Relações sociais e determinantes da saúde: reflexões sobre a população encarcerada à luz de Betty Neuman

Marianna Victória Cerqueira Rocha Keila Cristina Pereira do Nascimento Oliveira Hallana Laisa de Lima Dantas Sobre os autores

Resumo

Introdução:

O aumento da população carcerária mundial está registrado no relatório do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC), com crescimento de 25% desde os dados do ano 2000. Vivemos em uma sociedade com estruturas de poder, em cenários globais, verossímeis dentro e fora da prisão, que colocam a população em vulnerabilidade.

Objetivo:

Refletir sobre as relações sociais nos determinantes da saúde da população privada de liberdade, à luz da Teoria de Betty Neuman.

Método:

Ensaio teórico, com busca realizada no período de janeiro a março de 2022. Resultados: As condições de vida dessa população são prejudicadas não só por doenças, como por estruturas sociais que determinam as relações antes, durante e pós-encarceramento.

Conclusões:

As relações sociais nos determinantes da saúde da população encarcerada estão prejudicadas. Os estudos são limitados, reiterando a necessidade de pesquisas na área de atenção à saúde prisional para que tornemos possível a atuação sobre as diferentes faces da estrutura do sistema penitenciário. A compreensão das relações sociais, seus determinantes de saúde e sua influência sobre a população encarcerada e sociedade civil são essenciais para garantir a efetividade dos direitos humanos, da assistência à saúde e ressocialização, visando ao desenvolvimento social em sua totalidade.

Palavras-chave:
Relações sociais; Pessoas Privadas de Liberdade; Saúde Coletiva; Determinantes Sociais da Saúde

Introdução

O aumento da população carcerária está registrado no relatório da Secretaria da Organização das Nações Unidas de Drogas e Crime que estimou 11.7 milhões de pessoas presas no mundo em 2019, um crescimento de 25% desde o levantamento do ano 2000, quando eram aproximadamente 9,3 milhões (UNODC, 2021). Vivemos em uma sociedade capitalista, globalizada e com políticas neoliberais em ascensão; temos estruturas de poder, em cenários mundiais, verossímeis dentro e fora do cárcere, onde o poder do Estado fica concentrado aqueles que possuem maior capital. Essa dinâmica coloca populações socialmente excluídas em vulnerabilidade: antes, durante e após o cárcere (Lafferty ., 2018LAFFERTY, L. et al. Measuring Social Capital in the Prison Setting: lessons learned from the inmate social capital questionnaire. Journal of Correctional Health Care, [S.L.], v. 24, n. 4, p. 407-417, 1 out. 2018. http://dx.doi.org/10.1177/1078345818793141.
http://dx.doi.org/10.1177/10783458187931...
; Soares Filho; Bueno, 2016).

A Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS) conceitua a saúde como estado de bem-estar físico, mental e social, sem se ater somente à ausência de doenças. Ademais, reafirma a saúde como um direito fundamental, sem distinção de raça, religião, ideologia política, condição social ou econômica e traz a saúde como condição fundamental para alcançar a paz e a segurança (WHO, 2005). No Brasil, o direito à saúde é explicitado na Constituição Federal desde 1988, no Art. 6º como parte dos direitos sociais e no Art. 196, segundo o qual “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 2014).

A compreensão da totalidade faz-se necessária para o desenvolvimento de Políticas Públicas de Saúde que possam assistir à população carcerária em suas especificidades. Havendo consciência de que a instituição prisional se baseia de normas para conduzir sua dinâmica, que se repetem em sistemas de relações: preso-preso; preso-agente; preso-judiciário; preso-polícia; preso-instituição; preso-família; preso-sociedade, devemos nos propor a analisar criticamente tais relações sociais, dispostas pelo Poder de Estado, que interferem diretamente nessa população (Figueiró; Dimenstein, 2016FIGUEIRÓ, R. de A.; DIMENSTEIN, M. Castigo, gestão do risco e da miséria: novos discursos da prisão na contemporaneidade. Estudos de Psicologia, [S.L.], v. 21, n. 2, p. 192-203, jun. 2016. http://dx.doi.org/10.5935/1678- 4669.20160019.
http://dx.doi.org/10.5935/1678- 4669.201...
; Marcis, 2016).

A reflexão e análise crítica das relações sociais nos determinantes de saúde da população privada de liberdade (PLL), permitirá uma melhor compreensão dos determinantes sociais de saúde (DSS) e, a partir dessa premissa, nos possibilitará apresentar uma intervenção comprometida com a realidade. Assim, o objetivo deste estudo é refletir sobre as relações sociais nos determinantes de saúde da população privada de liberdade à luz da Teoria do Modelo de Sistemas, desenvolvida por Betty Neuman.

Metodologia

Trata-se de um ensaio teórico fundamentado por uma revisão de literatura de busca estruturada, realizada nas bases de dados PubMed, Scientific Electronic Library Online (Scielo), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). A busca foi realizada de janeiro a março de 2022, e a fim de preservar a relevância do conteúdo para revisão, não foi empregado recorte temporal. Foram selecionados artigos originais e que demonstram semelhanças com o tema, sendo excluídos artigos de revisão e editoriais. Utilizou-se a estratégia PICo para elaboração da pergunta norteadora: P (População) se referiu a População Privada de Liberdade, I (Interesse) as Relações Sociais, Co (Contexto) aos determinantes de saúde (Dantas , 2021DANTAS, H. L. L. et al. Como elaborar uma revisão integrativa: sistematização do método científico. São Paulo: Rev Recien. 2021, n. 37, p. 334-345, 2021.). Resultando na questão: Como as relações sociais se expressam nos determinantes sociais de saúde da população privada de liberdade?

Os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS)/MeSH utilizados foram: População Privada de Liberdade/Prisoners; Relações sociais/ Social Relationships; Determinantes Sociais da Saúde/Social Determinants of Health. Empregou-se a busca avançada com o uso do operador booleano “and” e “or”, que permitiu acessar os artigos que possuem intersecção entre os diferentes descritores, almejando alcançar o objetivo desta revisão.

