Resumos
OBJETIVO:
Analisar a atuação dos profissionais das unidades de emergência em saúde para notificação dos casos de violência infanto-juvenil, considerando características sociodemográficas, categoria profissional e dificuldades.
MÉTODOS:
Estudo transversal, com amostra casual simples (n=200), do universo de 523 profissionais de Feira de Santana, Bahia, distribuídos entre um hospital geral regional e seis policlínicas. Foram realizadas análises bivariadas e medidas de associação para determinar significância estatística.
RESULTADOS:
A maioria dos profissionais era do sexo feminino (82,5%), com idade entre 20 e 40 anos (75,5%), técnicos de enfermagem (52,5%) e enfermeiros (22,5%), sendo que 69,0% tinha contrato temporário de trabalho. A notificação foi registrada por 69,5% e 60,0% solicitaram parecer de outro profissional, 54,0% conversaram com familiares e 42,9% notificaram no Sistema de Vigilância a Acidentes e Violência (VIVA). Na categoria técnico de enfermagem foi verificada significância estatística para notificação aos setores de referência, com intervalo de confiança de 95% (IC95%) 1,28 - 2,09 e para o Sistema VIVA (IC95% 1,06 - 7,40). Na atuação dos médicos, o resultado significante foi não solicitar parecer a outro profissional (IC95% 1,02 - 3,51); não ter receio de envolvimento judicial (IC95% 1,19 - 4,06) e ter formação nessa área (IC95% 1,21 - 5,00). As principais dificuldades citadas foram omissão familiar (91,5%), receio de envolvimento com sistema judicial (63,5%) e falta de capacitação (47,0%).
CONCLUSÃO:
A maioria dos casos de violência atendidos nas unidades de emergência foi notificada, entretanto, menos de 50% dos profissionais não notificaram no Sistema VIVA, apontando necessidade de investimento institucional em apoio técnico e qualificação permanente. Ações direcionadas à notificação fortalecem instituições e responsabilizam o setor para atendimento e proteção às vítimas.
Violência; Sistemas de saúde; Emergências; Notificação de abuso; Criança; Adolescente
INTRODUÇÃO
A violência sempre fez parte da experiência humana, mas atualmente ocupa lugar de destaque nas agendas políticas e de organizações nacionais e internacionais, responsáveis pelas iniciativas e propostas de atuação voltadas à prevenção, intervenção e garantia dos direitos humanos11. Baierl LF. Medo socia: da violência visível ao invisível da violência. São Paulo: Cortez; 2004.. O reconhecimento da violência infanto-juvenil como problema social tem apontado a necessidade de discussão e mobilização política e social, em nível mundial. A magnitude do fenômeno nos diferentes contextos e países tem mostrado a importância do envolvimento de diversos segmentos e setores sociais na implementação de programas e ações, assim como nos aspectos cognitivos, do desenvolvimento e da integração social da população infanto-juvenil.
Documentos internacionais como a Declaração dos Direitos Humanos (1948) e dos Direitos da Criança (1959) tiveram repercussões no Brasil, porém, apenas nas décadas de 1980, com a Constituição, e 1990, com a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a violação dos direitos desse grupo populacional passou a ter destaque no cenário nacional22. Gonçalves HS, Ferreira AL. A notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes por profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2002; 18(1): 315-9.. O ECA se apresenta como um instrumento social e do poder público para transformar a realidade das vítimas quanto às diferentes manifestações da violência, seja violência social, negligência, violência física, exploração sexual, entre outras formas de violação dos direitos humanos11. Baierl LF. Medo socia: da violência visível ao invisível da violência. São Paulo: Cortez; 2004.,33. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Notificação de maus-tatos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2002..
Integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), as unidades de emergência constituem um dos importantes setores de assistência, integrando uma organização privilegiada para a análise da dimensão da violência, uma vez que, nesses serviços, o fenômeno adquire visibilidade, fazendo parte do processo de trabalho e da interação entre profissionais e clientela44. Moura ATMS, Moraes CL, Reichenheim ME. Detecção de maus-tratos contra criança: oportunidades perdidas em serviços de emergência na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2008; 24(12): 2926-36.. Ao considerar as unidades de emergência como serviços sentinelas, os profissionais dessas unidades devem estar aptos a identificar e realizar os procedimentos e encaminhamentos relacionados aos casos de violência, especialmente no que se refere à notificação no Sistema de Vigilância a Violências e Acidentes (VIVA), do Ministério da Saúde. Esse sistema tem a finalidade de conhecer a dimensão e o perfil das causas externas atendidas, possibilitando aproximação da real situação, especialmente nos casos das lesões de menor gravidade, que não determinaram morte ou internações, considerando o forte impacto desses eventos na saúde, assim como a alta demanda desses casos nas unidades de emergência55. Gawryszewski VP, Silva MMA, Malta DC, Mascarenhas MDM, Costa VC, Matos SG, et al. A proposta da rede de serviços sentinela como estratégia da vigilância de violências e acidentes. Ciênc Saúde Coletiva 2007; 11(Suppl 0): 1269-78..
É válido salientar que o sistema VIVA foi implantado nas diferentes regiões do Brasil, em 2006, assumindo a responsabilidade de monitorar os eventos violentos não fatais e vítimas, nos diversos segmentos populacionais e cursos da vida, atendidos no SUS66. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Viva: vigilância de violências e acidentes, 2006 e 2007. Brasília: Ministério da Saúde; 2009..
A identificação e notificação da violência às autoridades competentes é um passo decisivo para o seu enfrentamento, assim a inserção dos profissionais de saúde nesse processo torna-se crucial, pela posição privilegiada que ocupam no atendimento das consequências mais evidentes77. Malta DC, Lemos MSA, Silva MMA, Rodrigues EMS, Gazal-Carvalho C, Morais Neto OL. Iniciativas de vigilância e prevenção de acidentes e violências no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Epidemiol Serv Saúde 2007; 16(1): 45-55.. Esses profissionais apresentam-se como agentes de proteção, com responsabilidade de acionar o apoio da equipe multidisciplinar através dos núcleos de vigilância e assistência, assim como viabilizar o processo de notificação e encaminhamento dos casos suspeitos ou confirmados22. Gonçalves HS, Ferreira AL. A notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes por profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2002; 18(1): 315-9..
Este estudo tem como objetivo analisar a atuação dos profissionais nas unidades de emergência no processo de notificação dos casos de violência infanto-juvenil, considerando características sociodemográficas, categoria profissional e principais dificuldades enfrentadas.
METODOLOGIA
Estudo transversal realizado com amostragem dos profissionais de saúde integrantes das unidades de emergência de Feira de Santana, Bahia. Foram incluídas no estudo todas as unidades que prestam esse tipo de assistência no município, perfazendo um total de 7, distribuídas entre 1 hospital geral regional do estado (Clériston Andrade), com 523 profissionais e 6 policlínicas, com 238 profissionais, distribuídos entre essas unidades: Tomba (57), George Américo (43), Parque Ipê (38), Rua Nova (44), Feira X (40) e Distrito de Humildes (18), as quais foram representadas pelas categorias de médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, cirurgiões-dentistas e assistentes sociais.
O cálculo da amostragem foi casual simples, considerando o total de 523 técnicos, a prevalência estimada foi de 20%, o erro padrão de 5% e nível de confiança de 95%, resultando num tamanho amostral de 200. Foram incluídos no estudo aqueles que tinham mais de um ano como efetivos, faziam parte do quadro de funcionários e estavam desempenhando suas atividades no período da coleta.
Um questionário padronizado foi desenvolvido para estudar a atuação profissional diante dos casos e as variáveis do estudo foram selecionadas com base na literatura88. Lima MCC. Conhecimento e atuação dos profissionais da Atenção Básica de Saúde de Feira de Santana-BA frente à violência contra crianças e adolescentes [dissertação de mestrado]. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; 2008.,99. Pires JM, Goldani MZ, Vieira EM, Nava TR, Feldens L, Castilhos K, et al. Barreiras, para a notificação pelo pediatra, de maus-tratos infantis. Rev Bras Saúde Mater Infant 2005; 5(1): 103-8.. A variável desfecho foi a notificação dos casos, suspeitos ou confirmados, aos órgãos competentes, considerando os atendimentos nos últimos seis meses (evitando viés de memória). As variáveis descritoras do desfecho foram aquelas com possível influência na notificação: (1) características sociodemográficas: sexo, faixa etária, situação conjugal, presença de filhos; (2) características profissionais: categoria profissional, especialização, tempo de experiência na categoria e no serviço de emergência, tipo de vínculo profissional; (3) casos atendidos de violência: física, sexual, negligência/abandono; (4) atuação profissional nos casos de violência: solicitar parecer de outro profissional, conversar com a família, questionar a criança, notificar a órgãos competentes, preencher a ficha do sistema VIVA; encaminhamentos: Conselho Tutelar, polícia, Ministério Público; credibilidade nas instâncias de referência: confirmação/identificação, denúncia, encaminhamento/acompanhamento dos casos; (5) capacitação na temática: oferecimento pela unidade e interesse em capacitação na temática; (6) dificuldades para notificação: receio de envolvimento com a justiça; receio de retirar a criança da família, retaliações pelo agressor, falta de formação profissional e omissão da família.
