Avaliação da implantação da Estratégia Saúde da Família em Santa Catarina em 2004 e 2008

Filipe Ferreira Costa Maria Cristina Marino Calvo Sobre os autores

Resumo

O presente estudo trata de uma avaliação da Estratégia de Saúde da Família no Estado de Santa Catarina em dois períodos distintos: 2004 e 2008. Ao todo, 244 (83%) municípios apresentaram informações completas e foram incluídos nas análises. Foram calculados indicadores de cobertura potencial, indício de mudança no modelo assistencial e de impacto sobre internações, com informações obtidas nos sistemas de informação em saúde. Os parâmetros de classificação dos indicadores foram definidos por meio de documentos oficiais ou calculados a partir da distribuição observada no Brasil. A alta cobertura potencial aumentou de 73 para 83% dos municípios entre os anos de 2004 e 2008. A maioria dos municípios foi classificada na categoria de "fraco" indício de mudança de modelo assistencial, não havendo mudanças importantes neste indicador entre os dois períodos analisados, mas houve aumento de municípios com taxas reduzidas de internação por doenças sensíveis à atenção básica. Os resultados indicaram ampliação da rede assistencial na atenção básica no estado de Santa Catarina, mas sem indícios de efetiva mudança do modelo assistencial, o que estabelece a necessidade de aperfeiçoamentos no trabalho das equipes.

Programa Saúde da Família; Avaliação em saúde; Cobertura de serviços de saúde; Atenção básica; Avaliação; Serviços de saúde


INTRODUÇÃO

O Programa Saúde da Família (PSF)1 Ministério da Saúde. Programa Saúde da Família: saúde dentro de casa. Brasília: Ministério da Saúde; 1994.surgiu em 1994, com a proposta de reorganizar o modelo de assistência à saúde no Brasil, e, gradativamente, passou a fazer parte da rede de serviços de saúde da maioria das cidades brasileiras. Atualmente denominado ESF (Estratégia Saúde da Família), passou a ter papel fundamental no sistema de saúde brasileiro, sendo assumido pelo Ministério da Saúde como porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS)2Ministério da Saúde. Portaria nº 648/GM de 28 de março de 2006 que Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União de 29 de março de 2006;.. As características principais da ESF são o trabalho em equipe e a adscrição de clientela, com número previsto de famílias/indivíduos sob sua responsabilidade. A ESF diferencia-se da atenção básica tradicional pelo seu caráter proativo em relação à saúde da comunidade adscrita, com a realização de territorialização, cadastro familiar, diagnóstico da situação de saúde e ações de saúde pactuadas com a comunidade.

Investigações mais recentes buscam avaliar a ESF como modelo de atenção básica à saúde no sistema de saúde brasileiro, destacando-se a iniciativa do Ministério da Saúde com os Estudos de Linha de Base no âmbito do Programa de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF). Os métodos de avaliação foram diversificados entre os estudos, podendo-se identificar a coleta de informações com os profissionais e usuários das unidades de saúde e a medida de indicadores de acesso, vínculo, serviços, ações programáticas, satisfação profissional, processos de trabalho, enfoque familiar, orientação comunitária, entre outros3Elias PE, Ferreira CN, Alves MCG, Cohn A, Kishima V, Escrivão Junior A, et al. Atenção básica em saúde: comparação entre PSF e UBS por estrato de exclusão social no município de São Paulo. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11: 633-41.

Facchini LA, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FV, et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da atenção básica à saúde. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11: 669-81.

Facchini LA, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Teixeira VA, Silveira DS, et al. Avaliação de efetividade da Atenção Básica à Saúde em municípios das regiões Sul e Nordeste do Brasil: contribuições metodológicas. Cad Saúde Pública 2008; 24(suppl): S159-72.
- 6Roncalli AG, Lima KC. Impacto do Programa Saúde da Família sobre indicadores de saúde da criança em municípios de grande porte da região Nordeste do Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11: 713-24..

