Respostas do sistema de saúde brasileiro à emergência do Zika vírus: as distintas estratégias adotadas pelos estados do Ceará e do Rio de Janeiro

Mariana Vercesi de Albuquerque Vera Lucia Edais Pepe Lenice Gnocchi da Costa Reis Catia Veronica dos Santos Oliveira Aline de Araujo Gonçalves da Cunha Henrique Dias Sobre os autores

Resumo

O artigo analisa os casos de reprogramação do sistema de saúde em resposta à emergência de zika dos estados do Ceará (CE) e do Rio de Janeiro (RJ), no período de 2015 a 2017. A pesquisa ancorou-se na abordagem institucionalista histórica e na literatura sobre regionalização e redes de atenção à saúde. Envolveu a análise de documentos governamentais e a realização de entrevistas com atores-chave mobilizados na resposta dos estados à epidemia. Para cada estado, foram explorados, prioritariamente, os seguintes aspectos: contexto, conjuntura político-financeira e agenda da saúde no momento da epidemia; e o desenho e implementação das respostas (sentidos, atores, recursos, estratégias e repercussões). A reprogramação do sistema de saúde nos estados do CE e RJ apresentou distintas condições e diferentes sentidos das ações, estratégias, atores mobilizados e desdobramentos, com foco nas iniciativas de atenção às crianças com síndrome congênita do Zika vírus (SCZV). Evidenciou-se a importância: da rede regionalizada e coordenada, com desconcentração da oferta de serviços especializados e dos procedimentos de estimulação precoce; do papel coordenador e investidor do governo estadual; das iniciativas de qualificação dos profissionais de saúde; da atuação de instituições de pesquisa no atendimento, produção de conhecimento e no diálogo com famílias afetadas.

Palavras-Chave:
Acesso; Sistemas de saúde; Zika; Planejamento em saúde; Emergências

Introdução

O Brasil foi o epicentro da epidemia do Zika vírus (ZIKV), no final de 2015, agravada pela relação entre a infecção viral em gestantes e a ocorrência de casos de microcefalia (Araújo ., 2016ARAÚJO, T. V. B. et al. Association between Zika virus infection and microcephaly in Brazil, January to May, 2016: preliminary report of a case-control study. Lancet Infectious Diseases, v. 16, n. 12, p. 1356-1363, dez. 2016.; Mlakar .; 2016MLAKAR, J. et al. Zika virus associated with microcephaly. New England Journal of Medicine, v. 374, n. 10, p. 951-958, mar. 2016.; TeixeiraTEIXEIRA, M. G. et al. The Epidemic of Zika Virus-Related Microcephaly in Brazil: Detection, Control, Etiology, and Future Scenarios. American Journal of Public Health, v. 106, n. 4, p. 601-5, mar. 2016.et al., 2016) e da síndrome congênita do ZIKV (SCZV) em bebês (MaltaMALTA, J. M. A. S. et al. Síndrome de Guillain-Barré e outras manifestações neurológicas possivelmente relacionadas à infecção pelo vírus Zika em municípios da Bahia, 2015. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília/DF, v. 26, n. 1, p. 09-18, jan-mar. 2017.et al., 2017; Puccioni-Sohler ., 2017PUCCIONI-SOHLER, M. et al. Dengue infection in the nervous system: lessons learned for Zika and Chikungunya. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 75, n. 2, p. 123-126, fev. 2017.). Esse cenário resultou nas declarações de emergência em saúde pública de importância nacional (ESPIN), pelo Ministério da Saúde (MS) (2015-2017), e internacional (ESPII), pela Organização Mundial da Saúde (2016).

Os grupos mais atingidos foram de mulheres e crianças, sobretudo pobres, negras e de baixa escolaridade, moradoras da Região Nordeste e das periferias metropolitanas (Lesser; Kitron, 2016LESSER, J.; KITRON, U. A geografia social do Zika no Brasil. Estudos Avançados. v.30, n. 88, p. 167-75, 2016.; Diniz, 2016DINIZ, D. Vírus Zika e mulheres. Cadernos de Saúde Pública. v. 32, n. 5, e00046316, 2016.). A emergência sanitária evidenciou a questão da saúde reprodutiva e os conflitos em torno da agenda do aborto (Ventura; Camargo, 2016VENTURA, M.; CAMARGO, T. M. C. R. Direitos Reprodutivos e o Aborto: As mulheres na epidemia de Zika. Revista Direito e Práxis, v. 7, núm. 15, p. 622-651, 2016.).

A resposta e a reprogramação dos sistemas de saúde para o enfrentamento da epidemia envolviam a projeção de novos padrões e necessidades de atenção à saúde; a definição de pesquisas, tecnologias, financiamento e cooperação, inclusive em âmbito internacional, e capacitação adequados; e união entre gestores, organizações multilaterais, profissionais, cientistas e sociedade civil (Barreto ., 2016BARRETO, M. L. et al. Zika virus and microcephaly in Brazil: a scientific agenda. The Lancet, v. 387, p. 919-921, mar. 2016.).

Esse processo é influenciado pela regulação e protocolos internacionais sobre emergências sanitárias (Ventura, 2016VENTURA, D. F. L. Do Ebola ao Zika: as emergências internacionais e a securitização da saúde global. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, 2016.; Nunes; Pimenta, 2016NUNES, J.; PIMENTA, D. A epidemia de Zika e os limites da saúde global. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 98, p. 21-46, 2016.; WHO, 2017WORLD HEALTH ORGANIZATION. Emergency response framework. 2. ed. Geneva: WHO, 2017.); e pelas distintas capacidades institucionais e formas de organização dos sistemas de saúde. Em resposta à crise, são relevantes as estratégias de coordenação da requerida reorganização das ações e dos serviços de saúde, articuladas ao dimensionamento das repercussões socioeconômicas, com foco nas populações vulnerabilizadas e lugares atingidos e/ou em maior risco (PepePEPE, V. L. E. et al Proposta de análise integrada de emergências em saúde pública por arboviroses - o caso do Zika vírus no Brasil. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 44, p. 69-83, 2020.et al., 2020).