O acesso às unidades de emergência para a coleta de dados foi documentado e autorizado pela Secretaria de Saúde (Setor de Educação Permanente). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado pelos profissionais, após esclarecimento dos objetivos da pesquisa, garantia de anonimato, confidencialidade e caráter voluntário de participação. O questionário foi respondido de forma individual e sigilosa, recebendo, posteriormente, um código numérico e acondicionado em envelope lacrado. A coleta foi executada no período de outubro a dezembro de 2010. Para processamento dos dados foi utilizado o programa SPSS, versão 12.0. Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva, análise bivariada e medida de associação razão de prevalência (RP) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), utilizando-se o teste do qui-quadrado (χ22. Gonçalves HS, Ferreira AL. A notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes por profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2002; 18(1): 315-9.) de Pearson, com valor de p ≤ 0,05.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana, protocolo nº 057/2010, CAAE 0055.0.059.000-10. Assinalamos que este artigo constitui resultado de pesquisa original dos autores, não possuindo em nenhuma instância conflitos de interesses.
RESULTADOS
Foram estudados 200 profissionais, a partir do universo de profissionais (n = 523), considerando possíveis perdas durante o processo de coleta de dados.
Entre as características sociodemográficas estudadas (Tabela 1), os resultados apontaram a maioria feminina (82,5%), nas faixas entre 20 e 40 anos de idade (75,5%), casados ou com união consensual (61,0%) e com filhos (60,0%). Quanto às características profissionais: 52,5% eram técnicos de enfermagem, 22,5% enfermeiros, 17% médicos, 54% com especialização; 48% tinham até 5 anos de experiência profissional, sendo que a maioria (71,0%) atua em unidades de emergência e com contrato temporário de trabalho (69,0%).
Nos últimos 6 meses 35,7% dos profissionais informaram ter atendido pelo menos um caso de violência infanto-juvenil. Nesse grupo, os tipos de violência atendidos pelos profissionais são: física (63,4%), violência sexual (43,7%) e negligência/abandono (33,8%). Entre os procedimentos realizados diante do caso, foi destacada a solicitação de parecer a outro profissional (60,0%), diálogo com a família (54,0%), notificação aos órgãos competentes (69,5%). Entretanto, apenas 42,9% (n = 56) dos profissionais preencheram a ficha de notificação do sistema VIVA. A maioria relatou encaminhar os casos para o Conselho Tutelar (95,0%) e 41,5% referiram acionar a polícia (41,5%). No que se refere à credibilidade nas instâncias de referência, a maior parte dos profissionais assinalou confiança nas instâncias, principalmente quanto ao encaminhamento e acompanhamento dos casos (65,0%).
A capacitação para atuação nos casos de violência e no processo de notificação foi relatada por apenas 30,5%, sendo que 82,0% afirmaram ter atuação diferenciada após capacitação nessa área e 95,5% mostraram interesse em receber formação nessa temática. Entre as dificuldades para notificação aos órgãos competentes, foi assinalada a omissão familiar (91,5%), receio de envolvimento profissional com o sistema judicial (63,5%) e a falta de formação profissional frente aos procedimentos nos casos de violência (47,0%).
Na análise das associações entre notificação do caso e variáveis ligadas às características profissionais, capacitação na temática, encaminhamentos e credibilidade nas instâncias de referência (Tabela 2) foi verificado resultado significante (p ≤ 0,05): quanto à categoria dos profissionais (p ≤ 0,001); ter recebido capacitação na unidade em que trabalha (p = 0,041); encaminhar os casos atendidos para a polícia (p = 0,001); ter credibilidade nas instâncias quanto à confirmação/identificação dos casos (p = 0,049).
