RESUMO:
Objetivo:
Avaliar a contribuição da análise de modelos combinados de estresse psicossocial no trabalho e sua associação com transtornos mentais comuns (TMC) entre trabalhadores da saúde.
Métodos:
Trata-se de estudo transversal conduzido com amostra representativa de trabalhadores da atenção básica de cinco municípios do estado da Bahia. A variável desfecho - os TMC - foi avaliada pelo SRQ-20. As variáveis de exposição foram os modelos demanda-controle e desequilíbrio esforço-recompensa.
Resultados:
Foram avaliados os desempenhos dos modelos parciais e completos e a combinação dos modelos parciais. As razões de prevalência ajustadas foram obtidas pelo método de regressão de Poisson com variância robusta. A prevalência global de TMC foi de 21,0% e esteve associada à alta exigência e ao alto desequilíbrio esforço-recompensa. Os resultados demonstraram melhor desempenho do modelo de desequilíbrio esforço-recompensa completo e da combinação dos modelos parciais para predizer o evento.
Conclusão:
Modelos combinados são capazes de proporcionar melhores estimativas dos efeitos das experiências estressantes no ambiente de trabalho e seus resultados sobre a saúde, oferecendo maiores contribuições para este campo do conhecimento.
Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Saúde do trabalhador; Transtornos mentais; Estudos transversais; Métodos epidemiológicos; Pessoal de saúde
INTRODUÇÃO
No campo da saúde ocupacional, os aspectos psicossociais do trabalho têm sido objeto de estudos que evidenciaram haver no trabalho fatores capazes de gerar sofrimento e adoecimento. Dentre os instrumentos de avaliação dos aspectos psicossociais do trabalho estão o modelo demanda-controle (MDC) elaborado por Karasek11. Karasek, RA. Job demand, job decision latitude, and mental strain: implications for job redesign. Adm Sci Q 1979; 24(2): 285-308. e o modelo de desequilíbrio esforço-recompensa (em inglês, effort-reward imbalance model - ERI) idealizado por Siegrist22. Siegrist J. Adverse health effects of high-effort/low-reward conditions. J Occup Health Psychol 1996; 1(1): 27-41.. Ambos são largamente utilizados na literatura e suas propostas consistem em evidenciar diferentes aspectos relacionados aos estressores ocupacionais e sua relação com desfechos sobre a saúde.
O modelo MDC advoga que situações em que o controle do trabalhador sobre o seu próprio trabalho é sobrepujado pelas demandas que lhe são impostas configuram risco adicional na direção do adoecimento físico e/ou psicológico. Desse modo, privilegia duas dimensões: a demanda psicológica, que diz respeito às exigências psicológicas impostas ao trabalhador; e o controle sobre o próprio trabalho, que envolve o uso de habilidades e autoridade de decisão. A combinação dessas duas dimensões permite constituir quatro possibilidades de experiências de trabalho e, consequentemente, riscos à saúde de distintas natureza e intensidade33. Araújo TM, Graça CC, Araújo E. Estresse ocupacional e saúde: contribuições do Modelo Demanda-Controle. Ciênc Saúde Coletiva 2003; 8(4): 991-1003..
Posteriormente, um terceiro elemento para análise foi incorporado ao modelo demanda-controle: o apoio social no trabalho. A inserção dessa terceira dimensão foi proposta por Johnson44. Johnson J. Collective control: strategies for the survival in the workplace. In: Johnson JV, Johansson G, editors. The psychosocial work environment: work organization, democratizacion and health. New York: Ed Baywood; 1991. p. 121-32., ao considerar que o apoio social, uma necessidade humana básica, atuaria como importante moderador de impacto da demanda, configurando um relevante sistema de proteção dos trabalhadores contra as pressões no ambiente de trabalho. O instrumento utilizado para mensurar as dimensões que compõem o modelo é o Job Content Questionnaire (JCQ), cujo conteúdo aborda, além de demanda psicológica, de controle sobre o trabalho e de apoio social no trabalho, demandas físicas e insegurança no emprego.