No Brasil, a construção da resposta à emergência do ZIKV se deu em meio a um contexto de crises política e econômica, com limitações no aporte adicional de recursos financeiros nas intervenções propostas; e foi permeada por incertezas sobre a doença e suas consequências. Esse cenário ensejou a busca por novos conhecimentos e a incorporação de formas inovadoras de práticas e tecnologias em saúde (Pepe et al., 2020).

No âmbito federal, o plano de enfrentamento foi estruturado em iniciativas de controle vetorial e ações de qualificação profissional. Protocolos integrados de vigilância e atenção à saúde orientaram a definição e a notificação de casos, a agilização da conclusão diagnóstica e o encaminhamento dos bebês e crianças para serviços da rede de atenção à saúde. Um dos destaques foi a articulação intersetorial, entre saúde e assistência social, expressando preocupações com acesso à benefícios sociais pela população (Garcia, 2018GARCIA, L. P. Epidemia do vírus Zika e microcefalia no Brasil: emergência, evolução e enfrentamento. Brasília: IPEA, 2018.).

A operacionalização da resposta valorizou arranjos de governança com base na coordenação intergovernamental, combinando iniciativas centralizadas no governo federal e ações a cargo dos entes subnacionais, induzidas mediante incentivos financeiros, logísticos e de tecnologia da informação (Garcia, 2018GARCIA, L. P. Epidemia do vírus Zika e microcefalia no Brasil: emergência, evolução e enfrentamento. Brasília: IPEA, 2018.; Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Síndrome congênita associada à infecção pelo vírus Zika. Situação Epidemiológica, Ações Desenvolvidas e Desafios de 2015 a 2019. Boletim Epidemiológico. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.).

Os estímulos federais aos estados e municípios buscaram considerar as especificidades loco regionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e a pactuação intergestores na formulação das ações de contingência à crise sanitária e de reprogramação dos serviços de saúde. Essa perspectiva parte da organização federativa do SUS, somada à variabilidade das capacidades político-institucionais e às diversidades e desigualdades do território brasileiro.

Com o fim da emergência, a zika perdeu espaço na agenda da política nacional de saúde. Entretanto, novos casos são registrados todos os anos, sendo 30% deles em gestantes (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Síndrome congênita associada à infecção pelo vírus Zika. Situação Epidemiológica, Ações Desenvolvidas e Desafios de 2015 a 2019. Boletim Epidemiológico. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.). Destacam-se a manutenção da alta incidência da microcefalia em algumas regiões do país e a permanência da necessidade de acompanhamento das crianças diagnosticadas com a SCZV (Conasems, 2022CONASEMS. Dengue, zika e chikungunya tiveram aumento de casos no Brasil nos últimos meses. 12 de maio de 2022. Disponível em: https://www.conasems.org.br/dengue-zika-e-chikungunya-tiveram-aumento-de-casos-registrados-no-brasil-nos-ultimos-meses/
https://www.conasems.org.br/dengue-zika-...
).

É relevante, portanto, compreender o modo como se estruturaram as respostas estaduais frente à emergência sanitária do ZIKV no Brasil, à luz da resposta federal e dos arranjos locais de gestão do SUS, no reposicionamento do componente da atenção à saúde. Identificar os aspectos que favoreceram ou limitaram avanços para a organização da rede assistencial, bem como as similaridades e diferenças entre as distintas realidades, se constitui em aprendizado em torno dos desafios de preparação dos sistemas de saúde para futuras emergências.

O artigo visa analisar os casos de reprogramação do sistema de saúde em resposta à emergência do ZIKV dos estados do Ceará (CE) e do Rio de Janeiro (RJ), no período de 2015 a 2017. Buscou-se compreender as condições e os sentidos das ações, estratégias, atores mobilizados, desdobramentos e aprendizados da gestão estadual do sistema de saúde, com foco nas iniciativas de atenção às crianças com SCZV (diagnóstico, encaminhamento e serviços de reabilitação) nos estados.

Método

A análise apoiou-se nas contribuições do institucionalismo histórico (ThelenTHELEN, K.; STEINMO S. Historical institutionalism in comparative politics. In: THELEN, K. et al. (Eds.). Structuring Politics: historical institutionalism in comparative analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 1-32.; Steinmo, 1992) e na literatura sobre regionalização e redes de atenção à saúde (RAS) (Viana ., 2018VIANA, A.L.D. et al. Regionalização e Redes de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1791-1798, 2018.). Valorizou-se o conjunto de iniciativas formuladas e implementadas pelos gestores estaduais do RJ e do CE, no âmbito da atenção às crianças afetadas pelo ZIKV, com destaque para os elementos político-institucionais presentes nas trajetórias de resposta e as principais características dos seus sistemas de saúde.

No primeiro eixo analítico, evidenciam-se os contextos de inserção que informavam a política e o sistema de saúde no nível estadual, identificando a agenda governamental para (e associada ao) o setor saúde; e a conjuntura político-financeira que se expressava no período. O desenho e implementação das respostas compreenderam o segundo eixo do estudo, concentrando-se na identificação dos atores (organizações, instâncias e arenas); dos recursos mobilizados (gerenciais, financeiros e estruturais); e das estratégias adotadas e suas repercussões nas RAS (protocolos, ações e serviços; fortalezas e fragilidades).

Foram entrevistados atores-chave – gestores da Secretaria de Estado de Saúde (SES) e do governo estadual; pesquisadores das universidades; gestores e profissionais dos serviços de atendimento às crianças com SCZV –, sendo nove do Rio de Janeiro e 11 do Ceará. As entrevistas ocorreram entre nov/2017 e ago/2018, apoiadas por roteiro semiestruturado e gravadas mediante autorização, para transcrição de conteúdo.

Recorreu-se, de forma complementar, à análise de documentos governamentais dos estados, tais como protocolos, planos, atos normativos, deliberações intergestores e apresentações institucionais, fornecidos pelos entrevistados e/ou disponíveis na internet (Quadros 1 e 2). Esse cotejamento documental ao conteúdo das entrevistas também envolveu a seleção de notícias, para elucidação dos aspectos contextuais.