No que diz respeito à atuação, segundo a categoria profissional (Tabela 3), foi observada significância estatística, com associações positivas para alguns aspectos da atuação: na categoria de médicos, quanto à não solicitação de parecer a outro profissional (RP = 1,90; IC95% 1,02 - 3,51); não ter receio de envolvimento judicial (RP = 2,20; IC95% 1,19 - 4,06) e não faltar formação profissional na temática (RP = 2,46; IC95% 1,21 - 5,00). Entre os técnicos de enfermagem verificou-se significância estatística para notificação aos órgãos competentes (RP = 1,64; IC95% 1,28 - 2,09) e preenchimento da ficha de notificação do sistema VIVA (RP = 2,81; IC95% 1,06 - 7,40). Observou-se ainda que as categorias de médico e de enfermeiro mostraram resultados estatísticos com associações negativas quanto à notificação (RP = 0,39; IC95% 0,16 - 0,96) e (RP = 0,39; IC95% 0,16 - 0,96), respectivamente, assim como os enfermeiros, quanto ao preenchimento da ficha de notificação do sistema VIVA (RP = 0,51; IC95% 0,29 - 0,89). Esses mesmos resultados foram verificados com os técnicos de enfermagem, quanto ao receio de envolvimento judicial (RP = 0,72; IC95% 0,53 - 0,98) e falta de formação profissional (RP = 0,71; IC95% 0,55 - 0,93).
DISCUSSÃO
Diante dos casos de violência e sob a perspectiva dos serviços sentinela, a unidade de emergência representa uma das "portas de entrada" do Sistema de Saúde que funciona como oportunidade para revelação do caso, o que torna esse setor estratégico para o levantamento de indicadores da violência, suas diversificadas manifestações e consequências44. Moura ATMS, Moraes CL, Reichenheim ME. Detecção de maus-tratos contra criança: oportunidades perdidas em serviços de emergência na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2008; 24(12): 2926-36.. É válido salientar que a Atenção Básica, representada pela Estratégia de Saúde da Família (ESF), também se configura como acesso ao sistema e assume igual responsabilidade de identificação e notificação dos casos de violência, principalmente por suas características de processo de trabalho quanto à abordagem das famílias, visitas domiciliares, acolhimento e vínculo1010. Deslandes SF. O atendimento às vítimas de violência na emergência: "prevenção numa hora dessas?" Ciênc Saúde Coletiva 1999; 4(1): 81-94.,1111. Rocha PM, Uchoa AC, Rocha NSPD, Souza ECF, Rocha ML, Pinheiro TXA. Avaliação do Programa Saúde da Família em municípios do Nordeste brasileiro: velhos e novos desafios. Cad Saúde Pública 2008; 24(Suppl 1): S69-S78..
A notificação da violência infanto-juvenil nas unidades de emergência permite caracterizar os limites e dificuldades enfrentadas pelos profissionais, destacando-se o excesso de atendimentos, a falta de privacidade, a ausência de recursos, bem como o pouco treinamento profissional1212. Arpini DM, Soares ACOE, Bertê L, Dal Forno C. A revelação e a notificação das situações de violência contra a infância e a adolescência. Psicol Rev 2008; 14(2): 95-112.. À invisibilidade do fenômeno somam-se ainda a descrença na responsabilização pelos órgãos competentes e manutenção do ciclo de violação pela aproximação entre vítima e agressor99. Pires JM, Goldani MZ, Vieira EM, Nava TR, Feldens L, Castilhos K, et al. Barreiras, para a notificação pelo pediatra, de maus-tratos infantis. Rev Bras Saúde Mater Infant 2005; 5(1): 103-8.,1313. Russel M, Lazenbatt A, Freeman R, Marcenes W. Child physical abuse: health professionals' perceptions, diagnosis and response. Br J Community Nurs 2004; 9(8): 332-8.. Essas evidências comprometem a eficiência da rede de atendimento, tendem a banalizar e postergar as medidas de proteção, reforçando a necessidade de sensibilização e capacitação dos profissionais quanto à importância da identificação e notificação dos casos no cotidiano do trabalho.