O modelo ERI, por sua vez, baseia-se no conceito de reciprocidade profissional, partindo do pressuposto de que quando o esforço investido no trabalho é maior que a recompensa recebida gera-se uma situação que predispõe o trabalhador ao desenvolvimento de doenças55. Van Vegchel N, de Jonge J, Bosma H, Schaufeli W. Reviewing the effort-reward imbalance model: drawing up the balance of 45 empirical studies. Soc Sci Med 2005; 60(5): 1117-31.. A escala de desequilíbrio entre esforço e recompensa é capaz de mensurar o estresse ocupacional. Duas dimensões são privilegiadas no modelo: o esforço, que envolve demandas e obrigações, e a recompensa, evidenciada por remuneração, apoio e possibilidades de promoção. O modelo também possui uma terceira dimensão, o excesso de comprometimento com o trabalho, que reflete um investimento de maior esforço por parte do trabalhador com o objetivo de aprovação e melhor estima. A combinação do excesso de comprometimento com o desequilíbrio esforço-recompensa significa risco adicional para o adoecimento66. Silva LS, Barreto, SM. Adaptação transcultural para o português brasileiro da escala effort-reward imbalance: um estudo com trabalhadores de banco. Rev Panam Salud Publica 2010; 27(1): 32-6..
Apesar de largamente utilizados na literatura, ambos os modelos possuem limitações para analisar as possibilidades de explicação dos aspectos psicossociais do trabalho e sua relação com o processo saúde-doença. Enquanto o MDC destaca os aspectos das tarefas do trabalho, o modelo ERI enfatiza o papel das recompensas77. Hoven H, Wahrendorf M, Siegrist J. Occupational position, work stress and depressive symptoms: a pathway analysis of longitudinal SHARE data. J Epidemiol Community Health 2015; 0: 1-6.. Nesse sentido, estudos recentes têm defendido o uso combinado desses modelos como melhor preditor de eventos relacionados à saúde do trabalhador77. Hoven H, Wahrendorf M, Siegrist J. Occupational position, work stress and depressive symptoms: a pathway analysis of longitudinal SHARE data. J Epidemiol Community Health 2015; 0: 1-6.,88. Griep RH, Rotenberg L, Landsbergis P, Vasconcellos-Silva PR. Uso combinado de modelos de estresse no trabalho e a saúde auto-referida na enfermagem. Rev Saúde Pública 2011; 45(1): 145-52.. No Brasil, não foram conduzidas investigações para avaliar a combinação de modelos de estresse e os seus resultados sobre a saúde mental. O objetivo deste estudo foi avaliar a contribuição da análise de modelos combinados de estresse psicossocial no trabalho e sua associação com transtornos mentais comuns (TMC) entre trabalhadores da saúde.
MÉTODOS
Estudo de corte transversal realizado em cinco municípios do Estado da Bahia: Feira de Santana, Santo Antônio de Jesus, Itabuna, Jequié e Salvador. Representa um recorte de estudo multicêntrico realizado pelo Núcleo de Epidemiologia da Universidade Estadual de Feira de Santana com trabalhadores da saúde, para avaliar suas condições de trabalho, emprego e saúde.
A população foi composta por uma amostra representativa e aleatória de trabalhadores da atenção básica, obtida por amostragem estratificada proporcional por área geográfica e grupo ocupacional, cujo cálculo considerou a fórmula para população finita. Para estimativa de amostra considerou-se o estudo realizado por Oliveira99. Oliveira, AM. Estresse ocupacional e saúde psíquica dos trabalhadores do Distrito Sanitário Centro Histórico do município de Salvador [dissertação de mestrado]. Salvador: Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia; 2013., que evidenciou a associação entre desequilíbrio esforço-recompensa e TMC, cujos parâmetros possibilitaram maior tamanho amostral.
Foram adotados os seguintes critérios: frequência esperada de TMC entre não-expostos, de 15,4%; frequência de TMC entre expostos, de 26,9%; poder de 90%; e intervalo de confiança de 95%. Em virtude das eventuais perdas/recusas, acrescentou-se 20% ao valor obtido, obtendo-se o número de 720 trabalhadores para compor a amostra.
Os dados foram coletados utilizando questionário elaborado a partir de revisão da literatura sobre produções no campo da saúde do trabalhador, considerando especificamente estudos conduzidos com trabalhadores da saúde e suas condições de saúde e trabalho. Para testar o instrumento e garantir a qualidade dos dados obtidos, foi realizado treinamento prévio dos pesquisadores e estudo piloto numa cidade baiana com 30 trabalhadores de saúde. A coleta de dados ocorreu em 2012 e foi realizada por meio de visita às unidades de saúde em busca dos trabalhadores selecionados.