A ESF em Santa Catarina teve início em 1994, ainda com a denominação de Programa, e tem evoluído desde então com adesão gradativa dos municípios. Em 2005 existiam 1.053 equipes atuantes, com cobertura de 59% da população do Estado. Um estudo desenvolvido nessa época7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19. analisou a implantação do programa considerando o período 2001-2004, e identificou significativa expansão da cobertura, mas sem mudança no modelo assistencial e ainda sem evidência de impacto sobre as internações de doenças sensíveis à atenção ambulatorial. Em 2009 eram 1.353 equipes atuantes, denotando um aumento de quase 30% desde 2005, maior do que o observado no Brasil (aproximadamente 23%).

A expansão contínua da cobertura da ESF deve estar acompanhada das reorientações esperadas pela proposta, incluindo o impacto desejado sobre as internações hospitalares evitáveis. Dessa forma, o presente estudo objetivou reavaliar a implantação da Estratégia de Saúde da Família no Estado de Santa Catarina entre 2004 e 2008, utilizando indicadores de cobertura potencial, indício de mudança no modelo assistencial e impacto nas internações.

METODOLOGIA

Pesquisa avaliativa, com dados secundários, obtidos por intermédio do Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB), Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH) e Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), dos municípios que forneceram dados aos sistemas no Estado de Santa Catarina em 2004 e 20088Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS. Produção e marcadores. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?siab/cnv/siabpSC.def (Acessado em 20 de maio de 2010).
Disponível em: http...

Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS. População residente. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?ibge/cnv/popsc.def (Acessado em 20 de maio de 2010).
Disponível em: http...
- 1010 Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS. Morbidade hospitalar. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sih/cnv/mrsc.def (Acessado em 20 de maio de 2010).
Disponível em: http...
. Os métodos adotados no presente estudo são descritos em detalhes no estudo de Henrique e Calvo7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19., e foram escolhidos devido à praticidade e facilidade de aplicação - número reduzido de indicadores, cujas medidas podem ser calculadas mediante dados disponíveis no SIAB e no SIH. A tríade estrutura-processo-resultados sistematizada por Donabedian1111 Donabedian A. The quality of care: how can it be assessed? JAMA 1988; 260: 1743-8. foi simplificada para indicadores representativos de cobertura potencial, indício de mudança no modelo assistencial e impacto nas internações, respectivamente.

Para analisar a cobertura, calculou-se o percentual de cobertura populacional potencial. Esta opção justifica-se pelo fato da ESF representar atualmente o modelo de atenção primária indicado no país para toda a população. Este indicador representa os recursos disponíveis para atender à população para a qual se destina, e não para a qual efetivamente utilizou a ESF. Para o cálculo da cobertura populacional potencial, utilizou-se a proposta do Ministério da Saúde1212 Ministério da Saúde. Guia prático do Programa Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde; 2001., na qual o número de residentes no município se dá de acordo com estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pela fórmula:

A cobertura potencial foi identificada nos dois momentos da pesquisa, e categorizada em alta (maior que 70%), média (entre 50 e 70%) e baixa (menor que 50%). Para verificar a evolução deste indicador, classificou-se a mesma em aumento, nenhuma alteração, ou diminuição, de acordo com a mudança de categoria entre 2004 e 2008.

O indicador "indício de mudança no modelo assistencial" foi composto com informações sobre as visitas domiciliares do médico, os exames de patologia-clínica solicitados, os encaminhamentos ao especialista e o atendimento individual do enfermeiro.

De acordo com Henrique e Calvo7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19., a análise das visitas domiciliares do médico busca compreender o quanto o município valoriza este instrumento de trabalho em saúde da família como agente facilitador do vínculo do profissional médico com a comunidade. Os exames de patologia clínica e os encaminhamentos ao especialista foram incluídos para analisar a inserção da ESF na rede assistencial. Esses procedimentos serão entendidos como indicadores de atuação da ESF como porta de entrada do sistema de saúde, assim como de acesso aos demais níveis de atenção à saúde (média e alta complexidade). Finalmente, o atendimento individual do profissional de enfermagem foi utilizado como indicador de valorização das ações de cuidado de outros integrantes da equipe, superando o modelo centrado no cuidado médico estrito.

