Treinamento esfincteriano de crianças com transtorno do espectro autista: vivências, dificuldades e estratégias auxiliares

Milene Garcez Bertolotto Luzia Iara Pfeifer Amanda Mota Pacciulio Sposito Sobre os autores

Resumo

Este estudo teve por objetivo compreender como ocorreu o processo de treinamento esfincteriano de crianças autistas. Trata-se de um estudo retrospectivo, descritivo, de análise qualitativa. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com sete cuidadoras de crianças com diagnóstico de TEA, entre 2 e 6 anos, que já haviam concluído este treino. As entrevistas foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo. A análise dos dados permitiu identificar quatro categorias: treinamento de controle esfincteriano para evacuação, treinamento de controle esfincteriano para urinar, estratégias auxiliares e dificuldades no processo. Os resultados indicaram maior dificuldade das crianças com TEA para controlar as fezes e, em geral, o desfralde diurno e noturno ocorreu em duas etapas. Foram utilizados acessórios e recursos lúdicos como facilitadores do processo, além de estratégias de reforço positivo, punição positiva e punição negativa. Existiram dificuldades, das próprias cuidadoras, de ordem emocional e física, e estas não receberam ajuda profissional. Este estudo avança no conhecimento acerca do treinamento de controle esfincteriano de crianças com TEA, indicando estratégias que facilitem esse processo, tanto para cuidadores quanto para crianças, contribuindo para a capacitação dos profissionais que atuam com essa população.

Palavras-chave:
Transtorno do espectro autista; Treinamento esfincteriano; Desenvolvimento infantil

Introdução

O controle esfincteriano é uma das etapas importantes do desenvolvimento físico e psicológico na primeira infância (Nurfajriyani; Prabandari; Lusmilasari, 2016NURFAJRIYANI, I.; PRABANDARI Y.; LUSMILASARI, L. Influence of video modelling to the toileting skill at toddler. International Journal of Community Medicine and Public Health, v. 3, n. 8, p. 2029-2034, 2016.) e o treinamento para sua aquisição constitui um grande desafio para as famílias (Van Nunen et al., 2015; Vasconcelos; Lima, 2017VASCONCELOS, M. M. A.; LIMA, E. M. Disfunção do trato urinário inferior. In: SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. Tratado de Pediatria. 4. ed. Barueri: Editora Manole, 2017. v.1, p. 1119-1125.). Refere-se ao período em que a criança deixa de usar fraldas, pois já é capaz de ter controle de seus esfíncteres, adquirindo maior autonomia (Nurfajriyani; Prabandari; Lusmilasari, 2016; Van Nunen et al., 2015). Ao término do treinamento, espera-se que a criança tenha capacidade de manter-se seca e limpa, além de ter independência para fazer uso do banheiro (Soutinho; Corrêa; Blascovi-Assis, 2020SOUTINHO, R. S. R.; CORRÊA, A. G. D.; BLASCOVI-ASSIS, S. M. Controle esfincteriano em crianças com Transtorno do Espectro do Autismo. In: SEABRA, A. G. et al. (Orgs.). Estudos interdisciplinares em saúde e educação nos Distúrbios do Desenvolvimento. São Paulo: Memnon, 2020.).

O desfralde precoce, tardio ou malconduzido pode acarretar consequências fisiológicas, tais como constipação, enurese, encoprese e infecções urinárias (Hellström; Sillén, 2001HELLSTRÖM, A. L.; SILLÉN, U. Early potty training advantageous in bladder dysfunction decreases the risk of urinary infection. Lakartidningen, v. 98, n. 28-29, p. 3216-3219, 2001.; Hodges , 2014HODGES, S. J. et al. The association of age of toilet training and dysfunctional voiding. Research and Reports in Urology, v. 6, p. 127-130, 2014.; Mota; Barros, 2008MOTA, D. M.; BARROS, A. J. D. Treinamento esfincteriano: métodos, expectativas dos pais e morbidades associadas. Jornal de Pediatria, v. 84, n. 1, p. 9-17, 2008.; Von Gontard, 2003). A falha no treinamento de controle esfincteriano pode resultar, ainda, em higiene pessoal diminuída, desconforto físico, participação social reduzida e enfrentamento de preconceitos e estigmas (Cicero; Pfadt, 2002CICERO, F. R.; PFADT, A. Investigation of a reinforcement-based toilet training procedure for children with autism. Research in Developmental Disabilities, v. 23, n. 5, p. 319-331, 2002.). A dificuldade de controle noturno da urina está associada a risco aumentado para depressão e comportamento agressivo na adolescência, os quais, por sua vez, mostraram-se fatores de risco para comportamentos suicidas (Liu; Sun, 2005LIU, X.; SUN, Z. Age of attaining nocturnal bladder control and adolescent suicidal behavior. Journal of Affective Disorders, v. 87, n. 2-3, p. 281-289, 2005.). Fatores fisiológicos, psicológicos e socioculturais influenciam o aprendizado do controle esfincteriano (Solarin ., 2017SOLARIN A. U. et al. Toilet training practices in Nigerian children. South African Journal of Child Health, v. 11, n. 3, p. 122-128, 2017.). Para que a criança adquira independência no uso do banheiro, é necessário que apresente desenvolvimento da linguagem, além de domínio motor, sensorial, neurológico e social (Schum , 2002SCHUM, T. R. et al. Sequential acquisition of toilet-training skills: a descriptive study of gender and age differences in normal children. Pediatrics, v. 109, n. 3, 2002.). Geralmente, espera-se que a criança seja capaz de sentar, levantar, caminhar, falar, entender e seguir orientações e tirar a roupa para realizar esta atividade com êxito (Mota; Barros, 2008). Crianças que ainda não desenvolveram essas habilidades, por algum motivo, necessitam da implementação de estratégias facilitadoras do processo, que possibilitem o desfralde a despeito do déficit motor ou de linguagem, por exemplo.

O transtorno do espectro autista (TEA) é caracterizado como um distúrbio do neurodesenvolvimento que tem início precoce, causando prejuízos nas habilidades sociais e de comunicação, além de apresentar comportamentos, interesses e atividades restritos e/ou repetitivos (APA, 2022). O TEA é visto como um espectro que pode variar em gravidade e muitos indivíduos com esse transtorno requerem algum tipo de suporte (Lord , 2018LORD, C. et al. Autism spectrum disorder. The Lancet, v. 392, n. 10146, p. 508-520, 2018.) para desenvolverem habilidades e para desempenharem suas atividades cotidianas.