A variável "desfecho" - os TMC - foi mensurada pelo Self Reporting Questionnaire (SRQ-20), que é um instrumento composto por 20 questões dicotômicas (sim/não) que avaliam sintomas ansiosos, somáticos e depressivos ocorridos nos últimos 30 dias. O instrumento obteve desempenho aceitável para avaliar a saúde mental de trabalhadores baianos1010. Santos KO, Araújo TM, Oliveira NF. Estrutura fatorial e consistência interna do Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) em população urbana. Cad Saúde Pública 2009; 25(1): 214-22.. O ponto de corte para a suspeição de TMC foi de sete ou mais respostas positivas, que foi considerado razoável para discriminar a suspeição desses transtornos em estudo conduzido por Santos1111. Santos KO, Araújo TM, Pinho PS, Silva AC. Avaliação de um instrumento de mensuração de morbidade psíquica: estudo de validação do Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20). Rev Baiana Saúde Pública 2010; 34(3): 544-60. com população urbana.
Duas variáveis de exposição foram consideradas. A variável MDC foi mensurada pela versão traduzida para o português do JCQ, cujas dimensões utilizadas foram: demanda psicológica (cinco itens), controle sobre o trabalho (seis itens sobre habilidade e três itens sobre autoridade de decisão) e apoio social no trabalho (três itens sobre apoio social dos colegas e três itens sobre apoio social da chefia). As questões do instrumento apresentam-se dispostas em escala ordinal tipo Likert de quatro pontos ("discordo fortemente" a "concordo fortemente").
É importante mencionar que, no Brasil, um estudo do desempenho do JCQ evidenciou ser esse um bom instrumento para identificação de aspectos psicossociais do trabalho e a sua relação com o processo saúde-doença1212. Araújo TM, Karasek R. Validity and reliability of the job content questionnaire in formal and informal jobs in Brazil. Scand J Work Environ Health Suppl. 2008; (6): 52-9..
Assim, inicialmente, o escore obtido para cada uma das dimensões do JCQ foi categorizado em "alto" e "baixo", utilizando a média como ponto de corte. Após esse procedimento, foi possível obter as quatro possibilidades de experiências de trabalho propostas pelo modelo: baixa exigência (alto controle/baixa demanda); trabalho ativo (alto controle/alta demanda); trabalho passivo (baixo controle/baixa demanda) e alta exigência (baixo controle/alta demanda). O apoio social foi utilizado na análise do MDC completo.
A variável exposição "desequilíbrio esforço-recompensa" foi obtida a partir da escala ERI traduzida para o português brasileiro, composta por 23 questões em escala ordinal de 4 pontos ("concordo totalmente" a "discordo totalmente") e dividida em 3 dimensões: esforço (6 itens), recompensa (11 itens) e excesso de comprometimento (6 itens). As três dimensões foram dicotomizadas em "alto" e "baixo", tendo como ponto de corte a média. O indicador de desequilíbrio esforço-recompensa foi obtido a partir da razão: e/(r*c), onde "e" corresponde à soma dos itens de esforço, "r" ao escore dos itens de recompensa e "c" é um fator de correção, o quociente da quantidade de itens do numerador comparado ao denominador22. Siegrist J. Adverse health effects of high-effort/low-reward conditions. J Occup Health Psychol 1996; 1(1): 27-41.. O escore do indicador foi categorizado em tercis (desequilíbrio baixo, médio e alto). O excesso de comprometimento foi considerado na análise do modelo ERI completo.
As covariáveis consideradas na análise foram: informações sociodemográficas (sexo, idade, número de filhos, situação conjugal, nível de escolaridade e renda), características do trabalho (tipo de vínculo empregatício, jornada de trabalho semanal, tempo de trabalho na unidade, direitos trabalhistas, duplo vínculo de trabalho, compatibilidade das atividades desenvolvidas, satisfação no trabalho, trabalho doméstico e sobrecarga doméstica) e hábitos de vida (prática de atividades físicas e realização de atividades de lazer). A sobrecarga doméstica (SD) foi obtida por meio do cálculo: SD = (lavar + passar + limpar + cozinhar) x (número de moradores - 1)1313. Aquino EM. Gênero, trabalho e hipertensão arterial: um estudo de trabalhadoras de enfermagem em Salvador, Bahia [tese de doutorado]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva da UFBA; 1996.. O escore obtido foi categorizado em tercis.