Quadro 1
Documentos que orientaram as respostas do estado do Rio de Janeiro à emergência sanitária do Zika Vírus – 2015-17
Quadro 2
Documentos que orientaram as respostas do estado do Ceará à emergência sanitária do Zika Vírus – 2015-17

A escolha dos estados baseou-se em critérios de semelhança dos casos quanto ao risco e vulnerabilidade frente à epidemia. No RJ e CE, os casos confirmados de crianças com SCZV concentraram-se em regiões mais pobres e vulnerabilizadas na capital, na região metropolitana e no interior (Goya, 2017GOYA, N. Regionalização da saúde: cartografia dos modos de produção do cuidado e de gestão em saúde. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.; Peiter ., 2020PEITER, P. et al. Análise de dimensões do acesso à saúde das crianças com Síndrome Congênita de Zika (SCZ) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade. 2020, v. 29, n. 2, e200064.). Em 2015, 67% e 68% dos nascimentos haviam alcançado número adequado de consultas de pré-natal, respectivamente, no CE e RJ, próximos à média nacional (66,5%) (Sinasc, 2015). A oferta e produção de média e alta complexidade se concentrava nas capitais, sendo que, do total da produção ambulatorial de média complexidade (que engloba ações de reabilitação ou estimulação precoce para crianças com SCZV), mais da metade estava nas regiões de saúde que abrangem a capital (54,4% no RJ e 52,5% no CE) (SAI/SUS, DATASUS/MS, 2015-16).

Por outro lado, a opção pelos dois casos considerou as diferenças quanto à organização regional do sistema de saúde e à capacidade de atuação e coordenação das secretarias estaduais de saúde no momento da epidemia. Os estados se diferenciavam quanto ao grau de organização e institucionalidade da regionalização da saúde e quanto à capacidade de atuação e coordenação das SES, destacando situação mais crítica e instável no RJ e mais favorável e estável no CE (Goya, 2017GOYA, N. Regionalização da saúde: cartografia dos modos de produção do cuidado e de gestão em saúde. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.; Cunha, 2019CUNHA, A. Entre vírus, políticas e gestores: repercussões da epidemia de Zika e a atenção à saúde das crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Dissertação (Mestrado em Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019.).

Os resultados originam-se da interpretação conjunta de todas as fontes do estudo, correlacionando-se os eixos analíticos propostos. São apresentados considerando a cronologia dos eventos que marcaram a trajetória de resposta para cada estado. Na discussão, à luz do referencial adotado e da literatura relacionada, elaborou-se uma reflexão crítica dos achados em perspectiva comparada, indicando potenciais e oportunidades emanadas das experiências analisadas.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da instituição acadêmica envolvida sob o Parecer nº 2.180.892 e CAAE 67311617.8.0000.5240.

Resultados

O caso do Rio de Janeiro

O enfrentamento da emergência do Zika vírus no estado do Rio de Janeiro ocorreu em um contexto de crise política, com denúncias de fraudes e corrupção no governo do estado, que culminaram na prisão do então governador, em novembro de 2018. O cenário econômico e financeiro indicava piora nos indicadores do endividamento com a União e da situação fiscal, resultando na indisponibilidade de recursos financeiros para honrar compromissos, incluindo a folha de salários do funcionalismo, e efetuar novos investimentos. Esse panorama ensejou a decretação de calamidade pública no âmbito da administração financeira do estado, em junho de 2016.

Antes disso, em dezembro de 2015, decretou-se estado de emergência no sistema estadual de saúde, marcado pelo fechamento de serviços hospitalares estaduais de emergência e de leitos próprios e privados contratados. Em meio à crise, ocorreu a troca do secretário estadual de saúde, sucedida por medidas de revisão dos contratos com as organizações sociais que gerenciavam unidades estaduais de saúde. Além da redução da oferta de serviços na RAS, políticas de cofinanciamento e apoio aos municípios foram descontinuadas, adicionando incertezas ao enfrentamento da emergência sanitária do ZIKV.

A conjuntura adversa desafiou a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ), fragilizada em seu papel de financiador, regulador, prestador e coordenador do sistema de saúde, no equacionamento das repercussões da zika. Ao mesmo tempo, atuava na contenção da crise da sua rede e na preparação para eventos de massa, intensificada pela proximidade dos Jogos Olímpicos do Rio, em meados de 2016 (Miranda ., 2017MIRANDA, E. et al. Organization of Health Services and Risk Preparedness during the 2016 Rio de Janeiro Olympic Games. Prehospital and Disaster Medicine, v. 32, S1, p. S138-S138, 2017.). Segundo as entrevistas, ações preparatórias no campo da vigilância epidemiológica e da reconfiguração da rede de atenção para os Jogos foram pouco sensíveis à identificação e contingência oportuna da emergência sanitária.

Por outro lado, o acúmulo de experiência da SES-RJ no enfrentamento às epidemias de dengue e nas discussões acerca da organização regional da Rede de Atenção Materno-Infantil, relativamente organizada e desconcentrada, abriu oportunidades para a definição de protocolos de vigilância e de serviços e leitos existentes para atendimento das gestantes e bebês.

A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) apresentava estruturação incipiente, marcada por desigualdades regionais na oferta e produção dos serviços de neurologia, oftalmologia e reabilitação física. Naquele momento, indicavam-se dezesseis serviços de reabilitação, públicos e privados contratados na RCPD, que, embora presentes em diferentes polos regionais, os de maior estrutura e complexidade para atender a SCZV encontravam-se na capital e na região metropolitana.

Sete dias após a declaração da ESPIN pelo MS, a SES determinou a notificação compulsória em até 24 horas ao Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS) de casos de gestantes com manifestação exantemática, com o objetivo de obter informações que subsidiassem a elaboração de um protocolo de vigilância para essas mulheres. Em sentido similar, o caráter compulsório e imediato também foi adotado, em junho de 2016, para as notificações de pacientes com quadro neurológico associado à infecção prévia por zika.

