Autopercepção de saúde bucal em comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul: um estudo transversal exploratório

Augusto Bacelo Bidinotto Otávio Pereira D’Ávila Aline Blaya Martins Fernando Neves Hugo Marilda Borges Neutzling Fernanda de Souza Bairros Juliana Balbinot Hilgert Sobre os autores

RESUMO:

Objetivo:

Há escassez de literatura sobre a saúde bucal dos quilombolas. O presente estudo procurou descrever a autopercepção de saúde bucal, bem como verificar fatores a ela associados em comunidades quilombolas no Estado do Rio Grande do Sul.

Métodos:

Os dados para este estudo transversal foram coletados por meio da aplicação de um questionário. Posto que o estudo fez parte de um levantamento sobre segurança alimentar, a amostra probabilística por conglomerado foi estimada para o desfecho de insegurança alimentar, consistindo de 583 indivíduos de comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul. A associação entre o desfecho de autopercepção de saúde bucal negativa e variáveis sociodemográficas, de saúde geral e bucal foi aferida por intermédio de razões de prevalência obtidas por meio de regressão de Poisson com variância robusta, com intervalo de confiança de 95% (IC95%).

Resultados:

Autopercepção negativa de saúde bucal foi reportada por 313 (53,1%) indivíduos. Satisfação com mastigação e com aparência bucal esteve relacionada com maior prevalência de percepção negativa de saúde bucal, não havendo associação entre o número de dentes e o desfecho. Uso de álcool teve uma associação fraca com o desfecho.

Conclusão:

Satisfação com aparência e mastigação é fator associado com autopercepção de saúde bucal dos quilombolas no Rio Grande do Sul.

Palavras-chave:
Comunidades vulneráveis; Grupo com ancestrais do continente africano; Autoavaliação; Saúde bucal; População rural; Origem étnica e saúde

INTRODUÇÃO

A população quilombola tem sua identidade definida por raízes históricas11. Brasil. Decreto Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União 21 nov 2003; Seção 1(227): 4., ligadas às comunidades organizadas para resistência contra o regime escravocrata, ao longo dos séculos XVIII e XIX. Devido à sua natureza intimamente relacionada às grandes propriedades rurais, as colônias de escravos fugidos se situavam sempre em regiões rurais afastadas. Após a abolição da escravatura, essas comunidades preservaram seu caráter de resistência; a partir daquele momento, contra uma sociedade incapaz de incorporar os ex-escravos. Durante todo o século XX, o movimento quilombola se solidificou, e seu fortalecimento culminou na regulamentação das comunidades quilombolas em 2003, e na sua caracterização como povo ou comunidade tradicional, conforme decretado no ano de 200722. Brasil. Decreto Nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2003. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Diário Oficial da União 08 fev 2007; Seção 1(28): 316..

Essas comunidades, por sua natureza, compartilham aspectos de vulnerabilidade com as populações estabelecidas em zonas rurais e com a população negra do Brasil. As populações rurais brasileiras encontram-se em situação de fragilidade, tendo (em comparação aos habitantes de zonas urbanas) menor acesso a serviços de saúde33. Kassouf AL. Acesso aos serviços de saúde nas áreas urbana e rural do Brasil. Rev Econ e Sociol Rural 2005; 43(1); 29-44., maior incidência de algumas doenças de caráter infeccioso44. Brasil. Saúde Brasil 2008: 20 anos de Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em saúde, Departamento de Análise de Situação em Saúde; 2009. 416 p., maior risco de agravos à saúde bucal55. Mello TRC, Antunes JLF, Waldman EA. Áreas rurais: pólos de concentração de agravos à saúde bucal?? Arq Med 2005; 19(1-2): 67-74., além de pior autopercepção de saúde, tanto geral quanto bucal66. Moura C, Gusmão ES, Santillo PMH, Soares RDSC, Cimões R. Autoavaliação da saúde bucal e fatores associados entre adultos em áreas de assentamento rural, Estado de Pernambuco, Brasil. Cad Saúde Pública 2014; 30(3): 611-22.. Ter a pele preta tem relação com indicadores de mortalidade infantil notavelmente mais altos77. Matijasevich A, Victora CG, Barros AJD, Santos IS, Marco PL, Albernaz EP, et al. Widening ethnic disparities in infant mortality in southern Brazil: Comparison of 3 birth cohorts. Am J Public Health 2008; 98(4): 692-8. que os da população branca, além de também estar associado com uma menor expectativa de vida88. Chor D, Lima CRDA. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21(5): 1586-94..

