Mervyn Susser, Professor Emérito da Escola de Saúde Pública da Universidade de Columbia, faleceu no dia 14 de agosto de 2014 em sua residência de Nova York, aos 92 anos de idade. Susser era um grande amigo dos brasileiros, tendo colaborado por muitos anos como membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Epidemiologia. Sua influência na área de Epidemiologia foi enorme na segunda metade do século XX, estendendo-se pelo século XXI, em especial no tocante a temas metodológicos, filosóficos e sobre a relação entre saúde e sociedade.

ANOS DE FORMAÇÃO, ENSINO E PESQUISA

Susser nasceu na África do Sul em 26 de setembro de 1921, e lá se formou em Medicina junto com sua esposa, Zena Stein, sua companheira por toda a vida. Ambos trabalharam em centros de saúde nas áreas rurais do país, o que muito os influenciou em suas reflexões sobre os determinantes sociais da doença e em sua postura ativa em prol dos direitos humanos.

Devido a dificuldades com a política do apartheid , o casal emigrou para a Inglaterra em 1956, onde Susser ocupou uma posição no Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade de Manchester. Em 1966, mudou-se para os Estados Unidos e tornou-se professor titular e chefe do Departamento de Epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Columbia, em Nova York. Em 1978, fundou o Centro Sergievsky, ligado à Universidade de Columbia, uma unidade para investigação de problemas neurológicos, psiquiátricos e sobre epidemiologia do desenvolvimento. Aposentou-se em 1990, mas continuou ligado à Universidade e a projetos em numerosos países, em especial sobre AIDS na África.

Susser e Stein sempre trabalharam juntos e tiveram papel relevante em todas as atividades que empreenderam. Até recentemente, a cada ano, o casal passava alguns meses na África do Sul, envolto em afazeres na luta contra a AIDS naquele pais, o que significava pesquisa, ensino e envolvimento na organização da assistência à população.

PUBLICAÇÕES

Susser publicou centenas de artigos científicos, mas os comentários aqui estão focados em seus livros. O primeiro deles foi Sociology in Medicine , em 1962, com o antropólogo William Watson¹1. Susser M, Watson W. Sociology in Medicine. London: Oxford University Press; 1962.. Nele estão as bases do seu entendimento sobre ciências sociais e saúde.

Na década seguinte, Susser reuniu em um livro, Causal Thinking in the Health Sciences , uma série de palestras que havia ministrado na Universidade de Columbia²2. Susser M. Causal Thinking in the Health Sciences: Concepts and Strategies in Epidemiology. New York: Oxford University Press; 1973.. O livro foi publicado em 1973 e se tornou sua obra mais conhecida.

Em 1975, publicou o relato de um estudo observacional sobre a fome na Holanda durante a Segunda Guerra Mundial e suas repercussões sobre a saúde, Famine and Human Development³3. Stein Z, Susser M, Saenger G, Marolla F. Famine and Human Development: the Dutch Hunger Winter of 1944-45.; New York: Oxford University Press 1975.. Alguns anos depois, lançou o livro Diet in Pregnancy , sobre o Projeto Prenatal, um estudo randomizado sobre suplementação nutricional de gestantes⁴4. Rush D, Stein Z, Susser M. Diet in Pregnancy: a Randomized Controlled Trial of Nutritional Supplements. Birth Defects Orig Artic Ser 1980; 16(3): i-xxvi, 1-197.. Finalmente, em 2009, publicou Eras in Epidemiology: the Evolution of Ideas⁵5. Susser M, Stein Z. Eras in Epidemiology: the Evolution of Ideas.; New York: Oxford University Press 2009..

APRECIAÇÃO SOBRE MERVYN SUSSER E ZENA STEIN

Durante a minha estada como estudante de doutorado em Columbia, 1974 - 1977, tive Dr. Susser como orientador. Devia dizer orientador principal, pois, em verdade, fui orientado por ambos, Susser e Stein. Sempre com hora marcada, by appointment , como é o costume naquelas paragens, eu os procurava regularmente. Alguns meses depois de chegar a Nova York, tive a sorte de ver o Departamento de Epidemiologia se mudar para o andar térreo do prédio de 31 andares onde eu morava, no Centro Médico da Columbia, mais precisamente, na Haven Avenue , uma extensão da Rua 168 West, em Uptown Manhattan . Tornei-me presença em tempo integral naquele departamento, o que me facilitou envolvimento com projetos que lá se desenvolviam. Fui assistente de pesquisa, research assistant , em um deles, o Projeto Prenatal, um ensaio randomizado de cunho preventivo, realizado no Hospital do Harlem⁴4. Rush D, Stein Z, Susser M. Diet in Pregnancy: a Randomized Controlled Trial of Nutritional Supplements. Birth Defects Orig Artic Ser 1980; 16(3): i-xxvi, 1-197.. Foi trabalhando nesse projeto que tive minha verdadeira iniciação em metodologia científica. Meu trabalho de tese, orientado por Susser e Stein, foi retirado do material desse projeto. Também me envolvi em ensino para os estudantes da Faculdade de Medicina da Columbia e na tarefa de emitir pareceres sobre textos científicos. Nessa época, desenvolvi interesse em pesquisar a lógica da comunicação científica, guiado por Susser, que mais tarde foi editor do American Journal of Public Health . Esse período sedimentou meus conhecimentos e muito me ajudou quando mais tarde escrevi o livro Artigos Científicos: como Redigir, Publicar e Avaliar⁶6. Pereira MG. Artigos Científicos: como Redigir, Publicar e Avaliar. Rio de Janeiro: Editora Guanabara-Koogan, 2011..

