Classificação de óbitos em mulheres com vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida no ciclo gravídico-puerperal

Manuella Coutinho Brayner Sandra Valongueiro Alves Sobre os autores

RESUMO:

Objetivo:

Reclassificar os óbitos de mulheres portadoras do vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida no ciclo gravídico-puerperal no Estado de Pernambuco, no período de 2000 a 2010.

Métodos:

Estudo descritivo exploratório, desenvolvido a partir das seguintes etapas: tradução para português do item “HIV and aids” do documento da Organização das Nações Unidas “The WHO application of ICD-10 to deaths during pregnancy, childbirth and the puerperium: ICD MM, 2012”; elaboração de um algoritmo de classificação dos óbitos de mulheres portadoras do vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida no ciclo gravídico-puerperal; e reclassificação dos óbitos por um grupo de especialistas.

Resultados:

Dentre os 25 óbitos reclassificados, 12 foram devido ao vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida e a condição gravídica era coexistente; 9 foram reclassificados como morte materna obstétrica indireta, com o código O98.7, proposto pela Organização Mundial de Saúde; 2 como morte materna obstétrica direta/indireta; e 2 foram considerados indeterminados.

Conclusão:

A reclassificação apontou uma possível mudança de padrão de mortalidade materna, visto que a maioria dos óbitos foi atribuído ao vírus, podendo levar a uma redução dos óbitos por causas maternas. O algoritmo subsidiará o uso da nova classificação sobre morte materna e do vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida.

Palavras-chave:
Mulheres; Mortalidade materna; HIV; Aids; Classificação Internacional de Doenças; Causas de morte

INTRODUÇÃO

A mortalidade materna é considerada uma grave violação dos direitos humanos das mulheres, sendo evitável em mais de 90% dos casos. A Organização Mundial de Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Fundo de População das Nações Unidas (UNPFA) e o Banco Mundial estimaram que, em 2013, 289 mil mulheres em todo o mundo morreram de complicações ligadas ao ciclo gravídico-puerperal, o que corresponde a uma razão de mortalidade materna (RMM) de 210 por 100 mil nascidos vivos. Aproximadamente 99% delas viviam em países em desenvolvimento, a maioria na África Subsaariana e Ásia11. World Health Organization, UNICEF, UNFPA, The World Bank, the United Nations Population Division. Trends in Maternal Mortality: 1990 - 2013. Geneva: WHO; 2014..

A infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids), identificada em 1981, representa um fenômeno global e dinâmico. A aids, entre as enfermidades infecciosas emergentes, destaca-se pela grande magnitude e extensão dos danos causados às populações22. Brito AM, Castilho EA, Szwarcwald CL. AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada. Rev Soc Bras Med Trop. 2001;34(2):207-17.. Em muitos países da região subsaariana a mortalidade materna elevada coexiste com alta prevalência do HIV, entre as mulheres em idade fértil, representando as duas principais causas de morte entre mulheres jovens33. Abdool-Karim Q, Abouzahr C, Dehne K, Mangiaterra V, Moodley J, Rollins N, et al. HIV and maternal mortality: turning the tide. Lancet. 2010;375(9730):1948-9.,44. Graham W, Newell ML. Seizing the opportunity: collaborative initiatives to reduce HIV and maternal mortality. Lancet. 1999;353(9155):836-9.,55. Moran NF, Moodley J. The effect of HIV infection on maternal health and mortality. Int J Gynaecol Obstet. 2012;119(Suppl. 1):S26-9..

No mundo, estima-se que 2,6% das mortes maternas sejam relacionadas ao HIV/aids11. World Health Organization, UNICEF, UNFPA, The World Bank, the United Nations Population Division. Trends in Maternal Mortality: 1990 - 2013. Geneva: WHO; 2014.. Portanto, coexiste o risco de morte pelo avanço do HIV como também pelas complicações relacionadas à gravidez33. Abdool-Karim Q, Abouzahr C, Dehne K, Mangiaterra V, Moodley J, Rollins N, et al. HIV and maternal mortality: turning the tide. Lancet. 2010;375(9730):1948-9.,66. McIntyre J. Maternal Health and HIV. Reprod Health Matters. 2005;13(25):129-35..