Entre as dificuldades apontadas no presente estudo, o receio de envolvimento judicial, reportado por grande proporção dos profissionais, corrobora achados de outros pesquisadores que verificaram essa mesma característica, atribuída à ausência ou insuficiência de suporte institucional e à falta de alcance dos profissionais sobre as relações sociais conflituosas presentes na violência doméstica1414. Saliba O, Garbin CAS, Garbin AJI, Dossi AP. Responsabilidade do profissional de saúde sobre a notificação de casos de violência doméstica. Rev Saúde Pública 2007; 41(3): 472-7.. A criação de uma dinâmica de responsabilidade institucional para a notificação dos casos e a preservação da vida e dignidade da vítima torna-se fundamental para o sucesso das ações de enfrentamento da violência nos serviços de emergência. Nesse processo, para as respectivas unidades de emergência, a identificação das atribuições deve ser específica por categoria de profissionais, chefia imediata e diretoria (serviço social, profissionais de saúde e direção das instituições), quanto ao preenchimento dos formulários referentes à notificação. Ao compreender que a notificação é uma responsabilidade (ética e legal) do profissional de saúde, a instituição deve garantir essa prática, protegendo o indivíduo de todas as pressões e compartilhando responsabilidades pelo caso1010. Deslandes SF. O atendimento às vítimas de violência na emergência: "prevenção numa hora dessas?" Ciênc Saúde Coletiva 1999; 4(1): 81-94..
Na referida pesquisa, muito embora a maioria dos profissionais tenha negado formação específica na área, cerca de 70% confirmaram a notificação dos casos às instâncias de referência (Conselhos Tutelares), com resultados significantes para a notificação nas categorias de médico, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Esses achados podem estar sugerindo possibilidade de articulação entre o Sistema de Saúde e o Sistema de Garantia de Direitos (SGDCA), fundamental ao fortalecimento da Rede de Atendimento e de Proteção às crianças e adolescentes vítimas de violência. Estudos sugerem que o estabelecimento de uma relação intrínseca e coesa entre esses sistemas estruturam-se a partir de aspectos como o retorno/divulgação da informação da notificação para o profissional, a fim de fortalecer o processo de notificação nos serviços1515. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17(9): 2305-17..
A abordagem dos casos de violência familiar exige uma prática profissional social e comprometida. A literatura recomenda que técnicos (os profissionais) e instituições devam esclarecer sobre a obrigatoriedade e o teor das notificações para as famílias22. Gonçalves HS, Ferreira AL. A notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes por profissionais de saúde. Cad Saúde Pública 2002; 18(1): 315-9.,33. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Notificação de maus-tatos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2002..
Nessa negociação, a notificação deve ser apresentada como veículo de acesso às instituições e serviços, necessário para prevenção e intervenção, diminuindo efeitos e fatores que favorecem a violência1414. Saliba O, Garbin CAS, Garbin AJI, Dossi AP. Responsabilidade do profissional de saúde sobre a notificação de casos de violência doméstica. Rev Saúde Pública 2007; 41(3): 472-7..
Estudos apontam a influência positiva da formação, do acesso à capacitação e sensibilização na área sobre a atitude dos profissionais de saúde em notificar casos de violência infanto-juvenil1616. Vulliamy AP, Sullivan R. Reporting child abuse: pediatricians' experiences with child protection system. Child Abuse Negl 2000; 24(11): 1461-70.,1717. Gomes R, Junqueira MFPS, Silva CO, Junger WL. A abordagem dos maus-tratos contra a criança e o adolescente em uma unidade pública de saúde. Ciênc Saúde Coletiva 2002; 7(2): 275-83.. Os achados da presente pesquisa mostraram que, embora a maioria não tivesse capacitação específica no assunto, a notificação dos casos de violência foi relatada por 69,5% dos profissionais, sugerindo que a prática da aproximação e escuta contribui para ampliar a compreensão dos diversos aspectos relacionados à violência, nos serviços de saúde.
Estudiosos recomendam que as capacitações sejam oportunidades para trabalhar principais dificuldades dos profissionais de saúde no atendimento das vítimas que recorrem ao serviço, bem como com os principais procedimentos para notificação, considerando a importância de formação na área1818. Jaramillo DEV, Uribe TMJ. Rol de lpersonal de salud em laatención a lãs mujeres maltratadas. Inv Educ Enferm 2001; 19(1): 38-45.. Pesquisas mostram que essas lacunas estão presentes nas disciplinas dos cursos de graduação em saúde, que não contemplam em seus currículos e programas os múltiplos aspectos relacionados à violência1919. Finkelhor D, Zellman GL. Flexibe reporting options for skilled child abuse professionals. Child Abuse Negl 2000; 15(4) :335-41..
