Atenção Básica em Saúde em tempos de gestão contratualizada: desafios para sua sustentabilidade no Sistema Único de Saúde brasileiro

Basic Health Care in times of contractual management: challenges for its sustainability in the Brazilian Unified Health System

Lissandra Zanovelo Fogaça Mariana Cabral Schveitzer Arnaldo Sala Nivaldo Carneiro JúniorSobre os autores

Resumo

A Atenção Básica é acesso preferencial e ordenadora do cuidado na rede de serviços de saúde do Sistema Único de Saúde, sob responsabilidade da gestão municipal. Historicamente da administração direta, mas nas últimas décadas observa-se crescente transferência do seu gerenciamento por intermédio de contratualizações com instituições não governamentais. Objetivou-se analisar circunstâncias e elementos que motivaram gestores municipais a contratualizar entes privados sem fins lucrativos para gestão da Atenção Básica. Realizou-se pesquisa qualitativa por estudo de caso em seis municípios do estado de São Paulo. Procedeu-se a entrevistas virtuais semiestruturadas com 24 sujeitos, entre gestores, representantes das instituições, assessores regionais do Conselho de Secretários Municipais de Saúde e dos segmentos trabalhador e usuário dos respectivos Conselhos Municipais de Saúde, realizadas entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021. As principais motivações são: 1) redução do impacto na folha de pagamento (lei de responsabilidade fiscal); 2) flexibilidade na administração dos recursos humanos, principalmente na contratação de médicos; e 3) agilidade na aquisição de insumos e equipamentos. Com base nesses resultados e na falta de preocupação desses sujeitos em considerar os atributos da Atenção Básica nas contratações, conclui-se que existe um risco potencial de prejuízos à consolidação dos princípios e diretrizes da Atenção Básica.

Palavras-chave:
Atenção Básica; Gestão em Saúde; Sistema Único de Saúde; Contratos

Abstract

Primary Health Care (PHC), under the responsibility of the municipal manager, is the preferred gateway and ordering unit of the health services network in the Brazilian Unified National Health System. However, management is being transferred noticeably to non-governmental institutions (NGI). This article aimed to analyze circumstances and elements that would motivate municipal managers to hire NGI for PHC management. Qualitative research was carried out using a case study in six municipalities in the state of São Paulo. Semi-structured virtual interviews were developed with 24 subjects, including managers, institution representatives, COSEMS, and Social Control segments, from October 2020 to February 2021. The main motivations are 1) reduction of the impact on the payroll (fiscal responsibility law); 2) flexibility in the administration of human resources, especially hiring doctors; and 3) agility in the acquisition of inputs and equipment. Based on these results and the lack of concern on the part of these actors to impose Primary Health Care attributes in contracting, it can be concluded that there is a potential risk of harm to the consolidation of Primary Health Care principles and guidelines.

Keywords:
Primary Health Care; Health Management; National Health System; Contracts

Introdução

A Atenção Básica (AB) no Brasil tem sido caracterizada como ponto de atenção da rede de serviços de saúde que oferece um conjunto articulado de ações individuais e coletivas, na perspectiva de conferir atenção integral à população (Lavras, 2011LAVRAS, C. Atenção primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saúde Soc., v. 20, n. 4, p. 867-874, 2011. doi:10.1590/S0104-12902011000400005.
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). A estruturação da AB, cujos avanços mais significativos ocorreram a partir da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), e da instituição de um modelo tecnológico com proposições definidas em relação à territorialização, adscrição de clientela à equipe de saúde, foco na família e na comunidade - modelo da Estratégia Saúde da Família, resultou em uma grande expansão dessa modalidade de atenção à saúde em todo o território nacional, sob protagonismo da gestão municipal (Luppi , 2011LUPPI, C. G. et al. Atenção primária à saúde/Atenção básica. In: IBAÑEZ, N.; ELIAS, P. E. M.; SEIXAS, P. H. D. (orgs). Política e gestão pública em saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2011. p. 332-53.).

Nas últimas décadas tem-se verificado uma transferência de funções da gestão da AB para instituições não governamentais sem fins lucrativos por meio de diversas modalidades contratuais (Coelho; Greve, 2016COELHO, V. S. P.; GREVE, J. As Organizações Sociais de Saúde e o desempenho do SUS: um estudo sobre a atenção básica em São Paulo. Dados - Ciências Sociais, v. 59, n. 3, p. 867-901, 2016. doi: 10.1590/00115258201694.
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; Gomes ., 2020GOMES, T. S. et al. Relação entre natureza jurídica de prestadores de serviços e qualidade na atenção básica brasileira. Cad Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, e00231518, 2020. doi: 10.1590/0102-311X00231518.
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). Esse fenômeno de transferência de funções da gestão pública para a esfera privada, alinha-se a um movimento em curso há mais tempo, de posições ideológicas e de um arcabouço teórico alicerçado na lógica da administração do setor privado, cunhado como Nova Gestão Pública (NGP), com forte diretriz na desregulamentação da contratação de recursos humanos (Fleury, 2001FLEURY, S. Reforma del Estado. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 5, p. 7-48, 2001. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6403. Acesso em: 17 dez. 2022.
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).