Em Pernambuco, a notificação e investigação desses casos têm revelado mortes de mulheres no período gravídico-puerperal, muitas vezes difíceis de classificar como morte por aids ou morte de mulheres com HIV/aids. Segundo o Ministério da Saúde (MS), as mortes de mulheres com HIV durante o ciclo gravídico-puerperal fazem parte da investigação compulsória de óbitos de mulheres em idade fértil e podem, portanto, ser classificadas como mortes maternas77. Brasil. Portaria MS/GM nº 1.119/2008. Brasília: Diário Oficial da República Federativa do Brasil; 5 de junho de 2008.. As regras de seleção de causa de morte utilizadas no Brasil priorizavam, até 2013, classificar aids como causa básica de morte (B20-B24)88. Organização Mundial de Saúde. Classificação estatística internacional de doenças e de problemas relacionados à saúde. Décima revisão. Manual de instrução (volume 2). Centro Colaborador da OMS para a Classificação de Doenças em Português. São Paulo; 2009.. No entanto, muitas dessas mulheres podem morrer por aids (ter a aids como causa básica) ou morrer com HIV (a doença ser uma comorbidade). A ausência de um protocolo para orientação na classificação das mortes de mulheres com HIV/aids, durante a discussão e análise de um óbito pelos Grupos Técnicos dos Comitês, pode super ou subestimar os verdadeiros casos decorrentes da aids99. Bonciani RDF, Spink MJP. Morte por AIDS ou morte materna: a classificação da mortalidade como prática social. Cad Saúde Pública. 2003;19(2):645-52..

Na tentativa de equacionar essas dificuldades, a OMS orienta a utilização do código O98.7 para classificar as mortes maternas obstétricas indiretas por HIV/aids1010. World Health Organization. The WHO Application of ICD-10 to deaths during pregnancy, childbirth and the puerperium: ICD MM. 2012. Geneva: WHO; 2012..

Diante disso, é necessário que se proponham estratégias que norteiem a discussão desses óbitos femininos. Assim, o objetivo do presente estudo foi reclassificar os óbitos de mulheres portadoras de HIV/aids ocorridos no ciclo gravídico-puerperal, residentes no Estado de Pernambuco, no período de 2000 a 2010, tendo como referência a orientação da CID 10 da OMS sobre morte materna.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo exploratório, de corte transversal, realizado em Pernambuco. Foram estudados os óbitos de mulheres residentes em Pernambuco, no período de 2000 a 2010, cuja causa básica de óbito tenha sido HIV/aids, registrados como maternos pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e discutidos pelos Grupos Técnicos dos Comitês de Mortalidade Materna Municipais/Regionais/Estadual. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10)88. Organização Mundial de Saúde. Classificação estatística internacional de doenças e de problemas relacionados à saúde. Décima revisão. Manual de instrução (volume 2). Centro Colaborador da OMS para a Classificação de Doenças em Português. São Paulo; 2009., por definição, tais óbitos são aqueles que ocorrem em mulheres entre 10 e 49 anos de idade e que têm os códigos B20 a B24, nas Partes I ou II da Declaração de Óbito (DO), ou seja, tanto a causa básica de óbito como as causas associadas. Essas últimas referem-se às doenças e suas complicações presentes no momento da morte, informadas no atestado de óbito1111. Laurenti R, Buchalla CM. A elaboração de estatísticas de mortalidade segundo causas múltiplas. Rev Bras Epidemiol. 2000;3(1/3):21-8..

Foram utilizados como fonte de dados o SIM, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), o Sistema de Controle de Exames Laboratoriais de CD4/CD8 e Carga Viral (Siscel), as fichas de investigação e o parecer de encerramento dos óbitos maternos, discutidos pelos Grupos Técnicos dos Comitês de Mortalidade Materna Municipais/Regionais/Estadual. Como etapa adicional, foi realizada uma busca no Sinan do Programa Estadual de IST/aids/HV dos óbitos maternos na presença de HIV/aids, para confirmação do diagnóstico, da notificação e da investigação do agravo.

