Estratégias de prevenção da transmissão do HIV para casais sorodiscordantes

Ronaldo Campos Hallal Juan Carlos Raxach Nêmora Tregnago Barcellos Ivia Maksud Sobre os autores

RESUMO

Introdução :

O emprego de antirretrovirais reduz a transmissão sexual do HIV, ampliando possibilidades de prevenção da sua transmissão em casais sorodiscordantes.

Objetivo:

Revisar a utilização de antirretrovirais combinados com outras estratégias na prevenção entre casais sorodiscordantes e analisar seu emprego no Brasil.

Métodos:

A revisão foi realizada na base de dados MEDLINE e nas bases incluídas na Biblioteca Virtual em Saúde.

Resultados:

Os artigos encontrados exibem quatro principais estratégias: (1) uso de preservativos; (2) hierarquização de riscos por exposição sexual; (3) emprego de antirretrovirais, especialmente o início precoce do tratamento (TASP) e profilaxia pré-exposição (PrEP); (4) redução de riscos na reprodução.

Discussão:

A TASP, com elevada eficácia na diminuição de transmissão sexual, e a PrEP, avaliada em casais sorodiscordantes, reduzem o risco de transmissão sexual do HIV em diferentes práticas sexuais, possibilitando individualizar as estratégias de prevenção.

Conclusões:

O uso combinado de novas e antigas estratégias possibilita construir uma política de prevenção para todos.

Palavras-chave:
Síndrome de imunodeficiência adquirida; Atenção à saúde; Sexualidade; Soropositividade para HIV; Serviços de saúde; Políticas públicas de saúde

INTRODUÇÃO

Os novos conhecimentos a respeito da redução de risco de transmissão sexual do HIV pelo emprego de estratégias combinadas ao uso de antirretrovirais (ARV) ampliam possibilidades de intervenção para casais sorodiscordantes (parceiros com sorologias distintas para o HIV). Esses relacionamentos são cada vez mais frequentes, dada a melhoria da qualidade e expectativa de vida das pessoas que vivem com HIV (PVH)11. Dunkle KL, Stephenson R, Karita E, Chomba E, Kayitenkore K, Vwalika C, et al. New heterosexually transmitted HIV infections in married or cohabiting couples in urban Zambia and Rwanda: an analysis of survey and clinical data. Lancet 2008; 371(9631): 2183-91..

Na situação da sorodiscordância, as identidades sociais e orientações sexuais podem ser flexíveis, com várias possibilidades de arranjos conjugais, além da monogamia. As noções de heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade podem variar segundo o entendimento dos sujeitos, sua trajetória e temporalidade22. van der Straten A, Gómez CA, Saul J, Quan J, Padian N. Sexual risk behaviors among heterosexual HIV serodiscordant couples in the era of post-exposure prevention and viral suppressive therapy. AIDS 2000; 14(4): F47-54..

Em 2010, o Ministério da Saúde (MS) publicou recomendações de emprego de ARV para prevenir a transmissão sexual do HIV utilizando profilaxia pós-exposição sexual (nPEP) e emprego da terapia antirretroviral (TARV) para reduzir o risco de transmissão sexual no contexto do desejo reprodutivo, fortalecendo o direito à reprodução33. Reis RK, Gir E. Convivendo com a diferença: o impacto da sorodiscordância na vida afetivo-sexual de portadores do HIV/AIDS. Rev Esc Enferm USP 2010; 44(3): 759-65..

O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS (UNAIDS) incluiu, entre suas metas no período 2010 - 2015, o que denominou "revolução das políticas e práticas de prevenção do HIV", propondo focalizar os esforços sobre pares sorodiscordantes estabelecendo novas intervenções que tenham impacto sobre a transmissão do HIV44. Monteiro S. Perspectivas sócio-históricas na saúde: concepções sobre prevenção - prevenção ao HIV/ AIDS: lições e dilemas. In: Fiocruz, editor. O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. 444 p..

Em abril de 2012, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou estratégias de prevenção para pares sorodiscordantes, recomendando o aumento da oferta de testagem e aconselhamento para casais e parceiros, além da oferta de TARV para o parceiro soropositivo, com objetivo de prevenir a transmissão sexual. Em 2014, o MS publica recomendação de estimular a antecipação do início da TARV, com objetivo de reduzir risco de transmissão, independentemente da contagem de LT-CD4+55. Coates TJ. What is to be done? AIDS 2008; 22(9): 1079-80..

Refletimos, sobre prevenção, a partir da possibilidade de administrar riscos de acordo com contextos específicos, considerando três planos que se interpenetram:

  1. o plano da formulação de políticas e da gestão;

  2. o plano dos sujeitos;

  3. o plano dos "operadores" da prevenção (equipes de saúde e ativistas).

Nesse sentido, situamos o debate sobre "gestão de risco" nos marcos do referencial de vulnerabilidade, considerando seus três níveis: social, programático e individual66. Cunha GH, Galvão MTG. Métodos contraceptivos e de prevenção da transmissão/reinfecção do vírus entre portadores de HIV/aids. Rev Rene 2011; 12(4): 699-708. 77. Hanif H, Bastos FI, Malta M, Bertoni N, Winch PJ, Kerrigan D. Where does treatment optimism fit in? Examining factors associated with consistent condom use among people receiving antiretroviral treatment in Rio de Janeiro, Brazil. AIDS Behav 2014; 18(10): 1945-54..

A possibilidade de utilizar antirretrovirais para prevenir a transmissão do HIV modifica o campo da atenção integral aos casais, até então baseado quase exclusivamente no estímulo ao uso de preservativos. Estratégias como uso da profilaxia pré-exposição (PrEP) podem contribuir para modificar o modelo de atenção, pela necessidade do seguimento de parcerias soronegativas de PVH, pois a cultura vigente na rede de saúde é o acompanhamento apenas das PVH88. Paiva V, Venturi G, França-Júnior I, Lopes F. Uso de preservativos: pesquisa Nacional MS / IBOPE, Brasil 2003. Disponível em: http://www.ip.usp.br/portal/images/ stories/Nepaids/Relatrios/uso_de_preservativos.pdf (Acessado em 08 de dezembro de 2014).
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99. Santos NJS, Buchalla CM, Fillipe EV, Bugamelli L, Garcia S, Paiva V. Mulheres HIV positivas, reprodução e sexualidade. Rev Saúde Pública 2002; 36(4 Suppl 0): 12-23.. Já o tratamento das PVH para prevenir a transmissão sexual (TASP) exige aconselhamento e abordagem da sexualidade continuada.