Foram organizadas salas de situação estaduais, e incentivada a criação de instâncias similares municipais, tendo um eixo de atuação no controle vetorial, sob coordenação da Defesa Civil estadual em conjunto com a Subsecretaria de Vigilância em Saúde da SES-RJ; e outro voltado para estratégias de investigação e confirmação dos casos notificados suspeitos de microcefalia, e ao seguimento na rede de atenção à saúde e de assistência social. Esse processo ficou a cargo da Superintendência de Atenção Básica da SES, além de outros setores da secretaria, do Cosems-RJ, consultores e apoiadores descentralizados do MS. A Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH-RJ) se conformou como ator relevante para as ações intersetoriais no suporte aos afetados para acesso a benefícios sociais.

No âmbito da Estratégia de Ação Rápida (EAR) do governo federal, os recursos financeiros repassados foram alocados prioritariamente no Instituto Estadual do Cérebro (IEC), localizado na capital, para oferta complementar de exames de imagem, regulada pela SES, visando ao diagnóstico dos bebês com suspeita de microcefalia intrauterina e pós-natal. Outra destinação envolveu pactuação dos valores restantes com as secretarias municipais de saúde, considerando a proporcionalidade da incidência de casos em cada município, para custeio do transporte das famílias e crianças até o IEC e das demais ações de apoio ao diagnóstico realizadas nos municípios.

O desenho da estratégia preconizou a atuação descentralizada da atenção primária dos municípios nos encaminhamentos dos bebês e crianças para os serviços especializados de estimulação precoce e reabilitação disponíveis, após as ações de intensificação dos diagnósticos pela EAR. A regulação do acesso à rede assistencial em âmbito regional e estadual não se expressou como uma iniciativa prioritária, cabendo à SES, por meio de equipes de apoio regional da Atenção Primária, ações de incentivo à continuidade da busca ativa de gestantes e bebês afetados pelo ZIKV.

A disponibilização do IEC no plano de resposta teve efeito de agilizar a confirmação de casos, porém com entraves na cobertura e articulação com outros pontos da rede na oferta dos exames. Ademais, após o diagnóstico, a procura por atendimento especializado e seguimento, via atenção primária do município, evidenciou problemas como longa espera e referenciamento para serviço distante do domicílio do paciente, com prejuízos à rotina dos múltiplos cuidados necessários à criança com SCZV. A fragilidade de organização da RCPD colaborou para baixa capacidade estadual em coordenar acessos e fluxos assistenciais.

Foram implementadas iniciativas no campo da atenção à saúde da criança, envolvendo cursos de qualificação profissional, em parceria com universidades e centros de referência, como o Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), e a realização de eventos e debates com foco na Zika, propostos e com participação da Atenção Básica da SES-RJ. A produção de planos e protocolos pela SES expressou preocupações de articulação vigilância-atenção, com certa sensibilidade em detectar novos conhecimentos acerca do caráter sindrômico da infecção por Zika e ampliar, posteriormente, o escopo das ações para outros patógenos de relevância nas infecções intrauterinas: sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes (STORCH).

Nesse sentido, à luz de uma nova estratégia federal voltada ao fortalecimento do cuidado das crianças com suspeita ou confirmação de SCZV e STORCH, foi aprovado em Comissão Intergestores Bipartite (CIB) um plano estratégico, publicado em 2018, e a conformação de um Comitê Gestor Estadual (CGE), que ampliou a representação de setores da SES e incorporou outras instituições, governamentais e não-governamentais, na coordenação do plano. Associado ao CGE, foi criado um comitê técnico estadual, visando à operacionalização de propostas e articulação com áreas técnicas da SES.

Além das definições em torno da pactuação dos recursos federais, para ações de qualificação do diagnóstico e cuidado integral das crianças, e os incentivos de qualificação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), como ponto de atenção na Atenção Primária à Saúde (APS) para a estimulação precoce, o plano estratégico do Rio de Janeiro, deliberou pela prioridade de organização regional da RCPD, com diretrizes assistenciais para atenção tanto às crianças com SCZV quanto para STORCH, proporcionando ampliação do perfil de crianças com prioridade de atendimento.

Os entrevistados ressaltaram que, embora tenha havido uma flexibilização do MS para habilitação de serviços de reabilitação e de equipes dos NASF, com foco na estimulação precoce das crianças com SCZV, isso não se concretizou, oportunamente, em um aumento efetivo na cobertura desses serviços no estado. A habilitação direta dos serviços viabilizou o envio de incentivos financeiros, mas sem desdobramentos no sentido de qualificar o ponto de atenção da RAS, destacando-se ainda o seu caráter tardio no contexto da resposta.

As lacunas de articulação e coordenação estadual da rede implicaram em escoamento de demandas para institutos federais de pesquisa e atenção à saúde, como o IFF/Fiocruz e o Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPMG/UFRJ), mobilizados desde o início para responder à emergência. Por meio de recursos de projetos de pesquisa, oportunizou-se atendimento de gestantes e bebês, com seguimento do pré-natal aos cuidados neonatais e pós-natais, para além do diagnóstico.

Inicialmente, esse fluxo assistencial se organizou paralelamente às dinâmicas da RAS, definidas nas instâncias responsáveis pelo desenho da resposta no estado. Em consequência, a busca por atendimento nesses institutos, e também no hospital da Rede Sarah, contribuiu para a duplicidade de vínculos aos serviços e fragmentação do cuidado integral necessário. Posteriormente, tentativas de encaminhamento para acompanhamento de longo prazo pela atenção primária nos municípios dos pacientes, como estabelecido no plano, esbarrou nas conhecidas barreiras: concentração dos serviços especializados na capital e reduzida governança regional da rede.

Segundo os entrevistados, os serviços de APS dos municípios apresentavam resolubilidade limitada no atendimento às necessidades de cuidado das crianças afetadas pela SCZV, o que forçava a permanência dos pacientes vinculados aos estudos de coorte dessas instituições, a pedido das famílias. Essa questão expressou ainda as demandas de preparação e qualificação dos profissionais de saúde dos municípios, que contaram com iniciativas, capitaneadas pelo IFF/Fiocruz.