A associação entre TMC e os modelos de análise considerou os modelos demanda-controle (DC) parcial e completo (com a inclusão do apoio social no trabalho) e ERI parcial e completo (com a inclusão da dimensão excesso de comprometimento). Para a análise da combinação dos modelos parciais, calculou-se o escore do MDC a partir da razão entre as cinco questões de demanda psicológica e dos nove itens de controle sobre o trabalho (D/C). O escore do ERI foi obtido pelo cálculo dos itens de esforço e recompensa, multiplicado por um fator de correção [e/(r*c)]. Nesse aspecto, os trabalhadores foram inicialmente classificados em "expostos" e "não expostos", a partir da categorização dicotômica dos escores obtidos para cada dimensão dos modelos, utilizando a média como ponto de corte para o MDC e os escores menores ou iguais a um para o modelo ERI. Os menores valores foram atribuídos à ausência de exposição.
A análise de dados envolveu descrição de frequências absolutas e relativas das variáveis de interesse do estudo, estimativa de prevalência geral de TMC e análise bivariada. Foi realizado o teste de homogeneidade de Breslow-Day, considerando valores p ≤ 0,05 para classificar uma variável como modificadora de efeito. Para avaliar o confundimento foi utilizado o procedimento backward , partindo-se do modelo completo e avaliando-se o efeito da retirada de cada variável. Variações acima de 10% foram consideradas como variável de confusão. O critério adotado para a permanência das covariáveis no modelo final foram valores p ≤ 0,05. As medidas de razões de prevalência (RP) foram obtidas mediante aplicação do modelo de regressão de Poisson com variância robusta.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana, sob o protocolo nº 081/2009. Todas as etapas deste estudo atenderam à Resolução n º 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que trata sobre as diretrizes e normas regulamentadoras da pesquisa com seres humanos.
RESULTADOS
A população de estudo constituiu-se de 2.532 trabalhadores. A maioria era do sexo feminino (79,3%), com idade entre 31 e 40 anos (36,0%), média de 30,8 anos (± 10,7), com situação conjugal casado/união estável/união consensual (57,7%), com ensino médio (39,4%), de cor da pele parda (56,0%), que realizavam atividades físicas (70,4%) e de lazer (81,9%). O trabalho doméstico foi referido por 91,5% dos trabalhadores, sendo que 54,3% relataram alta ou média sobrecarga doméstica. Em relação às características do trabalho, vínculo de emprego efetivo foi referido por 70,4% dos trabalhadores. A maioria afirmou ter carga horária semanal de 40 horas (81,9%), possuir apenas esse vínculo de emprego (78,7%), tempo de trabalho na unidade de até 4 anos (51,0%), possuir direitos trabalhistas apenas parcialmente (62,3%) e compatibilidade das atividades desenvolvidas com o cargo ocupado (97,3%). A satisfação no trabalho foi referida por 73,9% dos trabalhadores (Tabela 1).
De acordo com as características psicossociais do trabalho, percebeu-se nos trabalhadores, predominantemente, alta demanda psicológica (54,0%), baixo controle sobre o trabalho (59,4%) e alto apoio social (54,2%). A experiência de trabalho vivenciada pela maior parte dos trabalhadores foi a alta exigência (32,5%). A maioria referiu baixo esforço (63,3%), baixa recompensa (71,0%) e baixo excesso de comprometimento com o trabalho (53,0%). Estavam em baixo desequilíbrio esforço-recompensa 37,7% dos trabalhadores. A prevalência global de TMC na população estudada foi de 21,0%.
Na análise bivariada, percebeu-se associação estatisticamente significante entre TMC e alta demanda psicológica (RP = 1,19), baixo controle sobre o trabalho (RP = 1,37) e baixo apoio social (RP = 1,50). No modelo DC, a alta exigência foi a experiência de trabalho que apresentou maior associação com o desfecho (RP = 1,57).
Em relação aos aspectos psicossociais do trabalho e modelo DC, após o ajustamento pelas variáveis de confusão, as associações não só perderam magnitude, mas também significância estatística, com exceção do apoio social no trabalho (Tabela 2), que manteve sua significância.
Para as dimensões do modelo ERI, o alto esforço (RP = 2,07) e o excesso de comprometimento (RP = 2,53) associaram-se positivamente ao desfecho investigado. Não houve associação com a dimensão recompensa (RP = 0,99). Os grupos de médio (RP = 1,51) e alto (RP = 2,38) desequilíbrio esforço-recompensa também estiveram associados aos TMC, e mantiveram-se em níveis estatisticamente significantes mesmo após análise ajustada por confundidores (Tabela 3).