O desenvolvimento do estudo foi realizado nas seguintes etapas:

1. Tradução para português do item “HIV and aids” do documento da Organização das Nações Unidas (ONU) “The WHO Application of ICD-10 to deaths during pregnancy, childbirth and the puerperium- ICD MM, 2012”1010. World Health Organization. The WHO Application of ICD-10 to deaths during pregnancy, childbirth and the puerperium: ICD MM. 2012. Geneva: WHO; 2012., ainda não traduzido e implantado no Brasil pelo MS, realizada por dois profissionais, um com experiência em mortalidade materna e outro em HIV/aids, com proficiência na língua inglesa. Após a tradução, foi consolidado um documento único em português e retraduzido para inglês por um tradutor da área da língua inglesa. Foi observada a similaridade da interpretação (se a interpretação da linguagem é ou não similar à original, mesmo havendo palavras diferentes)1212. Reichenheim ME, Moraes CL. Operacionalização de adaptação transcultural de instrumentos de aferição usados em epidemiologia. Rev Saúde Pública. 2007;41(4):665-73..

2. Elaboração de um algoritmo de classificação dos óbitos de mulheres portadoras de HIV/aids durante o ciclo gravídico-puerperal, utilizando critérios clínicos, laboratoriais e de assistência:

Essenciais: início dos sintomas e/ou agravamento da doença associado ao período gravídico; presença de comorbidades; adesão à terapia antirretroviral (TARV); informações quanto aos níveis da carga viral e de linfócitos CD4+.

Complementares: história obstétrica; informações sobre o recém-nascido; laudos de necropsia.

Esse algoritmo foi sendo ajustado durante o processo de discussão dos casos, com a agregação de componentes que se tornaram necessários para a classificação dos óbitos, como alterações de valores referentes aos linfócitos T CD4+ para classificação e a inclusão da categoria “indeterminado”;

3. Reclassificação dos óbitos, realizada por meio da apreciação de um grupo de especialistas, durante cinco reuniões. Esse grupo foi composto por um profissional médico obstetra com expertise em HIV/aids, um profissional com atuação no Programa Estadual de IST/aids/HV, um profissional com atuação na área Técnica da Saúde da Mulher do Estado, um profissional com atuação na área da Vigilância do Óbito Materno do Estado e um profissional médico com expertise em mortalidade materna e membro do Comitê Estadual de Estudos da Mortalidade Materna (CEEMM). Utilizou-se o algoritmo, tendo como referência a proposta de classificação da OMS traduzida para o português, que definia como critérios de inclusão:

  • morte de mulher em idade fértil por HIV/aids, sendo a condição gravídica coexistente;

  • morte materna por causas obstétricas indiretas, código O98.7;

  • morte materna por causas obstétricas diretas do Capítulo XV da CID-10;

  • morte por causa indeterminada.

Foram excluídos os casos descartados tanto para morte materna como para HIV/aids.

4. Após a reclassificação, os resultados foram representados em formato de diagramas utilizando o software do Microsoft Office, Word 2007.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco, atendendo aos requisitos preestabelecidos na Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do MS e não houve conflito de interesses durante a pesquisa.

RESULTADOS

Com base nas variáveis necessárias para reclassificação dos casos, durante as apreciações do grupo de especialistas, atingiu-se o algoritmo apresentado na Figura 1. Todas as informações clínicas, laboratoriais e assistenciais foram obtidas dos dados secundários (fichas de investigação e sistemas de informações relacionados ao óbito materno e HIV/aids); desses, em apenas 32% houve registro de contagem de linfócito T CD4+.

Figura 1:
Algoritmo para reclassificar os óbitos ocorridos no ciclo gravídico-puerperal de mulheres portadoras de HIV/aids, baseado na proposta da Organização Mundial de Saúde, 2012.

Dos 25 óbitos, antes classificados como maternos com o código de B20-24, 12 (48%) foram considerados HIV/aids (B20-24) e a condição gravídica era coexistente; apenas 9 (36%) mantiveram a classificação inicial, morte materna obstétrica indireta, com o código O98.7 proposto pela OMS; 2 óbitos (8%) foram reclassificados como morte materna obstétrica direta/indireta (sendo a direta a hemorragia pós-cesárea e a indireta, a trombose venosa profunda); e 2 (8%) foram considerados indeterminados (Figura 2).

Figura 2:
Representação da reclassificação dos óbitos de mulheres portadoras de HIV/aids durante o ciclo gravídico-puerperal.