Tal conjuntura tem como assertiva a ideia de que a efetividade e eficiência das ações públicas estarão mais garantidas e com resultados satisfatórios para a população se forem realizadas sob responsabilidades gerenciais de organizações do setor não estatal, por meio de metas estabelecidas nos termos contratuais (Newman; Clarke, 2012NEWMAN, J.; CLARKE, J. Gerencialismo. Educ. Real., Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 353-81, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/D9rWCZq8yqtBmtCTQSCjnPk/abstract/?lang=pt. Acesso em: 14 jul. 2022.
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; Carnut, 2018CARNUT, L. M. A. Capital-Estado na crise contemporânea: o gerencialismo na saúde pública. Argum., v. 10, n. 2, p. 108-121. 2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/19528. Acesso em: 28 jul. 2022.
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). No Brasil, na trajetória das políticas e organização dos serviços de saúde, o setor privado tem exercido forte influência, determinando modelos assistenciais, modos de financiamento, lógicas técnico-gerenciais. Todavia, essa relação público-privado concentrou-se na média e alta complexidade da atenção à saúde (Santos; Ugá; Porto, 2008SANTOS, I. S.; UGÁ, M. A. D.; PORTO, S. M. O mix público-privado no Sistema de Saúde Brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 1313, n. 5, p. 1431-40, 2008 doi:10.1590/S1413-81232008000500009.).

A partir da década de 1990, no esteio da NGP, a agenda pública é pautada por formulações e implementações de políticas viabilizadas pela crescente participação de entes não governamentais sem fins lucrativos, aqui denominadas de Instituições Não Governamentais (ING), na execução de serviços públicos estabelecidos por termos de contrato, por meio da delegação pelo Estado (Newman; Clarke, 2012NEWMAN, J.; CLARKE, J. Gerencialismo. Educ. Real., Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 353-81, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/D9rWCZq8yqtBmtCTQSCjnPk/abstract/?lang=pt. Acesso em: 14 jul. 2022.
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; Carnut, 2018CARNUT, L. M. A. Capital-Estado na crise contemporânea: o gerencialismo na saúde pública. Argum., v. 10, n. 2, p. 108-121. 2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/19528. Acesso em: 28 jul. 2022.
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). As ING, de um modo geral, são organizações de direito privado. Compreendem diferentes entidades e denominações jurídico-legais como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), Organizações Sociais (OS), Fundações, Organizações Não Governamentais (ONG), entre outras, tendo como finalidade primordial atender funções públicas, em parcerias diretas e/ou indiretas com o Estado (Fernandes, 1994FERNANDES, R. C. Privado, porém público: o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.).

No processo de consolidação do SUS, esse movimento de delegação do gerenciamento de serviços ao setor privado vem em franca expansão, impulsionado como uma estratégia de contratação de recursos humanos diante o limite de despesas com pessoal, estabelecido pela Lei Complementar nº 101/2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal (Fleury, 2001FLEURY, S. Reforma del Estado. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 5, p. 7-48, 2001. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6403. Acesso em: 17 dez. 2022.
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). A AB não ficou fora dessa lógica gerencial, isto é, na responsabilidade direta do gestor municipal de saúde, observa-se a presença significativa na implementação dessa política de instituições privadas no gerenciamento desses serviços. É necessário, aqui, assinalar alguns limites apontados à gestão local nessa relação público-privado no contexto da operacionalização de serviços públicos, como por exemplo a capacidade institucional de negociação e contratualização, demandas e motivações sociopolíticas e realidades sanitárias (Carneiro Junior; Nascimento; Costa, 2011; Contreiras; Matta, 2015CONTREIRAS, H.; MATTA, G. C. Privatização da gestão do sistema municipal de saúde por meio de Organizações Sociais na cidade de São Paulo, Brasil: caracterização e análise da regulação. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 285-97, 2015. doi:10.1590/0102-311X00015914.
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).

Alguns estudos acerca da presença de terceiros na gestão e prestação de serviços no âmbito da AB têm problematizado não só a questão política e ideológica que orienta o movimento da NGP, mas também o impacto na prestação dos serviços (Coelho; Greve, 2016COELHO, V. S. P.; GREVE, J. As Organizações Sociais de Saúde e o desempenho do SUS: um estudo sobre a atenção básica em São Paulo. Dados - Ciências Sociais, v. 59, n. 3, p. 867-901, 2016. doi: 10.1590/00115258201694.
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; Costa e Silva et al., 2014; Ramos; De Seta, 2019RAMOS, A. L. P.; DE SETA, M. H. Atenção primária à saúde e Organizações Sociais nas capitais da Região Sudeste do Brasil: 2009 e 2014. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 4, p. e00089118, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00089118. Acesso em: 20 jun. 2023.
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; Ditterich ., 2015DITTERICH, R. G.; ZERMIANI, T. C.; MOYSÉS, S. T. A contratualização como ferramenta da gestão na Atenção Primária à Saúde na percepção dos profissionais da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, Brasil. Saúde em Debate, v. 39, n. esp, p. 207-220, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.5935/0103-1104.2015S005323. Acesso em: 20 jun. 2023.
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). Embora esses estudos surgiram algumas possibilidades de avanços com a presença de ING na AB, não fica estabelecido benefícios à saúde da população em uma eventual comparação com a gestão praticada diretamente pelo ente público.