Este artigo tem como objetivo revisar a utilização individualizada de ARV para prevenção entre pares sorodiscordantes, combinada a outras medidas de prevenção, analisando cenários e implicações em seu emprego no Brasil.

METODOLOGIA

A revisão foi realizada através do MEDLINE e das bases incluídas na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). A última abarca publicações latino-americanas e, mais particularmente, brasileiras, utilizando informações das bases LILACS, Índice Bibliográfico Espanhol de Ciências da Saúde (IBECS), MEDLINE e SciELO. A escolha dessas bases permitiu a análise da literatura internacional, regional e local sobre o tema desta revisão.

Na MEDLINE foram utilizados, inicialmente, os descritores: hiv, acquired immunodeficiency syndrome, AIDS, transmission, prevention, control, serodiscordant couples e mixed status. Em uma segunda busca, o termo transmission foi retirado. Não foi estabelecido limite de período de publicação ou idioma.

As palavras-chave utilizadas na pesquisa na BVS incluíram HIV, AIDS e casais sorodiscordantes, de forma integrada. Todas as tentativas de limitar, incluir termos em outras línguas ou detalhar os descritores resultaram em redução do número de documentos recuperados e foram abandonadas.

Os documentos recuperados foram organizados em tabelas. Após uma primeira seleção de artigos a partir de seus títulos, aqueles relacionados diretamente ao tema da revisão foram mantidos e categorizados por assunto. A partir da leitura dos resumos foram incluídos aqueles especificamente com estratégias de prevenção entre casais sorodiscordantes e que compõem a base deste texto. A esses artigos foram ainda agregados documentos publicados por organizações não governamentais (ONGs), documentos oficiais e documentos de instituições internacionais, além de resumos apresentados em congressos, simpósios e conferências e artigos identificados em referências dos documentos lidos.

RESULTADOS

No total, nas bases de dados, a partir das palavras-chave, foram encontrados:

  • MEDLINE: 1.501 artigos (a primeira busca resultou em 605 artigos e a segunda em 1.381 artigos, sendo 485 artigos repetidos). Dentre os identificados, 64% deles publicados a partir de 2010, foram selecionados 238 artigos para agregarem informações a esta revisão. Desses, 67 versam sobre reprodução incluindo técnicas de fertilização in vitro, 28 estudaram a PrEP, 18 abordam tratamento antirretroviral como prevenção, 8 avaliam o uso de preservativos e os demais abordam outros aspectos da prevenção da transmissão do HIV;

  • BVS: 26 documentos foram identificados quando os termos foram pesquisados de forma integrada. Desses, após a leitura na íntegra, restaram 18 artigos. Três artigos recuperados nessas bases de dados haviam sido localizados também na MEDLINE. Todos esses artigos foram considerados na revisão e 32 deles efetivamente incluídos, em conjunto com 5 documentos oficiais e/ou recomendações e 1 resumo apresentado em congresso. Os artigos encontrados exibem quatro principais estratégias de prevenção entre casais sorodiscordantes: preservativos, hierarquização de riscos, emprego de ARV e medidas de prevenção no contexto da concepção.

USO DE PRESERVATIVOS

O uso de preservativos tem sido a principal estratégia de prevenção e oferece alta eficácia para evitar a transmissão do HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis (DST) com favorável relação custo-benefício. Entre casais sorodiscordantes, o risco anual de transmissão do HIV pode ser reduzido de 20 - 25% para 3 - 7% com o uso consistente de preservativos masculinos1. Por outro lado, o uso de preservativos pode ser baixo ou irregular em diferentes práticas sexuais de PVH22. van der Straten A, Gómez CA, Saul J, Quan J, Padian N. Sexual risk behaviors among heterosexual HIV serodiscordant couples in the era of post-exposure prevention and viral suppressive therapy. AIDS 2000; 14(4): F47-54. 77. Hanif H, Bastos FI, Malta M, Bertoni N, Winch PJ, Kerrigan D. Where does treatment optimism fit in? Examining factors associated with consistent condom use among people receiving antiretroviral treatment in Rio de Janeiro, Brazil. AIDS Behav 2014; 18(10): 1945-54.. Pares sorodiscordantes tem maior adesão do que a população geral, embora varie de 39,2% em casais sorodiscordantes em geral6, chegando a 78,5% em casais sorodiscordantes quando a mulher é soropositiva9.

As dificuldades no uso do preservativo, na maioria das vezes, são associadas a questões de gênero, relações de poder, diminuição do prazer, falta de confiança e idade avançada33. Reis RK, Gir E. Convivendo com a diferença: o impacto da sorodiscordância na vida afetivo-sexual de portadores do HIV/AIDS. Rev Esc Enferm USP 2010; 44(3): 759-65. 88. Paiva V, Venturi G, França-Júnior I, Lopes F. Uso de preservativos: pesquisa Nacional MS / IBOPE, Brasil 2003. Disponível em: http://www.ip.usp.br/portal/images/ stories/Nepaids/Relatrios/uso_de_preservativos.pdf (Acessado em 08 de dezembro de 2014).
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. Em algumas situações, o uso de preservativos é substituído pela hierarquização de risco, com a escolha de práticas desprotegidas de "menor risco", como o sexo oral44. Monteiro S. Perspectivas sócio-históricas na saúde: concepções sobre prevenção - prevenção ao HIV/ AIDS: lições e dilemas. In: Fiocruz, editor. O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. 444 p..

RISCOS E PRÁTICAS SEXUAIS

A prática do sexo anal desprotegido é a principal forma de transmissão do HIV; o desconhecimento da sorologia representa risco adicional de 50% de envolvimento em práticas sexuais desprotegidas55. Coates TJ. What is to be done? AIDS 2008; 22(9): 1079-80..