A autopercepção de saúde é um indicador com aceitável validade em saúde pública, dada a sua relação com indicadores de mortalidade99. Idler EL, Benyamini Y. Self-rated health and mortality: a review of twenty-seven community studies. J Health Soc Behav 1997; 38(1): 21-37., morbidade e uso de serviço1010. Tamayo-Fonseca N, Quesada JA, Nolasco A, Melchor I, Moncho J, Pereyra-Zamora P, et al. Self-rated health and mortality: a follow-up study of a Spanish population. Public Health 2013; 127(12): 1097-104., além de ter seu uso progressivamente disseminado. No que se refere à saúde bucal, além de ter forte relação com o modo como o indivíduo percebe sua saúde como um todo, é influenciada pelas crenças, pelo perfil sociodemográfico1111. Borrell LN, Taylor GW, Borgnakke WS, Woolfolk MW, Nyquist LV. Perception of general and oral health in White and African American adults: assessing the effect of neighborhood socioeconomic conditions. Community Dent Oral Epidemiol 2004; 32(5): 363-73. e pelo histórico de doença bucal do sujeito1212. Atchison KA, Gift HC. Perceived oral health in a diverse sample. Adv Dent Res 1997; 11(2): 272-80.. Essa percepção é afetada de maneira distinta por diversas situações e agravos bucais, como número de dentes, uso/tipo de prótese e dificuldades de mastigação, sendo que essas relações se manifestam de maneira diferente entre os edêntulos e aqueles com dentes remanescentes1313. Kim HY, Patton LL. Intra-category determinants of global self-rating of oral health among the elderly. Community Dent Oral Epidemiol 2010; 38(1): 68-76..

Estudos realizados em comunidades quilombolas mostram subutilização de serviços de saúde e dificuldade de acesso, com apenas 57,1% da população utilizando serviços de saúde1414. Gomes K de O, Reis EA, Guimarães MD, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saúde Pública 2013; 29(9): 1829-42., menor frequência de uso de medicamentos (41,9%, em comparação a uma frequência de 49% na população brasileira)1515. Medeiros DS, Moura CS, Guimarães MD, Acurcio FA. Utilização de medicamentos pela população quilombola: inquérito no Sudoeste da Bahia. Rev Saúde Pública 2013; 47(5): 905-13. e condições ambientais e sanitárias deficientes1616. Silva JAN. Sanitary and health conditions at Caiana dos Crioulos, a quilombo community in the State of Paraíba. Saúde e Soc 2007; 16(2): 111-24.. Quanto à saúde bucal, há uma escassez de evidência a respeito de sua situação. Os estudos existentes relatam dificuldades de acesso à atenção odontológica (com 37,9% dos indivíduos nunca tendo consultado um cirurgião-dentista) e necessidades de tratamento reabilitador, com números similares aos da população brasileira na década de 19801717. Silva MEA, Rosa PCF, Neves ACC, Rode SM. Necessidade protética da população quilombola de Santo Antônio do Guaporé-Rondônia-Brasil. Braz Dent Sci 2011; 14(1-2): 62-6.. Adicionalmente, há indicação de pouco conhecimento sobre saúde bucal em comunidades similares1818. Rodrigues SA, Lucas MG, Cerqueira ST da S, Braga Ap da S, Vaz LG. Educação em saúde em comunidades quilombolas. Rev Gaucha Odontol 2011; 59(3): 445-51.. Não há estudos sobre saúde bucal realizados em populações quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul. Tendo em vista essa lacuna, o presente estudo teve por objetivo descrever a autopercepção de saúde bucal, bem como verificar fatores a ela associados em comunidades quilombolas no Estado do Rio Grande do Sul.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal de base populacional, com amostra representativa de famílias quilombolas no Rio Grande do Sul, resultante de um levantamento sobre insegurança alimentar em comunidades quilombolas. A população investigada se constitui de famílias localizadas em 22 comunidades quilombolas, situadas em perímetro rural e urbano, nas regiões sul e central do Estado e na Região Metropolitana de Porto Alegre. A amostra foi estimada levando-se em consideração a prevalência de insegurança alimentar moderada e grave na população negra no Rio Grande do Sul, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD)1919. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Coordenação de Trabalho e Rendimento. Segurança Alimentar. Rio de Janeiro: IBGE; 2004..