A amostra foi organizada e caracterizada por um código constituído pela letra “C” e um número em ordem crescente. Com base nos conceitos de Determinantes Sociais de Saúde (DDS), Relações Sociais e a Teoria do Modelo de Sistemas de Neuman (TMSN), os artigos foram analisados, buscou-se identificar as variáveis e os fatores estressores advindos das relações sociais do sistema carcerário, as reações/respostas da população a esses fatores e a identificação de variáveis de proteção e intervenção a essas respostas. Possibilitando a construção de uma crítica que possa fundamentar a prática da Enfermagem em Saúde Coletiva para essa população.

Resultados e Discussões

Cinco artigos foram caracterizados e sumarizados para abordagem descritiva e análise. A principal língua de divulgação desses trabalhos foi o inglês. Verificou-se que o maior número de publicações ocorreu em 2015 (02) e que existe uma concentração de publicações no continente norte-americano (03).

Tabela 1
Descrição dos artigos selecionados para a revisão narrativa

A produção científica nacional acerca dos DSS da população carcerária é quase inexistente, em sua maioria os artigos sobre a situação de cárcere têm perfil de jurisprudência. Na área da saúde, a maioria dos resultados trazem trabalhos que abordam a epidemiologia de doenças infecciosas como o trabalho de Araújo et al. (2017ARAÚJO, T. et al. Hepatitis C and associated risks in prisons: an integrative review Hepatite C e riscos associados em presídios: uma revisão integrativa. Revista de Pesquisa Cuidado é Fundamental, v. 9, n. 4, p. 939-945, 31 out. 2017) e crônicas como o de Ferreira (2019FERREIRA, M. R. et al. Tuberculosis in prison and aspects associated with the diagnosis site. The Journal Of Infection In Developing Countries, [S.L.], v. 13, n. 11, p. 968-977, 30 nov. 2019. http://dx.doi.org/10.3855/jidc.11522.
http://dx.doi.org/10.3855/jidc.11522...
), bem como intervenções de controle e eficácia de tratamentos para tais comorbidades na população. Uma visão ainda muito afetada pelo modelo biomédico enraizado na saúde brasileira (Pinheiro , 2015PINHEIRO, M. C. et al. Health profile of freedom-deprived men in the prison system. Invest Educ Enferm., v. 33, n. 2, p. 269-279, 2015. https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a09
https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a...
).

O modelo teórico desenvolvido por Betty Neuman, utilizado aqui e em outras produções, permite a captação de fenômenos mais complexos em diversos contextos - como no caso da população carcerária, no qual saúde, justiça e sociedade, se inter-relacionam. Na Teoria, o ser humano é compreendido como um sistema aberto, podendo ser um grupo, família, comunidade ou qualquer tipo de coletividade, que sofre influências de forças internas e externas em seu processo, sendo representado por um padrão organizacional dinâmico (George , 2000GEORGE, J. B. et al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.).

Esse sistema sofre influência, positiva ou negativa do ambiente, caracterizado como um todo vital que pode se ajustar ao indivíduo, coletividade ou a si mesmo, essas influências do ambiente são identificadas como fatores intra, inter e extrapessoais. A estabilidade entre esses fatores protetores e estressores é identificada como saúde. Essa definição se relaciona diretamente com a definição da comissão de determinantes sociais de saúde como “fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população” (Buss; Pellegrini Filho, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 17, n. 1, p. 77-93, abr. 2007.).

O que atua sobre esses fatores pode influenciar de maneira positiva ou negativa o sistema, e as reações são classificadas como possíveis, não ocorrendo ou vigentes, sendo identificável as respostas ou os sintomas de tal influência (George , 2000GEORGE, J. B. et al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.). Após breve apresentação dos conceitos básicos da TMSN seguimos então para a análise dos estudos incluídos.

Massoglia e Remester (2019MASSOGLIA, M.; REMSTER, B. Linkages Between Incarceration and Health. Public Health Reports, [S.L.], v. 134, n. 1, p. 8-14, maio 2019. http://dx.doi.org/10.1177/0033354919826563.
http://dx.doi.org/10.1177/00333549198265...
) ressaltam que as informações a respeito do número de infecções e doenças, divergências nas políticas de saúde, do sistema jurídico e determinantes sociais de pesquisas realizadas em território estadunidenses em comparativo ao de outros continentes, não podem ser generalizadas, tampouco, afirmativas acerca de um considerável efeito positivo na população carcerária. Como apontam os resultados de Albertie (2015ALBERTIE, A. et al. Connectivity, prison environment and mental health among first-time male inmates in Mexico City. Global Public Health, v. 12, n. 2, p. 170-184, 14 out. 2015.) e de uma pesquisa desenvolvida a respeito das condições de vida da população prisional masculina no sistema carcerário da região nordeste (Silva ., 2021SILVA, S. A. et al. Prison system and life conditions of the man in prison in a region of Brazilian northeast. Research, Society and Development, [S. l.], v. 10, n. 7, p. e55210716816, 2021. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/16816. Acesso em: 13 set. 2021.
https://rsdjournal.org/index.php/rsd/art...
).

No estudo C1, foram desenvolvidas oito categorias que se assemelhavam aos conceitos de DSS identificados pela OMS. Serviços de saúde mental e uso de substâncias, educação, emprego, moradia, recursos materiais, “cuidado médico”, relação maternal e apoio social, como categorias e cada uma delas tiveram suas barreiras e soluções elencadas pelas participantes (Stelson , 2018STELSON, E. et al. Social Determinants of Health and What Mothers Say They Need and Want after Release from Jail. Preventing Chronic Disease, v. 15, 6 dez. 2018. DOI: https://doi.org/10.5888/pcd15.180260.
https://doi.org/10.5888/pcd15.180260...
).

A amostra da pesquisa, além de pequena (15 mulheres, por evasão de 69% da amostra total de 135), esteve enviesada pelo programa de reinserção de mulheres na comunidade. Porém a interferência de fatores econômicos e políticos, mesmo não sendo diretamente mencionados pelas participantes, relacionavam os determinantes sociais de saúde às relações sociais vivenciadas, resultando em uma baixa condição de vida e saúde (Stelson , 2018STELSON, E. et al. Social Determinants of Health and What Mothers Say They Need and Want after Release from Jail. Preventing Chronic Disease, v. 15, 6 dez. 2018. DOI: https://doi.org/10.5888/pcd15.180260.
https://doi.org/10.5888/pcd15.180260...
).