Deste modo, o pressuposto que se formula é de que a opção pela terceirização da gestão e operação da AB se faça mais como opção política e ideológica alinhadas à NGP do que decorrente de necessidade de obtenção de benefícios bem estabelecidos em relação à melhoria do desempenho e resultados em saúde a partir da AB.

O objetivo do presente artigo é analisar as circunstâncias e os elementos presentes na gestão da AB, em municípios do estado de São Paulo, que motivaram os gestores municipais para a contratualização com instituições privadas sem fins lucrativos, bem como as percepções dos diferentes sujeitos envolvidos direta ou indiretamente nesse contexto.

Método

Realizou-se pesquisa qualitativa descritiva (Minayo; Deslandes, 2007MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2007.). A modalidade escolhida foi estudo de caso, que investiga fenômenos contemporâneos dentro de um contexto real de vida. Comumente utilizado quando limites entre fenômeno e contexto são pouco evidentes, pois tem como objetivo explorar, descrever e explicar o evento, fornecendo uma compreensão profunda (Yin, 2001YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001.).

Sujeitos do estudo

Os sujeitos de pesquisa foram selecionados por uma busca ativa para cada município estudado: gestores municipais de saúde (G), representantes das instituições não governamentais (ING) participantes na gestão da AB, representantes dos segmentos e Usuário (U) e Trabalhador (T) dos Conselhos Municipais de Saúde (CMS) e técnicos da equipe de apoio regional do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo (COSEMS).

Coleta de dados e critérios de inclusão dos municípios

As informações foram coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas apoiadas por roteiros específicos para cada um dos diferentes grupos de sujeitos do sistema de saúde local: gestão (G; ING; COSEMS) e controle social (U; T). O instrumento visou apreender a dimensão “motivações para contratualizações” e as perguntas foram específicas para cada tipo de sujeito, como segue: G “Qual(is) foi(ram) a(s) motivação(ões) para se fazer a contratualização de uma OS na Atenção Básica em Saúde em seu município?”; ING “O que motivou a ING participar da gestão da Atenção Básica em Saúde no município?”; COSEMS “Você acompanha o processo de contratualização da Atenção Básica em Saúde no município? Se SIM, como faz isso?”; U e T “Qual a sua posição sobre a contratualização da Atenção Básica em Saúde por OS no seu município?

Seis municípios paulistas foram incluídos neste estudo de casos, a partir de um universo amostral de 41 cidades. Os critérios adotados para a escolha desses municípios foram os seguintes: 1) 41 municípios paulistas com percentagem de contratos de trabalho intermediado em uma relação igual ou superior a 20% dos profissionais da AB, a partir de dados obtidos no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES, 2019); 2) constituição de cinco grupos homogêneos no desempenho de indicadores da AB por meio de análise de cluster entre os 644 municípios do estado de São Paulo, com base no sistema de informações DATASUS, 2018; a cidade de São Paulo, pela sua densidade demográfica e rede de serviços de saúde foi considerada como o sexto grupo (Pinheiro Junior et al., 2022); 3) localização dos 40 municípios em cada um dos cinco grupos homogêneos de municípios; 4) um único município dentro de cada grupo homogêneo foi selecionado para compor esse estudo de caso.

A escolha dos cinco municípios foi por conveniência, orientada pela perspectiva de incluir diversidade nas seguintes características: porte populacional, região de saúde e modalidade de contratualização na AB (Tabela 1).

Tabela 1
Características dos municípios selecionados para estudo de caso por porte populacional, região e modalidade de contratualização na AB, setembro de 2020

O presente artigo é parte dos resultados da pesquisa "Participação das organizações sociais na gestão da atenção básica em saúde em municípios do estado de São Paulo”, FAPESP/PPSUS nº 2019/03961.

Procedimentos

Três entrevistadoras, LZF; EC e ACF, foram selecionadas pelos pesquisadores por disporem de conhecimento necessário para entrevistas qualitativas. Passaram por treinamento no dia 21/10/2020, onde receberam os roteiros específicos, para orientar a entrevista de cada grupo de sujeitos do estudo.

Um articulador, SLS, com experiência em coordenação de projeto de pesquisa foi recrutado para realizar tratativas junto à assessoria técnica do COSEMS-SP visando o apoio para os contatos dos gestores municipais. No dia 5 de outubro de 2020, iniciaram-se as comunicações com esses sujeitos e, posteriormente, com os outros sujeitos de pesquisa.

No dia anterior à entrevista, os sujeitos recebiam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por meio de um link no seu e-mail e aplicativo de mensagem. Neste momento, também, era enviada súmula curricular e meios de contato da entrevistadora. A entrevista era iniciada após o aceite do TCLE por parte do sujeito de pesquisa, recebimento e verificação do preenchimento e aceite do mesmo por cada entrevistadora.