Em comparação com o ERI, o MDC, assim como as suas dimensões, associaram-se mais fracamente ao desfecho.
A análise dos modelos parciais evidenciou que, para o MDC, somente a exposição em apoio social no trabalho (RP = 1,26) apresentou-se mais fortemente associada ao desfecho quando comparada às dimensões demanda e controle (RP = 1,18). Para o ERI, observou-se resultado semelhante; somente a exposição na dimensão comprometimento excessivo (RP = 2,10) contribuiu para uma maior razão de prevalência de TMC em relação às dimensões esforço e recompensa (RP = 1,44). Os modelos MDC e ERI estiveram positivamente associados aos TMC e ganharam incremento na força da associação com a inclusão da terceira dimensão - apoio social no trabalho (RP = 1,79) e comprometimento excessivo no trabalho (RP = 3,51), respectivamente.
Na análise ajustada, essas associações apesar de perderem magnitude, mantiveram-se associadas estatisticamente aos TMC (no modelo MDC/apoio social, a RP = 1,41; e no ERI-comprometimento excessivo, a RP = 2,63).
Na análise dos modelos combinados (MDC e ERI), observou-se associação mais robusta na situação em que ambas as exposições estavam presentes (RP = 2,49 na análise bruta e RP = 1,97 na análise ajustada) do que quando apenas uma exposição foi analisada separadamente (exposição a MDC ou a ERI). Assim, a combinação dos dois modelos parciais evidenciou aumento na medida de associação, mantendo-se os níveis de significância estatística mesmo após ajuste. Registra-se, ainda, que foi percebido melhor desempenho do modelo ERI (Tabela 4), uma vez que apresentou razões de prevalência de maior magnitude do que o MDC.
DISCUSSÃO
Com este estudo foi possível identificar o perfil de trabalhadores da atenção básica à saúde: uma população relativamente jovem, a maioria do sexo feminino, com apenas um vínculo de emprego e pouco tempo de trabalho na unidade - resultados semelhantes aos de outros estudos1414. Dilélio AS, Facchini LA, Tomasi E, Silva SM, Thumé E, Piccini RX, et al. Prevalência de transtornos psiquiátricos menores em trabalhadores da atenção primária à saúde das regiões Sul e Nordeste do Brasil. Cad Saúde Pública 2012; 28(3): 503-14.,1515. Costa SM, Prado MC, Andrade TN, Araújo EP, Silva Junior WS, Gomes Filho ZC, et al. Perfil do profissional de nível superior nas equipes da Estratégia Saúde da Família em Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade 2013; 8(27): 90-6..
Observou-se que a prevalência de TMC entre os trabalhadores foi inferior à encontrada em outras investigações conduzidas com trabalhadores da saúde no Brasil1616. Araújo TM, Aquino E, Menezes G, Santos CO, Aguiar L. Aspectos psicossociais do trabalho e distúrbios psíquicos entre trabalhadoras de enfermagem. Rev Saúde Pública 2003; 37(4): 424-33.,1717. Braga LC, Carvalho LR, Binder MC. Condições de trabalho e transtornos mentais comuns em trabalhadores da rede básica de saúde de Botucatu (SP). Ciênc Saúde Coletiva 2010; 15(suppl 1): 1585-96.,1818. Carvalho CN, Melo-Filho DA, Carvalho JA, Amorim AC. Prevalência e fatores associados aos transtornos mentais comuns em residentes médicos e da área multiprofissional. J Bras Psiquiatr 2013; 62(1): 38-45.. Apesar disso, a magnitude do desfecho nessa população chama a atenção, uma vez que atingiu um a cada cinco trabalhadores, o que confirma a necessidade de intervenção e acompanhamento da saúde mental nesse grupo.