Para crianças com TEA, o processo de treinamento para controle dos esfíncteres pode apresentar peculiaridades e algumas dificuldades adicionais podem ser enfrentadas para: identificação da vontade/necessidade de eliminação da urina ou fezes; comunicação e linguagem; compreensão de comandos; habilidades para despir-se e vestir-se e para uso de papel higiênico. As alterações sensoriais e a rigidez em relação a rotinas também são fatores que podem levar à incontinência de longo prazo; à evitação do uso do banheiro; e à dificuldade de realizar suas eliminações no vaso sanitário, caso já tenham aprendido a evacuar ou urinar em outros dispositivos ou ao ar livre (Bird ., 2022BIRD, F. et al. Health monitoring of students with autism spectrum disorder: Implementation integrity and social validation of a computer-assisted bowel movement tracking system. Behavioral Interventions, v. 37, p. 766-776, 2022.; Cagliani 2021CAGLIANI, R. R.; SNYDER, S. K.; WHITE, E. N. Classroom-based intensive toilet training for children with autism spectrum disorder. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 51, p. 4436-4446, 2021.; Francis; Mannion; Leader, 2017FRANCIS, K.; MANNION, A.; LEADER, G. The assessment and treatment of toileting difficulties in individuals with Autism Spectrum Disorder and other developmental disabilities. Review Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 4, p. 190-204, 2017.; Soutinho; Corrêa; Blascovi-Assis, 2020SOUTINHO, R. S. R.; CORRÊA, A. G. D.; BLASCOVI-ASSIS, S. M. Controle esfincteriano em crianças com Transtorno do Espectro do Autismo. In: SEABRA, A. G. et al. (Orgs.). Estudos interdisciplinares em saúde e educação nos Distúrbios do Desenvolvimento. São Paulo: Memnon, 2020.).

Após revisão da literatura, Francis, Mannion e Leader (2017FRANCIS, K.; MANNION, A.; LEADER, G. The assessment and treatment of toileting difficulties in individuals with Autism Spectrum Disorder and other developmental disabilities. Review Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 4, p. 190-204, 2017.) referiram que os artigos existentes destacam as dificuldades da população com TEA para aquisição de controle esfincteriano e uso do banheiro e indicam a necessidade de programas de treinamento (citando uso de vídeos educativos para imitação pela criança; idas periódicas programadas ao banheiro; e remoção das fraldas para que a criança sinta incômodo por estar com as roupas molhadas); entretanto, não oferecem informações suficientes sobre como implementar esses treinos. Não foram encontrados estudos brasileiros que apresentem programas de treinamento de controle esfincteriano de crianças com TEA. O que existe na literatura nacional são apenas recomendações, tais como: desenvolver uma rotina com atenção aos horários; viabilizar um sistema de comunicação para as necessidades; planejar o vestuário agilizando as tentativas; fazer uso de recursos visuais; identificar áreas que podem se apresentar como problema (por exemplo, o som da descarga); elogiar e reforçar positivamente o sucesso durante o processo; praticar as tentativas em diversos ambientes para generalizar o ato (Soutinho; Corrêa; Blascovi-Assis, 2020SOUTINHO, R. S. R.; CORRÊA, A. G. D.; BLASCOVI-ASSIS, S. M. Controle esfincteriano em crianças com Transtorno do Espectro do Autismo. In: SEABRA, A. G. et al. (Orgs.). Estudos interdisciplinares em saúde e educação nos Distúrbios do Desenvolvimento. São Paulo: Memnon, 2020.).

Considerando-se os impactos negativos fisiológicos, emocionais ou comportamentais, a curto e longo prazo, do insucesso do treinamento do controle esfincteriano (Cicero; Pfadt, 2002CICERO, F. R.; PFADT, A. Investigation of a reinforcement-based toilet training procedure for children with autism. Research in Developmental Disabilities, v. 23, n. 5, p. 319-331, 2002.; Choby; George, 2008CHOBY, B. A.; GEORGE, S. Toilet training. American Family Physician, v. 78, n. 9, 1059-1064, 2008.; Hellström; Sillén, 2001HELLSTRÖM, A. L.; SILLÉN, U. Early potty training advantageous in bladder dysfunction decreases the risk of urinary infection. Lakartidningen, v. 98, n. 28-29, p. 3216-3219, 2001.; Hodges ., 2014HODGES, S. J. et al. The association of age of toilet training and dysfunctional voiding. Research and Reports in Urology, v. 6, p. 127-130, 2014.; Liu; Sun, 2005LIU, X.; SUN, Z. Age of attaining nocturnal bladder control and adolescent suicidal behavior. Journal of Affective Disorders, v. 87, n. 2-3, p. 281-289, 2005.; Mota; Barros, 2008MOTA, D. M.; BARROS, A. J. D. Treinamento esfincteriano: métodos, expectativas dos pais e morbidades associadas. Jornal de Pediatria, v. 84, n. 1, p. 9-17, 2008.; Von Gontard, 2003), faz-se necessário aprofundar o conhecimento sobre técnicas e estratégias realmente eficazes para o desfralde de crianças com TEA.

Acredita-se que, ao investigar como ocorreu este processo para crianças autistas que já conseguiram desfraldar, identificando as principais dúvidas que permearam o processo, quais estratégias auxiliares funcionaram ou não, pode-se reunir conhecimentos que serão extremamente úteis para profissionais que lidam com esta clientela. Desta forma, este estudo teve por objetivo compreender como se deu o processo de treinamento esfincteriano de crianças com TEA.

Método

Estudo retrospectivo, descritivo, de análise qualitativa, submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, tendo sido aprovado (parecer 5.301.424).

Através da divulgação em redes sociais, os cuidadores foram convidados a participar do estudo. Os critérios de inclusão foram: cuidadores de crianças com diagnóstico de TEA, entre 2 e 6 anos, que já haviam concluído o processo de treinamento esfincteriano. Limitamos a idade das crianças para o máximo de seis anos, pois normalmente nesta idade esse treinamento já ocorreu, e não há muito tempo, para não interferir negativamente na memória dos fatos.

Considera-se importante destacar que, embora não fosse um critério de inclusão, apenas cuidadoras mulheres se interessaram em participar da pesquisa. Assim, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com estas cuidadoras, em ambiente virtual, no período de junho a julho de 2022, as quais foram gravadas. As entrevistas foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo (Mayan, 2001MAYAN, M. J. Una introducción a los métodos cualitativos: módulo de entrenamiento para estudiantes y profesionales. Edmonton: Qual Institute Press, 2001.). Assim, inicialmente foi realizada uma leitura exaustiva do material, seguida pela categorização dos dados, sendo que as categorias de análise foram criadas e discutidas por duas pesquisadoras. Em seguida, foi realizada a integração das categorias em temas mais amplos, de modo a representarem as estratégias e recursos utilizados no processo de desfralde das crianças autistas.