Dentre os 12 óbitos reclassificados como HIV/aids, 3 ocorreram durante a gravidez, 9 no puerpério tardio e nenhum no puerpério precoce. Nos casos ocorridos na gravidez, a mulher já apresentava sinais de evolução da doença ao engravidar e no puerpério tardio foi identificado que as alterações fisiológicas da gravidez não interferiram na progressão da doença. E quando foi possível localizar os resultados de linfócitos T CD4+, esses se encontravam abaixo de 350 células/mm3 (2 com valores abaixo de 200 células/mm3). Sete entre as 12 mulheres reclassificadas como HIV/aids não iniciaram a TARV ou não estava mencionado o início do tratamento. Dentre as comorbidades encontradas, pode-se citar tuberculose pulmonar, neurotoxoplasmose e linfoma não Hodkin. Dos óbitos reclassificados com o código O98.7, 8 ocorreram no puerpério precoce e apenas 1 no tardio (60 dias pós-parto), esse último com relato de vários atendimentos devido a febre e diarreia após o parto normal. Seis mulheres já sabiam que viviam com HIV antes da gravidez que levou ao óbito e três souberam do diagnóstico durante a gravidez/parto. Ressalta-se que 6 entre as 12 mulheres (50%) haviam iniciado a TARV. A presença de infecções oportunistas, como tuberculose pulmonar e neurotoxoplasmose, e 2 resultados de contagem de linfócitos T CD4+ menor que 350 células/mm3 também foram detectados, contudo estavam relacionadas ao comprometimento do estado clínico durante ou após a gestação.

Em relação às mortes reclassificadas como obstétricas, o diagnóstico de HIV/aids não interferiu na ocorrência do óbito. Essas resultaram de complicações intrinsicamente relacionadas (diretas) ou agravadas (indiretas) pelo estado gravídico-puerperal, ambas com diagnóstico tardio de HIV.

Os óbitos para os quais não foi possível estabelecer relação entre HIV/aids e a condição gravídica-puerperal foram reclassificados como indeterminados. Em um dos casos foi detectada uma lesão pardacenta cerebral não especificada, sem resultado de histopatológico, inviabilizando a identificação de doença associada ou não à aids. No outro, ocorrido em 2000, a insuficiência de dados impossibilitou a reclassificação, uma vez que não havia informação sobre o pré-natal, o início da TARV e o momento do diagnóstico da doença.

DISCUSSÃO

Os resultados mostram que, dos 25 óbitos maternos obstétricos indiretos classificados previamente pelos grupos técnicos, apenas 9 se mantiveram com a mesma classificação, assumindo o novo código, O98.7. Doze foram reclassificados como mortes de mulheres em idade fértil por HIV/aids, códigos de B20 a B24, tendo a gravidez coexistido com o momento do óbito. Essa diferença da classificação confirma a importância de um algoritmo ou protocolo que direcione a utilização do referido código.

Poucos estudos examinam as causas de morte materna distinguindo as mortes indiretas relacionadas com o HIV das mortes coincidentes e relacionadas com o HIV. Documento da OMS de 20121010. World Health Organization. The WHO Application of ICD-10 to deaths during pregnancy, childbirth and the puerperium: ICD MM. 2012. Geneva: WHO; 2012. sugere que as mortes em gestantes e puérperas infectadas pelo HIV devem ser categorizadas como mortes obstétricas indiretas (morrem por causa do efeito agravante da gravidez sobre o HIV) e mortes relacionadas com o HIV (morrem de uma complicação fatal de HIV ou aids, que é coincidente com a gravidez). No entanto, como já afirmaram Calvert e Ronsmans1313. Calvert C, Ronsmans C. The contribution of HIV to pregnancy-related mortality: a systematic review and meta-analysis. AIDS. 2013;27(10):1631-9. (2013), nenhuma orientação é dada sobre a forma como deve ser feita essa distinção.

Segundo o MS1414. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Coordenação Geral de Informações e Análises Epidemiológicas. Protocolos de codificações especiais em mortalidade. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. 60p., a partir de 2013 as doenças causadas pelo HIV (B20 a B24 - Capítulo I) deixaram de ser uma exclusão do Capítulo XV da CID-10 (gravidez, parto e puerpério) e passaram a ser uma subcategoria da Categoria O98. Portanto, os óbitos de mulheres com aids que, após investigação, tenham sido confirmados que a morte foi resultante de complicações agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez, codificam-se como O98.7 (doença pelo HIV complicando gravidez, parto e/ou puerpério).