O desfecho esteve associado com todas as dimensões do MDC na análise bivariada; no entanto, após ajuste por confundidores, a associação com a demanda e o controle perdeu nível de significância estatística. O TMC também se associou a duas dimensões do ERI (esforço e excesso de comprometimento), assim como ao trabalho em alta exigência e ao desequilíbrio esforço-recompensa, semelhante a resultados de outros estudos1717. Braga LC, Carvalho LR, Binder MC. Condições de trabalho e transtornos mentais comuns em trabalhadores da rede básica de saúde de Botucatu (SP). Ciênc Saúde Coletiva 2010; 15(suppl 1): 1585-96.,1919. Gomes DJ, Araújo TM, Santos KO. Condições de trabalho e de saúde de trabalhadores em saúde mental em Feira de Santana, Bahia. Rev Baiana Saúde Pública 2011; 35(suppl 1): 211-30.,2020. Souza SF, Carvalho FM, Araújo TM, Porto LA. Desequilíbrio esforço-recompensa no trabalho e transtornos mentais comuns em eletricistas de alta tensão. Rev Baiana Saúde Pública 2011; 35(1): 83-95.. Das dimensões do MDC, a demanda psicológica associou-se mais fracamente ao desfecho, em contraposição a outros achados1616. Araújo TM, Aquino E, Menezes G, Santos CO, Aguiar L. Aspectos psicossociais do trabalho e distúrbios psíquicos entre trabalhadoras de enfermagem. Rev Saúde Pública 2003; 37(4): 424-33.. No caso do ERI a recompensa não se associou à ocorrência de TMC, diferente dos resultados de outras investigações2020. Souza SF, Carvalho FM, Araújo TM, Porto LA. Desequilíbrio esforço-recompensa no trabalho e transtornos mentais comuns em eletricistas de alta tensão. Rev Baiana Saúde Pública 2011; 35(1): 83-95..
Esse resultado pode estar relacionado à natureza do trabalho em saúde que, além da remuneração, considera como retorno relevante da sua prática a produção do cuidado e a satisfação das necessidades de saúde do usuário2121. Barra SA. O acolhimento no processo de trabalho em saúde. Serv Soc Rev 2011; 13(2): 119-42.. Além disso, estar inserido num contexto que possibilite ao trabalhador sentir-se reconhecido e com condições de realizar suas atividades de maneira que ele possa externar suas potencialidades, também é um fator que evidencia a sensação de ser recompensado2222. Ramos BS, Ferreira CL. O aumento da produtividade através da valorização dos colaboradores: uma estratégia para a conquista de mercado. Rev Eng Tecnol 2010; 2(2): 71-80..
Na atenção básica, muitas vezes o trabalhador não encontra condições de realizar de maneira plena o seu trabalho, seja por problemas na própria estrutura das unidades ou por entraves institucionais que não permitem a continuidade do cuidado inicialmente prestado, configurando esse nível de complexidade como uma "porta de entrada sem saída"2323. Böing E, Crepaldi MA. O psicólogo na atenção básica: uma incursão pelas políticas públicas de saúde brasileiras. Psicol Ciênc Prof 2010; 30(3): 634-49.. Essa incerteza quanto aos resultados pode gerar, a despeito da remuneração, sentimentos de que não há recompensa no trabalho. De qualquer forma, esse resultado de ausência de associação entre recompensa e TMC precisa ser melhor investigado em estudos futuros.
Em relação ao desempenho dos modelos parciais, o ERI apresentou-se mais fortemente associado ao desfecho, principalmente na categoria de maior exposição. Foi também no modelo ERI completo, ou seja, com a inserção da dimensão excesso de comprometimento, que se observou maior incremento na medida de associação.
Outro achado relevante do estudo foi o fato dos modelos parciais combinados apresentarem melhor desempenho para predizer o desfecho quando comparados à sua utilização isolada. Esse resultado corroborou as conclusões de outros estudos77. Hoven H, Wahrendorf M, Siegrist J. Occupational position, work stress and depressive symptoms: a pathway analysis of longitudinal SHARE data. J Epidemiol Community Health 2015; 0: 1-6.,2424. Calnan M, Wadsworth E, May M, Smith A, Wainwright D. Job strain, effort-reward imbalance, and stress at work: competing or complementary models? Scand J Public Health 2004; 32(2): 84-93.,2525. De Jonge J, Bosma H, Peter R, Siegrist J. Job strain, effort-reward imbalance and employee well-being: a large-scale cross-sectional study. Soc Sci Med 2000; 50(9): 1317-27.,2626. Yu SF, Nakata A, Gu GZ, Swanson NG, Zhou WH, He LH, et al. Co-effect of Demand-control-support model and Effort-reward Imbalance model on depression risk estimation in humans: findings from Henan Province of China. Biomed Environ Sci 2013; 26(12): 962-71. que têm demonstrado a combinação de modelos como melhor alternativa de análise, uma vez que possui melhor capacidade de explicar a associação entre estresse no trabalho e adoecimento, isto é, ao considerar diferentes exposições permite superar as limitações dos modelos isolados.