Para o cálculo amostral estabeleceu-se frequência esperada de 10%, erro aceitável de 3 pontos percentuais, efeito de delineamento de 1,5, intervalo de confiança de 95% (IC95%) e poder estatístico de 80%, totalizando 576 famílias. Embora a amostra tenha sido calculada para uma prevalência esperada de 10%, quando o cálculo é realizado para a prevalência de autopercepção negativa de saúde bucal, com erro estimado de 5% e efeito de delineamento de 1,5, resulta em um tamanho amostral de 576 famílias. Portanto, ela se mantém representativa para o desfecho utilizado no presente estudo. Por fim, acrescentou-se 10% para eventuais perdas e recusas. Dessa forma, a amostra calculada foi de 634 famílias. O processo de amostragem deu-se em dois estágios. Primeiro, para seleção dos quilombos, utilizou-se amostragem com probabilidade proporcional ao tamanho. O número de famílias em cada quilombo do Rio Grande do Sul difere entre 4 e 275; nesse sentido, atribui-se um peso (ou probabilidade) a cada quilombo proporcional ao número de famílias. No segundo estágio, também utilizou-se amostragem com probabilidade proporcional ao tamanho para cálculo do número de famílias a serem entrevistadas em cada comunidade quilombola. Posteriormente, com posse da lista de todas as famílias residentes em cada comunidade, realizou-se uma amostragem aleatória, conforme o cálculo estabelecido anteriormente, para seleção das famílias, sendo que foram elegíveis para o estudo apenas os responsáveis por domicílio.

O levantamento de dados para o estudo original sobre insegurança alimentar ocorreu entre os meses de maio e outubro de 2011 por meio de entrevistas domiciliares diretas com um membro responsável pela família, utilizando-se instrumentos padronizados, pré-codificados e testados em estudo piloto. O questionário com 120 perguntas foi construído especialmente para a população-alvo, agregando-se também questões de outros estudos prévios. O estudo piloto para testagem do instrumento, logística e organização do trabalho de campo foi realizado em uma comunidade quilombola não incluída na amostra. A equipe de pesquisa selecionada foi composta por 11 entrevistadores, 2 supervisores de campo e 2 coordenadores. Todos receberam treinamento prévio com duração de 40 horas, no qual foram abordadas técnicas de entrevista e aplicação do questionário.

Para a realização do estudo, foram utilizadas variáveis sociodemográficas sobre saúde geral e saúde bucal obtidas do levantamento original. Todos os dados coletados se referem ao membro responsável pela família. No grupo de variáveis sociodemográficas, foram utilizados: sexo e zona de residência (rural ou urbana), idade, estado civil, escolaridade, renda familiar, recebimento de programa bolsa família (sim ou não) e cor da pele. A variável idade foi categorizada por pontos de corte de 10 anos, a partir dos 30 anos de idade, resultando nas seguintes categorias: “menos de 30 anos”; “31 a 40”; “41 a 50”; “51 a 60”; e “60 anos ou mais”. Estado civil foi categorizado de maneira dicotômica como “casado/em união estável” ou “solteiro/viúvo/divorciado”. A variável nível de escolaridade foi trabalhada como: “nunca estudou”; “ensino fundamental incompleto”; e “ensino fundamental completo”. A renda foi calculada por unidade familiar, e categorizada como: “até 1 salário mínimo”; “entre 1 e 2 salários mínimos”; e “mais que 2 salários mínimos” - em função da distribuição amostral, sendo seu valor quando da coleta R$ 545,00 (em torno de US$ 320,00, também no momento da coleta). Para cor de pele foram utilizados os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo que a variável foi coletada de maneira estimulada, isto é, as alternativas eram lidas para o participante, que deveria escolher qual delas se encaixava com a sua percepção da própria cor de pele. Os resultados foram categorizados em “preto”, para os participantes que reportaram ter pele preta, e “não preto”, para os participantes que reportaram ser brancos, amarelos, pardos e indígenas.