Análise de dados

Empregou-se análise de conteúdo, apoiada no referencial teórico-metodológico de Bardin (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.). A análise de conteúdo busca compreender os significados, discutir inadequações e problematizar relações, seja a partir do que foi dito e da ausência do que não foi falado. A organização das informações e as respectivas codificações das categorias analíticas foram realizadas por meio da leitura das entrevistas no software MAXQDA (2020) e discutidas por todos os autores em reuniões virtuais - meet.google.com. Para a apresentação dos resultados considerou-se o Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) Checklist - versão português (Souza ., 2021SOUZA, V. R. S. et al. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paul Enferm., v. 34, eAPE02631, mar. 2021.).

Aspectos éticos da pesquisa

O projeto de pesquisa de referência acima citado foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e todos os participantes assinaram o TCLE no formato digital. Por conta da Pandemia de Covid-19 as entrevistas foram realizadas por meio da plataforma digital Meet.Google.Com e gravadas para posterior transcrição. Os municípios foram denominados M1 a M6 e os entrevistados foram nomeados G para Gestores, ING para representante das Instituições Não Governamentais, COSEMS para os técnicos da equipe de apoio regional do COSEMS-SP, U para segmento usuário e T para segmento trabalhador dos CMS.

Resultados

As entrevistas on-line aconteceram no período entre outubro de 2020 a fevereiro de 2021 com 24 sujeitos: cinco Gestores municipais de saúde (G), cinco representantes das Instituições Não Governamentais (ING), cinco técnicos apoiadores regionais do COSEMS/SP (COSEMS), cinco representantes do segmento usuário dos CMS (U), e quatro representantes do segmento trabalhador dos CMS (T). Quatro potenciais entrevistados não participaram: três desistências e uma recusa. Além disso, uma entrevista não foi utilizada por falha técnica do áudio em decorrência da entrevista online, outra por conteúdo impreciso prejudicando uma transcrição fidedigna.

Por meio da análise do conteúdo das entrevistas, foi possível codificar a categoria Relação Município e Instituição Não Governamental, da qual surgiu o tema motivações nos relatos dos cinco sujeitos (G, ING, COSEMS, U e T). Assim, identificou-se elementos, circunstâncias e aspirações importantes que demonstraram as intencionalidades do gestor municipal para contratualização de instituições privadas para gestão da AB. O tema (motivação), embora considerado uma atitude do gestor municipal, foi encontrado nos discursos dos outros sujeitos entrevistados quando relataram suas percepções e posicionamentos perante o movimento das motivações das contratações de ING pelo gestor para gestão da AB. Alguns entrevistados usam o termo “OS” de forma genérica quando se referem às entidades privadas sem fins lucrativos (ING). A apresentação dos resultados foi organizada seguindo a ordem das falas dos sujeitos G, ING, COSEMS, U e T.

Gestores e suas intencionalidades com a contratação de Instituições Não Governamentais para gestão da Atenção Básica

No discurso de quatro gestores, foi possível identificar as intencionalidades para as contratualizações com ING: contratando ING, a folha de pagamento da Prefeitura não aumenta com a contratação de profissional [Limite Prudencial]; os profissionais são contratados de forma mais rápida a fim de suprir a falta de recursos humanos (RH); o propósito de contratar profissional pela ING é que o custo seja menor do que manter um profissional concursado; o contrato suprir a falta de RH; contratação de ING ter a agilidade de reposição de RH; intenção contratar ING para melhor gestão de qualidade, de pessoal, aquisição de insumos e satisfação do usuário.

Seguem os relatos:

É mais pra gerar o pagamento pra eles [profissionais de saúde] não entrarem pra folha da prefeitura e aumentar muito a folha. (GM4).

[...] foi uma forma que eles acharam pra poder contratar de uma forma mais rápida pra poder suprir essa falta que tinha. (GM4).

[...] ele custa menos pra gente do que o concursado porque tem outros fatores dentro do concursado que eleva o salário dele [...]. Eu acho que é a única saída que a gente tem dentro do sistema de contratações. (GM5).

A motivação foi RH […]. Abriam-se novas unidades e não tinha RH pra tocar essas unidades. (GM5).

[...] sem dúvida alguma […] é a agilidade, rapidez na contratação e na agilidade de reposição e contratação de profissionais […]. (GM6).

[...] o município, ele não teria como assumir, a gente tem um déficit muito grande de RH. Então, o fato da OS [Organização Social] entrar para gerenciar e já trazer toda essa equipe foi, assim, eu acho que foi o fator primordial […] A Atenção Básica, ela tinha que caminhar, os projetos tinham que acontecer e a forma que o município achou, naquele momento, era contratualizar, através de OS, o serviço para suprir a demanda que a gente tinha no momento. (GM6).

[...] ela se sobressai nas questões de gestão de qualidade, gestão de pessoal, nas questões de aquisição de insumos que depende do que o contrato preza, entendeu? Para que isso se transforme em benfeitorias para aquela equipe que está na ponta para que utilize o processo de trabalho deles e para que o usuário fique satisfeito [...]. (GM1).