Para o cálculo das medidas do indicador "indício de mudança de modelo" foram realizadas razões cujo numerador é o número de consultas médicas individuais realizadas por uma equipe e o denominador foi o número encontrado para cada uma das variáveis descritas acima, no mesmo local e período de tempo. Segundo a proposta original, tal cálculo permite verificar o equilíbrio entre a assistência à saúde realizada pelo médico (consulta) e as demais atividades desenvolvidas pela equipe. A mudança do modelo corresponderia ao equilíbrio das demais ações relativamente ao número de consultas médicas, que era usualmente considerada a principal ação no modelo de atenção tradicional. Os parâmetros desse indicador foram estabelecidos como segue.

O número de consultas médicas idealmente esperadas considerou que as 40 horas semanais seriam divididas em 16 horas para grupos, visitas, reuniões e 24 horas para atendimento a consultas individuais na unidade, com 20 minutos por consulta por paciente, em média. Esse cálculo resulta em 72 consultas médicas individuais por semana. Para visitas domiciliares do médico, foi considerado o tempo de 40 a 80 minutos por consulta, em 4 horas semanais, que estabelece a possibilidade de realização de 3 a 6 visitas domiciliares semanais. Com esses primeiros cálculos, a proporção ideal prevista seria de uma visita domiciliar para 12 (72/6) a 24 (72/3) consultas médicas.

Para exames de patologia clínica, considerou-se a Portaria nº 1101/GM de 2002, que estabelece os parâmetros de cobertura assistencial do SUS1313 Ministério da Saúde. Portaria nº 1101/GM de 12 de junho de 2002 que estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União de 13 de junho de 2002.. A proporção de solicitação de exames prevista é de 30 a 50% do total de consultas médicas. Esta proporção significa que é esperado um exame a cada 2 (50%) a 3,3 (30%) consultas médicas realizadas.

Para atendimentos individuais do profissional de enfermagem, foi considerado um número ideal de consultas de enfermagem que levou em consideração o tempo para planejamento e gerência da unidade (12 horas), o tempo para atividades de grupo e capacitação da equipe (8 horas) e o tempo para visitas domiciliares (8 horas), restando 12 horas para consultas individuais - divididas entre puericultura, pré-natal e clínica - resultando em 24 consultas possíveis. Como o número de consultas médicas semanais esperadas foi de 72, a relação esperada seria uma consulta de enfermagem a cada três consultas médicas. Definiu-se 20% a mais e a menos como intervalo satisfatório, resultando em uma consulta de enfermagem a cada 2,4 a 3,6 consultas médicas.

O Ministério da Saúde12 12 Ministério da Saúde. Guia prático do Programa Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde; 2001.preconiza 85% de resolutividade dos atendimentos na atenção primária, resultando em 15% de encaminhamentos previstos. Ampliando-se o intervalo para 10 a 20% de encaminhamentos, o número esperado de encaminhamento para especialista ficou em um encaminhamento a cada 5 a 10 consultas7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19..

O cálculo do indicador "indício de mudança" foi contabilizado a partir do número de medidas observadas no respectivo intervalo ideal, sendo possíveis valores de 0 (nenhuma medida com valor ideal observado) a 4 (as quatro medidas com valores observados na faixa ideal). Em seguida, os municípios foram classificados, nos anos de 2004 e 2008, de acordo com o número de medidas atendidas, como segue: 0 a 1 (fraco indício de mudança); 2 a 3 (médio indício de mudança); e 4 (forte indício de mudança)7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19..

A medida do indicador de impacto foi realizada mediante a análise da taxa de internações por condições sensíveis à atenção ambulatorial, representadas por asma, insuficiência cardíaca, pneumonia, diarreia e gastroenterite de origem infecciosa presumível7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19., para um conjunto de mil habitantes, no período de um ano. Foi utilizada a distribuição em quartis das taxas de internações observadas em todo o Brasil no ano de 2004, como segue: abaixo do 1º quartil (baixo número de internações); entre o 2º e o 3º quartil (médio número de internações); e acima do terceiro quartil (alto número de internações).