Um modelo desenvolvido para o Peru e para os Estados Unidos mostrou que, entre homens que fazem sexo com homens (HSH), entre 32 e 39% das transmissões ocorreram entre parcerias fixas e que a prática de sexo anal desprotegido se relacionou com status sorológico, revelação da soropositividade e estágio da doença1010. Goodreau SM, Carnegie NB, Vittinghoff E, Lama JR, Sanchez J, Grinsztejn B, et al. What drives the US and Peruvian HIV epidemics in men who have sex with men (MSM)? PLoS One 2012; 7(11): e50522..

HSH norte-americanos usuários de redes sociais vem adotando estratégias de redução de riscos em intercursos anais sem uso de preservativos1111. Mitchell JW. HIV-negative and HIV-discordant gay male couples' use of HIV risk-reduction strategies: differences by partner type and couples' HIV-status. AIDS Behav 2013; 17(4): 1557-69.. Entre casais, essa prática reforça a satisfação com o relacionamento, amor, intimidade e confiança1212. Greene GJ, Andrews R, Kuper L, Mustanski B. Intimacy, monogamy, and condom problems drive unprotected sex among young men in serious relationships with other men: a mixed methods dyadic study. Arch Sex Behav 2014; 43(1): 73-87..

Estudo recente, abordando a construção das dimensões de vulnerabilidade entre os casais sorodiscordantes, revela que alguns casais que não conseguem usar preservativos utilizam, como alternativa, o uso de ARV associado à mudança de práticas, como evitar sexo anal e o "coito interrompido"1313. Fernandes NM. Vulnerabilidade ao HIV/AIDS entre casais sorodiscordantes acompanhados no Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/Fiocruz. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2013..

Uma coorte multicêntrica norte-americana identificou 60 soroconversões entre 2.189 HSH acompanhados por 18 meses; a relação anal desprotegida, ter mais de um parceiro soropositivo e ruptura ou deslizamento do preservativo estiveram associados à transmissão. A infectividade estimada por ato sexual na relação anal receptiva sem preservativos, com parceiro soropositivo, foi de 0,82%, com intervalo de confiança de 95% (IC95%) 0,24 - 2,76; e de 0,18% (IC95% 0,10 - 0,28) nas relações anais receptivas protegidas, com parceiro soropositivo ou com status sorológico desconhecido. Na inserção anal protegida com parceiro soropositivo ou com status desconhecido a infectividade foi de 0,04% (IC95% 0,01 - 0,11) e de 0,06% (IC95% 0,02 - 0,19) quando a relação foi desprotegida. Na prática oral receptiva com ejaculação, foi de 0,04% (IC95% 0,01 - 0,28)1414. Vittinghoff E, Douglas J, Judson F, McKirnan D, MacQueen K, Buchbinder SP. Per-contact risk of human immunodeficiency virus transmission between male sexual partners. Am J Epidemiol 1999; 150(3): 306-11..

Revisão sistemática da probabilidade de transmissão do HIV, com ou sem TARV, em práticas anais, analisou estudos publicados até 2010. Foram incluídos estudos que descreviam infectividade por ato sexual (4 estudos) e por parceria (12 estudos). A população envolveu casais homossexuais (12 estudos), heterossexuais (3 estudos) ou ambos (1 estudo), que tinham relato de pelo menos 50% de penetrações anais em que a parceria era sabidamente soropositiva. Considerando apenas publicações com descrição metodológica detalhada, foram incluídas duas estimativas envolvendo casais homossexuais e duas envolvendo casais heterossexuais. O risco de transmissão por ato sexual encontrado foi de 1,8% (IC95% 0,3 - 3,2) para relação anal receptiva desprotegida, entre casais heterossexuais e homossexuais (p = 0,674). O risco de transmissão foi de 1,38% (IC95% 0,00 - 3,38) quando a pessoa soropositiva estava no período assintomático e de 18,35% (IC95% 2,08 - 34,6) quando havia diagnóstico de AIDS. Levando em conta a heterogeneidade do método analítico, a probabilidade de transmissão por ato sexual em relações anais insertivas desprotegidas poderia variar de 0,0002 a 0,013% e em relações anais receptivas desprotegidas de 0,0011 a 0,061%1515. Baggaley RF, White RG, Boily MC. HIV transmission risk through anal intercourse: systematic review, metaanalysis and implications for HIV prevention. Int J Epidemiol 2010; 39(4): 1048-63..

Uma coorte africana acompanhou, durante 24 meses, 3.297 casais heterossexuais sorodiscordantes (67% mulheres soropositivas) realizando sucessivas medidas de carga viral para avaliar os fatores associados à transmissibilidade1616. Hughes JP, Baeten JM, Lingappa JR, Magaret AS, Wald A, de Bruyn G, et al. Determinants of per-coital-act HIV-1 infectivity among African HIV-1-serodiscordant couples. J Infect Dis 2012; 205(3): 358-65.. A parceria soropositiva informou mensalmente o número de relações sexuais e o uso de preservativos, relatados em 93% dos contatos sexuais. A mediana de relações protegidas e desprotegidas foi de três e zero, respectivamente. Ocorreram 86 transmissões geneticamente relacionadas à parceria; em três delas (3,5%) a parceria positiva informou não ter havido relação sexual no período que antecedeu a transmissão. A taxa de transmissão por ato sexual desprotegido foi de 0,0019 (IC95% 0,0010 - 0,00037) na direção homem-mulher e 0,0010 (IC95% 0,0006 - 0,0017) na direção mulher-homem, com um risco relativo (RR) de 1,03 (p = 0,93) quando ajustado para carga viral (CV), indicando que o maior risco na direção homem-mulher foi devido a maior CV (4,1 log10 3,8 log10). O uso de preservativos reduziu a infectividade em 78% (RR = 0,22; IC95% 0,11 - 0,42), independentemente do sexo da parceria positiva. A mediana de relações sexuais caiu de 4,0 na inclusão para 2,5 no 24º mês de seguimento1616. Hughes JP, Baeten JM, Lingappa JR, Magaret AS, Wald A, de Bruyn G, et al. Determinants of per-coital-act HIV-1 infectivity among African HIV-1-serodiscordant couples. J Infect Dis 2012; 205(3): 358-65..