Na apresentação dos depoimentos selecionados para ilustrar os temas, utilizou-se a letra P, ao final dos mesmos, numerados de 1 a 7, para representar as participantes da pesquisa.

Resultados

Participaram da pesquisa sete cuidadoras de crianças com TEA, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1
Informações sobre as participantes e as crianças sob seus cuidados

Diversos motivos levaram as cuidadoras a iniciarem o treinamento de controle esfincteriano, tais como: questões culturais, pressão da sociedade, observação do desfralde de crianças típicas e sinais de prontidão. Também vale destacar que as crianças verbalizavam pouco ou nada quando iniciaram o processo, mas possuíam aspectos motores compatíveis com o desenvolvimento esperado para a idade. Não houve colaboração de terapias, exceto em um dos casos, em que houve ajuda de uma “terapeuta comportamental” (a mãe não sabe referir a formação).

O processo de análise dos dados permitiu a identificação de quatro grandes categorias: treinamento de controle esfincteriano para urinar; treinamento de controle esfincteriano para evacuação; estratégias auxiliares; e dificuldades no processo.

Treinamento de controle esfincteriano para urinar

O controle esfincteriano para urinar foi alcançado primeiro em todas as crianças participantes, em comparação com o controle para evacuar:

[...] esse foi o mais fácil. Quando ele começou a puxar a fralda, que a gente viu que ele tirava pra fazer o xixi, a gente começou a deixar ele sem [...] eu continuei colocando a fralda por causa do cocô, que foi mais trabalhoso. Mas aí quando ele puxava, eu já levava ele pro banheiro (P7).

As cuidadoras observaram os sinais que as crianças apresentavam antes de urinar:

[...] ela corria pro banheiro ou às vezes ela fazia aquela posição que a gente chama de joelhinho do Quico (do Chaves) (P4);

[...] pelas feições do rosto mesmo eu via que ele tava querendo (P6).

Alguns referiram levar a criança ao banheiro regularmente, não esperando nenhum sinal:

[...] eu me antecipava, eu levava ele ocasionalmente de hora em hora, uma hora e meia, duas... aí primeiro era uns intervalos menores e depois eu fui espaçando (P6).

Observou-se que, na maioria dos casos, o desfralde diurno e noturno foi feito em duas etapas:

[...] a gente tirou de dia primeiro e à noite eu só tirei quando eu senti segurança. Cerca de 1 semana de fralda limpinha, aí eu fui tirando (P4).

Entretanto, em uma das entrevistas a cuidadora destacou que o controle esfincteriano ocorreu primeiro no período noturno:

[...] do nada ele parou de fazer xixi à noite [...] quando eu vi que dois dias com a fralda ele já parou de fazer [...] eu falava pra ele “hora do xixi, vamos fazer o último xixi pra gente deitar” aí eu levava ele no banheiro e a gente deitava. Até então ele ‘tava’ mamando às 3 horas da manhã, quando ele acordava pra mamar eu levava ele pro banheiro, aí ele ia até às 6 horas, então às 6 horas ele já acordava, eu levava ele pro banheiro (P1).

Alguns evitavam dar líquidos no período noturno, buscando minimizar escapes:

[...] não dava muito líquido de hora dessas em diante [16 horas] (P6);

[...] eu evitava dar líquido depois das 20:30 (P7).

Com relação ao treino para urinar fora de casa, as cuidadoras tentavam antecipar a ida ao banheiro para evitar que a criança sentisse vontade enquanto estivesse fora:

[...] a gente vai sair pra alguma terapia, eu levo sempre ele no banheiro, mesmo ele não falando nada (P2).

Cabe ressaltar que o desfralde fora de casa ocorreu com algumas inseguranças das cuidadoras:

[...] o sair é mais medo nosso do que medo deles [...] o receio de sair de casa era mais meu (P1).

Treinamento de controle esfincteriano para evacuação

As cuidadoras apontaram que o treinamento de controle de esfíncteres para evacuar ocorreu posteriormente ao controle para urinar e que foi o mais desafiador:

[...] o cocô foi mais difícil. O cocô ele demorou mais (P2).

Houve relatos de que algumas crianças já tinham dificuldade habitual para evacuar:

[...] ele tinha muita dificuldade para fazer o cocô mesmo [...] às vezes demorava uma semana pra fazer. Então, o cocô sempre era uma coisa meio traumática. Ele fazia muito espaçado, o volume do cocô dele era muito grande [...] ele não gostava de fazer cocô em qualquer lugar, fosse na fralda, no banheiro, e no banheiro ficava mais nervoso e agitado (P5).

Porém, nenhuma cuidadora soube explicar o motivo da dificuldade. Foi apontada, ainda, a dificuldade de a criança aceitar o uso do vaso sanitário para evacuar:

[...] ele não queria sentar no vaso de jeito nenhum, ele trancava, ele não conseguia fazer (P7).

Uma cuidadora relatou sobre como ensinou seu filho que as fezes deveriam ser feitas no vaso sanitário:

[...] eu pegava o cocô do [nome da criança], mostrava pra ele e falava “aqui é o seu cocô”. Levava até o vaso e jogava dentro do vaso e mostrava pra ele a descarga (P1).

Foi relatado incômodo da criança com as fezes na roupa ou na fralda:

[...] ele começou a se incomodar com o cocô na roupa, porque na hora que ele fazia, ele já vinha correndo falar que era pra tirar, que ele não queria (P2);

[...] inicialmente ele fazia na roupa e daí era outro problema, porque cada vez que ele fazia na roupa era outro desespero, porque ele não gosta de ficar sujo, daí tinha que dar banho (P7).

Inclusive, essa foi uma preocupação de uma cuidadora em relação ao desfralde noturno:

[...] eu continuei usando a fralda a noite por um período, para eu ter segurança e porque ela tem muito nojo do cocô, então se ela fizesse na cama, nossa, ia me dar um trabalho pra ela deitar nessa cama de novo (P4).

Foram apontados alguns sinais que as crianças apresentavam quando iam evacuar e que auxiliaram as cuidadoras a perceberem o momento de levar as crianças ao banheiro:

[...] quando eu percebia que ele fazia uma “forcinha” eu tirava a fralda dele, levava ele, sentava ele no vaso (P1).

[...] ele fazia umas carinhas (P6);

[...] quando ele ficava mais no cantinho, ficava dando um passinho, aí a gente percebia que ele queria fazer (P5).