Para compor a classificação geral dos municípios quanto ao grau de implantação da ESF, foram atribuídos escores de acordo com o resultado das medidas utilizadas em cada indicador. Desta forma, o valor 0 (zero) foi atribuído para indicadores com valores ruins, o valor 3 (três) para indicadores com valores regulares e o valor 5 (cinco) para indicadores com valores bons. Em seguida, os escores dos três indicadores foram somados e a implementação da ESF categorizada em satisfatória (municípios com somatória de escores maior que 10), intermediária (municípios com somatória de escores de 7 a 10) e insatisfatória (municípios com somatória de escores inferior a 7).

Para investigar os fatores associados à evolução positiva da ESF, foram consideradas as variáveis "porte do município" (até 10 mil, 10 a 20 mil, 20 a 50 mil, 50 a 100 mil e maior que 100 mil habitantes), "percentual de investimento próprio em saúde" segundo informações do SIOPS (menos de 15%, 15 a 19,9% e maior ou igual a 20%) e "período de implementação da ESF no município" (1998 a 1999, 2000 a 2001 e 2002 a 2004). A data de implementação da ESF foi considerada a partir da disponibilidade de informações de cadastramento de famílias, procedimentos de pré-natal e puericultura no SIAB.

A análise estatística incluiu o McNemar-Bowker test para avaliar se a mudança ocorrida nos indicadores de cobertura potencial, indício de mudança do modelo e impacto foi estatisticamente significante. Em seguida recorreu-se à regressão logística para avaliar quais variáveis poderiam estar associadas às mudanças positivas no grau de implantação da ESF. As análises foram realizadas no software Stata versão 9 (descrição) e o nível de significância estabelecido foi de 5%.

RESULTADOS

De um total de 293 municípios em Santa Catarina, 244 (83%) apresentaram informações completas em 2004 e 2008 que permitiram as medidas dos indicadores selecionados. Os principais motivos de exclusão dos municípios foram inexistência de informação relativa ao número de equipes de ESF e aos procedimentos da ESF utilizados para a medida do indicador de "indício de mudança do modelo", sendo as informações referentes ao indicador de impacto as mais completas.

Quanto às mudanças nos níveis de cobertura no período analisado, a maioria dos municípios (82%) manteve o nível de cobertura verificado em 2004. As mudanças nos níveis de cobertura de 2004 para 2008 ocorreram quase sempre no sentido de ampliação da cobertura, com 11 municípios aumentando a cobertura potencial de baixa para média, nove municípios aumentando de baixa para alta, e 18 municípios passando de uma cobertura potencial média para uma alta. Apenas quatro municípios diminuíram a cobertura, sendo dois devido à redução no número de equipes e dois devido ao aumento da população com estagnação do número de equipes. Foi verificada uma melhora quanto ao indicador de indício de mudança do modelo assistencial, com 34,8% dos municípios apresentando um médio indício de mudança em 2008 comparado a 11% em 2004. Contudo, apenas um município apresentou um forte indício de mudança no período de 2008, dado este que foi reclassificado como médio para permitir a realização do teste estatístico. Melhorias também significantes foram observadas no indicador de impacto, com um aumento de 50% na proporção de municípios classificados com um alto impacto (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição percentual (intervalo de confiança de 95%) dos municípios de Santa Catarina segundo cobertura potencial, indício de mudança no modelo assistencial e impacto nas internações.