PREVENÇÃO COM EMPREGO DE ANTIRRETROVIRAIS

  1. Entre pares sorodiscordantes, podem ser consideradas três estratégias de prevenção com uso de ARV:

  2. início do tratamento ARV em PVH;

  3. PrEP; e

  4. nPEP. Serão discutidos com mais detalhes os resultados de estudos de TASP e PrEP entre casais sorodiscordantes.

Tratamento antirretroviral e redução da transmissão do HIV

Já em 2000, um estudo observacional de casais sorodiscordantes realizado em Uganda mostrou que a média de CV era superior nos casais nos quais os parceiros se infectaram. A análise multivariada mostrou que o incremento de 1 logaritmo na CV estava associado à taxa de incidência de transmissão do HIV da ordem de 2,45 (IC95% 1,85 - 3,26); quando CV foi inferior a 1.500 cópias/mm3, nenhuma transmissão ocorreu1717. Quinn TC, Wawer MJ, Sewankambo N, Serwadda D, Li C, Wabwire-Mangen F, et al. Viral load and heterosexual transmission of human immunodeficiency virus type 1. Rakai Project Study Group. N Engl J Med 2000; 342(13): 921-9..

Metanálise publicada em 2009, com 5.021 casais heterossexuais sorodiscordantes de 11 estudos de coorte identificou 461 transmissões, uma taxa de 0,46/100 pessoas/ano de seguimento (IC95% 0,19 - 1,09) quando a parceria positiva estava em tratamento, representando redução de 92% no risco de transmissão sexual1818. Attia S, Egger M, Müller M, Zwahlen M, Low N. Sexual transmission of HIV according to viral load and antiretroviral therapy: systematic review and meta-analysis. AIDS 2009; 23(11): 1397-404..

A coorte multicêntrica Partners in Prevention HSV/HIV Transmission Study reuniu 3.381 casais heterossexuais sorodiscordantes, de 7 países africanos, acompanhados durante 24 meses; a TARV era iniciada quando a pessoa soropositiva atingisse os critérios de indicação estabelecidos nas diretrizes de cada país (em geral LT-CD4 200 a 250 células/mm3). Iniciaram TARV, no período, 349 participantes (10%) com contagem mediana de LT-CD4 de 192 células/mm3. Foram identificados 103 episódios de transmissão geneticamente relacionados ao parceiro índice (incidência de 2,13 em 100 pessoas/ano) e apenas uma entre casais nos quais a PVH estava em tratamento, com redução de 92% no risco de transmissão sexual do HIV pelo uso de TARV (de 5,64 para 0,46 transmissões em 100 pessoas/ano). A proporção de relatos de relações sexuais desprotegidas diminuiu de 6,2 para 3,7% entre aqueles que iniciaram TARV, sem ter havido modificação no número de relações sexuais/mês. Entre as 94 transmissões do parceiro que não estava sob TARV, 70% ocorreram com CV > 50 mil cópias. No decorrer do estudo ocorreram 39 transmissões não relacionadas geneticamente, representando incidência de 0,81 em 100 pessoas/ano de seguimento1919. Donnell D, Baeten JM, Kiarie J, Thomas KK, Stevens W, Cohen CR, et al. Heterosexual HIV-1 transmission after initiation of antiretroviral therapy: a prospective cohort analysis. Lancet 2010; 375(9731): 2092-8..

O estudo HIV Prevention Trials Network 052 (HPTN052) foi o primeiro ensaio clínico que teve a transmissão sexual como desfecho. Foi realizado em 13 centros de 9 países e randomizou 1.763 casais sorodiscordantes (97% heterossexuais) com contagem de LT-CD4 entre 350 e 550 células/mm3 para início imediato da TARV ou acompanhamento clínico até que a contagem de LT-CD4 atingisse valores ≤ 250 células/mm3, quando era iniciada TARV. A mediana de seguimento foi de 1,7 ano e nesse período foram observadas 39 transmissões do HIV (taxa de incidência de 1,2/100 pessoas/ano; IC95% 0,9 - 1,7). Quatro transmissões ocorreram no grupo de início precoce (taxa de incidência de 0,3/100 pessoas/ano - (IC95% 0,1 - 0,6) e 35 no grupo de tratamento adiado (2,2/100 pessoas/ano; IC95% 1,6 - 3,1). Entre as transmissões, 28 foram geneticamente relacionadas ao vírus da parceria índice (taxa de incidência de 0,9/100 pessoas/ano; IC95% 0,6 - 1,3); a transmissão geneticamente relacionada no grupo de tratamento imediato ocorreu nos primeiros três meses de TARV, antes da indetecção da carga viral (taxa de incidência de 0,1/100 pessoas/ano; IC95% 0,0 - 0,4), enquanto que, no grupo de tratamento adiado, as transmissões ocorreram antes do início da TARV (taxa de incidência de 1,7/100 pessoas/ano; IC95% 1,1 - 2,5) e 67% delas na direção mulher-homem. Não houve diferença significativa na ocorrência de DST, no relato de uso de preservativos e na taxa de adesão a 95% das doses de ARV. O estudo demonstrou que o início imediato da TARV, em pessoas com LT-CD4 entre 350 e 550 células/mm3, reduziu o risco da aquisição sexual do HIV da parceria soropositiva em 96%, entre casais heterossexuais sorodiscordantes, em comparação com o início adiado2020. Cohen MS, Chen YQ, McCauley M, Gamble T, Hosseinipour MC, Kumarasamy N, et al. Prevention of HIV-1 infection with early antiretroviral therapy. N Engl J Med 2011; 365(6): 493-505..