O IFF/Fiocruz foi relevante na qualificação de profissionais da rede no manejo da SCZV, por meio da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS), conjuntamente com a Coordenação Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde (CGSCAM/MS) e a Superintendência da Atenção Básica da SES. Os serviços federais também estabeleceram um diálogo direto com os movimentos de mães, ressaltando a luta por acesso aos serviços, medicamentos e tecnologias que estavam disponíveis no SUS, diante dos entraves enfrentados. Possibilitou, ainda, aproximação com a Comissão da Pessoa com Deficiência da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), visando a construção de uma política pública estadual para atenção às crianças com SCZV.

O caso do Ceará

O enfrentamento da emergência do ZIKV no Ceará se deu em um contexto político marcado por estabilidade e continuidade da gestão governamental e uma situação financeira que possibilitava uma agenda voltada à formulação de projetos estratégicos na área social. Em agosto de 2015, o governo cearenseGOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ. Plano Estadual da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) 2021-2023. Resolução CIB/Ceará nº76, junho, 2021. havia lançado o Programa Mais Infância (PMI Ceará) liderado pela primeira-dama e com o envolvimento de dez secretarias, representadas no Comitê Consultivo de Políticas sobre Desenvolvimento Infantil.

O PMI Ceará envolvia a capacitação em desenvolvimento infantil de agentes públicos da saúde, educação e assistência social, tendo sido fortemente disseminado junto aos gestores e profissionais dos municípios do estado. Seu desenho recebeu contribuições de representantes das três esferas de governo, de universidades e associações comunitárias, além do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Banco Mundial, instituições que vinham apoiando o Ceará em iniciativas voltadas à primeira infância.

Uma ação prioritária do Programa consistia na oferta de renda mínima às crianças e famílias em extrema pobreza, cadastradas no CadÚnico, sem acesso à creche e em moradias precárias. Esta estratégia contou com um mapeamento prévio dos municípios com famílias em situação de maior vulnerabilidade social, para distribuição do Cartão Mais Infância. Na saúde, o PMI desenvolveu ações voltadas à qualificação dos agentes comunitários de saúde e enfermeiros da Estratégia Saúde da Família.

Na Secretaria Estadual de Saúde do Ceará (SES-CE), evidenciava-se um contexto de fortalecimento e modernização da gestão, com foco na política de regionalização. Buscava-se consolidar o papel da gestão estadual, com ampliação na governança das Redes de Atenção à Saúde, tendo como uma das estratégias a implantação de serviços assistenciais regionais (policlínicas de especialidades), com gestão por consórcios públicos verticais de saúde (em que a SES-CE é ente consorciado).

Em outubro de 2015, a identificação dos primeiros casos de SCZV mobilizou o governo do estado a criar um comitê de crise, composto por profissionais dos serviços assistenciais e de vigilância epidemiológica, além de representantes da gestão da SES-CE e da participação da Unicef. Uma das primeiras ações envolveu a organização de uma rotina de detecção dos casos suspeitos de microcefalia, por meio de mutirões, para estabelecimento de um protocolo de vigilância e de ações de assistência aos bebês e crianças.

A adesão à EAR do governo federal articulou-se a essas iniciativas, com deliberação em CIB quanto à partilha dos recursos federais repassados ao estado. Concentrando a maior parte dos recursos, adicionalmente aos recursos próprios alocados nas ações, a SES-CE assumiu a responsabilidade pela oferta dos exames e dos profissionais para atendimento em suas policlínicas, ficando os municípios responsáveis pela garantia da oferta de transporte sanitário e ajuda de custo às famílias.

Foram pactuados e selecionados quatro serviços de referência para as ações de confirmação do diagnóstico e de emissão do relatório requerido para acesso a benefícios sociais: dois hospitais na Macrorregião de Fortaleza (localizados na capital) e duas policlínicas nas macrorregiões Norte (município de Sobral) e do Cariri (município de Barbalha). Em atenção às discussões em torno da necessidade de acompanhamento duradouro das crianças para identificação de todas as possíveis consequências da Zika, o Ceará adotou uma concepção ampla de detecção de atrasos do desenvolvimento neonatal e infantil, para além da microcefalia ou outras deficiências aparentes.

O acolhimento nos serviços de assistência social objetivava agilizar o recebimento dos benefícios a que as crianças e famílias teriam direito, e apoiar situações de recusa das famílias em participarem das iniciativas dos mutirões. Esse processo envolveu uma articulação da SES com os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS).

Em relação ao encaminhamento pós-elucidação diagnóstica, estabeleceu-se uma dinâmica de agendamento com pediatras, neuropediatras e fonoaudiólogos, inicialmente em cinco policlínicas com foco na estimulação precoce. Havia a preocupação em descentralizar ações para regiões de saúde mais distantes de Fortaleza, com menor oferta de serviços diagnósticos e especializados em cuidado às múltiplas deficiências, e com maior número de casos. Buscava-se a consolidação de uma estratégia mais duradoura de acompanhamento das crianças (de 0 a 3 anos) ao longo do tempo, sobretudo, nas regiões mais afetadas e com menos recursos.

A SES-CE assumiu protagonismo nesse processo, expresso na decisão de desconcentrar o atendimento de estimulação precoce, recorrendo à estrutura e à equipe de profissionais das suas dezenove policlínicas regionais, com o intuito de diminuir as distâncias e a peregrinação das mães e familiares em busca dos vários tipos de atendimentos que seus filhos precisavam cotidianamente. Estes serviços foram pactuados como de referência no contexto da reformulação do Plano Estadual de Estruturação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência do Ceará e foram priorizados para o acesso a recursos federais de custeio que porventura fossem repassados pelo MS.

Recorreu-se à expertise do Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce da Universidade Federal do Ceará (Nutep/UFC), serviço de referência no atendimento a múltiplas deficiências e desenvolvimento de tecnologias assistivas, para propor a organização de Núcleos de Estimulação Precoce (NEP) nas policlínicas regionais da SES-CE, incluindo a capacitação dos profissionais, em uma articulação do PMI Ceará, na figura da primeira dama, que viabilizou a formalização de uma parceria do Nutep/UFC com o governo cearense.