Além dos sinais comportamentais, algumas cuidadoras observaram a rotina da criança, procurando levá-las ao banheiro nos horários em que tinham o hábito de evacuar:

[...] era geralmente depois da refeição, do almoço. Eu colocava ele depois do almoço e acabou tendo essa rotininha (P6).

Foram relatados alguns cuidados em relação ao treinamento para evacuação fora de casa:

[...] quando ele queria fazer cocô, eu ficava segurando ele pra ele sentir segurança que ele não ia cair (P2);

[...] a primeira coisa que eu faço na hora que eu chego em qualquer ambiente, eu mostro o banheiro e peço pra ele me mostrar [...]. Sempre levo uma garrafinha de água, se ele fizer eu vou limpar ele, e uma troca de roupa (P1).

Estratégias auxiliares

Como estratégias auxiliares, identificou-se o uso de acessórios e recursos lúdicos; e estratégias comportamentais, tais como reforço positivo, punição positiva e punição negativa.

Utilização de acessórios e recursos lúdicos

As cuidadoras adquiriram acessórios visando auxiliar o processo de desfralde, tais como penico, assento redutor e banco para apoio dos pés:

[...] a gente usou o penico e o redutor e o banquinho pra ele pisar quando ele tava no vaso (P5);

[...] do xixi eu comprei aquele… é tipo um mictório, que é um sapinho (P1).

Entretanto, algumas crianças não aceitaram determinados recursos:

[...] ela não fez uso de ‘troninho’, ela não se adaptou com nenhum tipo, nem musical, nem dos mais simples. O que a gente usou foi o redutor de assento (P4);

[...] eu tinha o penico, mas no penico ele não quis fazer (P2).

Foram também utilizados diversos recursos lúdicos e faz de conta para distrair a criança enquanto usava o banheiro, e também para ensinar sobre o uso do vaso sanitário:

[...] eu ‘botava’ um urso sentado do lado dele no vaso pra fazer o cocô e eu amassava papel higiênico com água pra dizer que o ursinho tinha feito o cocozinho [...] às vezes eu levava aqueles livrinhos de plástico (P7).

[...] mostrava muito desenho pra ele de xixi [...]. Eu pegava uma seringuinha e ”botava” perto do bonequinho, aí fingia que o boneco “tava” querendo fazer xixi, aí levava no peniquinho (P5);

[...] livro do cocô, que é um livro que abre as páginas e é bem interativo de ficar abrindo e fechando. A gente usou esse, a gente usou um de banho que ele tem textura plástica também e eu usei bastante joguinhos também. Então eu peguei alguns personagens de borracha pra ela ficar brincando, levando ao banheiro, a menininha comia e tinha que ir ao banheiro e usei também recursos de vídeo (P4).

O celular se destacou por ser um recurso muito utilizado durante o treinamento esfincteriano:

[...] realmente eu acho que o que mais entretia ele era o celular (P2);

[...] às vezes levava o celular junto (P3).

Reforço positivo

O reforço positivo foi uma estratégia utilizada para facilitar a compreensão da criança sobre o que era esperado que ela fizesse e para estimular que ela repetisse a ação:

[...] a gente batia muita palma, vibrava cada vez que ele conseguia. Então por muito tempo fazia o xixi ou o cocô, batia palma e ia tentar puxar a descarga para fazer o resto do processo (P7).

Este reforço positivo foi utilizado também através de recompensas:

[...] eu usei recompensa: você faz xixi e eu te dou doce (P2);

[...] quando eu ia no banheiro, eu levava ele comigo e falava: olha, o cocô é legal! Se você fizer o cocô aqui a mamãe vai dar o celular, você quer o celular? (P1).

Punições

Ainda em relação às estratégias comportamentais, foram relatados o uso de punições negativas e positivas, visando a extinção de determinado comportamento indesejado, como evacuar fora do vaso sanitário, por exemplo:

O [nome da criança] gosta muito de água e ele fica dentro de uma bacia lá em casa. Já aconteceu dele fazer cocô dentro da bacia, já aconteceu umas quatro vezes, eu pegar a água da bacia, tirar, jogar fora e falar pra ele: cocô não é aqui, cocô é aqui [mostrando o vaso sanitário], se você fizer cocô dentro da bacia, a mamãe vai tirar a bacia (P1).

Neste exemplo, a criança perdeu a oportunidade de brincar na água e a mãe utilizou o recurso da punição negativa ao retirar os recursos lúdicos e da punição positiva ao fazer ameaça. Obteve-se ainda outros relatos de ameaças:

[...] eu falo: olha, você tá fazendo xixi na roupa? Eu vou lá pegar uma fralda da [nome da prima bebê] e pôr em você (P4).

Dificuldades no processo

Foram relatadas diversas dificuldades tanto por parte das crianças quanto por parte das cuidadoras. Em relação às crianças, algumas apresentaram dificuldade de compreensão:

[...] ele pegava o cocô e às vezes até tentava colocar na boca (P1);

[...] ele fazia o cocô no chão e brincava como se fosse massinha, passava no chão, nos brinquedos (P3);

[...] ele fazia xixi na roupa e ainda batia palma (P7).

Regressões foram relatadas por mudanças de rotina ou de estações do ano:

[...] mudava a rotina aí ele voltava a usar fralda (P5);

[...] quando começou esse frio, ele ”tava” fazendo todo dia xixi a noite, aí eu comecei a colocar fralda (P2);

[...] agora, na segunda tentativa de desfralde, que houve atualização familiar de divórcio, aí esse daí foi mais demorado [...] aí era uma demonstração de descontentamento (P4).

Outra dificuldade referida foi a de todas as pessoas envolvidas no cuidado das crianças manterem a rotina do desfralde:

[...] ficava lá, fazendo tudo certinho no peniquinho, aí quando ia pra outro lugar, as pessoas não mantinham. Até mesmo meu marido… às vezes eu ficava com o [nome da criança] e ele fazia tudo certinho, aí quando ia ficar só com meu marido, ele já botava fralda logo (P5).

As cuidadoras relataram ainda suas próprias dificuldades no processo de treinamento, algumas de ordem emocional, tais como insegurança, frustrações e sentimentos de solidão, e outras de ordem física, devido à intenso cansaço/exaustão:

[...] teve as dificuldades, ficava assim mais pelo cocô [...] a gente deixava a fralda pra ver se ele ia fazer, pra não sujar muito as coisas na casa dos outros e aí acabava que voltou a fazer xixi também na fralda (P6);

[...] eu não sabia como lidar com a situação, que regras utilizar (P4);

[...] teve momentos que eu não sabia mais o que fazer. Eu lia quinhentos milhões de coisas a respeito e não, na verdade não tem nenhum manual que ensine a gente. Eu tive que ter muita paciência, mas às vezes eu ia lá na frente da casa, chorava, voltava, respirava (P7).