O seguimento de dois anos do mesmo estudo mostrou que a probabilidade de ocorrência de um evento clínico primário (morte, estágio 4 da OMS, tuberculose, doença cardiovascular, vascular, renal ou hepática severas, diabete melito ou neoplasia não relacionada a AIDS) foi de 4,8% (IC95% 3,6 - 6,5) no grupo com início imediato do tratamento (CD4 entre 350 e 550) e de 7,9% (IC95% 6,2 - 10,1) no grupo com início de tratamento adiado. A razão relativa de risco (tratamento postergado versustratamento antecipado) de um evento primário foi de 0,73 (IC95% 0,52 - 1,03; p = 0,074)2121. Grinsztejn B, Hosseinipour MC, Ribaudo HJ, Swindells S, Eron J, Chen YQ, et al. Effects of early versus delayed initiation of antiretroviral treatment on clinical outcomes of HIV-1 infection: results from the phase 3 HPTN 052 randomised controlled trial. Lancet Infect Dis 2014; 14(4): 281-90..

Análise retrospectiva da base de dados nacional chinesa, no período entre 2003 e 2011, identificou 56.726 PVH que informaram ter parceria soronegativa. Excluindo aqueles com informações incompletas e/ou que haviam sido tratados no passado, analisou dados de 38.862 (68,5%) casais sorodiscordantes, 24.057 deles em tratamento e 14.085 sem tratamento. Aqueles que estavam em tratamento tinham transmissão predominantemente sanguínea, mediana de LT-CD4 de 168 células/mm3 e seguimento de 2,4 anos, enquanto o grupo virgem de tratamento tinha forma de transmissão predominantemente sexual, seguimento de 1,2 ano e contagem mediana LT-CD4 de 441 células/mm3. Nesse estudo, foram identificadas 1.631 transmissões, ou seja, uma taxa de incidência de 1,61/100 pessoas/ano (IC95% 1,5 - 1,7). As taxas observadas naqueles que estavam em TARV e naqueles virgens de TARV foram 1,3/100 pessoas/ano (IC95% 1,2 - 1,3) e 2,6/100 pessoas/ano (IC95% 2,4 - 2,8), respectivamente, representando redução da transmissão do HIV de 26% com razão de azares ajustada de 0,74 (IC95% 0,65 - 0,84) no grupo tratado. Por outro lado, a proteção da transmissão ocorreu apenas no primeiro ano e não houve redução de transmissões associadas à TARV quando a PVH havia se infectado por uso de drogas injetáveis ou com parceiro masculino do mesmo sexo. A direção mais comum das transmissões foi mulher-homem, embora sem significância estatística2222. Jia Z, Mao Y, Zhang F, Ruan Y, Ma Y, Li J, et al. Antiretroviral therapy to prevent HIV transmission in serodiscordant couples in China (2003-11): a national observational cohort study. Lancet 2013; 382(9899): 1195-203..

Resultados parciais referentes ao estudo PARTNER, publicados nos anais da 21ª Conference on Retrovirus and Opportunistic Infections (CROI), incluindo participantes com relato de relações sexuais desprotegidas, sem história de uso de PrEP ou PEP e CV do parceiro soropositivo < 200 cópias/mL, mostram que, no acompanhamento de 2 anos, nenhuma transmissão do HIV geneticamente relacionada ao parceiro índice ocorreu entre 1.100 casais sorodiscordantes, em uso de TARV, 440 dos quais formados por HSH2323. Rogers A. HIV transmission risk through condomless sex if HIV+ partner on suppressive ART: PARTNER Study. In: 21st Conference on Retroviruses and Opportunistic Infections. Boston: CROI; 2014..

Uma revisão sistemática da transmissão do HIV entre casais heterossexuais sorodiscordantes analisou estudos publicados até dezembro de 2012, tendo como desfecho primário a incidência de HIV em parceria soronegativa de indivíduo soropositivo em uso de TARV e com CV indetectável. Considerando três estudos elegíveis com CV indetectável e incluindo outros três estudos com transmissão do HIV e CV detectável, a taxa agrupada de incidência foi de 0,14/100 pessoas/ano (IC95% 0,04 - 0,31). Na análise de sensibilidade, excluindo as transmissões que ocorreram com CV detectável, a taxa de transmissão foi de 0/100 pessoas/ano (IC95% 0,00 - 0,01). Esses resultados não incluíram dados sobre práticas sexuais, DST ou frequência de uso de preservativos, entre outras variáveis2424. Loutfy MR, Wu W, Letchumanan M, Bondy L, Antoniou T, Margolese S, et al. Systematic review of HIV transmission between heterosexual serodiscordant couples where the HIV-positive partner is fully suppressed on antiretroviral therapy. PLoS One 2013; 8(2): e55747..

Profilaxia pré-exposição

A PrEP é definida como o uso de ARV por pessoas soronegativas para reduzir o risco de aquisição sexual do HIV. Os esquemas mais estudados são o emprego diário de tenofovir (TDF) ou da combinação de TDF com emtricitabina (FTC).

O PARTNERS PrEP acompanhou casais heterossexuais sorodiscordantes no Quênia e Uganda (n = 4.747). Nesse estudo, parcerias soronegativas de PVH foram randomizadas para receber TDF (n = 1.584), TDF-FTC (n = 1.579) ou placebo (n = 1.584). Das 82 transmissões, 17 ocorreram no grupo TDF, 13 no grupo TDF-FTC e 52 no grupo placebo, indicando redução relativa de incidência de 67% (IC95% 44 - 81) para o uso de TDF e de 75% para o uso de TDF-FTC (IC95% 55 - 87)2525. Baeten JM, Donnell D, Ndase P, Mugo NR, Campbell JD, Wangisi J, et al. Antiretroviral prophylaxis for HIV prevention in heterosexual men and women. N Engl J Med 2012; 367(5): 399-410..

Revisão sistemática de estudos de PrEP, publicada em 2012, que incluiu 6 ensaios clínicos randomizados e controlados e um total de 9.849 participantes, mostrou que a combinação TDF+FTC e do TDF isoladamente foram mais eficazes do que o placebo em ambos os sexos e mais eficazes em homens do que mulheres, embora essa diferença não tenha representado significância estatística. A ocorrência de eventos adversos foi rara e foi concluído que os estudos de PrEP tiveram qualidade metodológica adequada e moderada qualidade da evidência para prevenção da transmissão do HIV2626. Okwundu CI, Uthman OA, Okoromah CA. Antiretroviral pre-exposure prophylaxis (PrEP) for preventing HIV in high-risk individuals. Cochrane Database Syst Rev 2012; 7: CD007189..