A incorporação da dimensão "apoio social no trabalho" ao modelo MDC evidenciou melhor capacidade de predição do evento quando comparado ao modelo reduzido. Esse foi um achado condizente com outros estudos que atribuíram à adição dessa dimensão melhor desempenho do modelo parcial88. Griep RH, Rotenberg L, Landsbergis P, Vasconcellos-Silva PR. Uso combinado de modelos de estresse no trabalho e a saúde auto-referida na enfermagem. Rev Saúde Pública 2011; 45(1): 145-52.,2626. Yu SF, Nakata A, Gu GZ, Swanson NG, Zhou WH, He LH, et al. Co-effect of Demand-control-support model and Effort-reward Imbalance model on depression risk estimation in humans: findings from Henan Province of China. Biomed Environ Sci 2013; 26(12): 962-71.. Vale a pena ressaltar que o apoio social é considerado um aspecto psicossocial responsável por moderar os impactos negativos do estresse e alguns autores defendem que a sua inserção ao MDC confere melhor capacidade de predizer eventos relacionados à saúde44. Johnson J. Collective control: strategies for the survival in the workplace. In: Johnson JV, Johansson G, editors. The psychosocial work environment: work organization, democratizacion and health. New York: Ed Baywood; 1991. p. 121-32.,2727. Dollard MF, Winefield HR, Winefield AH, De Jonge J. Psychosocial job strain and productivity in human service workers: A test of the demand-control-support model. J Occup Orga Psychol 2000; 73: 501-10..
Levando em consideração as especificidades do trabalho em saúde, como trabalho sempre coletivo, e sua exigência de relações interpessoais, parece evidente a contribuição dessa dimensão para explicar a ocorrência de TMC.
O excesso de comprometimento mostrou-se fortemente associado ao desfecho, e sua adição ao modelo ERI reduzido aumentou em mais de duas vezes a medida de associação. O comprometimento excessivo evidencia falta de capacidade do trabalhador em responder de maneira equilibrada às demandas, além de inabilidade de estabelecer algum distanciamento entre a vida pessoal e a profissional2828. Vasconcelos EF, Guimarães LA. Esforço e recompensa no trabalho de uma amostra de profissionais de enfermagem. Psi inForm 2009; 13(13): 11-36.,2929. Siegrist J, Starke D, Chandola T, Godin I, Marmot M, Niedhammer I, et al. The measurement of effort-reward imbalance at work: European comparisons. Soc Sci Med 2004; 58(8): 1483-99..
Ao considerar a principal característica do processo de trabalho na atenção básica, ou seja, a formação de vínculo entre a equipe de saúde e a comunidade3030. Monteiro MM, Figueiredo VP, Machado MF. Formação do vínculo na implantação do Programa Saúde da Família numa Unidade Básica de Saúde. Rev Esc Enferm USP 2009; 43(2): 358-64., pode-se destacar o excesso de comprometimento com o trabalho como um evento bastante próximo da realidade dos trabalhadores. Ao testemunharem o sofrimento das populações que atendem, os profissionais muitas vezes acabam por se envolver emocionalmente3131. Scholze AS, Duarte Junior CF, Silva YF. Trabalho em saúde e a implantação do acolhimento na atenção primária à saúde: afeto, empatia ou alteridade? Interface Comun Saúde Educ 2009; 13(31): 303-14.. Além disso, a avaliação da qualidade baseada na produtividade, traço característico da atenção básica, exige do trabalhador envolvimento adicional com a tarefa, submetendo-o a considerável sobrecarga de trabalho3232. Daubermann DC, Tonete VL. Qualidade de vida no trabalho do enfermeiro da Atenção Básica à Saúde. Acta Paul Enferm 2012; 25(2): 277-83.. Investigações já demonstraram a associação entre excesso de comprometimento e adoecimento mental2020. Souza SF, Carvalho FM, Araújo TM, Porto LA. Desequilíbrio esforço-recompensa no trabalho e transtornos mentais comuns em eletricistas de alta tensão. Rev Baiana Saúde Pública 2011; 35(1): 83-95..