Na Tabela 2, pode ser verificada a contribuição de cada uma das quatro medidas utilizadas na composição do indicador de mudança do modelo assistencial. De maneira geral, verificou-se que uma proporção pequena dos municípios apresentou as medidas dentro dos parâmetros esperados. Por exemplo, a relação de número de visitas médicas domiciliares por consulta médica realizada foi muito baixa - 68% em 2004 e 78% em 2008 - nos municípios realizando menos visitas domiciliares do que o esperado. A relação entre o número de exames de patologia clínica e as consultas médicas aumentou entre os dois períodos, mas o deslocamento foi, em sua maioria, em direção ao excesso de solicitação de exames por consulta. Embora tenha ocorrido uma ligeira melhora, a relação também foi baixa entre o número de encaminhamentos ao especialista e as consultas médicas, com aproximadamente 89% (em 2004) e 79% (em 2008) dos municípios apresentando menos encaminhamentos do que o esperado. Não houve mudanças significantes (p > 0,05) entre os dois períodos analisados para a relação entre número de atendimentos de enfermagem e as consultas médicas, com apenas 16% (em 2004) e 19% (em 2008) dos municípios apresentando as medidas dentro do parâmetro preconizado.

Tabela 2
Distribuição dos municípios segundo classificação nos indicadores de indício de mudança de modelo assistencial.

A mudança na classificação dos municípios quanto ao grau de implantação da ESF é apresentada na Tabela 3. No período analisado houve uma redução de 46% na quantidade de municípios classificados como insatisfatórios em detrimento de um número quatro vezes maior de municípios classificados como satisfatórios. Uma parcela pequena de municípios manteve um status insatisfatório de implementação (15,6%) ou pioraram no período investigado (5,3%). Para as análises subsequentes, os municípios foram agrupados naqueles que melhoraram ou mantiveram um nível satisfatório de implementação da ESF (39,8%) e aqueles que pioraram ou mantiveram um status insatisfatório ou intermediário (60,2%).

Tabela 3
Distribuição dos municípios de Santa Catarina quanto ao grau de implantação da Estratégia Saúde da Família (2004 e 2008).

Ao analisar fatores associados a uma evolução positiva da implementação da ESF, verificou-se que municípios acima de 100 mil habitantes, que tinham uma porcentagem de investimento próprio na área da saúde maior ou igual a 20%, e que possuíam a ESF implantada há mais tempo, foram os que mais evoluíram. Tais associações não foram confirmadas estatisticamente, dado o intervalo de confiança relativamente grande das razões de chances, tanto na análise bruta quanto ajustada por todas as variáveis (Tabela 4).

Tabela 4
Fatores associados à evolução positiva da implementação da Estratégia Saúde da Família nos municípios catarinenses entre 2004 e 2008.

DISCUSSÃO

A avaliação dos serviços de saúde no Brasil ganhou visibilidade nesta última década, e tanto pesquisadores como gestores demonstram um crescente empenho na busca de métodos, instrumentos e abordagens de avaliação que contribuam para a institucionalização desta prática nos serviços de saúde. O presente estudo avaliou o grau de implantação da Estratégia Saúde da Família no Estado de Santa Catarina em dois períodos de acordo com indicadores de cobertura, indícios de mudança do modelo assistencial e impacto, obtidos de dados secundários disponíveis nos sistemas de informação em saúde. Apesar do período (2004 a 2008) de avaliação ter sido relativamente pequeno, algumas melhorias ocorreram notadamente na cobertura potencial e na taxa de internação por doenças sensíveis à atenção básica. Por outro lado, observou-se um pobre indício de mudança do modelo assistencial, indicando que a organização dos serviços parece não estar em acordo com os preceitos da ESF.