Discussão

A maioria das crianças cujas cuidadoras participaram da pesquisa eram do sexo masculino, sendo um total de 6 entre 7, o que condiz com estudos que afirmam que há maior prevalência de TEA em meninos (Baio 2018BAIO, J. et al. Prevalence of autism spectrum disorder among children aged 8 years. Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 sites, United States, 2014. Morbidity and Mortality Weekly Report. Surveillance Summaries, v. 67, n. 6, p. 1-23, 2018.; Li , 2022LI, Q. et al. Prevalence of autism spectrum disorder among children and adolescents in the United States from 2019 to 2020. JAMA Pediatrics, v. 176, n. 9, p. 943-945, 2022.).

A expectativa de retirada precoce das fraldas vem sendo substituída por maior tolerância de idade para o treinamento esfincteriano (Clifford , 2000CLIFFORD, T. et al. Toilet learning: antecipatory guidance with a child-oriented approach. Paediatrics & Chid Health, v. 5, n. 6, p. 333-335, 2000.; Mota; Barros, 2008MOTA, D. M.; BARROS, A. J. D. Treinamento esfincteriano: métodos, expectativas dos pais e morbidades associadas. Jornal de Pediatria, v. 84, n. 1, p. 9-17, 2008.). Estudos recentes indicam que a maioria das crianças típicas não desfraldam totalmente antes dos 36 meses (Mrad , 2019MRAD, F. C. C. et al. Treinamento esfincteriano. Manual de Orientação - documento conjunto Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Urologia. 2019. 11 p.), o que é influenciado pelas crenças dos cuidadores acerca de qual a idade correta, pelo método usado para realizar o treino de uso do banheiro, bem como uso de fraldas descartáveis e falta de tempo dos pais (Choby; George, 2008CHOBY, B. A.; GEORGE, S. Toilet training. American Family Physician, v. 78, n. 9, 1059-1064, 2008.; Schum et al., 2001; Van Nunen et al., 2015).

No presente estudo, houve relatos de espera dos sinais de prontidão da criança para iniciar o treino de controle dos esfíncteres, o que é condizente com o recomendado pela Abordagem Orientada para a Criança, indicada pela Academia Americana de Pediatria, que preconiza que as crianças não sejam forçadas a iniciar o processo de desfralde até que apresentem os sinais (Choby; George, 2008CHOBY, B. A.; GEORGE, S. Toilet training. American Family Physician, v. 78, n. 9, 1059-1064, 2008.; Mrad , 2019MRAD, F. C. C. et al. Treinamento esfincteriano. Manual de Orientação - documento conjunto Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Urologia. 2019. 11 p.), sendo que os principais são: imitar o comportamento dos cuidadores; andar e estar apto a sentar de forma estável e sem ajuda; entender e seguir comandos simples; pegar pequenos objetos; puxar as roupas para cima e para baixo; usar palavras, expressões faciais ou movimentos que indicam necessidade de urinar ou evacuar; sinalizar aos pais que acabou de evacuar ou urinar na fralda; se incomodar com a fralda molhada; ficar parado no penico ou vaso sanitário por 3 a 5 minutos (Kaerts , 2012KAERTS, N. et al. Readiness signs used to define the proper moment to start toilet training: a review of the literature. Neurourology Urodynamics, v. 31, n. 4, p. 437-440, 2012.; Mrad et al., 2019).

Observou-se que, em alguns casos, os pais não observaram os sinais de prontidão, mas optaram por iniciar o treino de desfralde devido à idade tipicamente esperada ou então por pressão de outros familiares. Nesses casos, o treinamento exigiu mais tempo e paciência, o que confirma os indicativos da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Sociedade Brasileira de Urologia (Mrad , 2019MRAD, F. C. C. et al. Treinamento esfincteriano. Manual de Orientação - documento conjunto Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Urologia. 2019. 11 p.), visto que a criança ainda não estava fisiologicamente pronta ou não compreendia a situação. Cabe considerar que a falta de verbalização por parte das crianças foi um fator que dificultou o processo, porém não foi impeditivo do sucesso do desfralde. A maior dificuldade de os pais compreenderem a criança que ainda não fala acarretou maiores dúvidas para realizarem o treino de controle esfincteriano, como também foi apontado no estudo de Patriota (2020).

As cuidadoras relataram que o sucesso do treinamento para urinar ocorreu antes do controle para evacuar, assim como no estudo de Miranda e Machado (2011MIRANDA, J. E. G. B.; MACHADO, N. C. Treinamento esfincteriano anal: estudo transversal em crianças de 3 a 6 anos de idade. Revista Paulista de Pediatria, v. 29, n. 3, 2011.). Porém, estes dados diferem dos resultados do estudo de Schum (2002SCHUM, T. R. et al. Sequential acquisition of toilet-training skills: a descriptive study of gender and age differences in normal children. Pediatrics, v. 109, n. 3, 2002.), o qual indicou que as crianças adquiriram primeiro o controle das fezes. Von Wendt et al. (1990) estudaram especificamente crianças com deficiência intelectual e encontraram que, na maioria dos casos, o controle das fezes ocorreu primeiro, entretanto, aos sete anos, 30,5% das crianças permaneciam com encoprese e 19% aos 20 anos. Os autores sugerem que técnicas eficazes de treinamento de esfíncteres poderiam melhorar esses números.

Algumas crianças possuíam dificuldades habituais para a evacuação. Muitas crianças com TEA apresentam alterações gastrointestinais, manifestando problemas de eliminação, como incontinência fecal, prisão de ventre e diarreia (Vilela , 2019VILELA, D. A. M.; NASCIMENTO, H. B.; PALMA, S. M. M. Disfunção gastrointestinal no transtorno do espectro autista e suas possíveis condutas terapêuticas. Revista Debates in Psychiatry, v. 9, n. 4, p. 34-42, 2019.; Bird ., 2022BIRD, F. et al. Health monitoring of students with autism spectrum disorder: Implementation integrity and social validation of a computer-assisted bowel movement tracking system. Behavioral Interventions, v. 37, p. 766-776, 2022.). Esses problemas podem ser o resultado de atividade parassimpática prejudicada, resposta endocrinológica ao estresse aumentada, disbiose, alergias alimentares, dietas restritivas de fibras e efeitos colaterais de medicamentos (Bird et al., 2022), reforçando a importância de um acompanhamento médico nestes casos.