Neste estudo, o desempenho do ERI foi superior ao do MDC, mostrando-se mais fortemente associado aos TMC. Publicações recentes têm evidenciado que o ERI possui capacidade psicométrica satisfatória para mensurar o estresse psicossocial no trabalho66. Silva LS, Barreto, SM. Adaptação transcultural para o português brasileiro da escala effort-reward imbalance: um estudo com trabalhadores de banco. Rev Panam Salud Publica 2010; 27(1): 32-6.. O modelo abarca os conceitos tanto de demanda quanto de controle propostos por Karasek11. Karasek, RA. Job demand, job decision latitude, and mental strain: implications for job redesign. Adm Sci Q 1979; 24(2): 285-308. e inclui, mesmo que timidamente, elementos das interações sociais no trabalho, ao tratar de aspectos relacionados à reciprocidade2828. Vasconcelos EF, Guimarães LA. Esforço e recompensa no trabalho de uma amostra de profissionais de enfermagem. Psi inForm 2009; 13(13): 11-36.. Evidencia, ainda, características do emprego na atualidade que, no caso da atenção básica, é marcado por raras possibilidades de promoção na carreira, pouca estabilidade para os profissionais de nível superior, desvalorização profissional e maior exigência de qualidade, tanto de processos, quanto de produtos1717. Braga LC, Carvalho LR, Binder MC. Condições de trabalho e transtornos mentais comuns em trabalhadores da rede básica de saúde de Botucatu (SP). Ciênc Saúde Coletiva 2010; 15(suppl 1): 1585-96.,3333. Paim, JS. Gestão da atenção básica nas cidades. In: Neto ER, Bógus, CM, editores. Saúde nos aglomerados urbanos: uma visão integrada. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003. p. 183-210..
Nesse sentido, o modelo MDC demonstrou fragilidade em predizer o desfecho. O instrumento, idealizado na década de 1970, foi desenhado para avaliar características do trabalho industrial, portanto, mesmo destinando-se a avaliar todos os tipos de trabalho, apresenta limitações no contexto do trabalho em saúde, que integra o setor de serviços e é marcado por complexidade e dinâmica próprias3434. Pierantoni CR, Varella TC, França T. Recursos humanos e gestão do trabalho em saúde: da teoria para a prática. In: Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. Observatório de Recursos Humanos em Saúde no Brasil: estudos e análises. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. p. 51-80.. Apesar disso, é considerado um dos modelos de referência para mensurar o estresse psicossocial, sendo largamente utilizado na literatura. Neste estudo, o incremento na magnitude de associação no modelo combinado (MDC + ERI) evidencia que o MDC contribui para uma melhor identificação dos efeitos dos estressores ocupacionais na saúde mental.
O presente estudo possui limitações que merecem ser evidenciadas. Por se tratar de um estudo transversal, não está descartada a possibilidade de causalidade reversa, ou seja, aqui não é possível afirmar se foi o estresse psicossocial no trabalho que ocasionou os TMC ou aconteceu o contrário. Além disso, tanto a exposição quanto o desfecho investigados são fenômenos subjetivos e, portanto, de difícil mensuração. O desfecho, em particular, pode estar suscetível ao viés de memória, uma vez que exigiu o resgate de informações passadas para o seu estabelecimento. Outro viés no qual o estudo pode ter incorrido é a situação do trabalhador sadio, uma vez que se investigou apenas os trabalhadores que estavam em pleno exercício das suas atividades, não incluindo aqueles que poderiam estar adoecidos pelo próprio trabalho.
CONCLUSÃO
Os resultados evidenciaram que ambos os modelos investigados estavam associados aos TMC entre trabalhadores da saúde da atenção básica. No entanto, percebeu-se que a análise dos modelos combinados possuiu melhor capacidade de predizer o desfecho. Ademais, dos modelos aqui analisados, o ERI apresentou melhor desempenho principalmente após incorporação do excesso de comprometimento com o trabalho, caracterizando-se como um modelo potente na análise de estresse ocupacional e seus efeitos sobre a saúde mental.
Os resultados obtidos neste estudo fortalecem as iniciativas de avaliações mais amplas dos eventos relacionados à saúde mental, com a análise conjunta de modelos que usualmente têm sido testados isoladamente. Esse procedimento oferece a possibilidade de incorporação de múltiplas dimensões ao estudo das relações de saúde e trabalho, aproximando-se das realidades concretas nas quais os trabalhadores estão envolvidos no cotidiano de trabalho. Os dados também destacaram a importância de dimensões como o apoio social no trabalho em saúde e os riscos do comprometimento excessivo com o trabalho - aspectos que devem constituir objeto de investigação e de aprofundamento em estudos futuros.
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- Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo 480611/2010-6, e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), processo SUS0024/2009
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2016
Histórico
- Recebido
02 Jul 2015 - Aceito
24 Mar 2016