Os achados do presente estudo, que verificaram que cerca de 70% dos profissionais não possuem capacitação nessa área, corroboram outras pesquisas realizadas no mesmo município, nas quais apenas 30,5% dos profissionais de saúde da Atenção Básica (ESF e Unidades Básicas de Saúde) encontravam-se capacitados para atuar no processo de identificação e notificação dos casos de violência88. Lima MCC. Conhecimento e atuação dos profissionais da Atenção Básica de Saúde de Feira de Santana-BA frente à violência contra crianças e adolescentes [dissertação de mestrado]. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; 2008.,1818. Jaramillo DEV, Uribe TMJ. Rol de lpersonal de salud em laatención a lãs mujeres maltratadas. Inv Educ Enferm 2001; 19(1): 38-45.
19. Finkelhor D, Zellman GL. Flexibe reporting options for skilled child abuse professionals. Child Abuse Negl 2000; 15(4) :335-41.-2020. Goldman J, Salus MK, Wolcott D, Kennedy KY. A coordinated response to child abuse and neglect: The foundation for practice. Child abuse and neglet user manual series. Washington: Department of Health and Human Services; 2003.. Quanto à credibilidade nas instâncias do SGDCA, evidências indicam que essa conduta pode influenciar de forma positiva ou negativa o processo de notificação2121. Melton GB. Mandated reporting: a policy without reason. Child Abuse Negl 2005; 29(1): 9-18.,2222. Noguchi MS, Assis SG, Santos NC. Entre quatro paredes: atendimento fonoaudiológico a crianças e adolescentes vítimas de violência. Ciênc Saúde Coletiva 2004; 9(4): 963-73.. No presente estudo foi observada associação positiva e significante entre notificação e credibilidade nas instâncias, quanto à identificação e confirmação dos casos, sugerindo a articulação entre as práticas dos profissionais dos diversos setores envolvidos com atendimento, defesa e proteção. No que diz respeito aos encaminhamentos, o Conselho Tutelar, órgão permanente, autônomo e não jurisdicional, é a instituição de referência no cumprimento dos direitos, acolhendo e averiguando as denúncias33. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Notificação de maus-tatos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.,2323. Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: Ministério da Justiça; 1990.. Os resultados apresentados nesta pesquisa destacam que a maioria dos profissionais encaminhou os casos ao Conselho Tutelar, muito embora uma proporção considerável tenha encaminhado os casos para o setor da polícia, cujas atribuições são distintas. Na perspectiva da Linha do Cuidado Integral às crianças e adolescentes vítimas de violência, o setor de polícia (Segurança Pública) não faz parte do grupo de instituições de atendimento e encaminhamento das vítimas, muito embora faça parte da rede de instâncias de proteção civil, face aos eventos sociais violentos2424. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.. Nesse contexto, ao mesmo tempo em que a maior parte dos profissionais encaminhou adequadamente os casos, uma parcela deles considera a violência infanto-juvenil como problema na esfera da Segurança Pública. Os resultados da presente pesquisa corroboram achados de outros estudos que mostraram inadequação de condutas e encaminhamentos frente às vítimas de violência, contribuindo para a perpetuação do ciclo de vitimização88. Lima MCC. Conhecimento e atuação dos profissionais da Atenção Básica de Saúde de Feira de Santana-BA frente à violência contra crianças e adolescentes [dissertação de mestrado]. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; 2008.,2525. Sanders T, Cobley C. Identifying non-accidental injury in children presenting to A & E departaments: an overview of the literature. Accid Emerg Nurs 2005; 13(2): 130-6..
O receio de confrontação com o agressor, assim como o impacto dessas ameaças nos familiares, são dificuldades apontadas pelos profissionais para justificar a não notificação dos casos de violência2626. Ferreira AL, Gonçalves HS, Marques MJV, Moraes SRS. A prevenção da violência contra criança na experiência do Ambulatório de Atendimento à Família: entraves e possibilidades de atuação. Ciênc Saúde Coletiva 1999 4(1): 123-30.. A proximidade do agressor faz com que a revelação seja difícil, aumentando o risco de reincidência, e compromete o núcleo familiar, muitas vezes conivente com a vitimização. No presente estudo, os profissionais relataram essa, entre outras dificuldades, corroborando possíveis associações entre notificação e fatores ligados aos agressores e ao meio ambiente familiar2727. Scott L. Child protection: the role of communication. Nurs Times 2002; 98(18): 34-6.
