EDITORIAL: A epidemia de zika 10 anos depois: contribuições das Ciências Sociais e Humanidades

Gustavo Matta Lenir Nascimento da Silva Mariana Vercesi de Albuquerque Sobre os autores

Após quase uma década da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional no Brasil, por alteração do padrão de ocorrência de microcefalias (Brasil, 2015BRASIL. Portaria nº 1.813, de 11 de novembro de 2015. Declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) por alteração do padrão de ocorrência de microcefalias no Brasil. Brasília, 2015.), muitas questões continuam em aberto: quais as lições aprendidas? O que se sabe sobre o zika vírus e suas repercussões? Como as crianças afetadas e suas famílias estão sendo assistidas? Quais as implicações sociais, econômicas e políticas da epidemia de zika?

A epidemia da síndrome congênita do zika vírus (SCZV) ocorreu em um contexto de profunda crise política, econômica e social que se abateu sobre o país, resultando em ofensivas contra os sistemas de proteção social, piora das condições de vida e aumento das desigualdades. Além disso, o Brasil tornou-se um grande laboratório para pesquisadores de todo o mundo, trazendo desafios imensos para a cooperação internacional, o compartilhamento de dados e patógenos, e também os limites éticos da pesquisa científica durante uma emergência sanitária. O desconhecimento acerca da síndrome e as dúvidas sobre os fatores causais impulsionaram uma verdadeira corrida contra o tempo e competição entre diferentes atores – era urgente que se produzissem respostas, soluções e esclarecimentos.

As famílias afetadas foram demandadas intensivamente pela ciência, mobilizandose de forma política e solidária, a partir de encontros nas salas de espera da pesquisa e do cuidado, por meio das redes sociais, e de luta por direitos. As crianças foram exaustivamente observadas e investigadas. Aquelas que sobreviveram tiveram acesso a uma parcela dos cuidados e recursos necessários. Com as Declarações de Emergência Sanitária, sobretudo a Internacional, os incentivos financeiros para os estudos chegavam rápido e supriam, mesmo que insuficientemente, o aumento agudo de demandas de atenção à saúde daqueles que estavam sendo pesquisados. Apesar de todos os esforços, a história da epidemia de zika permanece marcada por enormes incertezas nos campos científico, político, clínico e social (Kelly et al., 2020KELLY, A. H. et al. Uncertainty in times of medical emergency: Knowledge gaps and structural ignorance during the Brazilian Zika crisis. Social Science & Medicine, 2020. Doi: https://doi.org/10.1016/ j.socscimed.2020.112787.).

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi fundamental para enfrentar a epidemia. Naquele contexto de crise, a ação dos governos federal, estaduais e municipais foi crucial para articular respostas, apesar de diferenças importantes entre eles. Mesmo após trinta anos de subfinanciamento, ainda com muitas questões para serem resolvidas e aprimoradas, é preciso reconhecer os avanços e aprendizados do SUS frente às emergências sanitárias. Desde a descoberta da SCZV até a organização de resposta em diversas frentes: pesquisa e inovação; educação, informação e comunicação; reprogramação para o cuidado necessário às crianças e famílias; reorientação das prioridades políticas e de investimentos; coordenação intergovernamental e articulação intersetorial; participação popular; fortalecimento da vigilância em saúde.

Muito se produziu de conhecimento sobre a zika e suas implicações desde o início da epidemia de SCVZ, mas as respostas não foram suficientes. As crianças e famílias afetadas ainda lutam por acesso aos cuidados em saúde necessários, em tempo e lugar oportunos. A vacina contra zika continua sendo uma promessa. Permanecem incertezas quanto à SCZV e suas consequências para o desenvolvimento infantil. São evidentes a necessidade e a importância do diálogo, das trocas e parcerias entre diferentes atores, setores, instituições, saberes e práticas para enfrentar uma situação tão complexa. As famílias e as pessoas com deficiência, organizadas ou não em movimentos sociais, continuam lutando por direitos, acesso às políticas, à mobilidade, informações, cuidado e proteção social.

O fim das Declarações de Emergência Internacional e Nacional em 2016 e 2017, respectivamente, foi seguido da invisibilidade dos impactos do ZIKV para a vida das pessoas, para os sistemas e as políticas públicas no Brasil. Houve um arrefecimento do fomento para as pesquisas, mesmo diante de incertezas sobre a possibilidade de nova epidemia de zika no âmbito global (WHO, 2022).

Diante de todos esses desafios, em 2016, a Rede Zika Ciências Sociais e Humanidades nasceu do desejo de produzir integração entre distintos campos de saber e estabelecer relações entre pesquisadores de diversas áreas, gestores, profissionais e representantes da sociedade civil – pesquisa colaborativa e engajada! Vinculada à Presidência da Fiocruz, a Rede Zika se orientou por dois objetivos principais: (a) produzir pesquisas sobre a epidemia do zika vírus, com foco nas contribuições das ciências humanas e sociais, considerando as implicações científicas, sociais e políticas das epidemias; e (b) articular as práticas da educação e da pesquisa com os conhecimentos e estratégias produzidos pelos atores afetados pela emergência.111 Para mais informações sobre a Rede Zika Ciências Sociais acesse <https://fiocruz.tghn.org/zikanetwork/>

Na Rede Zika, a SCVZ foi performada por distintos atores, por meio de diversas práticas, em diferentes versões. Essas produções evidenciam o caráter múltiplo da síndrome, sem reduzi-la a um único objeto ou realidade (Mol, 2008MOL, A. Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, J. A.; ROQUE, R. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Santa Maria da Feira: Edições Afrontamento, 2008.). Isto pode ser visto nos escritos do presente Dossiê – resultados de pesquisas que ora se apresentam. Os artigos aqui publicados trazem diferentes olhares e perspectivas sobre a síndrome e suas realidades, colocando em cena o cuidado prestado às crianças e suas famílias, a institucionalização desse mesmo cuidado, os próprios exercícios de pesquisa, o ativismo político, entre outros.

Questões que precisam se manter na pauta política e científica, sobretudo quando consideramos a produção de políticas, institucionalizações e ações adequadas à multiplicidade da SCVZ e suas realidades. O desafio de enfrentar desigualdades através do financiamento adequado do SUS para garantir oferta de serviços e organização coordenadas regional, nacional e internacionalmente. E ainda, formas de organização dos sistemas e serviços públicos que respeitem coletivos, singularidades e necessidades sociais, orientados pelas experiências coletivas territoriais.

Para a ciência e para o SUS, um grande desafio é promover a pesquisa, o desenvolvimento de soluções e a redistribuição de recursos necessários para o diagnóstico, tratamento e prevenção da zika e da SCVZ, tendo em vista o enfrentamento das desigualdades, a articulação intersetorial, a participação social e a coordenação governamental. É preciso construir conhecimento compartilhado, a fim de que a responsabilidade da produção e uso de dados e evidências seja a via de aprendizado mútuo de diferentes atores – governantes, pesquisadores, profissionais, instituições públicas e famílias. Performar a interdependência de saberes em prol da saúde e da equidade é o caminho.

Boa leitura!222 Este número temático foi financiado pelo the European Union’s Horizon 2020 Research and Innovation Programme under ZIKAlliance Grant Agreement no. 734548 e pela Wellcome Trust Grant ref number: 218750/Z/19/Z.

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    1 Para mais informações sobre a Rede Zika Ciências Sociais acesse <https://fiocruz.tghn.org/zikanetwork/>
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    2 Este número temático foi financiado pelo the European Union’s Horizon 2020 Research and Innovation Programme under ZIKAlliance Grant Agreement no. 734548 e pela Wellcome Trust Grant ref number: 218750/Z/19/Z.

Referências

  • BRASIL. Portaria nº 1.813, de 11 de novembro de 2015. Declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) por alteração do padrão de ocorrência de microcefalias no Brasil. Brasília, 2015.
  • KELLY, A. H. et al. Uncertainty in times of medical emergency: Knowledge gaps and structural ignorance during the Brazilian Zika crisis. Social Science & Medicine, 2020. Doi: https://doi.org/10.1016/ j.socscimed.2020.112787.
  • MOL, A. Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, J. A.; ROQUE, R. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Santa Maria da Feira: Edições Afrontamento, 2008.
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Zika Epidemiology Update. fev. 2022. Disponível em: <https://www.who.int/publications/m/item/zika-epidemiology-update---february-2022>. Acesso em: 8 dez. 2023.
    » https://www.who.int/publications/m/item/zika-epidemiology-update---february-2022

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Corrigido
    24 Maio 2024
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