O acordo viabilizou a rápida implementação de cursos de formação das equipes multidisciplinares contratadas para atuarem nos NEP das policlínicas, já em fevereiro de 2016. A preocupação com a desconcentração da oferta para regiões mais distantes da capital se expressou no início da implantação dos núcleos pela policlínica localizada no município de Barbalha, região longínqua e que apresentava expressivo número de casos de SCZV. A participação do Nutep/UFC, com visitas de consultorias, possibilitou acolhimento às demandas por adaptações estruturais nos espaços das policlínicas, favorecendo, entre outros, o uso das tecnologias assistivas, também fornecidas no âmbito da parceria.

Os NEP integraram o Programa Mais Infância Ceará, tendo sua implantação financiada com recursos alocados no orçamento próprio da SES, garantidos aportes de custeio na já mencionada escala de priorização do uso de recursos federais, pactuada na CIB. O funcionamento das policlínicas, a cargo dos consórcios públicos de saúde, com a SES-CE como ente consorciado, também evidencia o caráter estratégico da resposta estadual no Ceará.

A contratação das equipes, feita por meio de seleção pública pelos consórcios, viabilizou a desconcentração dos serviços nas regiões, com provimento de profissionais em localidades mais vulneráveis e menos atrativas, em que pese o cenário de escassez de médicos, sobretudo de neuropediatras, como fator limitador para ações de expansão e consolidação da estratégia. Segundo os entrevistados, o modelo de gestão por consorciamento possibilitou incrementos do apoio às famílias pelos NEP, com investimentos em minicozinhas, brinquedotecas e espaço de aleitamento materno em algumas regiões de saúde.

Uma estratégia de governança regional adotada envolveu o registro do acompanhamento dos atendimentos e do número e perfil dos profissionais dos NEP pelas instâncias das regiões de saúde e da SES. Buscou-se, com isso, assegurar a continuidade e qualidade das ações, indicando demandas por mais formação e capacitação dos profissionais, novas contratações e serviços; e estabelecer uma relação coesa entre os gestores dos municípios das distintas regiões.

Os entrevistados apontaram preocupações com o seguimento das crianças após a faixa etária de acompanhamento nos dispositivos de estimulação precoce (0 a 3 anos), dentro do escopo da RCPD. A SES-CE fomentou discussões regionais nesse sentido, aproveitando também os incentivos federais que foram instituídos a partir de 2017. Como resultado, foi estabelecido o Programa de Atenção à Pessoa com Deficiência (2020), contemplando iniciativas de educação permanente dos profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e o diálogo com as secretarias de educação para identificação de atrasos no desenvolvimento das crianças.

Esse processo também foi marcado por ações de diagnóstico das necessidades de atendimento e mapeamento dos serviços da RCPD a serem estruturados, credenciados ou fortalecidos, na perspectiva do cuidado integral. Outro desdobramento consistiu na elaboração de um projeto vinculado à RCPD e aos NEP, denominado de “Ceará Acessível”, que objetivou ampliar a produção de tecnologias assistivas e sua distribuição na rede regional.

A ação coordenada entre PMI Ceará, SES-CE e Nutep/UFC oportunizou a aproximação e diálogo com as mães e os familiares das crianças acometidas pela SCZV, durante os mutirões e nos NEP. As demandas apresentadas nortearam a capacitação dos profissionais, a organização da oferta de serviços e os materiais empregados. O Nutep/UFC ofereceu qualificação e materiais para as famílias darem continuidade à estimulação precoce em casa. A atenção domiciliar às crianças com SCZV encontrava limites na indisponibilidade de profissionais e em fragilidades diversas de apoio à estimulação dos NASF, em que pesem os incentivos federais para tal.

Discussão

A reprogramação do sistema de saúde nos estados do CE e RJ apresentou distintas condições e diferentes sentidos das ações, estratégias, atores mobilizados e desdobramentos, com foco nas iniciativas de atenção às crianças com SCZV. Fez toda diferença a coordenação do Ministério da Saúde, com orientações, normativas e recursos, para o enfrentamento da epidemia da Zika. Contudo, naquele momento, a conjuntura político-financeira desfavorável para o RJ e mais favorável para o CE, assim como as diferentes perspectivas das agendas estaduais de saúde e organização dos sistemas de saúde, condicionaram as diretrizes e estratégias dos planos estaduais de ação frente ao ZIKV.

O CE contou com a estratégia de regionalização, da atenção primária e dos agentes comunitários de saúde fortemente institucionalizada ao longo do tempo. Para enfrentamento da Zika, o governo estadual priorizou a descentralização, desconcentração e capacidade de coordenação regional das ações, recursos e serviços, aproveitando a existência prévia do Programa Mais Infância e dos Consórcios Públicos de Saúde. Destaca-se ainda a prioridade dada à criança no âmbito da política estadual, dentro de um programa intersetorial, com olhar global sobre seu desenvolvimento e sobre o enfrentamento das desigualdades regionais. A implantação dos NEP em Policlínicas regionais dos atendimentos de reabilitação (várias especialidades) das crianças diagnosticadas com SCZV (múltiplas deficiências) resultou na rápida desconcentração regional de investimentos, serviços, equipes e procedimentos de estimulação precoce no estado. Isso facilitou muito o acesso das crianças com SCZV (BatistaBATISTA, L. L. et al. Condições de vida e acesso às políticas sociais das famílias de crianças com Síndrome Congênita pelo vírus Zika atendidas em Fortaleza, Ceará, em dezembro de 2016. Rev Med UFC. Fortaleza, v. 60, n. 2, p. 5-10, abr./jun. 2020.et al., 2020). Houve grande agilidade na implantação dos NEP, com apoio de transporte dos municípios para garantir os deslocamentos e atendimentos semanais das crianças, em suas regiões de saúde (Goya, 2017GOYA, N. Regionalização da saúde: cartografia dos modos de produção do cuidado e de gestão em saúde. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.).

No caso do RJ, não houve de início a diretriz para desconcentrar regionalmente os serviços de diagnóstico e estimulação precoce para as crianças afetadas pela SCZV. As dificuldades no planejamento regional da saúde expressam a histórica fragilidade da coordenação da SES, a grande concentração da rede de serviços na capital e a complexidade dos prestadores (incluindo o federal) (Ugá et al., 2010). Os casos de SCZV se concentraram na capital e região metropolitana, assim como os serviços especializados e de reabilitação (Peiter ., 2020PEITER, P. et al. Análise de dimensões do acesso à saúde das crianças com Síndrome Congênita de Zika (SCZ) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade. 2020, v. 29, n. 2, e200064.). A opção de concentrar o diagnóstico dos casos suspeitos de SCZV na capital e depois fazer o encaminhamento pela atenção primária nos municípios, resultou em insuficiência de recursos, equipamentos, carência de coordenação do cuidado e dificuldades de acesso aos serviços especializados e de deslocamento cotidiano por parte das famílias (Cunha, 2019CUNHA, A. Entre vírus, políticas e gestores: repercussões da epidemia de Zika e a atenção à saúde das crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Dissertação (Mestrado em Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019.). De início, parte dos municípios não tinha recurso para o transporte das famílias à capital para confirmação diagnóstica.

O acesso foi inadequado e fragmentado em diversos serviços, com falta de coordenação e comunicação na rede (Albuquerque ., 2019ALBUQUERQUE, M. S. V. et al. Access to healthcare for children with Congenital Zika Syndrome in Brazil: perspectives of mothers and health professionals. Health Policy Plan, v. 34, p. 499-507, 2019.). O fraco papel da SES no planejamento e regulação da assistência, incluindo dificuldades em obter informações junto aos municípios, resultou no protagonismo de institutos federais na coordenação da rede para atenção à SCZV (Cunha, 2019CUNHA, A. Entre vírus, políticas e gestores: repercussões da epidemia de Zika e a atenção à saúde das crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Dissertação (Mestrado em Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019.). Inclusive, atuando junto ao MS na produção e divulgação de materiais de apoio às famílias e aos profissionais de saúde para qualificar o atendimento às crianças (Fiocruz, 2018). A Alerj e o Ministério Público tiveram papel fundamental para incentivar melhorias na resposta estatal às famílias afetadas (Santos, 2019SANTOS, C. R. Acesso a bens e serviços relacionados às necessidades das crianças com síndrome congênita do Zika vírus. 2019. Dissertação (Mestrado em Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019.).

No Brasil, evidenciou-se a importância da rede regionalizada para atendimento das crianças com SCZV e redução das desigualdades sociais (Oliveira ., 2021OLIVEIRA, I. L. et al. Rede de Atenção do Sistema Único de Saúde (SUS) para enfrentamento da microcefalia por infecção materna pelo vírus Zika, em Feira de Santana, Bahia, 2015-2018. Revista de Saúde Coletiva da UEFS, [S. l.], v. 11, n. 2, p. e6047, 2021.). A desconcentração regional da oferta de serviços especializados e dos procedimentos de estimulação precoce no país, desde 2016, foi crucial para facilitar o acesso da população, com destaque para estados do Nordeste (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Síndrome congênita associada à infecção pelo vírus Zika. Situação Epidemiológica, Ações Desenvolvidas e Desafios de 2015 a 2019. Boletim Epidemiológico. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.). Além das ações estaduais, foi fundamental o incentivo federal para ampliação da oferta da estimulação precoce em todos os serviços, sobretudo na APS, através de mudanças normativas para pagamentos de procedimentos (Brasil, 2016BRASIL. Portaria MS/SAS n. 355, de 8 de abril de 2016. Inclui o procedimento de estimulação precoce para desenvolvimento neuropsicomotor para atendimento na Atenção Básica na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília/DF, 11 abr. 2016.). Em algumas regiões, houve crescente participação dos municípios de pequeno porte na oferta da estimulação precoce através da atenção básica (Barbosa, 2022BARBOSA, R. C. Análise espacial da oferta de estimulação precoce em crianças com Microcefalia, no Sistema Único de Saúde: no contexto da epidemia de Zika. 2022. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas em Saúde) - Escola Fiocruz de Governo, Fundação Oswaldo Cruz, Brasília, 2022.). Nos dois estados analisados, é preciso investir na APS para qualificar e capilarizar os serviços de estimulação precoce e reabilitação, facilitando ainda mais o acesso por famílias e crianças (Goya, 2017GOYA, N. Regionalização da saúde: cartografia dos modos de produção do cuidado e de gestão em saúde. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.; Peiter .; 2020PEITER, P. et al. Análise de dimensões do acesso à saúde das crianças com Síndrome Congênita de Zika (SCZ) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade. 2020, v. 29, n. 2, e200064.; Batista et al., 2020).

A zika deu visibilidade às pessoas com deficiência e tornou urgente a organização da RCPD nos estados, para melhorar o acesso e dar continuidade aos atendimentos. O RJ contava com Grupo Condutor Estadual para organização da RCDP, desde 2013, e possuía alguns serviços de reabilitação em suas regiões de saúde, a maior parte na capital, mas enfrentou dificuldades na coordenação regional e expansão dos serviços da rede (Governo RJ, 2020). Alguns serviços foram habilitados para atendimento à SCZV e reabilitação, numa relação direta com o MS, sem coordenação por planos regionais da rede de atenção. O RJ não reverteu a alta concentração dos serviços na região metropolitana, sobretudo na capital (Peiter ., 2020PEITER, P. et al. Análise de dimensões do acesso à saúde das crianças com Síndrome Congênita de Zika (SCZ) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade. 2020, v. 29, n. 2, e200064.). No Ceará, a RCPD era incipiente, não estava bem estruturada e organizada. A resposta à Zika impulsionou, recentemente, a discussão e formulação da implantação da RCPD regionalizada no estado (Governo CE, 2021). A flexibilização das habilitações no plano nacional não tem garantido a sustentação das redes regionais, que enfrentam insuficiência de profissionais qualificados e capacitados, havendo rodízio e prejuízo nos atendimentos e vínculos.