Foram observados relatos de dificuldades para aceitar o uso do vaso sanitário para evacuar. Como não houve este relato pela cuidadora da única menina participante deste estudo, inferimos que o aprendizado pode ser mais demorado para os meninos devido a precisarem aprender a usar o banheiro de duas formas diferentes: para urinar e para evacuar, ou seja, na posição em pé e sentado (Schum , 2002SCHUM, T. R. et al. Sequential acquisition of toilet-training skills: a descriptive study of gender and age differences in normal children. Pediatrics, v. 109, n. 3, 2002.). Algumas crianças têm medo do barulho da descarga ou até mesmo de cair dentro do vaso sanitário (Mrad ., 2019MRAD, F. C. C. et al. Treinamento esfincteriano. Manual de Orientação - documento conjunto Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Urologia. 2019. 11 p.) e a dificuldade para aceitar variações na rotina também pode gerar oposição e contrariedade por parte da criança com TEA.

Algumas crianças se incomodavam com a presença das fezes na roupa ou na fralda, o que gerava receio nos pais, por medo das fezes vazarem na cama e a criança se recusar a deitar novamente naquele local. Por outro lado, foram citados casos em que a criança pegava as fezes, brincava como se fosse massinha de modelar ou tentava colocar na boca, evidenciando ausência de sensações de nojo (habitualmente associadas a estas situações, em nossa cultura) ou de incômodo com o odor. Além da importância do desenvolvimento cognitivo e do comportamento adaptativo para a criança aprender o que fazer após evacuar, há que se considerar ainda fatores sensoriais associados com a forma de lidar com as fezes (Soutinho; Corrêa; Blascovi-Assis, 2020SOUTINHO, R. S. R.; CORRÊA, A. G. D.; BLASCOVI-ASSIS, S. M. Controle esfincteriano em crianças com Transtorno do Espectro do Autismo. In: SEABRA, A. G. et al. (Orgs.). Estudos interdisciplinares em saúde e educação nos Distúrbios do Desenvolvimento. São Paulo: Memnon, 2020.). Sabe-se que grande parte das crianças com TEA possuem alterações no processamento sensorial (Almohalha, 2020ALMOHALHA, L. Intervenção de Terapia Ocupacional junto a crianças com transtorno do processamento sensorial. In: PFEIFER, L. I.; SANT’ANNA, M. M. M. (org.). Terapia Ocupacional na infância: procedimentos na prática clínica. São Paulo: Memnom, 2020. p. 220-231.; Tomchek; Dunn, 2007TOMCHEK, S. D.; DUNN, W. Sensory processing in children with and without autism: a comparative study using the short sensory profile. American Journal of Occupational Therapy, v. 61, n. 2, p. 190-200, 2007.), sendo que as desordens mais relatadas envolvem alterações na modulação sensorial, as quais consistem em respostas de intensidades anormais a estímulos sensoriais, levando a um comprometimento funcional, e podem ser divididas em três categorias: a hiperresposta, hiporresposta e busca sensorial. A hiperresposta envolve uma reação negativa intensa aos estímulos sensoriais, levando à evitação ou hipervigilância, enquanto indivíduos hiporresponsivos deixam de perceber ou respondem lentamente a estímulos. Crianças que apresentam comportamentos de busca sensorial, procuram experiências sensoriais às vezes incomuns para o restante da população (Hazen , 2014HAZEN, E. P. et al. Sensory symptoms in autism spectrum disorders. Harvard Review of Psychiatry, v. 22, n. 2, p. 112-124, 2014.).

Alguns gestos/ações apresentados pelas crianças, antes de evacuarem ou urinarem, auxiliaram as cuidadoras a entenderem o momento de levar as crianças ao banheiro, tais como: fazer força, expressões faciais, posições específicas com as pernas e se isolar em algum canto da casa, o que vai ao encontro do indicado por Schmitt (2004SCHMITT, B. D. Toilet training your child: the basics. Contemporary Pediatrics, v. 21, n. 3, p. 120-122, 2004.) e Figueiredo (2017FIGUEIREDO, R. I. C. Scoping review: vídeos de profissionais de saúde publicados online sobre a aquisição do controlo dos esfíncteres dirigidos a pais de crianças. 2017. Dissertação (Mestrado Integrado em Psicologia) - Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017.), de que há alguns sinais corporais que costumam ser observados quando a criança sente vontade de urinar ou defecar, como: fazer caretas, movimentar as pernas trancando os genitais, puxar as fraldas, segurar a área dos genitais, agachar, aumentar a movimentação andando de um lado para o outro, pulando ou dançando ou fazer silêncio e parar repentinamente a movimentação.

A observação da rotina da criança também colaborou para as cuidadoras se anteciparem e levarem a criança ao banheiro em seus horários habituais de evacuação ou regularmente para urinar, iniciando com intervalos menores e depois aumentando o intervalo de tempo. Nos estudos de Yang, Zhao e Chang (2011YANG, S. S.-D.; ZHAO, L.-L.; CHANG, S.-J. Early initiation of toilet training for urine was associated with early urinary continence and does not appear to be associated with bladder dysfunction. Neurourology and Urodynamics, v. 30, n. 7, p. 1253-1257, 2011.) e de Rinald e Miranda (2012RINALD, K.; MIRENDA, P. Effectiveness of a modified rapid toilet training workshop for parents of children with developmental disabilities. Research in Developmental Disabilities, v. 33, n. 3, p. 933-943, 2012.), os pais também levavam a criança ao banheiro em horários fixos e intervalos regulares. Os vídeos instrucionais revisados por Figueiredo (2017FIGUEIREDO, R. I. C. Scoping review: vídeos de profissionais de saúde publicados online sobre a aquisição do controlo dos esfíncteres dirigidos a pais de crianças. 2017. Dissertação (Mestrado Integrado em Psicologia) - Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017.) ensinavam os pais a, durante o período de treinamento esfincteriano, estabelecerem idas frequentes ao banheiro e convidarem a criança a sentarem-se no vaso ou penico em horários previsíveis de eliminação de urina ou fezes, de acordo com os hábitos da criança.

No presente estudo, as cuidadoras se antecipavam também às saídas de casa, levando antes a criança ao banheiro, evitando ter que usar banheiros públicos, o que pode ser mais difícil para crianças com TEA, por ser um local diferente do seu habitual e porque diante de tantos estímulos, ao estar fora de casa, pode ser mais difícil a criança perceber a vontade de urinar ou defecar e ainda conseguir sinalizar às cuidadoras.

O controle esfincteriano diurno foi o que ocorreu primeiro na maioria das crianças, com exceção de uma (a qual conseguiu primeiro desfraldar a noite, pois sua cuidadora a levava ao banheiro antes de dormir, no meio da madrugada e ao despertar). O mesmo também ocorreu no estudo de Mota (2010MOTA, D. M. et al. Longitudinal study of sphincter control in a cohort of Brazilian children. Jornal de Pediatria, v. 86, n. 5, p. 429-434, 2010.), que encontrou uma média de 25,2 meses de idade para a criança desfraldar durante o dia, e uma média de 27,4 meses para o não necessitar mais de fraldas à noite. Para ajudar no desfralde noturno, muitos evitavam oferecer líquidos para a criança próximo ao horário de dormir, e esta estratégia é citada na literatura da área como eficaz (Meneses, 2001MENESES, R. P. Enurese noturna monossintomática. Jornal de Pediatria, v. 77, n. 3, p. 161-168, 2001.; Soares 2005SOARES, A. H. R. et al. A enurese em crianças e seus significados para suas famílias: abordagem qualitativa sobre uma intervenção profissional em saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, v. 5, n. 2, p. 301-311, 2005.).

Dentre as estratégias auxiliares para o treinamento esfincteriano, citadas pelas cuidadoras, destaca-se a utilização de acessórios e de recursos lúdicos. Os dispositivos auxiliares usados foram: penico, redutor de assento, banquinho para apoio dos pés e mictório. Porém, algumas crianças não aceitaram esses recursos. Quando os pais optam pelo uso do vaso sanitário, é importante orientar o uso de redutor de assento, bem como o uso de um apoio para os pés da criança, a fim de que ela sinta maior segurança para subir no vaso e durante o uso do mesmo, além de favorecer a posição de evacuação (Clifford 2000CLIFFORD, T. et al. Toilet learning: antecipatory guidance with a child-oriented approach. Paediatrics & Chid Health, v. 5, n. 6, p. 333-335, 2000.; Mrad , 2019MRAD, F. C. C. et al. Treinamento esfincteriano. Manual de Orientação - documento conjunto Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Urologia. 2019. 11 p.). Acredita-se que o uso do redutor de assento pode facilitar o desfralde da criança autista, devido às características de rigidez com a rotina presentes no TEA, pois a criança já se habitua ao uso do vaso sanitário, sendo mais fácil expandir esse uso para outros contextos extradomiciliares e não necessitando de duas etapas de modificações, como quando primeiro a criança se habitua ao penico e depois precisa utilizar o vaso sanitário.

Recursos lúdicos, tais como brincar de faz de conta, livros, desenhos infantis, jogos e celulares ajudaram a distrair a criança, para que ela permanecesse sentada no vaso sanitário e, também, para ensinar como urinar ou evacuar neste local. Rinald e Miranda (2012RINALD, K.; MIRENDA, P. Effectiveness of a modified rapid toilet training workshop for parents of children with developmental disabilities. Research in Developmental Disabilities, v. 33, n. 3, p. 933-943, 2012.) utilizaram, em seu treinamento esfincteriano de crianças autistas e/ou com deficiência intelectual, brinquedos e atividades divertidas para auxiliar as crianças a permanecerem sentadas, tais como ler livros, assistir televisão ou brincar em um notebook.

Foram identificadas estratégias comportamentais utilizadas pelas cuidadoras durante o treino de controle esfincteriano, as quais consistiram em reforço positivo, punição positiva e punição negativa. O reforço positivo é a adição de algo que resulte no fortalecimento do comportamento, ou seja, apresentação de determinado estímulo que incentive a criança a continuar realizando um comportamento indicado (Lear, 2004LEAR, K. Ajude-nos a aprender. 2. ed. Toronto, 2004.) e também apareceu como estratégia auxiliar para facilitar a compreensão da criança sobre o que se esperava que ela fizesse, estimulando a repetição da ação. O reforçamento positivo foi relatado pelas cuidadoras através de elogios e comemorações e, também, oferecendo recompensas, como doces e o uso do celular. Os mesmos recursos de reforço positivo foram citados por Kiddo (2012). Este sistema de recompensas foi utilizado em um programa desenvolvido para escolas, como forma de ajudar no treinamento do uso do banheiro por crianças com autismo e atrasos no desenvolvimento, em que era dada a recompensa à criança quando a mesma urinava no banheiro (Cocchiola Junior et al., 2012).

Já a punição, é definida como algo que tende a enfraquecer determinado comportamento (Lear, 2004LEAR, K. Ajude-nos a aprender. 2. ed. Toronto, 2004.), e pode se apresentar a partir de um estímulo adicionado ao contexto (punição positiva), como no caso das ameaças feitas pela mãe, ou através da retirada de algo prazeroso para a criança (punição negativa), como no ato da mãe retirar a bacia em que a criança estava se divertindo.

Figueiredo (2017FIGUEIREDO, R. I. C. Scoping review: vídeos de profissionais de saúde publicados online sobre a aquisição do controlo dos esfíncteres dirigidos a pais de crianças. 2017. Dissertação (Mestrado Integrado em Psicologia) - Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017.) revisou vídeos instrucionais acerca do treinamento de esfíncteres e encontrou que os pais são frequentemente orientados a manterem um ambiente encorajador e com disponibilidade dos cuidadores, os quais devem se esforçar para manterem-se pacientes e calmos, com atitudes positivas e consistentes. Nesses vídeos, era indicado o uso de estratégias de reforço positivo, elogiando ou premiando os sucessos da criança, e evitando ao máximo punições aos insucessos, bem como o uso de palavras ou expressões desagradáveis. A indicação de uso de punições durante o treino de controle esfincteriano está em desuso na literatura científica atual, e as recomendações que ainda se mantêm são menos aversivas que as do passado, envolvendo apenas repreensões verbais (Kroeger; Sorensen-Burnworth, 2009KROEGER, K. A.; SORENSEN-BURNWORTH, R. Toilet training individuals with autism and other developmental disabilities: a critical review. Research in Autism Spectrum Disorders, v. 3, n. 3, p. 607-618, 2009.). Acredita-se que, se os cuidadores tiverem acompanhamento profissional durante o processo de treinamento esfincteriano, a ocorrência do uso de punições e outras estratégias inadequadas pode diminuir.

Também foram relatadas dificuldades no processo de desfralde, por parte das crianças e por parte das cuidadoras, como: dificuldade de compreensão da criança; regressões; e falta de uniformidade de conduta por todos as pessoas responsáveis pelos cuidados da criança.