A ESF caracteriza-se, dentre outros aspectos, pela adscrição de clientela, ou seja, pelo registro de um número esperado de pessoas em determinada área, que seria alvo potencial das ações de uma equipe de saúde. O indicador de cobertura potencial utilizado nesta investigação busca estabelecer o quanto a população de um município está, teoricamente, coberta pela atenção básica de acordo com a relação entre o número de equipes de saúde da família (SF) e o total da população residente nos municípios. Idealmente, seria esperado que a quantidade de equipes de ESF fosse suficiente para cobrir 100% da população de um município, procurando garantir, portanto, o acesso universal aos serviços de saúde, um dos preceitos preconizados pelo SUS. Contudo, a realidade sociossanitária difere entre as diferentes regiões e municípios do Brasil, e tal meta não seria plausível e/ou necessária para parte dos municípios. Portanto, adotaram-se como parâmetro de avaliação as faixas de cobertura potencial de acordo com a realidade encontrada em todo o Brasil no ano de 2004, mantendo também a comparabilidade com os resultados encontrados por Henrique e Calvo7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19., que utilizaram os mesmos indicadores e medidas para a avaliação da implantação da ESF em SC em período anterior. De 2004 a 2008 aumentou a proporção de municípios com uma cobertura potencial acima de 70%, com apenas 17% dos municípios apresentando cobertura inferior a este patamar em 2008 comparado a 27% em 2004. Em 2001 apenas a metade dos municípios avaliados alcançaram este nível de cobertura no Estado de Santa Catarina7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19.. O crescente processo de municipalização dos serviços de saúde promovido pelo Ministério da Saúde contribuiu para que cerca de 15% dos municípios mudassem para níveis superiores de cobertura. Embora não investigado no presente estudo, avaliações subsequentes devem considerar o número de equipes por unidade de saúde. Pelas características de ocupação urbana das cidades catarinenses, um número maior de unidades de saúde por região geográfica seria preferível ao invés de um número maior de equipes em uma mesma unidade para atender uma região maior. A organização em número maior de unidades permitiria uma aproximação entre as equipes de saúde e a população adscrita em seu território.

O indicador de indício de mudança do modelo assistencial levou em consideração o equilíbrio entre a atuação do médico e as demais atividades de uma Equipe de Saúde da Família. Assumiu-se que as consultas médicas têm um papel fundamental na atenção aos usuários do sistema de saúde, mas por outro lado, estas devem ocorrer de maneira equilibrada com as visitas médicas, encaminhamentos para especialistas, atendimentos do enfermeiro e solicitação de exames complementares. Neste indicador, a grande maioria dos municípios não apresentou resultados dentro dos parâmetros esperados, corroborando os achados em avaliação prévia realizada entre 2001 e 20047Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19.. A tendência de diminuição do número de visitas domiciliares do médico em relação ao número de consultas médicas individuais entre os períodos pode indicar que o atendimento da demanda espontânea nas unidades de saúde está limitando a realização de atividades programadas, como a visita domiciliar, ou que o registro dessa atividade não tem sido prioridade nos serviços. Uma hipótese mais pessimista seria a de que a prática médica tradicional ainda prevalece, oferecendo resistência a um novo modelo de atenção em que a relação médico-paciente é mais horizontal.

Sobre a relação de solicitação de exames por consulta médica, a proporção de municípios com um número esperado de solicitações continuou baixa (15 e 18%, respectivamente, em 2004 e 2008) ao longo do tempo, sendo comparáveis, inclusive, ao período de 2001 (17,6%)7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19.. Tal medida é um importante indicador da organização do modelo assistencial, visto que tanto o excesso de solicitações de exames quanto sua falta pode indicar falhas na orientação da assistência à saúde. A primeira pode desencadear um maior custo financeiro para o sistema de saúde, ansiedade gerada ao paciente, excesso de demanda nos laboratórios, atraso no diagnóstico quando o mesmo pode ser clínico, entre outros aspectos negativos1414 Capilheira Marcelo F, Santos Iná S. Epidemiologia da solicitação de exame complementar em consultas médicas. Rev. Saúde Pública 2006; 40: 289-97.. Por outro lado, a falta de solicitação pode dificultar a investigação diagnóstica, assim como indicar uma ineficiência do sistema quanto à sua integralidade e resolutividade.