Classificar um óbito de mulher em idade fértil na presença de HIV/aids sempre foi um desafio para os grupos técnicos utilizando critérios mais sensíveis e menos específicos, incluindo todos os óbitos codificados em B20-B24 na presença de gravidez/puerpério. Portanto, a classificação era conduzida na ausência de uma orientação padronizada que permitisse identificar melhor a relação entre a doença e o estado gravídico, uma dificuldade que se estende a outros óbitos por causas obstétricas indiretas1515. Alves SV. Maternal Mortality in Pernambuco, Brazil: What Has Changed in Ten Years? Reprod Health Matters. 2007;15(30):134-44.. Some-se a isso o fato de que um dos principais objetivos da vigilância de óbito materno e dos comitês de mortalidade é a captação de óbitos não declarados com vistas a reduzir a subinformação.

A dificuldade de usar essa classificação, pelo menos neste momento de implantação do novo código, permanece, pois exige consultas frequentes aos protocolos do MS e discussão com especialistas na área. A construção desse algoritmo busca nortear a classificação dos óbitos em mulheres portadoras de HIV/aids no período gravídico-puerperal, proposto pela OMS1010. World Health Organization. The WHO Application of ICD-10 to deaths during pregnancy, childbirth and the puerperium: ICD MM. 2012. Geneva: WHO; 2012. em 2012 e incorporado pelo MS1414. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Coordenação Geral de Informações e Análises Epidemiológicas. Protocolos de codificações especiais em mortalidade. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. 60p. em 2013.

Algoritmos para esse tipo de classificação de óbitos maternos ainda não são usados no Brasil. Esse primeiro exercício se mostrou importante para auxiliar os grupos técnicos, que não contam, necessariamente, com a disponibilidade de especialistas, e as investigações nem sempre possuem todas as informações relativas ao processo de adoecimento e morte das mulheres.

Apesar de não citarem algoritmos, Moran e Moodley55. Moran NF, Moodley J. The effect of HIV infection on maternal health and mortality. Int J Gynaecol Obstet. 2012;119(Suppl. 1):S26-9., considerando as regras de avaliação do National Committee on Confidential Enquiries into Maternal Deaths (NCCEMD)1616. National Committee on Confidential Enquiries into Maternal Deaths. Saving Mothers 2005-2007: Fourth report on confidential enquiries into maternal deaths in South Africa. Pretoria; 2009., já ressaltavam critérios para a atribuição de causa da morte como aids, que se assemelham aos incluídos no algoritmo deste estudo, sendo eles: mulheres que tinham um teste de HIV positivo e um cluster de diferenciação 4 (CD4) de < 200 células/mm3 ou uma condição definidora de aids para minimizar o viés em relação a um erro de diagnóstico como uma causa de morte materna.

Diante disso, pode-se afirmar que este é um estudo inédito no Brasil, visto que não há relatos na literatura nacional de classificação de mulheres no período gravídico-puerperal em termos de “status do HIV”. Além disso, essa nova orientação, com a utilização do algoritmo, pode revelar um quadro mais verdadeiro do papel do HIV/aids nas mortes maternas, interferindo, inclusive, na distribuição das mortes obstétricas indiretas no total de mortes maternas.

O mecanismo pelo qual a presença de HIV/aids aumenta o risco de morte entre mulheres grávidas pode estar relacionado à imunossupressão durante a gravidez associada à infecção pelo HIV, que pode acelerar a progressão da doença e aumentar o risco de complicações obstétricas1717. Moodley J, Pattinson RC, Baxter C, Sibeko S, Abdool Karim Q. Strengthening HIV services for pregnant women: an opportunity to reduce maternal mortality rates in Southern Africa/sub-Saharan Africa. Br J Obstet Gynaecol. 2011;118(2):219-25..