Percepções e posicionamentos perante o movimento das contratações na visão dos representantes das instituições não governamentais

Na fala de quatro entrevistados representantes das ING, foram identificadas percepções relacionadas aos seus contratos com os municípios que se relacionam: à busca de eficácia, eficiência e efetividade das práticas para AB por parte do gestor municipal ao contratar as ING; a reposição de profissionais; menor custo; bons salários para os profissionais de saúde; agilidade na abertura de novas unidades equipadas e com RH contratado; aquisição de bens, insumos e equipamentos, sem que precisem estar limitados à Lei de licitação [Lei Federal n. 8666/1993]. Tais percepções demonstram consonância com as intencionalidades do gestor municipal. Ademais, há percepções de que os contratos com ING são mais vantajosos para o gestor, pois a Lei de licitação e a estabilidade do funcionário público, trazem embaraços que dificultam a ação da gestão. Outra percepção, ressalta que os contratos proporcionam maior agilidade e possibilitam demissões de funcionários mal avaliados, pois são regidos pela CLT (Consolidação da Lei Trabalhista). Seguem os relatos:

[...] uma procura de OS é sempre você buscar a eficácia, a eficiência e a efetividade de práticas. (INGM1).

Nós estamos tendo bastante resultado em relação a isso porque a equipe é completa [...] se não tem algum funcionário, algum médico, a gente repõe. (INGM3).

O custo é menor […] em cerca de vinte e seis porcento […] por conta da não necessidade de pagamento do INSS [Instituto Nacional de Seguro Social] patronal e alguns outros encargos [...]. (INGM3).

Hoje, um profissional ele consegue ter […] um salário proposto bastante atrativo, incluindo na atenção primária [...] mesmo a enfermagem, técnico de enfermagem e as áreas afins. (INGM3).

[...] as ações são muito rápidas. Ela quer inaugurar uma, uma unidade de pronto atendimento [...] é muito rápido [...] em um mês a gente coloca o equipamento em funcionamento. (INGM3).

[...] CLT é meritocracia [...]. Se um funcionário, ele não é bem avaliado, ele sofre processo de demissão. (ING2M6).

Os contratos de gestão a gente faz aquisição de bens, de insumos, equipamentos dependendo da necessidade do gestor, através do manual de compras e contratações que a gente é obrigado a ter [...] e que segue as diretrizes da equidade, universalidade, gratuidade, todos os itens que regem uma licitação só que nós não somos amarrados em umas coisas da licitação [...]. (ING1M6).

[...] um concurso público, desde o edital até a efetivação, mínimo seis meses e a pessoa tem mais um mês pra assumir o cargo depois que ela é chamada. [...] uma das características do modelo de gestão por OS, é a agilidade que ela traz como ferramenta pro gestor público [...]. (ING1M6).

[...] a lei de licitação, a oito mil seiscentos e sessenta e seis [Lei Federal 8666] que ela engessa muito o gestor, e a estabilidade do funcionário público [...]. São esses itens: a oito mil seiscentos e sessenta e seis e o concurso público. É por isso que a gente faz processo seletivo, né? Então, os contratos a gente faz edital e depois quem rege o contrato de trabalho é a CLT. (ING1M6).

[...] com a Organização Social, você apresenta o Plano Orçamentário e, dentro daquilo, […] você consegue muito mais agilidade [...] você consegue repor o profissional de licença [...] você tem um banco, você tem os seus […] processos seletivos e você os repõe com muito mais agilidade [...]. (ING2M6).

Técnicos apoiadores regionais do COSEMS/SP e suas percepções perante as influências para as contratações de ING por municípios

Representantes do COSEMS percebem que o Programa Mais Médicos Brasil; Programa PREVINE Brasil; contratações das Equipes Saúde da Família e dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), proporcionaram grandes reflexões; há dificuldades na contratação de RH em boa parte dos municípios, principalmente em relação à contratação de RH médico. Seguem trechos dos discursos:

Os mais médicos [Programa Mais Médicos Brasil] [...] proporcionou para gente uma grande discussão em relação a essa questão de RH [...]. Então, a formação dessas equipes que estava acolhendo esse profissional [...] a gente trabalha junto com as articuladoras da Atenção Básica [técnicos da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo]. [...] a gente tem elas como parceiras, é um projeto do estado, mas a gente tem elas como parceiras enquanto apoio do COSEMS. (COSEMSM1).

[...] uma contratualização específica e da Atenção Básica [...] não deixa de ser discutido de forma geral, eu acho que de forma mais ampla. [...] principalmente agora, que a gente tem o PREVINE Brasil [programa de financiamento da AB do Ministério da Saúde] né? Que é esse novo modelo de organização da Atenção Primária em Saúde [...] que veio para os municípios e desencadeou uma grande discussão que envolveu essa questão de RH [...] Por conta dos indicadores, dos alcances de metas, a questão de como está se dando, se dá e se deu neste momento as equipes, a formação de equipes. (COSEMSM1).