As normas dentro do sistema penitenciário se relacionam a elementos sociais externos, como a orientação política e ideológica de um país, as condições socioeconômicas, cultura e aspectos morais de determinada sociedade. Em contextos diferentes, outra análise é necessária para se compreender aquela realidade, evitando a disseminação de “modelos de pensamento e teorias sobre a prisão, o encarceramento e a justiça criminal.” que se desenvolvem e se aplicam a uma população específica (Frois , 2019FROIS, C.; OSUNA, C.; LIMA, A. P. Etnografia em contexto carcerário: explorando potencialidades e limites. Cadernos Pagu. 2019, n. 55, e195503. Disponível em: n55a03 (scielo.br) Acesso em: 14 set. 2021.).

Nessa esteira, os autores do segundo artigo (C2), investigam a relação da justiça processual com o adoecimento mental de homens encarcerados, buscando investigar a percepção desses para além dos fatores ambientais e individuais dos mesmos. Destacando que a pesquisa diverge de muitos outros locais do mundo, pois na Holanda, o sistema penitenciário não sofre com superlotação ou falta de profissionais (Beijersbergen ., 2013BEIJERSBERGEN, K. A. et al. Procedural justice and prisoners’ mental health problems: A longitudinal study. Criminal Behaviour and Mental Health, v. 24, n. 2, p. 100-112, 5 set. 2013.).

O trabalho propõe analisar os mecanismos de enfrentamento desenvolvidos para lidar com o ambiente prisional. Uma amostra de mais de 1.000 homens foi convidada a participar da pesquisa, suas respostas foram coletadas após as 3 primeiras semanas e posteriormente, após 3 meses de prisão. Foram questionadas informações sobre justiça processual, saúde mental, mecanismos de enfrentamento e características individuais. Foram analisados a forma como são tratados pelos funcionários, a presença ou não de alguns sintomas relacionados a saúde mental, a forma de enfrentamento e os fatores pessoais foram levados em consideração - a idade na admissão do cárcere, etnia, antecedentes de encarceramento e tratamento prévio de problemas psicológicos (Beijersbergen . 2013BEIJERSBERGEN, K. A. et al. Procedural justice and prisoners’ mental health problems: A longitudinal study. Criminal Behaviour and Mental Health, v. 24, n. 2, p. 100-112, 5 set. 2013.).

Os resultados apontaram para uma relação causal entre a justiça processual e a saúde mental dos indivíduos encarcerados. Uma outra pesquisa indica que os homens com maiores sentenças e maior idade em aprisionamento, sentiram ou experienciaram mudanças emocionais e relataram que o ambiente prisional não atendia às suas necessidades emocionais (Perrett 2019PERRETT, S. E. et al. Exploring health and wellbeing in prison: a peer research approach. International Journal of Prisoner Health, [S.L.], v. 16, n. 1, p. 78-92, 11 set. 2019. http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-0019.
http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-...
). Corroborando com a afirmação de que um ambiente de maior qualidade no sistema seja uma das formas de minimizar o sofrimento mental desses indivíduos (Beijersbergen . 2013BEIJERSBERGEN, K. A. et al. Procedural justice and prisoners’ mental health problems: A longitudinal study. Criminal Behaviour and Mental Health, v. 24, n. 2, p. 100-112, 5 set. 2013.).

No Brasil, a própria experiência de encarceramento tem influência sobre a saúde, a exposição ao estresse está diretamente relacionada com adoecimento físico e psicológico. Conflitos internos, isolamento, disputa de poder, adaptação à nova rotina ou sentenças longas, até mesmo a relação entre o preso e agente e perda do apoio social (Ariza; Arbodela, 2020ARIZA, L. J.; ARBOLEDA, F. L. T. El cuerpo de los condenados. Cárcel y violencia en América Latina. Revista de Estudios Sociales, n. 73, p. 83-95, jul. 2020.; Frois , 2019FROIS, C.; OSUNA, C.; LIMA, A. P. Etnografia em contexto carcerário: explorando potencialidades e limites. Cadernos Pagu. 2019, n. 55, e195503. Disponível em: n55a03 (scielo.br) Acesso em: 14 set. 2021.).

Quase a totalidade dos apenados reclusos já adoeceram no presídio, os dados obtidos assemelham-se ao perfil nacional de adoecimento em outros cárceres. [...]. A capacidade excedida das celas, a má estruturação das mesmas, o confinamento em si e a higiene deficitária favoreceram ou se tornaram motivo para tal desequilíbrio entre saúde e doença nos presídios. Essa situação contribui para o agravamento da condição de saúde dessa população, constitui sério risco à saúde dos homens privados de liberdade, seus contatos e nas comunidades nas quais irão se inserir após o livramento (Pinheiro , 2015PINHEIRO, M. C. et al. Health profile of freedom-deprived men in the prison system. Invest Educ Enferm., v. 33, n. 2, p. 269-279, 2015. https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a09
https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a...
, p. 276).

O estudo de Dill et al. (C3) capta a experiência de homens encarcerados no processo de ressocialização e paternidade. Podemos observar cenários dicotômicos quando abordamos a ‘questão do gênero’ no perfil de publicações científicas. Com pesquisas voltadas para maternidade, adoecimento mental e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST) pelo “feminino”, enquanto os temas referentes a violência, criminalidade e uso/abuso de substâncias são encontrados pelo “masculino”, como exemplo, trazemos o artigo de Brinkley-Rubinstein et al. (2018). Com exceção do HIV e prevalência de IST, que são amplamente abordadas sem influência de gênero (Barcinski; Cúnico, 2014). Uma revisão sistemática conduzida por Cúnico e Lermen (2020) conclui que “vários estudos apenas valeram-se do conceito como forma de diferenciar descritivamente os dados obtidos”.

A masculinidade estruturada pelo nosso modelo socioeconômico, imputa ao homem privado de liberdade em disputas, reprodução de atitudes de risco e negligência com sua saúde física e mental, e frequentemente são tais atitudes são reforçadas pelas relações sociais vivenciadas por esses indivíduos (Santos; Nardi, 2014).