28. Vetere A, Cooper J. Setting up a domestic violence service. Child Adolesc Mental Health 2003; 8(2): 61-7.-2929. Keshavarz R, Kawashima R, Low C. Child abuse and neglect presentations to a pediatric emergency department. J Emerg Med 2002; 23(4): 341-5..
Na pesquisa de Feira de Santana, Bahia, merece ser ressaltada a associação significante entre notificação no sistema VIVA pela categoria dos técnicos de enfermagem, sugerindo a importância da formação profissional em todas as categorias e níveis de atendimento no setor saúde55. Gawryszewski VP, Silva MMA, Malta DC, Mascarenhas MDM, Costa VC, Matos SG, et al. A proposta da rede de serviços sentinela como estratégia da vigilância de violências e acidentes. Ciênc Saúde Coletiva 2007; 11(Suppl 0): 1269-78.,66. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Viva: vigilância de violências e acidentes, 2006 e 2007. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.,3030. Lima JS, Deslandes SF. A notificação compulsória do abuso sexual contra crianças e adolescentes: uma comparação entre os dispositivos americanos e brasileiros. Interface (Botucatu) 2011; 15(38): 819-32..
A complexidade da notificação dos casos de violência na rede de saúde tem sido objeto de estudos em outros países (Estados Unidos e Austrália), onde as barreiras para notificação se iniciam pela falta de padronização dos registros, cujos indicadores apontam que casos notificados não são confirmados e uma grande proporção desses não recebe qualquer outro tipo de atendimento ou encaminhamento, demonstrando a importância do fortalecimento e estruturação da rede de proteção às vítimas3030. Lima JS, Deslandes SF. A notificação compulsória do abuso sexual contra crianças e adolescentes: uma comparação entre os dispositivos americanos e brasileiros. Interface (Botucatu) 2011; 15(38): 819-32..
Na presente pesquisa, foi verificado resultado significante na categoria de médicos quanto à não solicitação de um parecer a outro profissional. Esses resultados, possivelmente, podem ser consequência da dinâmica do serviço de emergência, exigindo atitudes imediatas, após rápidas avaliações, dificultando o desempenho de ações ampliadas e discussão dos casos suspeitos de violência, junto à equipe1010. Deslandes SF. O atendimento às vítimas de violência na emergência: "prevenção numa hora dessas?" Ciênc Saúde Coletiva 1999; 4(1): 81-94..
Por outro lado, os resultados dessa mesma pesquisa que apontaram resultados significantes para notificação e preenchimento da ficha de notificação do sistema VIVA, pelos técnicos de enfermagem, podem estar relacionados ao tempo mais prolongado no atendimento, promovendo maior proximidade e entrosamento das vítimas e familiares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o setor saúde venha empreendendo esforços quanto ao fortalecimento institucional e a articulação com a Rede de Prevenção, Atendimento e Garantia de Direitos/SGDCA, o cenário de violência na perspectiva de atendimento e notificação dos serviços de saúde é mais complexo do que o despreparo na formação profissional para o atendimento. Essa realidade sugere a necessidade de investimento nas ações e programas de educação continuada multidisciplinares nessa área.
A inadequação do modelo biomédico na formação dos profissionais exige novas alternativas para suprir as lacunas de formação. Nessa perspectiva, o setor saúde enfrenta o desafio de aprimorar e ampliar a infraestrutura, através de equipes capacitadas, com rotinas eficientes e gestão da institucionalização da notificação, para o atendimento às vítimas e família1515. Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Pires TO, Gomes DL. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17(9): 2305-17..
Recomenda-se que as lacunas dos resultados apresentados devem ser exploradas em pesquisas futuras, nas quais o tema de notificação da violência infanto-juvenil seja ampliado, com análises mais complexas de modelos de interações com as atividades de maior imersão nas unidades de emergência, de modo a compreender o funcionamento do contexto investigado.
REFERÊNCIAS
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- Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), Processo nº SUS 027/2009.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2015
Histórico
- Recebido
11 Abr 2013 - Revisado
24 Fev 2014 - Aceito
25 Jul 2014