[...] a discussão da contratualização de equipes [...] principalmente as equipes saúde da família. [...] a gente participou, em vários momentos, dessas discussões e de aprovação [...] de Equipes de Saúde da Família [...], NASFs. (COSEMSM1).

[...] tem particularidades muito próprias [...]. Não é uma região onde qualquer pessoa vá trabalhar [...] Nesse sentido os profissionais que lá estão e que assumem essas questões mais nevrálgicas, mais complexas, são pessoas antigas [...] nós tivemos várias rodas de conversa de como poderíamos superar essa questão e essa forma de contratação de novos profissionais. (COSEMSM4).

A grande maioria, senão os vintes [municípios] que eu apoio, têm profissionais do programa Mais médicos [...] algumas vagas continuam em aberto. A gente tem uma questão relacionada aos próprios profissionais CRM [médicos registrados no Conselho Regional de Medicina] no sentido de ir em frente com os editais [...] a situação tem melhorado um pouquinho, mas a gente tem vagas em aberto sim em alguns municípios. (COSEMSM5).

A grande preocupação [...] é na contratação de médicos. Muitas vezes de empresa [do setor privado], para fornecimento de médicos que é sempre o mais complicado para os municípios na contratação direta. A gente sabe, inclusive, nos processos que acontecem disputas, quer dizer, ‘olha, então, eu sou médico aqui e o município vizinho me ofereceu trezentos reais a mais, então vou lá pro outro município’. Isso acontece muito. Então [...] essas organizações atuam mais nessa linha relacionada a profissionais médicos [...] enfermagem e outros profissionais não médicos provavelmente são contratados direto por concurso […] então vejo mais nessa linha, na contratação de médicos [...]. (COSEMSM5).

Percepções e posicionamentos dos representantes usuários nos Conselhos Municipais de Saúde diante das intencionalidades do gestor na contratação de ING para gestão da AB

No discurso de três entrevistados foi possível identificar suas percepções em relação às contratualizações com ING. Um deles percebe que as contratações com ING não envolvem política e relata que é preciso transparência em tudo; a motivação principal do gestor municipal com a contratação de RH por ING é um modo de não atingir o ‘Limite Prudencial’; uma das motivações está relacionada com o pagamento de salários pela média do mercado proporcionados pelo contrato com ING. Seguem os relatos:

Eu acho muito importante essas contratações não governamentais porque a gente não pode ser envolvido com política […]. Então tem que ter transparência para tudo isso daí que tá acontecendo. (UM1).

[...] as motivações principais são o limite prudencial […] o município tem um limite de funcionários que podem contratar efetivados […] esses funcionários não vão entrar na folha de pagamento da prefeitura. Então esse é um dos motivos. (UM3).

[…] os contratos que fazem com as OS, eles pagam o salário pela média do mercado [...]. (UM6).

Representantes dos trabalhadores nos Conselhos Municipais de Saúde e percepções das intencionalidades do gestor na contratação de ING para gestão da AB

No discurso de dois entrevistados foi possível identificar percepções quanto à motivação do gestor para contratações de ING. A contratação é mais econômica, pois tem redução de custo com mão de obra e a qualidade do profissional contratado é uma vantagem; a motivação está relacionada ao teto de gastos com o RH, novamente a questão do “Limite Prudencial". Seguem os relatos:

[...] é mais econômico essa contratação através das OS […] têm redução de custos com mão de obra que a prefeitura em si não teria, né? (TM1).

[...] eu acho uma vantagem, para mim, é a questão da qualidade do profissional [...]. (TM1).

[...] é com relação ao teto de gastos que ele pode ter [...] aquele valor que ele paga para a Oscip [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público] não entra na folha de pagamento dele como recursos humanos [...]. (TM3)

Discussão

Inicialmente, é necessário assinalar que todos os indivíduos entrevistados estão, de algum modo, vinculados a municípios que realizaram contratualização da gestão e operação da AB com uma ING. Portanto, suas falas serão sempre balizadas a partir desta decisão do gestor municipal da saúde. Diante dessa premissa, é esperado que as falas dos gestores entrevistados sejam sempre favoráveis à contratualização, embora se possa esperar, também, algum tipo de apreciação crítica sobre esse processo ao longo do tempo em que o gestor vivencia o compartilhamento da gestão e operação da AB em seu município.

Espera-se, também, que as falas dos representantes das ING sejam sempre no sentido de demonstrar vantagens da contratualização, assumindo um posicionamento de “marketing” para o serviço que oferece ao município, não se esperando deles nenhum posicionamento crítico.

Os demais sujeitos de pesquisa - apoiadores do COSEMS, representantes dos usuários dos e dos trabalhadores nos CMS - ficaram em uma posição de espectadores dos processos de contratualização ocorridos nos municípios, em que pese o papel dos CMS como instância de controle social sobre decisões relativas à gestão do SUS. Na ausência de compromisso direto com a decisão da contratualização, esses três sujeitos de pesquisa estariam em posição confortável para uma apreciação mais crítica acerca da contratualização da AB.