Não podemos esquecer que estamos lidando com a saúde dos homens e que estes possuem um perfil diferenciado, marcado por legados sociais de gênero que cria o estereótipo “machista”. O imaginário de ser homem pode aprisioná-lo em amarras culturais, dificultando práticas de autocuidado, pois o homem é visto como viril, invulnerável e forte. Os homens que se sentem invulneráveis estão em maior exposição, pois adoecem em segredo e demoram a procurar assistência adequada, tornando-se mais vulneráveis (Pinheiro ., 2015PINHEIRO, M. C. et al. Health profile of freedom-deprived men in the prison system. Invest Educ Enferm., v. 33, n. 2, p. 269-279, 2015. https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a09
https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a...
, p. 276).

Na pesquisa (C3), a oportunidade de estar com os filhos, ensiná-los e poder passar tempo de qualidade com eles, pode ser encarado como fator de proteção na perspectiva da Teoria de Neuman. Esse processo é extremamente relevante para a relação pai-filhos e motiva-os a seguirem o seu processo de reinserção na sociedade de forma firme (Dill et al., 2015).

O emprego se torna categoria analítica crítica, um ciclo onde o mesmo busca emprego, não consegue ou não há pagamento justo. Como explicitado no artigo, em regiões dos Estados Unidos, políticas discriminatórias frente à população carcerária dificultam a entrada desses homens no mercado de trabalho e impedem a participação em atividades sociais como por exemplo, o direito ao voto (Dill et al., 2015). Podemos observar que essa linha de defesa - o emprego - está prejudicada, e a população, privada também de exercer tal direito e função social fora do cárcere. Assim, o desemprego, diagnosticado como fator estressor, está relacionado com a remissão desses homens ao sistema penitenciário, além de afetar diretamente a dinâmica familiar, levando a um ciclo de pobreza e inequidade (Dill et al., 2015). Demonstrando o impacto do aprisionamento nas relações sociais também, pós cárcere.

Somando-se a outros fatores estressores, o artigo conclui que a busca por serviços de saúde não é uma prioridade, comparado com a necessidade de encontrar emprego e moradia, prover e alimentar-se e mobilidade urbana (Dill et al., 2015). No contexto da pesquisa (Estados Unidos), os custos com os serviços de saúde nos privados são altos, tendo em vista a condição socioeconômica desses homens, muitos deles evitam procurar os serviços de saúde. Isso causa prejuízo e impossibilita a atenção integral à saúde, inviabilizando ações de prevenção e promoção.

Dill et al. (2015) destacam que o apoio social foi uma das categorias elaborada com maior viés devido a amostra ser parte de um programa de apoio aos homens em reintegração social, além disso, o programa é responsável por fornecer uma rede de apoio relacionada a outras necessidades sociais como trabalho, educação, moradia e transporte. Estigmatização, estresse e isolamento devido ao processo de encarceramento e ressocialização são temas abordados, e evidentes fatores estressores, porém devido a experiência deste coletivo, nesse espaço se tem um ambiente seguro para partilha dessas situações negativas advindas da experiência do cárcere, encontrando-se um fator de proteção. A comunicação, capacidade de se comunicar efetivamente dentro e fora do sistema, comunicação entre o homem-serviço de saúde e homem-agentes penitenciários foi evidenciada como fator positivo para o bem-estar, dentro das limitações do sistema penitenciário (Perrett 2019PERRETT, S. E. et al. Exploring health and wellbeing in prison: a peer research approach. International Journal of Prisoner Health, [S.L.], v. 16, n. 1, p. 78-92, 11 set. 2019. http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-0019.
http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-...
).

O artigo (C4) de Albertie (2015ALBERTIE, A. et al. Connectivity, prison environment and mental health among first-time male inmates in Mexico City. Global Public Health, v. 12, n. 2, p. 170-184, 14 out. 2015.) busca compreender o impacto do encarceramento e fatores ambientais que podem comprometer o estado de saúde mental dos indivíduos encarcerados. O estudo foi conduzido em três instituições penais e teve uma amostra de mais de 500 participantes voluntários, todos passaram por uma avaliação de saúde e responderam a um questionário com cinco categorias de interesse: Situação socioeconômica e demográfica, histórico de violência e de infância, comportamentos de risco relacionados a ISTs e HIV, alimentação e atividade física, saúde mental e atitudes de risco a saúde; Dessas categorias foram elencadas as variáveis dependentes e independentes, sendo elas respectivamente, depressão e uso de substâncias; e “connectivity” - compreendida como “relações/relacionamentos”, ambiente prisional e histórico pessoal.

Os resultados apontaram para uma condição de saúde mental precária, metade da amostra apresentou condições para transtorno depressivo e mais da metade para uso/abuso e substâncias, evidenciando a falta de assistência à saúde, principalmente do serviço de saúde mental para esses indivíduos. Fatores situacionais como a violência no cárcere e superlotação, também refletem na saúde mental do homem encarcerado, porém atividades laborais e envolvimento outras atividades dentro do cárcere, funcionam como fator minimizador do sofrimento psíquico e da exposição à violência (Albertie , 2015ALBERTIE, A. et al. Connectivity, prison environment and mental health among first-time male inmates in Mexico City. Global Public Health, v. 12, n. 2, p. 170-184, 14 out. 2015.). Como já abordado anteriormente a experiência do cárcere é acompanhada de mudanças psicológicas significativas, e essas condições são variantes a partir da forma de enfrentamento individual e da rede de apoio do sujeito, sendo possível observar na pesquisa que o casamento e as visitas, ou seja, o apoio social é imprescindível para adaptação e reinserção desse sujeito, sendo encarado como fator de proteção na linha de defesa da população encarcerada

O artigo (C5) se propõe a analisar o fenômeno pela ótica racial, e o impacto do encarceramento em massa nos determinantes sociais de saúde relacionados ao bem-estar. Para isso, os dados utilizados são advindos de uma pesquisa que investigou o impacto da política contra drogas no ciclo de encarceramento-ressocialização-readmissão, causas de instabilidades nas condições de vida dessas pessoas. A amostra foi composta por mais de 300 participantes voluntários acima de 18 anos que responderam a um questionário estruturado (Blankenship et al., 2019).