Em 2011, o centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) recomendou a utilização de PrEP para HSH com práticas de alto risco e no ano seguinte a combinação TDF-FTC foi registrada para PrEP noFood and Drug Administration (FDA), impulsionando sua adoção em cidades com epidemias de grande magnitude. Em 2012 o CDC inclui heterossexuais na indicação de PrEP e, em 2014, usuários de drogas e casais sorodiscordantes no contexto da reprodução2727. US Public Health Service. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Preexposure prophylaxis for the prevention of HIV infection in the United States - 2014: a clinical practice guideline. Atlanta: CDC; 2014. 67 p.. Resistência viral pode ocorrer e deve ser considerada quando há infecção já presente previamente ao início do regime2828. Grant RM, Lama JR, Anderson PL, McMahan V, Liu AY, Vargas L, et al. Preexposure chemoprophylaxis for HIV prevention in men who have sex with men. N Engl J Med 2010; 363(27): 2587-99..

REDUÇÃO DO RISCO NA REPRODUÇÃO

Alguns países desenvolveram diretrizes de suporte à reprodução entre casais sorodiscordantes, com base em estudos publicados nos últimos anos2929. National Institutes of Health (NIH). Public Health Service Task Force. Recommendations for use of antiretroviral drugs in pregnant HIV-1-infected women for maternal health and interventions to reduce perinatal HIV-1 transmission in the United States. Maryland: NIH; 2014. 64 p. 3131. Brasil. Recomendações para a terapia antiretroviral em adultos infectados pelo HIV - Suplemento III: tratamento e prevenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.. Conforme essas diretrizes, a abordagem da reprodução pode envolver o emprego de estratégias de alta densidade tecnológica, como a lavagem de esperma com inseminação intra-uterina ou a fertilização in vitro. O emprego de estratégias com menor densidade tecnológica consiste na utilização de TARV pela PVH, com objetivo de suprimir a replicação viral, programando relações sexuais sem preservativos no período fértil, na ausência de DST e boa adesão à TARV3232. Chadwick RJ, Mantell JE, Moodley J, Harries J, Zweigenthal V, Cooper D. Safer conception interventions for HIV-affected couples: implications for resource-constrained settings. Top Antivir Med 2011; 19(4): 148-55..

O planejamento inclui aconselhamento relacionado à reprodução entre casais sorodiscordantes com a abordagem dos riscos potenciais de cada estratégia, revisão da saúde sexual garantindo ausência de DST e avaliação da fertilidade do casal para evitar exposições repetidas. Dois cenários são possíveis e diferentes estratégias indicadas:

  1. Quando o homem é soropositivo: a lavagem de esperma, com inseminação intra-uterina ou fertilização in vitro, é a estratégia que oferece o menor risco de transmissão3333. Semprini AE, Macaluso M, Hollander L, Vucetich A, Duerr A, Mor G, et al. Safe conception for HIVdiscordant couples: insemination with processed semen from the HIV-infected partner. Am J Obstet Gynecol 2013; 208(5): 402.e1-9.. Suas desvantagens são o alto custo e sua baixa disponibilidade na maioria dos serviços públicos de saúde. Em situações nas quais o parceiro masculino permanece por longo prazo com CV indetectável, a concepção natural com a relação sexual programada para o período fértil pode ser considerada. O uso de PrEP pela parceira do sexo feminino pode reduzir ainda mais o risco2929. National Institutes of Health (NIH). Public Health Service Task Force. Recommendations for use of antiretroviral drugs in pregnant HIV-1-infected women for maternal health and interventions to reduce perinatal HIV-1 transmission in the United States. Maryland: NIH; 2014. 64 p..

  2. Quando a mulher é soropositiva: a auto-inseminação elimina o risco de transmissão para o parceiro soronegativo, pois evita o contato com os fluidos genitais da parceira. A utilização de ARV pelo parceiro soronegativo, em situações nas quais a parceira positiva apresenta CV indetectável por período prolongado também é estratégia possível de ser empregada, caso a opção seja pela relação sexual desprotegida no período fértil. O tratamento e a CV indetectável da mulher são também determinantes da prevenção da transmissão vertical do HIV3030. Fakoya A, Lamba H, Mackie N, Nandwani R, Brown A, Bernard E, et al. British HIV Association, BASHH and FSRH guidelines for the management of the sexual and reproductive health of people living with HIV infection 2008. HIV Med 2008; 9(9): 681-720. 3131. Brasil. Recomendações para a terapia antiretroviral em adultos infectados pelo HIV - Suplemento III: tratamento e prevenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010..

DISCUSSÃO

O uso de ARV amplia o elenco de estratégias e propicia individualização das medidas de prevenção da transmissão sexual do HIV em casais sorodiscordantes. Sua combinação com outros métodos, como uso de preservativos e hierarquização de riscos, aumenta a eficácia da prevenção, promove maior segurança para o planejamento da reprodução e pode auxiliar pessoas que tenham repercussão afetiva ou sexual pelo medo de transmitir o HIV para seus pares soronegativos.

Alguns pares sorodiscordantes não querem ou não conseguem utilizar preservativos. Nessas circunstâncias, o aconselhamento deve incluir informações sobre os riscos de transmissão associados a práticas sexuais para negociação do casal. Relações anais receptivas possuem maior risco do que as práticas anais insertivas e o menor risco ocorre no sexo oral, especialmente sem ejaculação na cavidade oral1414. Vittinghoff E, Douglas J, Judson F, McKirnan D, MacQueen K, Buchbinder SP. Per-contact risk of human immunodeficiency virus transmission between male sexual partners. Am J Epidemiol 1999; 150(3): 306-11. 1515. Baggaley RF, White RG, Boily MC. HIV transmission risk through anal intercourse: systematic review, metaanalysis and implications for HIV prevention. Int J Epidemiol 2010; 39(4): 1048-63..

A supressão da replicação viral reduz o risco de transmissão sexual; sua combinação à prática do coito interrompido em relações vaginais e anais potencializa a redução de risco entre casais heterossexuais ou homossexuais.