As variáveis de saúde geral foram autorreportadas. Foi questionada a presença de: diabetes mellitus (sim ou não); depressão (sim ou não); hábitos de uso de álcool no último ano (sim ou não); e uso de tabaco. Para tabagismo, cada participante foi classificado como “fumante”, “ex-fumante” ou “nunca fumante”.

Quanto à saúde bucal, foram analisados o número de dentes presentes em boca, o uso de prótese odontológica, a satisfação com mastigação e a satisfação com estética bucal. O número de dentes em boca foi autorreportado pelos entrevistados, e discriminado nas categorias: “edêntulo”, correspondendo a 0 dente em boca; “1 a 19 dentes em boca”; e “mais de 20 dentes em boca”. Uso de prótese odontológica foi categorizado como uso autorreportado de qualquer tipo de prótese, em qualquer uma das arcadas. Satisfação com mastigação e com a estética bucal, mensurada por meio das perguntas: “O quanto satisfeito você está com sua mastigação?”; e “O quanto satisfeito você está com a aparência de seus dentes e/ou próteses dentárias?”. Respectivamente, as respostas estavam estruturadas originalmente como uma escala Likert (de “muito insatisfeito” até “muito satisfeito”); elas foram recodificadas nas categorias “insatisfeito”, “indiferente” e “satisfeito”. O desfecho autopercepção de saúde bucal foi aferido por intermédio da pergunta “Como você avalia a saúde de sua boca e de seus dentes?”, dicotomizado em “positiva” (incluindo autopercepção excelente e boa) e “negativa” (autopercepção regular e ruim).

Estatísticas descritivas foram sumarizadas por meio de média e desvio padrão para variáveis quantitativas e frequência absoluta e relativa para variáveis qualitativas. Foram elaboradas tabelas de contingência para análise preliminar das distribuições. Foi realizada análise multivariada por meio da regressão de Poisson com variância robusta, sendo que p < 0,20 foi utilizado como ponto de corte para progressão para modelo multivariado. Nesse modelo final ajustado, a significância estatística foi definida como p < 0,05. Não foi necessário realizar ajuste para efeito de delineamento por meio de pesos amostrais, posto que a estratégia para comportá-lo foi o aumento do ‘n’ amostral na fase de cálculo do tamanho da amostra.

As análises estatísticas foram realizadas através dos softwares SPSS for Windows, v.18 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos) e R 3.3.0 (R Core Team, Viena, Áustria).

O estudo foi aprovado, sob protocolo 20041, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por escrito foi obtido de todos os participantes da pesquisa. Cabe ressaltar que foram respeitadas as diretrizes e normas regulamentadoras específicas para comunidades tradicionais presentes na Resolução CNS 196/96 (resolução vigente no momento em que a coleta de dados foi realizada), item IV.3, a qual preconiza anuência antecipada das comunidades por meio de seus próprios líderes. Os trabalhos se iniciaram somente após apresentação da pesquisa e anuência das lideranças de cada comunidade quilombola.

RESULTADOS

A amostra estudada foi constituída de 583 indivíduos, após 7% de perdas e recusas, com média de idade de 45,04 (DP ± 16,97) anos, sendo 379 (65,0%) mulheres. A média de anos de estudo foi de 4,70 (DP ± 3,94), e os rendimentos médios por domicílio foram de R$ 778,37 (DP ± 649,22). Quanto à autopercepção de saúde bucal, 313 a perceberam como negativa, resultando em uma proporção de 53,7% (IC95% 53,4 - 54,0), ao passo que 270 a perceberam como positiva, com proporção de 46,3% (IC95% 45,9 - 46,7). Estatísticas descritivas das variáveis em estudo são mostradas na Tabela 1, estando estratificadas em autopercepção de saúde bucal “positiva” e “negativa”.

Tabela 1:
Distribuição das variáveis, de acordo com autopercepção de saúde bucal.

Na análise bruta das distribuições, conforme Tabela 2, percebe-se significância estatística para a relação entre uso de álcool no último ano e maior prevalência de autopercepção negativa de saúde bucal (p = 0,03), cenário que se repete para satisfação com mastigação (p < 0,01), número de dentes presentes (p = 0,03) e satisfação com aparência bucal (p < 0,001).

Tabela 2:
Razão de prevalência bruta e ajustada, para o desfecho autopercepção de saúde bucal negativa.