Foram analisadas informações sociodemográficas, fatores socioeconômicos, escolaridade e vínculo empregatício. Além do uso de substâncias, histórico relacionado à justiça criminal (além do encarceramento), aspectos relacionados a vigilância e controle comunitário (advindos da justiça criminal), poder policial e controle policial (hipervigilância). Também foram inseridas questões sobre o impacto do histórico da prisão nos bem-estar social e econômico, com questões voltadas a educação, emprego e moradia, relacionamentos pessoais e nas relações de pessoas próximas, como também o impacto referente à dificuldade de utilizar os serviços de saúde ou outros serviços. Esses dados foram seccionados para avaliar a interferência do fator raça no processo de encarceramento em massa sob quatro subcategorias: Histórico Criminal; Supervisão Comunitária; Vigilância da Justiça Criminal; Exposição ao controle/poder policial. E posteriormente a relação do encarceramento com os aspectos relacionados à saúde (Blankenship et al., 2019).

Os autores concluem que existem diferenças pautadas em preconceitos raciais nas experiências de cárcere e de ressocialização, onde jovens negros possuem menor idade quando sentenciados, maior número de prisões, de condenações primárias por drogas e maior tempo de sentença (Blankenship et al., 2019). Assim como em outras pesquisas, foram identificados determinantes sociais que prejudicam os homens encarcerados, em sua maior parte negros: marginalização econômica, maior incidência de doenças (infecciosas, cardiovasculares e psicológicas), integração e reintegração social relacionadas ao trabalho insuficiente, estudo e moradia prejudicados (Massoglia; Remster, 2019MASSOGLIA, M.; REMSTER, B. Linkages Between Incarceration and Health. Public Health Reports, [S.L.], v. 134, n. 1, p. 8-14, maio 2019. http://dx.doi.org/10.1177/0033354919826563.
http://dx.doi.org/10.1177/00333549198265...
). A população carcerária como um todo, é diretamente afetada pelas mazelas que se seguem após o período de cárcere, porém a população negra está em maior risco, evidenciando a perpetuação da iniquidade racial na temática do cárcere.

Fica evidente as distintas expressões das relações sociais sob os determinantes de saúde da PLL, durante e após o cárcere, e sua análise crítica é importante para o desenvolvimento de políticas públicas de saúde. Como apontado por Lafferty (2018LAFFERTY, L. et al. Measuring Social Capital in the Prison Setting: lessons learned from the inmate social capital questionnaire. Journal of Correctional Health Care, [S.L.], v. 24, n. 4, p. 407-417, 1 out. 2018. http://dx.doi.org/10.1177/1078345818793141.
http://dx.doi.org/10.1177/10783458187931...
) os recursos para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para as demandas da população carcerária são diferentes dos fornecidos à sociedade geral.

Na Holanda, por exemplo, as condições do sistema penitenciário são contrastantes a diversos outros continentes como descrito no artigo de Beijersbergen . (2013BEIJERSBERGEN, K. A. et al. Procedural justice and prisoners’ mental health problems: A longitudinal study. Criminal Behaviour and Mental Health, v. 24, n. 2, p. 100-112, 5 set. 2013.), em que cada preso vive em celas individuais e conseguem ter um vínculo forte com os agentes institucionais durante o período de reclusão. E que apesar de sofrerem com problemas comuns, referem menor sofrimento psicológico relacionado ao ambiente e ao vínculo com os trabalhadores do sistema penitenciário.

A prisão tem influência direta na saúde, tornando o sistema penitenciário um espaço importante para a saúde pública. Para além do perfil de doenças crônicas e infecciosas, a influência do aprisionamento sobre os laços familiares, manutenção de relacionamentos e mobilidade, oportunidades de emprego e educação, acesso a serviços de saúde, comparadas com as pessoas fora do cárcere são discrepantes (Baillargeon ., 2017BAILLARGEON, J. et al. The changing epidemiology of HIV in the criminal justice system. International Journal of STD & AIDS, v. 28, n. 13, p. 1335-1340, 27 abr. 2017.; Lafferty ., 2018LAFFERTY, L. et al. Measuring Social Capital in the Prison Setting: lessons learned from the inmate social capital questionnaire. Journal of Correctional Health Care, [S.L.], v. 24, n. 4, p. 407-417, 1 out. 2018. http://dx.doi.org/10.1177/1078345818793141.
http://dx.doi.org/10.1177/10783458187931...
; Medina; Rico, 2020MEDINA, W. J. S.; RICO, R. H. M. Estándares nacionales e internacionales del tratamiento penitenciario y carcelario en Colombia. Un estudio del caso de la cárcel de Neiva (Huila). Prolegómenos, [S.L.], v. 22, n. 43, p. 79-92, 24 fev. 2020. http://dx.doi.org/10.18359/prole.3460.
http://dx.doi.org/10.18359/prole.3460...
; Silverman-Retana et al., 2018). Tornando imprescindível a discussão e análise das relações sociais, área pouco explorada nas produções científicas, principalmente em países em desenvolvimento como o nosso, como colocado por Buss e Pellegrini Filho (2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 17, n. 1, p. 77-93, abr. 2007.):

Finalmente, há os enfoques que buscam analisar as relações entre a saúde das populações, as desigualdades nas condições de vida e o grau de desenvolvimento da trama de vínculos e associações entre indivíduos e grupos. [...] Países com frágeis laços de coesão social, ocasionados pelas iniquidades de renda, são os que menos investem em capital humano e em redes de apoio social, fundamentais para a promoção e proteção da saúde individual e coletiva. Esses estudos também procuram mostrar por que não são as sociedades mais ricas as que possuem melhores níveis de saúde, mas as que são mais igualitárias e com alta coesão social (Buss; Pellegrini Filho, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 17, n. 1, p. 77-93, abr. 2007., p. 82).