As falas desses sujeitos também estão na perspectiva do contraponto entre a administração pública gerencial e a burocrática. Enquanto esta última é vista como modelo ao qual é atribuído maior apego aos processos, resultando em respostas lentas e distantes das necessidades da população, enquanto a administração gerencial é apresentada como uma possibilidade de atender mais efetivamente às demandas da sociedade contemporânea (Bresser Pereira, 1998). Nessa perspectiva os agentes privados, particularmente os sem fins lucrativos, emergem como parceiros da gestão pública para implementação de políticas sociais, por meio da delegação de serviços públicos, operados por lógicas gerenciais desse setor, que implicaria, desse modo, agregar inovações tecnológicas e novos processos de trabalho no âmbito da gestão pública (Barbosa; Elias, 2010BARBOSA, N. B.; ELIAS, P. E. M. As organizações sociais de saúde como forma de gestão público/privado. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 5, p. 2483-2495, 2010. doi:10.1590/S1413-81232010000500023.
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).

Os relatos dos gestores, destacam preocupações como a dimensão orçamentária em relação ao quadro de RH próprio, estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, agilidade na contratação de profissionais, visando a necessidade de quantitativo profissional (médico sobretudo) sempre completo. Portanto, fica expresso que a atenção à saúde da população é decorrente apenas da presença de uma oferta assistencial, respondendo, assim, a satisfação imediata do usuário. Não fica expressa, como motivação ou intencionalidade, a contratualização para o cuidado integral à saúde, o que não estabelece referência aos elementos fundamentais que caracterizam a AB - primeiro contato, integralidade, longitudinalidade, coordenação, foco na família e na comunidade (Starfield, 2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO; Ministério da Saúde, 2002. 726p.).

Nesse sentido, ao constatar esse modo de gestão da AB, isto é, focado nos processos assistenciais e menos nos resultados em saúde (Costa e Silva et al., 2014) é preocupante, pois reduz substancialmente sua potência na atenção e proteção necessárias nos territórios de atuação, fragilizando o próprio SUS (Costa e Silva et al., 2014).

Pelo menos três ordens de constrangimento aparecem como dificuldades quase intransponíveis para esses gestores: os regramentos do processo de seleção e contratação de pessoas pelo ente público, os processos de aquisição de materiais e insumos para a operação da assistência à saúde à luz da Lei 8.666/1993, e, por fim, a Lei Complementar nº 101/2000, que estabeleceu limites fiscais particularmente com recursos humanos da burocracia estatal (Medeiros; Tavares, 2012MEDEIROS, K. R.; TAVARES, R. A. W. Questões contemporâneas da gestão do trabalho em saúde em foco, a lei de responsabilidade fiscal. Divulgação - Saúde Debate, v. 47, p. 56-64, 2012. doi: 10.1590/1413-81232017226.22852016.
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).

Estudo realizado em municípios da Região Metropolitana de São Paulo identificou que a motivação do gestor para a contratualização foi nuclearmente induzida pelos constrangimentos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. No entanto, apresentou como efeitos positivos a ampliação da oferta de consultas médicas e a expansão da Estratégia da Saúde da Família (Coelho; Greve, 2016COELHO, V. S. P.; GREVE, J. As Organizações Sociais de Saúde e o desempenho do SUS: um estudo sobre a atenção básica em São Paulo. Dados - Ciências Sociais, v. 59, n. 3, p. 867-901, 2016. doi: 10.1590/00115258201694.
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).

No modelo de gestão baseado em contratualização, às entidades privadas sem fins lucrativos se apresentam como agentes potencializadores para agregar inovações técnico-gerenciais, particularmente em relação a institucionalização da avaliação de resultados (Costa e Silva; Babosa; Hortale, 2016). Todavia, observa-se nesse trabalho que as ofertas efetivas que as ING fazem aos municípios acabam respondendo apenas às questões mais imediatas relativas às dificuldades da administração pública frente à gestão de pessoas e facilidades operacionais nos processos de aquisição de bens materiais. Deste modo, a pretendida defesa da inovação gerencial que o ente privado agregaria à gestão pública não se evidencia nas falas dos sujeitos, apontando, desse modo, uma insuficiência dessa proposição nas contratualizações com as ING (Barbosa; Elias, 2010BARBOSA, N. B.; ELIAS, P. E. M. As organizações sociais de saúde como forma de gestão público/privado. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 5, p. 2483-2495, 2010. doi:10.1590/S1413-81232010000500023.
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).

As falas dos apoiadores do COSEMS, dos representantes de usuários e trabalhadores junto aos CMS complementam a mesma linha de pensamento em relação às vantagens ou às necessidades de transferência da gestão para o ente privado, particularmente no que se refere à gestão de pessoas. Em nenhum momento fica claro a preocupação com o perfil do profissional a ser contratado e nem com o impacto que seria esperado em termos da assistência à saúde (Contreiras; Matta, 2015CONTREIRAS, H.; MATTA, G. C. Privatização da gestão do sistema municipal de saúde por meio de Organizações Sociais na cidade de São Paulo, Brasil: caracterização e análise da regulação. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 285-97, 2015. doi:10.1590/0102-311X00015914.
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; Bresser Pereira, 1998).