Na análise multivariada, satisfação com mastigação teve sua relação com o desfecho atenuada após ajuste tanto para a categoria “indiferente”, RP = 1,25 (IC95% 1,17 - 1,34) quanto para “insatisfeito”, RP = 1,23 (IC95% 1,16 - 1,35), com relação à referência satisfeito. A relação entre satisfação com aparência bucal e autopercepção de saúde bucal foi a mais forte, após aplicação do modelo ajustado, para as categorias “indiferente”, RP = 1,26 (IC95% 1,16 - 1,36), e “insatisfeito”, RP = 1,31 (IC95% 1,16 - 1,36), sendo a referência à categoria “satisfeito”. Ter usado álcool no último ano permaneceu tendo relação estatisticamente significativa com autopercepção de saúde bucal, RP = 1,06 (IC95% 1,01 - 1,11), em comparação ao não uso.

No modelo final multivariado, idade não obteve significância estatística, caso também das variáveis: estado civil, uso de prótese e número de dentes em boca.

DISCUSSÃO

Os resultados indicam que a insatisfação com aparência bucal e com a performance mastigatória está associada com uma pior autopercepção de saúde bucal em quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul. Por outro lado, o número de dentes não esteve associado à mudança na percepção de saúde bucal. Destaca-se a amostra representativa no âmbito estadual como característica única deste estudo com relação à literatura publicada.

Perda dental autorrelatada esteve relacionada com autopercepção negativa de saúde bucal na análise univariada, em concordância com outros estudos que dispuseram de exame clínico envolvendo populações idosas1313. Kim HY, Patton LL. Intra-category determinants of global self-rating of oral health among the elderly. Community Dent Oral Epidemiol 2010; 38(1): 68-76., além de população adulta do Brasil2020. Brasil. SB Brasil 2010: Pesquisa Nacional de Saúde Bucal: resultados principais. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde; 2010. 116 p.. Após análise multivariada, o número de dentes não teve relação significativa com o desfecho, também havendo correlatos com resultados de estudos clínicos envolvendo idosos brasileiros2121. Pattussi MP, Peres KG, Boing AF, Peres MA, da Costa JSD. Self-rated oral health and associated factors in Brazilian elders. Community Dent Oral Epidemiol 2010; 38(4): 348-59. e, mais especificamente, gaúchos2222. Martins AB, Dos Santos CM, Hilgert JB, de Marchi RJ, Hugo FN, Pereira Padilha DM. Resilience and self-perceived oral health: a hierarchical approach. J Am Geriatr Soc 2011; 59(4): 725-31.. A ausência de associação pode ser explicada pela ausência de dados sobre a localização desses dentes na arcada, posto que a presença de pares oclusais funcionais é importante na construção da autopercepção de saúde bucal2323. Somsak K, Kaewplung O. The effects of the number of natural teeth and posterior occluding pairs on the oral health-related quality of life in elderly dental patients. Gerodontology 2016; 33(1): 52-60., ou ainda pela percepção da perda dental como solução para dor e como prevenção a futuros problemas e gastos com saúde bucal244. Brasil. Saúde Brasil 2008: 20 anos de Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em saúde, Departamento de Análise de Situação em Saúde; 2009. 416 p.. A ausência de informação sobre o estado dos dentes presentes também pode trazer uma justificativa, visto que um indivíduo que tenha enfrentado repetidos problemas dentários pode perceber não ter dentes como uma melhora efetiva na saúde bucal. Já indivíduos com alguma perda dental (1 a 19 dentes) podem ter problemas em curso e estar experimentando algum nível de dor ou desconforto no momento da entrevista1212. Atchison KA, Gift HC. Perceived oral health in a diverse sample. Adv Dent Res 1997; 11(2): 272-80.. Alternativamente, essa discrepância pode se dar devido aos diferentes referenciais utilizados na autoavaliação de saúde, o que ocasiona eventuais associações fracas entre a situação clínica e a percepção de saúde do sujeito2525. Locker D, Maggirias J, Wexler E. What frames of reference underlie self-ratings of oral health? J Public Health Dent 2009; 69(2): 78-89..