Desde 2012, a OMS recomenda a realização de projetos de demonstração de efetividade, segurança, aplicabilidade e sustentabilidade do emprego da PrEP entre casais sorodiscordantes3434. World Health Organization (WHO). Guidance on preexposure oral prophylaxis (PrEP) for serodiscordant couples, men and transgender women who have sex with men at high risk of HIV: recommendations for use in the context of demonstration projects. Genebra: WHO; 2012. 19 p.. Considerando sua implantação, é necessário que algumas estratégias sejam aprimoradas, como a medida da adesão aos ARV, a avaliação e o acompanhamento do risco e a estimativa de toxicidade em longo prazo entre portadores de comorbidades que podem potencializar os efeitos adversos dos medicamentos.

O emprego da PrEP deve ser considerado para a parceria soronegativa quando a PVH não estiver em uso de TARV ou quando apresentar CV detectável. Não existem modelos de cuidado às parcerias soronegativas implantados no Brasil. Centros de testagem e aconselhamento (CTA) realizam aconselhamento e abordam a sexualidade, elementos necessários no cuidado, no contexto da sorodiscordância. Entretanto, de forma geral, não possuem médicos em suas equipes e não têm experiência ou treinamento no manejo de ARV.

Por outro lado, os Serviços de Atendimento Especializados em HIV e AIDS (SAE) realizam o manejo de ARV desde sua implantação a partir do final década de 1980. Entre as principais dificuldades para que esses serviços realizem seguimento de parcerias soronegativas estão sua abordagem predominantemente biomédica e a grande demanda atual de atendimento a PVH, já que suas estruturas não se expandiram na mesma medida do número de pessoas em seguimento clínico.

Em algumas regiões, cerca de 30% das transmissões do HIV estão relacionadas a parcerias fixas3535. van den Boom W, Konings R, Davidovich U, Sandfort T, Prins M, Stolte IG. Is serosorting effective in reducing the risk of HIV infection among men who have sex with men with casual sex partners? J Acquir Immune Defic Syndr 2014; 65(3): 375-9., sugerindo que o tratamento da PVH pode ter impacto na redução da incidência. Na decisão de iniciar TARV, particularmente quando o objetivo principal for reduzir a transmissão para a parceria sexual, deve ser cuidadosamente considerada a motivação da PVH em proteger sua parceria e discutida a possibilidade da perda futura da motivação, entre outras razões, pela dissolução do relacionamento. A PVH deve ser informada a respeito dos benefícios clínicos potenciais do tratamento precoce e das implicações da interrupção do tratamento. Nesse sentido, a TARV reduziu a ocorrência de eventos clínicos, em pessoas com contagem LT-CD4 < 550 células2121. Grinsztejn B, Hosseinipour MC, Ribaudo HJ, Swindells S, Eron J, Chen YQ, et al. Effects of early versus delayed initiation of antiretroviral treatment on clinical outcomes of HIV-1 infection: results from the phase 3 HPTN 052 randomised controlled trial. Lancet Infect Dis 2014; 14(4): 281-90.. Sua utilização na prevenção em relações sorodiscordantes ainda é uma intervenção recente que impõe a necessidade de divulgação e sensibilização entre profissionais de saúde.

Os estudos disponíveis não têm identificado transmissão do HIV quando a parceria soropositiva utiliza a TARV com supressão da replicação viral. Entretanto, esses estudos não fornecem dados detalhados a respeito da atividade sexual, dificultando a compreensão do risco associado ao ato sexual, às práticas e à parceria sexual, elementos importantes para a individualização do aconselhamento. A apresentação dos resultados em taxa de incidência por 100 pessoas/ano de seguimento dificulta sua transposição para o contexto do aconselhamento.

As variações presentes entre estudos podem estar relacionadas a diferenças na distribuição de fatores de risco nas populações analisadas, no comportamento sexual, na duração e frequência da exposição desprotegida ou na presença de cofatores para transmissão. A duração dos estudos (em geral até dois anos) limita a avaliação do risco ao longo da vida dos casais sorodiscordantes.

Em estudos que analisaram geneticamente as novas infecções no parceiro anteriormente negativo, 20 a 38% delas não se relacionavam à parceria estável, mas haviam sido adquiridas fora da relação preferencial1919. Donnell D, Baeten JM, Kiarie J, Thomas KK, Stevens W, Cohen CR, et al. Heterosexual HIV-1 transmission after initiation of antiretroviral therapy: a prospective cohort analysis. Lancet 2010; 375(9731): 2092-8. 2020. Cohen MS, Chen YQ, McCauley M, Gamble T, Hosseinipour MC, Kumarasamy N, et al. Prevention of HIV-1 infection with early antiretroviral therapy. N Engl J Med 2011; 365(6): 493-505. 3636. Eshleman SH, Hudelson SE, Redd AD, Wang L, Debes R, Chen YQ, et al. Analysis of genetic linkage of HIV from couples enrolled in the HIV Prevention Trials Network 052 trial. J Infect Dis 2011; 204(12): 1918-26.. A eficácia da TASP, ao considerar todas as infecções, foi de 89%, mostrando que para alguns casais essa estratégia é insuficiente1010. Goodreau SM, Carnegie NB, Vittinghoff E, Lama JR, Sanchez J, Grinsztejn B, et al. What drives the US and Peruvian HIV epidemics in men who have sex with men (MSM)? PLoS One 2012; 7(11): e50522. 2020. Cohen MS, Chen YQ, McCauley M, Gamble T, Hosseinipour MC, Kumarasamy N, et al. Prevention of HIV-1 infection with early antiretroviral therapy. N Engl J Med 2011; 365(6): 493-505.. A ausência de proteção da parceria soronegativa em exposições com outras pessoas deve fazer parte do aconselhamento, visando à adoção de preservativos. Os dados atualmente disponíveis sobre transmissão sexual entre casais do mesmo sexo em TARV e com replicação viral suprimida envolveram amostras pequenas e sua descrição detalhada ainda não está disponível na literatura2323. Rogers A. HIV transmission risk through condomless sex if HIV+ partner on suppressive ART: PARTNER Study. In: 21st Conference on Retroviruses and Opportunistic Infections. Boston: CROI; 2014.. A escassez de informações a respeito da transmissão do HIV nessa população com emprego da TARV2424. Loutfy MR, Wu W, Letchumanan M, Bondy L, Antoniou T, Margolese S, et al. Systematic review of HIV transmission between heterosexual serodiscordant couples where the HIV-positive partner is fully suppressed on antiretroviral therapy. PLoS One 2013; 8(2): e55747. limita a extrapolação dos resultados de estudos que envolveram majoritariamente casais heterossexuais. Embora o risco de transmissão por relação anal insertiva seja semelhante entre casais do mesmo sexo e heterossexuais, a maior frequência de exposição aumenta o risco para casais do mesmo sexo.