Produções científicas sobre a morte no cárcere por doenças crônicas e negligenciadas, câncer, AIDS e suicídio também é consistente (Ariza; Arbodela, 2020ARIZA, L. J.; ARBOLEDA, F. L. T. El cuerpo de los condenados. Cárcel y violencia en América Latina. Revista de Estudios Sociales, n. 73, p. 83-95, jul. 2020.; Chies; Almeida, 2019CHIES, L A. B.; ALMEIDA, B. R. Muertes en prisión preventiva en Brasil. Prisiones que matan; muertes que importan poco. Revista de Ciencias Sociales, [S.L.], v. 33, n. 47, p. 67-90, 6 dez. 2019. http://dx.doi.org/10.26489/rvs.v32i45.3
http://dx.doi.org/10.26489/rvs.v32i45.3...
; Hulsman; Justino, 2021HULSMAN, J.; JUSTINO, D. They’re talking about penal abolition: the urgency of re-imagining different paths as alternatives to the criminal justice system. Revista Direito e Práxis, [S.L.], v. 12, n. 1, p. 444-471, jan. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2020/57285.
http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2020...
; Zhong ., 2021ZHONG, S. et al. Risk factors for suicide in prisons: a systematic review and meta-analysis. The Lancet Public Health, [S.L.], v. 6, n. 3, p. 164-174, mar. 2021. < http://dx.doi.org/10.1016/s2468-2667(20)30233-4>.
http://dx.doi.org/10.1016/s2468-2667(20)...
). Nesse eixo, fica evidente a negligência frente à promoção de saúde, vigilância e tratamento desses indivíduos sob custódia dos seus respectivos governos. Os resquícios estruturais de um sistema punitivo, que serviu para isolar e excluir socialmente, sob condições de vida que eram igualmente insalubres e muitas vezes, sentenças de morte, vê-se repetido nesses padrões de adoecimento: tuberculose, suicídio, leptospirose e escabiose. Enfermidades historicamente referenciadas nos estudos do desenvolvimento do que se tornaria a instituição prisional.

O desenvolvimento de pesquisas nesse contexto é necessário para ampliar o conhecimento acerca das condições de vida e saúde da população privada de liberdade, nacional e internacionalmente. A complexidade do tema e a dinâmica dos resultados encontrados mostram que é necessário investir em estratégias melhores para enfrentamento das condições estruturais e os prejuízos às relações, durante e após a privação de liberdade (Perrett , 2019PERRETT, S. E. et al. Exploring health and wellbeing in prison: a peer research approach. International Journal of Prisoner Health, [S.L.], v. 16, n. 1, p. 78-92, 11 set. 2019. http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-0019.
http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-...
).

Quadro 1
Fatores estressores identificados na população carcerária

Sintetizando os achados sob a interpretação da Teoria do Modelo de Sistemas de Neuman (TMSN), o grupo supracitado recebe a influência do ambiente de forma negativa, não só durante o período do cárcere, sendo o cotidiano pregresso e subsequente, tão desfavorável quanto, para os DSS desses indivíduos. Essa população que tem sua liberdade, saúde, moradia, trabalho, lazer, alimentação e educação asseguradas pelo direito constitucional, já está sob influência de fatores estressantes de um sistema político e econômico implementado há muito tempo em nosso estado e em nosso Estado.

Na TMSN, “linhas de defesa” são mecanismos desenvolvidos como proteção aos fatores estressores. Assim, a linha de defesa normal, é considerada como o nível “normal” de bem-estar e a linha de defesa flexível, a prevenção desenvolvida pelo “sistema” aos fatores estressantes além dos níveis de normalidade (George , 2000GEORGE, J. B. et al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.).

Partindo disso, a “normalidade” tem diferentes leituras, afinal o indivíduo que sempre viveu em vulnerabilidade econômica ou alimentar, por exemplo, difere de um indivíduo socioeconomicamente favorecido. Fica aqui evidente a contradição social pois a vulnerabilidade econômica e alimentar é considerada fator de adoecimento. Teríamos aqui por definição que o nível normal de bem-estar desse indivíduo socialmente adoecido é sua adaptação à injustiça social?

Aprofundando a ideia em torno da situação alimentar, a qual está disposta a esses indivíduos sobre a prerrogativa do “aos menos tenho o que comer” (Silva , 2021SILVA, S. A. et al. Prison system and life conditions of the man in prison in a region of Brazilian northeast. Research, Society and Development, [S. l.], v. 10, n. 7, p. e55210716816, 2021. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/16816. Acesso em: 13 set. 2021.
https://rsdjournal.org/index.php/rsd/art...
). Seria essa uma forma de assegurar que esse indivíduo tem como fator de proteção o fornecimento de alimentação pelo Estado? Direito esse que deveria ser garantido sem a necessidade da privação de liberdade (Brasil, 1988). A Comissão Nacional de Determinantes Sociais de Saúde, sugere que estejamos preparados para intervir em todos os níveis de determinantes sociais, dando prioridade aos fatores socioeconômicos e aos processos educacionais e laborais da população, buscando diminuir as iniquidades de forma sistemática (CNDSS, 2008).

Por fim, as linhas de resistência trabalham em conjunto com a linha normal de defesa, quando o fator estressor perpassa a linha normal há uma reação de resistência que busca defender a estrutura básica do sistema (George , 2000GEORGE, J. B. et al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.). No caso da população carcerária, até mesmo nas linhas de resistência são influenciadas negativamente. Devido às situações ambientais que os prisioneiros vivem: superlotação, escassez de recursos de higiene pessoal, disputas de poder e muitos outros fatores se colocam como estressores, impossibilitando a recuperação de doenças que necessitam de intervenções específicas e de ações de promoção de saúde e prevenção de agravos.

Presente na doutrina do Sistema Único de Saúde (SUS), a promoção de saúde é interpretada como a principal estratégia de manutenção do bem-estar social (Brasil, 2010). Buscando intervir de forma orientada com o objetivo tanto de evitar o surgimento de doenças, quanto reduzir a incidência e prevalência na população. Para Neuman, a prevenção primária é entendida como a redução da possibilidade de contato com o estressor e fortalecimento da linha de defesa. A prevenção secundária, o diagnóstico precoce e tratamento de sintomas. E na prevenção terciária a readaptação, reeducação e manutenção da estabilidade (George , 2000GEORGE, J. B. et al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.).

Quadro 2
Estratégias de prevenção identificadas em contexto carcerário

A adaptação do indivíduo aos fatores estressantes não deve ser subserviente aos modelos hegemônicos de uma sociedade em colapso, como é a atual sociedade capitalista. Sob a ótica da construção social, certamente é mais cômodo caracterizar o adoecimento de uma coletividade “fora da norma”, já compreender o processo de adoecimento desta, é apontar para uma estrutura que se sobrepõe a toda sociedade.

O ambiente caracterizado por isolamento social, condições estruturais que não têm capacidade de alojar e atender às necessidades de saúde, educativas e laborais para efetivar a ressocialização são fatores estressantes à saúde desses indivíduos. A falha fica evidenciada no retorno destes ao sistema carcerário, a marginalização econômica da população que experienciou o cárcere e a exclusão destes do mercado de trabalho e até mesmo de direitos constitucionais.

Como formas de prevenção a tais circunstâncias nos três níveis, como estabelecido por Neuman (George , 2000GEORGE, J. B. et al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.), teríamos como alternativas, na atenção primária, ações educação em saúde, atenção à saúde mental, condições adequadas de alimentação, moradia, lazer e trabalho, educação sexual e exames preventivos como forma de redução de fatores estressores, assim como imunização, higiene pessoal e sanitária e redução de danos como forma de fortalecimento da linha de defesa. Na prevenção secundária, busca ativa, tratamento adequado, provisão de recursos para manutenção da saúde, diagnóstico precoce e tratamento de sintomas. E inserção em atividades laborais e educacionais, bem como a educação continuada de profissionais e participação social como readaptação na prevenção terciária. Para atenção integral à população, tais medidas deveriam ser aplicadas antes, durante e após a experiência de cárcere.

Considerações finais

A partir do conceito de doença de Neuman como “estado de insuficiência no qual as necessidades ainda estão por ser satisfeitas”, podemos afirmar que a população carcerária está doente e pelos resultados de diversas pesquisas, segue adoecida após a experiência do cárcere. O bem-estar, a saúde, o desenvolvimento e o progresso são privilégios de alguns, enquanto a maior parte da população vive de maneira limítrofe. Ou seja, a transformação deve ser social, é preciso não só restabelecer tais condições, como dar suporte para o seu desenvolvimento após o cárcere, buscando também desenvolver modelos sociais que previnam as circunstâncias que levam a ele. Pode-se concluir que as relações sociais interferem diretamente nos determinantes de saúde da população carcerária, de forma predominantemente negativa, e que o ambiente de cárcere, nas instituições brasileiras e em outros países emergentes, identificados também como de capitalismo tardio, fornece condições degradantes às pessoas.

Este estudo permite sugerir algumas intervenções: desencarceramento, melhor financiamento do sistema carcerário, melhorias e padronização do sistema de informação sobre as condições de vida e saúde da população, maior participação da sociedade no processo de ressocialização e o treinamento e aperfeiçoamento dos profissionais, apoio a reinserção social efetivo. Para além, produzir ciência com uma teoria revolucionária, que se proponha analisar as relações de produção, o desenvolvimento social e os determinantes de saúde da população, antes, durante e depois do encarceramento, pode ser considerado um avanço na forma de fazer e compreender saúde, objetivando alterar a forma como lidamos com as mazelas causadas pelo sistema capitalista, atuando de forma práxica, interferindo, assim, na realidade objetiva, como se propõe o campo da Enfermagem em Saúde Coletiva.

A partir desta análise e reflexão, fica explicitado que somente a prática revolucionária da enfermagem será ferramenta da práxis da mudança social. O antagonismo das classes sociais continuará perpetuando um sistema adoecido em todos os níveis, uma dessas classes será oprimida e sofrerá mais com essa estrutura, e dela, enquanto trabalhadoras(es), urge atuar em prol do desenvolvimento e em consonância com o avanço científico e filosófico do nosso fazer, e enquanto seres sociais e políticos, seguiremos buscando a emancipação do ser humano por completo, dentro e fora do cárcere.

Agradecimentos

Rocha, M. V. C. agradece às professoras da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas, que a apoiaram em sua graduação e em sua jornada de se tornar pesquisadora, em especial a Oliveira, K. C. P. do N. e Dantas, H. L de L., que a acompanham nesta primeira produção e a incentivam a seguir pelo caminho da ciência. E inenarráveis carinho e gratidão a Pereira, M. R., hoje e sempre.