Publicações internacionais, principalmente de países da África, trazem um olhar mais aprofundado da saúde materna e do HIV, devido à alta prevalência do vírus e à elevada RMM, coexistindo muitas vezes o status da doença e a condição gravídica. Esses países ainda não utilizam o código O98.7, porém, já discutem a relação entre HIV/aids e gravidez1818. Guidozzi F, Black V. The obstetric face and challenge of HIV/AIDS. Clin Obstet Gynecol. 2009;52(2):270-84. 19 Le Coeur S, Khlat M, Halembokaka G, Augereau-Vacher C, Batala-M'Pondo G, Baty G, et al. HIV and the magnitude of pregnancy-related mortality in Pointe Noire, Congo. AIDS. 2005;19(1):69-75.,1919. Le Coeur S, Khlat M, Halembokaka G, Augereau-Vacher C, Batala-M'Pondo G, Baty G, et al. HIV and the magnitude of pregnancy-related mortality in Pointe Noire, Congo. AIDS. 2005;19(1):69-75.,2020. McIntyre J. Mothers infected with HIV. Br Med Bull. 2003;67(1):127-35..

A natureza da interação do HIV com a gravidez é o que fundamenta a necessidade da classificação desses óbitos. A informação sobre o estado de saúde da mulher no momento da gravidez e o conhecimento do diagnóstico da infecção pelo vírus foram os fatores determinantes ao utilizar a nova classificação. Embora autores apontem que o aumento da morbidade e mortalidade está associado à progressão clínica da doença, é fundamental conhecer o grau de comprometimento clínico e imunológico da mulher, avaliada pelas contagens de CD4 e cargas virais1717. Moodley J, Pattinson RC, Baxter C, Sibeko S, Abdool Karim Q. Strengthening HIV services for pregnant women: an opportunity to reduce maternal mortality rates in Southern Africa/sub-Saharan Africa. Br J Obstet Gynaecol. 2011;118(2):219-25..

Evidências recentes sugerem que a gravidez parece não ter efeito discernível no aumento da progressão da infecção pelo HIV em mulheres infectadas assintomáticas, porém, as mulheres infectadas sintomáticas estão em maior risco de morrer de doenças infecciosas do que as grávidas não infectadas1818. Guidozzi F, Black V. The obstetric face and challenge of HIV/AIDS. Clin Obstet Gynecol. 2009;52(2):270-84. 19 Le Coeur S, Khlat M, Halembokaka G, Augereau-Vacher C, Batala-M'Pondo G, Baty G, et al. HIV and the magnitude of pregnancy-related mortality in Pointe Noire, Congo. AIDS. 2005;19(1):69-75.,2020. McIntyre J. Mothers infected with HIV. Br Med Bull. 2003;67(1):127-35.. Esforços para prevenir, diagnosticar e tratar essas condições antes e durante a gravidez podem reduzir a morbidade e mortalidade em mulheres grávidas infectadas1717. Moodley J, Pattinson RC, Baxter C, Sibeko S, Abdool Karim Q. Strengthening HIV services for pregnant women: an opportunity to reduce maternal mortality rates in Southern Africa/sub-Saharan Africa. Br J Obstet Gynaecol. 2011;118(2):219-25..

Em estudo de Le Coeur et al.1919. Le Coeur S, Khlat M, Halembokaka G, Augereau-Vacher C, Batala-M'Pondo G, Baty G, et al. HIV and the magnitude of pregnancy-related mortality in Pointe Noire, Congo. AIDS. 2005;19(1):69-75. realizado no Congo, entre as mulheres que viviam com HIV, a gravidez parecia conferir uma vantagem aparente, com razão de mortalidade cinco vezes menor nas grávidas do que nas não grávidas, demonstrando que o impacto do HIV sobre a população de mulheres pode variar de acordo com seu estado gravídico e provavelmente pelo acesso aos serviços e à TARV.

Observou-se que 12 dos óbitos estudados foram devido à infecção pelo HIV, também identificada em recente revisão sistemática1313. Calvert C, Ronsmans C. The contribution of HIV to pregnancy-related mortality: a systematic review and meta-analysis. AIDS. 2013;27(10):1631-9.. Para esses autores, o excesso de mortalidade atribuível ao HIV entre gestantes e puérperas infectadas tem um grande impacto sobre a mortalidade relacionada com a gravidez, mesmo onde a prevalência de HIV é relativamente baixa. Dessa forma, parte dos óbitos que seriam classificados como maternos obstétricos indiretos passam a adquirir uma nova classificação, proporcionando maior destaque para a doença infecciosa em questão e menor para a mortalidade materna.