A mastigação é um fator influente na qualidade de vida do indivíduo2626. Nguyen TC, Witter DJ, Bronkhorst EM, Gerritsen AE, Creugers NHJ. Chewing ability and dental functional status. Int J Prosthodont. 2011; 24(5): 428-36., e sua baixa performance está relacionada com diminuição de atividades funcionais2727. Kimura Y, Ogawa H, Yoshihara A, Yamaga T, Takiguchi T, Wada T, et al. Evaluation of chewing ability and its relationship with activities of daily living, depression, cognitive status and food intake in the community-dwelling elderly. Geriatr Gerontol Int 2013;13(3): 718-25.,2828. Listl S. Oral health conditions and cognitive functioning in middle and later adulthood. BMC Oral Health 2014; 14(1): 70., sintomas depressivos, déficit de funções cognitivas2727. Kimura Y, Ogawa H, Yoshihara A, Yamaga T, Takiguchi T, Wada T, et al. Evaluation of chewing ability and its relationship with activities of daily living, depression, cognitive status and food intake in the community-dwelling elderly. Geriatr Gerontol Int 2013;13(3): 718-25., insuficiência alimentar2727. Kimura Y, Ogawa H, Yoshihara A, Yamaga T, Takiguchi T, Wada T, et al. Evaluation of chewing ability and its relationship with activities of daily living, depression, cognitive status and food intake in the community-dwelling elderly. Geriatr Gerontol Int 2013;13(3): 718-25.,2929. Lin YC, Chen JH, Lee HE, Yang NP, Chou TM. The association of chewing ability and diet in elderly complete denture patients. Int J Prosthodont 2010; 23(2): 127-8. e mortalidade em idosos3030. Schwahn C, Polzer I, Haring R, Dörr M, Wallaschofski H, Kocher T, et al. Missing, unreplaced teeth and risk of all-cause and cardiovascular mortality. Int J Cardiol 2013; 167(4): 1430-7.,3131. González S, Huerta JM, Fernández S, Patterson AM, Lasheras C. Differences in overall mortality in the elderly may be explained by diet. Gerontology 2008; 54(4): 232-7.. A associação entre insatisfação com performance mastigatória e percepção negativa de saúde bucal é frequentemente encontrada em outras populações1313. Kim HY, Patton LL. Intra-category determinants of global self-rating of oral health among the elderly. Community Dent Oral Epidemiol 2010; 38(1): 68-76.,2121. Pattussi MP, Peres KG, Boing AF, Peres MA, da Costa JSD. Self-rated oral health and associated factors in Brazilian elders. Community Dent Oral Epidemiol 2010; 38(4): 348-59.. Na população brasileira, as condições de saúde bucal relacionadas à mastigação são as mais referidas como fonte de impacto na realização de atividades cotidianas2020. Brasil. SB Brasil 2010: Pesquisa Nacional de Saúde Bucal: resultados principais. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde; 2010. 116 p..

Os achados de forte relação entre aparência e saúde bucal autopercebidas são consistentes com outros estudos2121. Pattussi MP, Peres KG, Boing AF, Peres MA, da Costa JSD. Self-rated oral health and associated factors in Brazilian elders. Community Dent Oral Epidemiol 2010; 38(4): 348-59.,3232. Vilela EA, Martins AM, Barreto SM, Vargas AM, Ferreira RC. Association between self-rated oral appearance and the need for dental prostheses among elderly Brazilians. Braz Oral Res 2013; 27(3): 203-10.,3333. Xiaoxian Meng, Gilbert GH, Duncan RP, Heft MW. Satisfaction with dental appearance among diverse groups of dentate adults. J Aging Health 2007; 19(5): 778-91.,3434. Martins AME de BL, Barreto SM, Pordeus IA. Auto-avaliação de saúde bucal em idosos: análise com base em modelo multidimensional. Cad Saúde Pública 2009; 25(2): 421-35.,3535. Mejia G, Armfield JM, Jamieson LM. Self-rated oral health and oral health-related factors: the role of social inequality. Aust Dent J 2014; 59(2): 226-33.. Essa valorização da aparência física pode se dar pelo fato de ser um dos traços mais facilmente percebidos durante interações sociais, sendo sugerido o estereótipo de que “o que é bonito é bom”, significando que uma pessoa de boa aparência é vista também como detentora de características sociais desejáveis3636. Dion K, Berscheid E, Walster E. What is beautiful is good. J Pers Soc Psychol 1972; 24(3): 285-90.. Internamente ao indivíduo, a percepção da imagem corporal é um conceito variável, flutuando ao longo do tempo e influenciado por eventos cotidianos3737. Rudiger JA, Cash TF, Roehrig M, Thompson JK. Day-to-day body-image states: prospective predictors of intra-individual level and variability. Body Image 2007; 4(1): 1-9., sendo que uma percepção negativa do próprio corpo está associada a desfechos de saúde mental, como transtornos alimentares, depressão e baixa autoestima3838. Jansen A, Smeets T, Martijn C, Nederkoorn C. I see what you see: the lack of a self-serving body-image bias in eating disorders. Br J Clin Psychol 2006; 45(Pt 1): 123-35..