Susser e Stein estiveram no Brasil várias vezes, uma das quais na Bahia, em 1994, como os principais convidados do Congresso Brasileiro de Epidemiologia. Alguns anos antes, eles estiveram em Brasília. Susser ministrou um seminário na Universidade de Brasília. Para mim, o contato com o casal resultou em momento de reflexão e mudança de posicionamento. O casal viu as dificuldades que enfrentávamos na universidade pela carência de pessoal especializado - éramos apenas dois professores de Epidemiologia - e recursos escassos, demanda por aulas, reuniões e pouco apoio administrativo. Perguntei a Susser o que ele faria se estivesse em minha posição. Essa foi sua resposta: How about a book? . Ou seja, por que não escrever um livro? Foi o início de Epidemiologia: Teoria e Prática , que publiquei anos depois⁷7. Pereira MG. Epidemiologia: Teoria e Prática., Rio de Janeiro: Editora Guanabara-Koogan 1995..

Nas décadas que se seguiram ao término dos meus estudos de pós-graduação, voltei frequentemente à minha Alma Mater norte-americana, a Universidade de Columbia. A amizade com o casal foi facilitada por seu costume de frequentemente reunirem em sua residência estudantes e colaboradores, atuais e antigos. Toda vez que eu visitava a cidade, comunicava-me com eles, frequentava a Universidade e era convidado para sua residência no fim de semana.

Susser e Stein continuaram sempre ligados à África do Sul. Numerosos estudantes sul-africanos faziam treinamento com eles na Universidade. O casal os recebia para estudo, mas também pelo fato de muitos serem perseguidos políticos. Não só sul-africanos, mas também estudantes de outros países foram beneficiados. Lembro-me de um jovem chileno, Elie Valencia, que conheci hospedado na própria residência do casal assim que ele chegou aos Estados Unidos. Comuniquei-me com ele em espanhol. Era perseguido político e não parecia ter mais de 20 anos de idade. Susser me disse que Elie não falava uma palavra de inglês. Eu perguntei como eles se comunicavam. Susser respondeu-me, na sua maneira simpática e paternal, que se davam muito bem. "Nós não dizemos uma palavra, mas rimos bastante um para o outro " acrescentou. Elie morou lá durante muito tempo. Anos depois, em almoço na residência de Susser e Stein, reencontrei Elie muito à vontade: falava inglês fluentemente e estava acompanhado de sua esposa e de um filho ainda de colo. Da maneira como interagiam, deduzi que se tornara membro da família.

Relato ainda duas outras passagens da minha vivência com o casal Susser e Stein em Nova York. A primeira foi em maio de 2001. Ao completar 80 anos de idade, um simpósio na Universidade de Columbia foi dedicado em honra de Mervyn Susser. No fim do simpósio, que durou todo um dia, foi lida uma mensagem enviada da África do Sul, cuja tradução reproduzo a seguir.

No dia seguinte ao simpósio, houve uma grande celebração em Hastings-on-Hudson, local de residência de Susser e Stein, nos arredores da cidade de Nova York. O mestre de cerimônia foi Ezra Susser, filho do casal e professor titular de Epidemiologia da Columbia. Na ocasião, seus numerosos ex-alunos e colaboradores deram depoimento sobre sua experiência com o Mestre. A cerimônia ocupou toda a tarde.

O segundo relato refere-se à última vez em que estive com o casal, em 2013, em sua bela e aconchegante residência às margens do Rio Hudson. Almoçamos Stein, Susser, minha esposa Cleire e eu. Saboreamos um vinho branco. Contaram-me detalhes da preparação do livro Eras in Epidemiology⁵5. Susser M, Stein Z. Eras in Epidemiology: the Evolution of Ideas.; New York: Oxford University Press 2009.. Após o almoço, demos um passeio por mais de uma hora pela vasta propriedade, coberta de vegetação exuberante e bem cuidada. Era um agradável dia de outono. Andávamos em duplas pelas trilhas. Susser conversava comigo e logo atrás Stein e Cleire. Ele estava bem disposto, ágil e sem dificuldade afastava enormes e pesados galhos de árvore, que teriam caído pelo caminho depois da última chuva. Parecia estar em ótima forma. Pensei naquele momento que teríamos Mervyn por muito tempo. Foi uma surpresa receber a notícia de seu falecimento. Viveu uma vida plena e produtiva até o fim. Zena continua saudável, dando continuidade ao frutífero trabalho do casal. Os familiares e numerosos amigos sentirão para sempre a falta de Mervyn Susser.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação