é bom. Verdade e razão, encontram-se dessa maneira, mutualmente implicadas. A vida é, pois, essa luta contra a ignorância (a irracionalidade) acerca da verdade, daí que o saber se tornou a norma maior para ser feliz. A tarefa primeira da educação é fazer o homem um ser capaz de identificar, de identificar racionalmente, o que seja o bem e o mal. Eis, portanto, a razão pela qual as práticas pedagógicas remetem à medicina aqueles indivíduos considerados inaptos à aprendizagem.
Os medicamentos são tecnologias que modulam a vida das pessoas. Eles integram uma modalidade de governo da vida. Sabemos que a partir das experiências com animais, foi possível o desenvolvimento de moléculas capazes de alterarem os estados psíquicos, a neurofisiologia, dos seres humanos. Os conhecimentos obtidos em experimentos laboratoriais com animais foram transferidos para a clínica, para a relação dos médicos com seus pacientes. O estabelecimento da posologia, o reconhecimento dos efeitos (benéficos e prejudiciais), as modificações fisiológicas, tudo isso foi sendo estabelecido em estudos com animais e em seres humanos.
A razão de Estado que tinha, antes do século XVIII, o próprio Estado como seu objeto, passou a ter no final do século XVIII, com a consolidação do processo de industrialização, o mercado como sua finalidade. Foi para o mercado que o Estado precisou governar. É para o mercado que os indivíduos recebem prescrição de medicamentos. É para que sejam inseridos nele, no mercado, que a medicina se especializou.
Estamos diante de uma economia política instaurada pelo uso de medicamentos. É o que denominamos de farmacobiopolítica, evidenciado pelo aparecimento das indústrias farmacêuticas, dos polos farmacoquímicos, dos fármacos, da literatura médica e farmacêutica, a explosão das informações médicas, são fenômenos inerentes a farmacobiopolítica, uma maneira de governar a multiplicidade dos organismos humanos.
Na contramão dos resilientes temos uma multidão que recorre ao uso de tecnologias potencializadoras das funções cognitivas. Na sociedade do desempenho temos o sujeito avaliado (Yaegashi ., 2020YAEGASHI, S. F. R. et al. Aprimoramento cognitivo farmacológico: motivações contemporâneas. Psicologia em Estudo. [online]., Maringá, v. 25, e46319, 2020.), que nada mais é do que o sujeito endividado (Lazzarato, 2016LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: N-1 edições, 2016.), o fragmento das sociedades disciplinar e de controle (Deleuze, 1992DELEUZE, G. Conversações (1972-1990). São Paulo: Ed. 34, 1992.).
É importante que se diga, entretanto, que o que temos não é um culto à medicina, nem tão pouco às intervenções. O que temos, e essa questão é muito anterior, é o privilégio dado ao conhecimento, que, acredita-se, está atrelado ao exercício de uma funcionalidade orgânica, cerebral, cognitiva. Estamos em um cenário que tomou o conhecimento como um grande valor, justificando o uso de tecnologias modificadoras das funções cerebrais, com finalidade de produção desse bem imaterial. Nas palavras de Maurizio Lazzarato e de Antonio Negri, vivemos “em um regime de acumulação globalizado baseado na produção de conhecimentos e num trabalho vivo (cada vez mais intelectualizado e comunicativo)” (Lazzarato; Negri, 2001, p. 12).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Ago 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
15 Ago 2022 - Revisado
23 Nov 2023 - Aceito
23 Nov 2023