Quanto à saúde bucal, sugere-se o mesmo mecanismo estereotípico de beleza, relacionado a aspectos sociais e profissionais3939. Eli I, Bar-Tal Y, Kostovetzki I. At first glance: social meanings of dental appearance. J Public Health Dent 2001; 61(3): 150-4., sendo que sua percepção é mediada mais fortemente por variáveis dentárias, como alterações de cor e ausências de elementos dentários4040. Neumann LM, Christensen C, Cavanaugh C. Dental esthetic satisfaction in adults. J Am Dent Assoc 1989; 118(5): 565-70., e sua avaliação negativa é relacionada à necessidade de reabilitações protéticas de natureza parcial ou total3232. Vilela EA, Martins AM, Barreto SM, Vargas AM, Ferreira RC. Association between self-rated oral appearance and the need for dental prostheses among elderly Brazilians. Braz Oral Res 2013; 27(3): 203-10.. A alteração dessa percepção ao longo do tempo está relacionada ao aparecimento e recuperação de agravos de saúde bucal como manchamento, quebra de restaurações e de elementos dentários4141. Meng X, Gilbert GH, Litaker MS. Dynamics of satisfaction with dental appearance among dentate adults: 24-month incidence. Community Dent Oral Epidemiol 2008; 36(4): 370-81.. Em termos populacionais, há achados similares de relação entre autopercepção de saúde bucal e autopercepção de aparência bucal em idosos brasileiros2121. Pattussi MP, Peres KG, Boing AF, Peres MA, da Costa JSD. Self-rated oral health and associated factors in Brazilian elders. Community Dent Oral Epidemiol 2010; 38(4): 348-59.,3434. Martins AME de BL, Barreto SM, Pordeus IA. Auto-avaliação de saúde bucal em idosos: análise com base em modelo multidimensional. Cad Saúde Pública 2009; 25(2): 421-35..

É limitação reconhecida desta pesquisa a ausência de exame odontológico quando da coleta de dados, o que confere uma menor robustez aos dados de saúde bucal, além das limitações inerentes ao estudo da autopercepção de saúde, conceito baseado em referenciais variáveis2525. Locker D, Maggirias J, Wexler E. What frames of reference underlie self-ratings of oral health? J Public Health Dent 2009; 69(2): 78-89. e transientes2525. Locker D, Maggirias J, Wexler E. What frames of reference underlie self-ratings of oral health? J Public Health Dent 2009; 69(2): 78-89.,4242. De Andrade FB, Lebrão ML, Santos JLF, Duarte YA de O. Correlates of change in self-perceived oral health among older adults in Brazil: findings from the Health, Well-Being and Aging Study. J Am Dent Assoc 2012 ;143(5): 488-95., de forma transversal. Adicionalmente, o presente estudo está sujeito às limitações reconhecidas dos estudos transversais, não podendo oferecer apoio para inferências causais e estando sujeito a fenômenos de causalidade reversa.

CONCLUSÃO

A autopercepção de saúde bucal dos quilombolas do Rio Grande do Sul apresenta correlatos semelhantes aos de outras populações, sendo aparência e mastigação fatores de grande valor no estabelecimento da ideia ampla de saúde bucal na população estudada. Ainda que haja muito o que explorar, principalmente no que diz respeito à situação clínica de saúde bucal dessa população, o presente estudo oferece uma plataforma para discussão e direcionamento de propostas de novos estudos e de políticas de saúde bucal voltadas às comunidades quilombolas.

REFERÊNCIAS

  • 1
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  • Fonte de financiamento: A coleta de dados foi financiada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome e Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico, pelo Edital MC/CNPq/MDS/SAGI nº 36/2010 - Estudos e Avaliação das Ações do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2016
  • Aceito
    08 Set 2016
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revbrepi@usp.br