Essa questão aponta uma compreensão reduzida da AB, limitando sua potência na produção do cuidado em saúde de grupos populacionais em determinados espaços sociais, entendimento, esse, capturado pela lógica do “modelo médico hegemônico”, como também, o mercado privado em saúde (Cecílio; Reis, 2018CECÍLIO, L. C. O.; REIS, A. A. C. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad. Saúde Pública, v. 34, n. 8, e00056917, 2018. doi:10.1590/0102-311X00056917.
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; Göttems; Pires, 2009GÖTTEMS, L. B. D.; PIRES, M. R. G. M. Para além da atenção básica: reorganização do SUS por meio da interseção do setor político com o econômico. Saúde Soc., v. 18, n. 2, p. 189-198, 2009. doi: 10.1590/S0104-12902009000200003.
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).

Em relação aos processos, metas e indicadores envolvidos nessa relação público e privado, os representantes do Controle Social apontam para a falta de transparência, como bem assinalado por Contreiras e Matta, a propósito desse novo modelo de gestão pública (Contreiras; Matta, 2015CONTREIRAS, H.; MATTA, G. C. Privatização da gestão do sistema municipal de saúde por meio de Organizações Sociais na cidade de São Paulo, Brasil: caracterização e análise da regulação. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 285-97, 2015. doi:10.1590/0102-311X00015914.
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).

A percepção da baixa capacidade de fixação e a consequente rotatividade dos profissionais, evidenciado nas falas dos sujeitos, apontam para a complexidade da contratação e fixação de médicos na AB, tendo em vista os múltiplos fatores que determinam o comportamento desses Profissionais nesse segmento específico do mercado de trabalho (Pierantoni; Vianna; França, 2015PIERANTONI, C. R. et al. Rotatividade da força de trabalho médica no Brasil. Rio de Janeiro. Saúde Debate, v. 39, n. 106, p. 637-647, 2015. doi: 10.1590/0103-110420151060003006.
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). No entanto, há que se assinalar que, do ponto de vista da oferta de profissionais médicos, o estado de São Paulo possui, em princípio, situação bastante confortável, isto é, enquanto no Brasil existem 2,27 profissionais para cada mil habitantes, São Paulo possui 3,20, ficando atrás apenas do Distrito Federal e do estado do Rio de Janeiro (Scheffer; Cassenote; Guerra, 2020SCHEFFER, M. et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP; CFM, 2020.).

Conclusão

A análise das circunstâncias e motivações para que gestores municipais da saúde realizassem contratualização com instituições privadas sem fins lucrativos, transferindo funções e responsabilidades relacionadas à gestão e operação da AB, apontou algumas ordens de questões. A primeira delas é o arcabouço de regramentos a que gestão pública está obrigada, seja para a gestão de pessoas, seja para a aquisição de bens e insumos. A segunda é a presença de instituições privadas interessadas em realizar essa gestão, com a possibilidade de fugir àqueles regramentos do setor público, e com a promessa de eficiência e efetividade. A terceira questão diz respeito à ausência de uma preocupação e uma métrica para os resultados em saúde que seriam obtidos nessa relação público-privado.

No conjunto das falas dos diferentes sujeitos desta pesquisa, não ficam estabelecidas preocupações relativas a uma gestão com foco nos resultados em termos de saúde da população, e baseada nos princípios e diretrizes - atributos - que sempre devem estar presentes na organização da AB, quais sejam: universalidade, integralidade, equidade, foco nos indivíduos, nas famílias e na comunidade. A partir da ausência da preocupação desses sujeitos em valorizar esses atributos nas contratualizações, pode-se concluir que existe risco potencial de prejuízo para consolidação dos princípios e diretrizes da Atenção Básica.

Restaria saber como os municípios que não se envolveram em processos de contratualização resolveram as dificuldades impostas pelos regramentos que balizam a gestão pública, para a gestão e operação de suas estruturas de AB, mantendo e preservando sua sustentabilidade no fortalecimento do SUS.

Agradecimentos

Os autores gostariam de fazer um reconhecimento especial a todos os participantes do projeto (FAPESP/PPSUS): Aparecida Linhares Pimenta, Carla Gianna Luppi, Edson Rufino, Gabriela Arantes Wagner, Lídia Tobias, Marta Campagnoni Andrade, Oziris Simões e Raimundo Valdemy Borges Pinheiro Júnior. Os autores gostariam, ainda, de expressar sua gratidão à FAPESP (FAPESP/PPSUS - Processo nº 2019/03961-8), que financiou o projeto de pesquisa “Participação das Organizações Sociais na Gestão da Atenção Básica em Saúde em Municípios do Estado de São Paulo” do qual este trabalho fez parte. Este trabalho faz parte de uma bolsa TT3 recebida por Lissandra Zanovelo Fogaça (processo nº 2020/0603036-0), a qual expressa seus sinceros agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2023
  • Revisado
    03 Out 2023
  • Aceito
    06 Dez 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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