Referências

  • ALBERTIE, A. et al. Connectivity, prison environment and mental health among first-time male inmates in Mexico City. Global Public Health, v. 12, n. 2, p. 170-184, 14 out. 2015.
  • ARAÚJO, T. et al. Hepatitis C and associated risks in prisons: an integrative review Hepatite C e riscos associados em presídios: uma revisão integrativa. Revista de Pesquisa Cuidado é Fundamental, v. 9, n. 4, p. 939-945, 31 out. 2017
  • ARIZA, L. J.; ARBOLEDA, F. L. T. El cuerpo de los condenados. Cárcel y violencia en América Latina. Revista de Estudios Sociales, n. 73, p. 83-95, jul. 2020.
  • BAILLARGEON, J. et al. The changing epidemiology of HIV in the criminal justice system. International Journal of STD & AIDS, v. 28, n. 13, p. 1335-1340, 27 abr. 2017.
  • BARCINSKI, M.; CÚNICO, S. D. Os efeitos (in)visibilizadores do cárcere: as contradições do sistema prisional. Psicologia: Revista da Associação Portuguesa de Psicologia, [s. l], v. 28, n. 2, p. 63-70, fev. 2014.
  • BEIJERSBERGEN, K. A. et al. Procedural justice and prisoners’ mental health problems: A longitudinal study. Criminal Behaviour and Mental Health, v. 24, n. 2, p. 100-112, 5 set. 2013.
  • BLANKENSHIP, K. M. et al. Mass incarceration, race inequality, and health: Expanding concepts and assessing impacts on well-being. Social Science & Medicine, v. 215, p. 45-52, out. 2018.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. 1. Ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
  • BRASIL. Política Nacional de Promoção da Saúde. ed. Secretaria de Vigilância em Saúde Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. 60 p.
  • BRINKLEY-RUBINSTEIN, L. et al. Knowledge, interest, and anticipated barriers of preexposure prophylaxis uptake and adherence among gay, bisexual, and men who have sex with men who are incarcerated. PLOS ONE, v. 13, n. 12, p. e0205593, 7 dez. 2018.
  • BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 17, n. 1, p. 77-93, abr. 2007.
  • CÚNICO, S. D.; LERMEN, H. S. Prison from a gender perspective: a systematic review. Psicología, Conocimiento y Sociedad, [S.L.], v. 10, n. 1, p. 205-239, 1 jun. 2020. Psicologia, Conocimiento y Sociedad. http://dx.doi.org/10.26864/pcs.v10.n1.10
    » http://dx.doi.org/10.26864/pcs.v10.n1.10
  • CHIES, L A. B.; ALMEIDA, B. R. Muertes en prisión preventiva en Brasil. Prisiones que matan; muertes que importan poco. Revista de Ciencias Sociales, [S.L.], v. 33, n. 47, p. 67-90, 6 dez. 2019. http://dx.doi.org/10.26489/rvs.v32i45.3
    » http://dx.doi.org/10.26489/rvs.v32i45.3
  • Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil: Relatório Final da CNDSS. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: < https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/causas_sociais_iniquidades.pdf> .
    » https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/causas_sociais_iniquidades.pdf
  • DANTAS, H. L. L. et al. Como elaborar uma revisão integrativa: sistematização do método científico. São Paulo: Rev Recien. 2021, n. 37, p. 334-345, 2021.
  • DILL, L. J. et al. “I Want a Second Chance”. American Journal of Men’s Health, v. 10, n. 6, p. 459-465, 7 jul. 2016.
  • FERREIRA, M. R. et al. Tuberculosis in prison and aspects associated with the diagnosis site. The Journal Of Infection In Developing Countries, [S.L.], v. 13, n. 11, p. 968-977, 30 nov. 2019. http://dx.doi.org/10.3855/jidc.11522
    » http://dx.doi.org/10.3855/jidc.11522
  • FIGUEIRÓ, R. de A.; DIMENSTEIN, M. Castigo, gestão do risco e da miséria: novos discursos da prisão na contemporaneidade. Estudos de Psicologia, [S.L.], v. 21, n. 2, p. 192-203, jun. 2016. http://dx.doi.org/10.5935/1678- 4669.20160019
    » http://dx.doi.org/10.5935/1678- 4669.20160019
  • FROIS, C.; OSUNA, C.; LIMA, A. P. Etnografia em contexto carcerário: explorando potencialidades e limites. Cadernos Pagu. 2019, n. 55, e195503. Disponível em: n55a03 (scielo.br) Acesso em: 14 set. 2021.
  • LAFFERTY, L. et al. Measuring Social Capital in the Prison Setting: lessons learned from the inmate social capital questionnaire. Journal of Correctional Health Care, [S.L.], v. 24, n. 4, p. 407-417, 1 out. 2018. http://dx.doi.org/10.1177/1078345818793141
    » http://dx.doi.org/10.1177/1078345818793141
  • GEORGE, J. B. et al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática. Porto Alegre: ArtMed, 2000.
  • MASSOGLIA, M.; REMSTER, B. Linkages Between Incarceration and Health. Public Health Reports, [S.L.], v. 134, n. 1, p. 8-14, maio 2019. http://dx.doi.org/10.1177/0033354919826563
    » http://dx.doi.org/10.1177/0033354919826563
  • MEDINA, W. J. S.; RICO, R. H. M. Estándares nacionales e internacionales del tratamiento penitenciario y carcelario en Colombia. Un estudio del caso de la cárcel de Neiva (Huila). Prolegómenos, [S.L.], v. 22, n. 43, p. 79-92, 24 fev. 2020. http://dx.doi.org/10.18359/prole.3460
    » http://dx.doi.org/10.18359/prole.3460
  • MARCIS, F. A impossível governança da saúde em prisão? Reflexões a partir da MACA (Costa do Marfim). Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 21, n. 7, p. 2011-2020, jul. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.10402016
    » http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.10402016
  • PERRETT, S. E. et al. Exploring health and wellbeing in prison: a peer research approach. International Journal of Prisoner Health, [S.L.], v. 16, n. 1, p. 78-92, 11 set. 2019. http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-0019
    » http://dx.doi.org/10.1108/ijph-03- 2019-0019
  • PINHEIRO, M. C. et al. Health profile of freedom-deprived men in the prison system. Invest Educ Enferm., v. 33, n. 2, p. 269-279, 2015. https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a09
    » https://doi.org/10.17533/udea.iee.v33n2a09
  • SANTOS, H. B. dos; NARDI, H. C. Masculinidades entre matar e morrer: o que a saúde tem a ver com isso? Physis: Revista de Saúde Coletiva, [S.L.], v. 24, n. 3, p. 931-949, set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s0103- 73312014000300014
    » http://dx.doi.org/10.1590/s0103- 73312014000300014
  • SILVA, S. A. et al. Prison system and life conditions of the man in prison in a region of Brazilian northeast. Research, Society and Development, [S. l.], v. 10, n. 7, p. e55210716816, 2021. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/16816 Acesso em: 13 set. 2021.
    » https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/16816
  • SILVERMAN-RETANA, O. et al. Prison environment and non-communicable chronic disease modifiable risk factors: length of incarceration trend analysis in Mexico city. Journal of Epidemiology and Community Health, [S.L.], v. 72, n. 4, p. 342-348, 24 jan. 2018. BMJ. http://dx.doi.org/10.1136/jech-2017- 209843
    » http://dx.doi.org/10.1136/jech-2017- 209843
  • SOARES FILHO, M. M.; BUENO, P. M. M. G. Demografia, vulnerabilidades e direito à saúde da população prisional brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 21, n. 7, p. 1999-2010, jul. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.24102015
    » http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.24102015
  • STELSON, E. et al. Social Determinants of Health and What Mothers Say They Need and Want after Release from Jail. Preventing Chronic Disease, v. 15, 6 dez. 2018. DOI: https://doi.org/10.5888/pcd15.180260
    » https://doi.org/10.5888/pcd15.180260
  • UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global Study on Deprived of Liberty Population: Research Report. Vienna: UNODC, 2019. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/DataMatters1_prison.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2021.
    » https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/DataMatters1_prison.pdf
  • HULSMAN, J.; JUSTINO, D. They’re talking about penal abolition: the urgency of re-imagining different paths as alternatives to the criminal justice system. Revista Direito e Práxis, [S.L.], v. 12, n. 1, p. 444-471, jan. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2020/57285
    » http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2020/57285
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Documentos básicos. 2005 Disponível em:< https://iris.who.int/handle/10665/43136 > Acesso em: 27 jun. 2022.
    » https://iris.who.int/handle/10665/43136
  • ZHONG, S. et al. Risk factors for suicide in prisons: a systematic review and meta-analysis. The Lancet Public Health, [S.L.], v. 6, n. 3, p. 164-174, mar. 2021. < http://dx.doi.org/10.1016/s2468-2667(20)30233-4>.
    » http://dx.doi.org/10.1016/s2468-2667(20)30233-4

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2023
  • Revisado
    21 Nov 2023
  • Aceito
    23 Dez 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br