Importante destacar que os estados analisados aderiram às orientações do MS para agilizar o diagnóstico de SCZV e facilitar o acesso das famílias ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Isso foi fundamental, pois as famílias afetadas se concentravam em regiões mais pobres e desiguais (Goya, 2017GOYA, N. Regionalização da saúde: cartografia dos modos de produção do cuidado e de gestão em saúde. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.; Peiter .; 2020PEITER, P. et al. Análise de dimensões do acesso à saúde das crianças com Síndrome Congênita de Zika (SCZ) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade. 2020, v. 29, n. 2, e200064.). O BPC dependeu de articulação com a Assistência Social. Outra articulação imprescindível é com a Educação, nem sempre as creches e escolas estão preparadas para receber crianças com SCZV. A complexidade dos diagnósticos e a evolução dos casos de SCZV produziram demandas crescentes e em diversos setores. As respostas dependem de integração de estratégias e ações de proteção social.

A tomada de decisão por parte do Governo do Estado foi o fator crucial para a capacidade do Ceará de estruturar rapidamente as respostas à epidemia de zika, com foco e prioridade claros, em um contexto crítico de incertezas em relação às consequências da zika, de redução dos investimentos na saúde por parte do Governo Federal, pobreza e falta de recursos de saúde em várias regiões do estado. Essa capacidade do Ceará pode ser atribuída, entre outras coisas, às ações adotadas e priorizadas no momento pré-epidemia, à estabilidade política e financeira do governo estadual nos últimos anos para estruturar programas e investimentos, além da parceria com a Universidade. Outra condição importante da estruturação da resposta do Ceará foi a escuta e troca de informações sobre demandas e necessidades junto aos profissionais, às unidades de saúde, aos gestores e às mães das crianças acometidas pela SCZV. No Ceará, houve um diálogo mais próximo das famílias com as secretarias e não só com os serviços. Ações de capacitação envolveram profissionais e famílias (orientação para estimulação precoce domiciliar).

No RJ, as ações de capacitação demoraram mais a acontecer. A falta de diálogo da gestão estadual com as mães e suas organizações para tomada de decisão, dificultou ações rápidas e efetivas em todos os sentidos. O diálogo mais próximo se deu com os principais serviços federais de referência para o cuidado das crianças com SCZV, que posteriormente, junto com o MS, capacitaram profissionais dos municípios e também as famílias. As instituições de excelência ampliaram suas ações de capacitação inclusive pelo uso de plataforma virtual do IFF/Fiocruz (Cartilhas e ensino à distância).

Considerações finais

Diante das repercussões e incertezas produzidas pela epidemia de zika no Brasil, as experiências estaduais trouxeram aprendizados extremamente importantes, que precisam ser considerados para as próximas emergências, para o fortalecimento da proteção social em saúde e do SUS. O sentido prioritário das respostas às emergências sanitárias deve ser o enfrentamento das desigualdades e o foco nas pessoas, grupos e regiões afetados e vulnerabilizados.

A zika iluminou as demandas das pessoas com deficiências e tornou urgente a organização da RCPD para atendê-las. Ações e serviços coordenados e desconcentrados no âmbito de regiões e redes de saúde, tiveram melhores resultados na epidemia da Zika porque resultaram em maior equidade e adesão de políticas e protocolos às diferentes realidades.

A crise político-financeira e a crescente desigualdade vêm condicionando a manutenção das respostas. Ao mesmo tempo, melhores resultados dependem sobremaneira dos atores mobilizados, assim como, da interlocução, articulação e coordenação entre eles. O diálogo de governos, cientistas e profissionais de saúde com as famílias afetadas foi crucial para a convergência entre saberes, produzindo respostas rápidas e efetivas nos diferentes lugares e regiões. A articulação intersetorial ainda é tímida e depende de visão integrada sobre proteção social, com foco no enfrentamento de desigualdades e diálogo permanente com a sociedade.

A partir dos casos analisados e em conjunto com os estudos já produzidos sobre o tema, identificam-se dez diretrizes centrais pra respostas às emergências sanitárias e desastres: 1) Priorizar o cuidado de populações vulnerabilizadas, sobretudo mulheres e crianças, e regiões de grande desigualdade, que estão em maior risco e piores condições de prevenção e cuidado em saúde; 2) Coordenar ações em diferentes escalas e regiões, fortalecendo a cooperação e articulação intergovernamental, intersetorial e a integração entre vigilância e atenção à saúde; 3) Ampliar o acesso (presencial ou virtual) aos serviços, tecnologias e recursos necessários e adequar as respostas às diferentes realidades regionais (descentralizar, desconcentrar e diversificar de forma coordenada); 4) Fortalecer as secretarias estaduais e municipais de saúde (recursos, financiamento, qualificação) para melhorar e potencializar as respostas de forma coordenada e regionalizada; 5) Capacitar profissionais e trabalhadores de saúde, assim como, os grupos sociais em maior risco: os melhores resultados dependem de capacitação, informação e comunicação; 6) Promover a convergência dos saberes científicos, políticos/gerenciais e populares, através do diálogo entre governos, serviços, sociedade civil organizada e instituições científicas, potencializando a produção de conhecimento, tecnologias, estratégias e ações adequadas, efetivas, com equidade e qualidade; 7) Ampliar o uso de sistemas de informação, inteligência artificial e plataformas digitais para garantir atendimento, capacitação, informação, ação e diálogo; 8) Orientar o planejamento, as políticas de saúde e a integração das ações de proteção social frente aos efeitos e consequências de longo prazo produzidos pelas emergências sanitárias, para atender de forma contínua as pessoas e os lugares afetados; 9) Aumentar substancialmente o financiamento do SUS, para garantir avanços na atenção à saúde, vigilância, educação e ciência e tecnologia; 10) Garantir o direito à saúde e o acesso universal, com fortalecimento do SUS.

Agradecimento

Este trabalho foi (parcialmente) apoiado pelo European Union’s Horizon 2020 Research and Innovation Programme under ZIKAlliance Grant Agreement no. 734548. Os autores agradecem aos integrantes e coordenadores do Projeto Ciências Sociais e Humanidades frente à Epidemia de Zika Vírus no Brasil - Fiocruz.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    01 Ago 2023
  • Revisado
    04 Jul 2023
  • Corrigido
    24 Maio 2024
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