Na presença de eventos estressantes, a criança pode apresentar regressões de etapas de desenvolvimento, como, por exemplo, crianças com controles de esfíncteres já adquiridos voltarem a urinar e evacuar em locais não apropriados (Mota; Barros, 2008MOTA, D. M.; BARROS, A. J. D. Treinamento esfincteriano: métodos, expectativas dos pais e morbidades associadas. Jornal de Pediatria, v. 84, n. 1, p. 9-17, 2008.; Stadtler; Gorski; Brazelton, 1999STADTLER, A. C.; GORSKI, P. A.; BRAZELTON, B. Toilet training methods, clinical interventions, and recommendations. Pediatrics, v. 103, suppl. 3, p. 1359-1361, 1999.). São comuns regressões ou dificuldades maiores de sucesso no treino de controle esfincteriano em momentos como nascimento de irmãos, separação dos pais, mudança de casa ou outros acontecimentos que provoquem grande mudança na rotina e impacto emocional (Clifford ., 2000CLIFFORD, T. et al. Toilet learning: antecipatory guidance with a child-oriented approach. Paediatrics & Chid Health, v. 5, n. 6, p. 333-335, 2000.; Stadtler; Gorski; Brazelton, 1999). Assim, os pais devem evitar realizar o treinamento do desfralde em momentos como estes (Mrad , 2019MRAD, F. C. C. et al. Treinamento esfincteriano. Manual de Orientação - documento conjunto Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Urologia. 2019. 11 p.).

É indicado que todos os cuidadores estejam engajados no processo do treino para controle esfincteriano quando este for iniciado, pois o mesmo deve ocorrer de forma concomitante em todos os ambientes que a criança frequenta, a fim de favorecer o aprendizado e não confundir a criança com diferentes orientações (Clifford , 2000CLIFFORD, T. et al. Toilet learning: antecipatory guidance with a child-oriented approach. Paediatrics & Chid Health, v. 5, n. 6, p. 333-335, 2000.; Mrad , 2019MRAD, F. C. C. et al. Treinamento esfincteriano. Manual de Orientação - documento conjunto Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Urologia. 2019. 11 p.).

Além disso, também houve relatos de inseguranças, frustrações, sentimentos de solidão e cansaço/exaustão, por parte das cuidadoras. Sentimentos de culpa, frustração, ansiedade, depressão, perda da autoestima e estresse são comuns em pais de crianças autistas e influenciam sua qualidade de vida, variando em intensidade, a depender do grau de severidade do TEA, nível intelectual e independência da criança, além da rede de apoio social e serviços profissionais disponíveis à família (Morales, 2010MORALES, L. B. Autismo, familia y calidad de vida. Cultura, v. 24, p. 1-20, 2010.). O processo de desfralde demanda atenção e paciência dos cuidadores, diariamente, em todos os momentos que estão com a criança, durante meses (Clifford 2000CLIFFORD, T. et al. Toilet learning: antecipatory guidance with a child-oriented approach. Paediatrics & Chid Health, v. 5, n. 6, p. 333-335, 2000.), o que se intensifica no caso de crianças autistas, devido às suas dificuldades para controles dos esfíncteres (Cagliani; Snyder; White 2021CAGLIANI, R. R.; SNYDER, S. K.; WHITE, E. N. Classroom-based intensive toilet training for children with autism spectrum disorder. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 51, p. 4436-4446, 2021.) e pela ausência de manuais e de orientações profissionais para esses pais, conforme apontado pelas cuidadoras neste estudo, o que intensifica as dúvidas e inseguranças.

Na ausência de apoio profissional, é comum que os responsáveis, diante de situações novas e/ou difíceis, sigam orientações de pessoas que têm influência na vida deles, como parentes e amigos. Além disso, também seguem conhecimentos que adquiriram durante as experiências prévias vividas (Mota; Barros, 2008MOTA, D. M.; BARROS, A. J. D. Treinamento esfincteriano: métodos, expectativas dos pais e morbidades associadas. Jornal de Pediatria, v. 84, n. 1, p. 9-17, 2008.). É importante destacar o quanto o processo de treinamento esfincteriano pode ser cansativo para os cuidadores e gerar dúvidas, causando inseguranças. Por isso, é fundamental que haja um acompanhamento profissional. O terapeuta ocupacional atua nas ocupações buscando maior autonomia e independência do indivíduo nas atividades do dia a dia e, portanto, seria um profissional adequado para atuar no processo de treinamento de esfíncteres, visto que o uso do banheiro é uma das atividades de vida diária (AOTA, 2020), porém não houve citação do apoio deste profissional no processo de desfralde. Desta forma, acredita-se que este campo de atuação necessita ser aprofundado em futuras pesquisas e também na prática clínica.

Considerações finais

Este estudo evidenciou que o processo de treinamento esfincteriano é uma etapa desafiadora para as cuidadoras de crianças com TEA. Houve maior dificuldade das crianças para controlar as fezes, em comparação à urina, e o desfralde diurno e noturno, em geral, ocorreu em duas etapas. As cuidadoras utilizaram acessórios e recursos lúdicos como estratégias facilitadoras da compreensão e colaboração da criança, e usaram ainda estratégias comportamentais de reforçamento e punição. Houve dificuldades dos familiares, de ordem emocional e física. As cuidadoras não receberam ajuda profissional.

Relatos de eventos passados podem ser sempre expressados com influência do impacto emocional e das memórias construídas no período, o que pode ser considerada uma limitação deste estudo. Assim, faz-se importante destacar que houve casos em que a finalização do processo de treinamento esfincteriano ocorreu cerca de dois anos antes da entrevista. Entretanto, reforça-se que essas cuidadoras apresentaram informações bastante detalhadas acerca do processo vivenciado.

Este estudo avança no conhecimento acerca do treinamento de controle esfincteriano de crianças com TEA, indicando estratégias que possam tornar esse processo mais rápido e com menores dificuldades tanto para cuidadores quanto para as crianças, contribuindo para a capacitação de profissionais. Entretanto, estudos futuros precisam ser desenvolvidos visando aprofundar técnicas e manejos eficazes para treinamento esfincteriano de crianças com TEA.11 M. G. Bertolotto: elaboração do estudo, coleta e análise dos dados, redação do manuscrito. L. I. Pfeifer: elaboração do estudo, revisão do manuscrito. A. M. P. Sposito: elaboração do estudo, análise dos dados, redação do manuscrito.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Universidade de São Paulo (USP), pela bolsa de pesquisa concedida, e à Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP (FAEPA), pelo financiamento da publicação deste artigo.

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    M. G. Bertolotto: elaboração do estudo, coleta e análise dos dados, redação do manuscrito. L. I. Pfeifer: elaboração do estudo, revisão do manuscrito. A. M. P. Sposito: elaboração do estudo, análise dos dados, redação do manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2023
  • Revisado
    17 Jan 2024
  • Aceito
    16 Mar 2024
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