Entre 86 transmissões geneticamente relacionadas, 56 (65%) ocorreram no período em que havia relato, pela parceria soropositiva, de relações sexuais protegidas, indicando também a existência de limitações nos estudos que abordam a transmissibilidade por ato sexual1616. Hughes JP, Baeten JM, Lingappa JR, Magaret AS, Wald A, de Bruyn G, et al. Determinants of per-coital-act HIV-1 infectivity among African HIV-1-serodiscordant couples. J Infect Dis 2012; 205(3): 358-65.. O risco relativo da transmissão sexual se modifica em função da carga viral: cada aumento em 10 vezes na carga viral plasmática corresponde a um aumento em 2,9 vezes do risco de transmissão a cada relação sexual1616. Hughes JP, Baeten JM, Lingappa JR, Magaret AS, Wald A, de Bruyn G, et al. Determinants of per-coital-act HIV-1 infectivity among African HIV-1-serodiscordant couples. J Infect Dis 2012; 205(3): 358-65..

Para a otimização da TASP é necessário diagnóstico precoce, aconselhamento continuado e abordagem à sexualidade de PVH, dimensão pouco considerada na realidade dos SAE.

Ações de adesão e retenção ao tratamento ao longo do tempo estão insuficientemente implantadas na rede de serviços, mesmo para as populações com maior risco de progressão de doença e morte. Nos EUA, apenas 45 a 55% dos que iniciam TARV se mantém em seguimento clínico após 1 ano3737. Gardner EM, McLees MP, Steiner JF, Del Rio C, Burman WJ. The spectrum of engagement in HIV care and its relevance to test-and-treat strategies for prevention of HIV infection. Clin Infect Dis 2011; 52(6): 793-800.. O MS estima que existam 718 mil PVH no Brasil, 574 mil diagnosticados, 436 mil realizando exames de monitoramento, 313 mil em TARV e 236 mil com CV indetectável3838. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico: AIDS e DST. Brasília: Minsitério da Saúde; 2013., mostrando a necessidade de ampliar o acesso ao diagnóstico, à assistência e ao tratamento. Devem ser intensificadas as ações para a manutenção do cuidado ao longo do tempo, com abordagem consentida, alertas para a má adesão e estabelecimento de uma rede que inclua gestores, equipes dos SAE, Estratégia de Saúde da Família, organizações da sociedade civil e iniciativas comunitárias. O acesso a exames e resultados de CV ainda é limitado, e muitas vezes não permite a identificação de replicação viral em tempo oportuno para prevenção.

A sensibilização das equipes de saúde para abordagem do desejo de filhos é essencial no atendimento de casais, diante da demanda por aconselhamento em questões relacionadas ao planejamento reprodutivo. De forma geral, as diretrizes recomendam abordagens de alta densidade tecnológica, pouco disponíveis em nosso meio. Tais estratégias são particularmente importantes quando o homem é soropositivo. Medidas de redução de risco, com emprego de PrEP, TASP e nPEP são atualmente recomendadas no Brasil no planejamento da reprodução.

CONCLUSÕES

Vários estudos têm chamado atenção para a importância da oferta de distintas alternativas de prevenção para PVH e pares sorodiscordantes1313. Fernandes NM. Vulnerabilidade ao HIV/AIDS entre casais sorodiscordantes acompanhados no Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/Fiocruz. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2013.. O emprego de uma medida isolada, como a TASP, pode não ser suficiente para prevenir a transmissão sexual para parcerias soronegativas, já que parte expressiva das transmissões ocorre em relações sexuais externas ao relacionamento considerado estável ou preferencial.

Quando utilizados em combinação, a TARV, preservativos e/ou hierarquização de riscos oferecem maior eficácia do que qualquer estratégia isolada. Para casais sorodiscordantes que não querem ou não conseguem utilizar preservativos, o tratamento da PVH com monitoramento da supressão viral, combinado com a escolha de práticas sexuais de menor risco, incluindo o coito interrompido, otimizam a redução do risco de transmissão. É preciso que os profissionais de saúde incluam essas intervenções no aconselhamento e no "discurso da prevenção".

Preparar nosso sistema de saúde para essas intervenções em casais sorodiscordantes implica modificar o modelo atual de prevenção, estruturando o seguimento longitudinal de parcerias soronegativas de PVH, fornecendo insumos, aconselhamento continuado, testagem periódica para HIV, avaliação rotineira da saúde sexual, tratamento de DST e indicação de TARV de forma individualizada. É ainda necessário qualificar acolhimento e escuta das equipes de saúde para planejamento reprodutivo com ações de capacitação, remoção de barreiras de acesso às novas medidas de prevenção e a procedimentos de reprodução, incluindo aqueles de alta densidade tecnológica, quando o homem for soropositivo.

A utilização de TARV para prevenir a transmissão sexual entre pares sorodiscordantes promove qualidade de vida, desde que apoiada no princípio da individualização. A decisão autônoma - portanto informada - da PVH em realizar o tratamento deve ser garantida na implantação da estratégia, avançando na conquista de direitos individuais, tais como direitos sexuais e reprodutivos, direito à prevenção e ao acesso universal ao tratamento.

Por fim, é fundamental o estabelecimento de diálogo interdisciplinar sobre as várias estratégias de prevenção, considerando contextos e situações para indicação de cada ferramenta ou tecnologia, permitindo construir uma política de prevenção para todos.

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  • Fonte de financiamento: nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2014
  • Revisado
    20 Set 2014
  • Aceito
    23 Set 2014
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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