Sobre a resolutividade, o estudo considerou o número de consultas por encaminhamentos ao especialista como uma medida aproximada deste indicador. Observou-se uma melhora entre os períodos analisados, com quase o dobro da proporção de municípios apresentando as medidas dentro dos parâmetros esperados em 2008. Contudo, a maioria dos municípios apresentou uma baixa relação entre os encaminhamentos e as consultas. Tal resultado deve ser analisado com cautela, uma vez que não podemos inferir sobre quão negativo é, de fato, encontrar uma baixa quantidade de encaminhamentos dos usuários para outros profissionais do sistema de saúde. Ao considerar que uma das diretrizes da atenção básica é sua resolutividade, buscando sanar problemas de saúde dos usuários no âmbito da própria unidade de saúde, poderíamos concluir que a ESF em SC estaria cumprindo seu papel. Contudo, se tal achado é resultado de uma deficiência na estrutura e organização dos sistemas de referência e contrarreferência, que envolve o acesso aos demais níveis de atenção à saúde, tal situação poderia indicar que o sistema de saúde não cumpre à diretriz de integralidade do SUS.

A avaliação do impacto da ESF nos indicadores de saúde de uma população é uma tarefa desafiadora, uma vez que os fatores determinantes da saúde vão além da efetividade da atenção básica, como as condições de vida da população (escolaridade, oferta de emprego, saneamento básico, entre outros fatores). Para ilustrar, Monteiro et al.1515 Monteiro CA, Benicio MHDA, Konno SC, Silva ACFd, Lima ALLd, Conde WL, et al. Causas do declínio da desnutrição infantil no Brasil, 1996-2007. Rev Saúde Pública 2009; 43: 35-43. evidenciou uma redução de 50% na prevalência de desnutrição no Brasil de 1996 a 2007, explicados, por ordem de importância, à maior escolaridade das mães, melhoria do poder aquisitivo dos mais pobres, acesso à assistência à saúde e melhores condições de saneamento. Em estudo realizado em quatro cidades do nordeste brasileiro, verificou-se que as condições socioeconômicas a nível familiar e sociossanitário anularam possíveis diferenças nos indicadores de saúde infantil em diferentes perfis de cobertura assistencial (sem cobertura, PACS, PSF, e PSF/PACS)6Roncalli AG, Lima KC. Impacto do Programa Saúde da Família sobre indicadores de saúde da criança em municípios de grande porte da região Nordeste do Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11: 713-24.. Os autores concluíram que a existência "per se" da ESF não garantiu melhores indicadores, sendo a avaliação do grau de implementação em cada realidade, uma estratégia necessária para a determinação da efetividade da ESF.

A despeito desta limitação, os resultados do presente estudo revelaram que os municípios catarinenses apresentaram uma sensível melhoria no indicador de impacto no período analisado. Partiu-se do pressuposto que um município que possua em seu território uma atenção básica resolutiva e abrangente apresente taxas de internação hospitalar por doenças como a asma, insuficiência cardíaca, pneumonia e infecções intestinais em menor escala comparados àqueles em que a atenção básica seja ineficaz e incipiente. A escolha destas enfermidades deveu-se à sua relação com a atenção básica1616 Mendes EV. A atenção primária à saúde no SUS. Fortaleza: Escola de Saúde Pública do Ceará; 2002. e a simplicidade de avaliação, muito embora existam propostas mais abrangentes na literatura que incluem uma lista maior de enfermidades e condições de saúde sensíveis à atenção básica1717 Conill EM. Ensaio histórico-conceitual sobre a Atenção Primária à Saúde: desafios para a organização de serviços básicos e da Estratégia Saúde da Família em centros urbanos no Brasil. Cad. Saúde Pública 2008; 24(suppl): S7-16..

Por fim, analisamos possíveis variáveis associadas a uma boa evolução da implantação da ESF. Apesar de estatisticamente não significante, municípios de maior porte, com maior investimento próprio em saúde e com o sistema implantado há mais tempo, apresentaram melhor evolução na implantação no decorrer de cinco anos. De maneira oposta, em 2001 foi observado que municípios menores possuíam melhores indicadores de implementação1818 Henrique F, Calvo MCM. Grau de implantação do Programa Saúde da Família e indicadores sociais. Ciênc Saúde Coletiva 2009; 14(suppl 1): 1359-65.. Esses resultados podem refletir uma estruturação tardia da atenção básica nos grandes municípios por um lado, resultado dos esforços iniciais do governo federal terem estado prioritariamente voltados para os pequenos municípios, que com um pequeno número de equipes atingem altas taxas de cobertura. A introdução do PROESF, a partir de 2003, com forte estímulo ao desenvolvimento da ESF nos municípios com mais de 100 mil habitantes no Brasil, pode ser um dos fatores associados às mudanças observadas nesse estudo. A tendência de melhor grau de implantação entre aqueles municípios com maior participação financeira própria reforça a necessidade de investimentos na área de saúde como caminho para consolidar e incrementar a qualidade da atenção básica. Por fim, o grau de implantação da ESF nos municípios parece ser resultado de sua consolidação ao longo do tempo.

Assistimos hoje a uma profusão de instrumentos, relatórios e informações que não são acompanhados pelas mudanças e tomadas de decisões no contexto de gestão e organização do sistema de saúde1919 Alfradique ME, Bonolo PF, Dourado I, Lima-Costa MF, Macinko J, Mendonça CS, et al. Internações por condições sensíveis à atenção primária: a construção da lista brasileira como ferramenta para medir o desempenho do sistema de saúde (Projeto ICSAP - Brasil). Cad Saúde Pública 2009; 25: 1337-49.. Utilizar as informações coletadas como instrumento para a avaliação pode contribuir para a racionalização da oferta dos serviços de saúde e sua consequente melhoria. Este estudo, diferentemente de investigações recentes que utilizaram informações primárias para avaliação3Elias PE, Ferreira CN, Alves MCG, Cohn A, Kishima V, Escrivão Junior A, et al. Atenção básica em saúde: comparação entre PSF e UBS por estrato de exclusão social no município de São Paulo. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11: 633-41.

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- 6Roncalli AG, Lima KC. Impacto do Programa Saúde da Família sobre indicadores de saúde da criança em municípios de grande porte da região Nordeste do Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11: 713-24., fez uso das informações disponibilizadas nos sistemas de informação em saúde. Tal abordagem possui limitações quanto à avaliação de alguns indicadores da atenção básica, mas valoriza a sistematização da coleta e registro da informação e contribui para que a mesma seja cada vez mais fidedigna. Verificamos um indício de melhoria dos registros ao comparar o número de municípios avaliados no estudo de Henrique e Calvo7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19. (n = 125) com os 244 analisados no presente, ambos utilizando o critério de completude de informação para incluir os municípios nas análises.

Podemos concluir, no geral, que os municípios de Santa Catarina melhoraram em todos os indicadores utilizados na avaliação da Estratégia de Saúde da Família entre os períodos de 2004 e 2008. Assim como em avaliação realizada em período anterior7Henrique F, Calvo MCM. Avaliação do Programa Saúde da Família nos municípios do Estado de Santa Catarina, Brasil Cad Saúde Pública 2008; 24: 809-19., as melhorias mais importantes estiveram relacionadas à cobertura e ao impacto, com melhorias apenas modestas no indicador de indício de mudança do modelo assistencial. Tal resultado chama a atenção para a necessidade de revisão dos processos de trabalho nas unidades de ESF, assim como suscita uma investigação mais profunda sobre os fatores determinantes de um baixo número de visitas médicas, encaminhamentos ao especialista, atendimento de enfermeiros e solicitações de exames de patologia clínica, em relação ao número de consultas médicas. Não obstante os nossos achados, cautela é necessária ao interpretá-los, uma vez que a utilização da cobertura potencial como proxy de estrutura e a taxa de internações por causas sensíveis à atenção básica como indicador de resultado podem não discriminar de maneira sensível a qualidade da atenção básica dos municípios.

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Autor correspondente: Filipe Ferreira da Costa Programa de Pós-graduação em Educação Física Centro de Desportos, Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário, Trindade, CEP: 88040-900, Santa Catarina, SC, Brasil E-mail: filipefcosta_1@hotmail.com
Conflito de interesses: nada a declarar
Fonte de financiamento: nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2011
  • Revisado
    15 Set 2011
  • Aceito
    17 Out 2011
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