O fato de 7 entre as 12 mulheres reclassificadas como HIV/aids não terem iniciado a TARV pode ter sido um fator contribuinte para acelerar a doença. Calvert e Ronsmans1313. Calvert C, Ronsmans C. The contribution of HIV to pregnancy-related mortality: a systematic review and meta-analysis. AIDS. 2013;27(10):1631-9. ainda descrevem que esse foi o achado para a maioria dos estudos revisados por eles, em que um número significativo de mulheres infectadas pelo HIV teria progredido para estágios clínicos de aids pela falta da terapia, com alta taxa de mortalidade como desfecho.

Na África do Sul, segundo o NCCEMD1616. National Committee on Confidential Enquiries into Maternal Deaths. Saving Mothers 2005-2007: Fourth report on confidential enquiries into maternal deaths in South Africa. Pretoria; 2009., constatou-se que 27,8% das mortes maternas, em que a causa básica da morte foi classificada como aids, as mães também tinham uma condição obstétrica que poderia ser classificada como a causa básica da morte, a exemplo de aborto e hemorragia pós-parto. Mesmo que essas mortes fossem reclassificadas como mortes maternas por causas obstétricas diretas, 78,9% ainda seriam atribuídas à infecção pelo HIV, semelhante ao estudo realizado.

Dados de um estudo randomizado, realizado em Uganda, demonstram que a RMM em mães infectadas com HIV foi de 1686,8/100 mil nascidos vivos em comparação com 309,8/100 mil nascidos vivos em mulheres não infectadas pelo HIV2121. Sewankambo NK, Gray RH, Ahmad S, Serwadda D, Wabwire-Mangen F, Nalugoda F, et al. Mortality associated with HIV infection in rural Rakai district, Uganda. AIDS. 2000;14(15):2391-400.. Moodley et al.1717. Moodley J, Pattinson RC, Baxter C, Sibeko S, Abdool Karim Q. Strengthening HIV services for pregnant women: an opportunity to reduce maternal mortality rates in Southern Africa/sub-Saharan Africa. Br J Obstet Gynaecol. 2011;118(2):219-25. também afirmaram não existir dúvidas de que a infecção por HIV é a maior ameaça para a mortalidade materna na África do Sul.

Devido ao não consenso internacional sobre a relação HIV/aids e morte materna, e considerando que o Brasil tem avançado na prevenção, no diagnóstico e no tratamento de mulheres grávidas infectadas ou doentes, não resta dúvida que o algoritmo elaborado pode colaborar com as iniciativas da OMS e do MS em classificar mortes maternas obstétricas indiretas por HIV/aids em Pernambuco e no país.

Para atribuir relação causal entre a infecção pelo HIV e a condição gravídica e/ou puerperal, foi necessário lançar mão de informações contidas no algoritmo de classificação. Em alguns casos foi realizado o resgate do prontuário hospitalar para informações mais detalhadas sobre o internamento da mulher, como queixas e diagnóstico à admissão nos serviços de saúde.

Como o estudo utilizou dados secundários para as discussões com o grupo de especialistas, informações quanto ao estado de saúde da mulher durante a gravidez/pós-parto e o uso de TARV nem sempre estavam presentes, principalmente para aquelas que passavam longos períodos sem atendimento ambulatorial ou internação hospitalar. A entrevista com a família poderia garantir mais confiabilidade na descrição da relação doença-gravidez, porém, foram utilizadas apenas as informações registradas na investigação domiciliar conduzida pela vigilância, não sendo realizada nova entrevista com os familiares.

Para algumas mulheres do estudo, a testagem do HIV ocorreu de forma tardia. Carvalho2222. Carvalho JSN. Fatores associados ao desconhecimento do status sorológico para o HIV em gestantes na região metropolitana de Recife, Pernambuco, 2010 [dissertação de mestrado]. Recife: Programa de Pós-Graduação Integrado em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco; 2011., ao investigar os fatores associados ao desconhecimento do status sorológico para o HIV em gestantes na região metropolitana do Recife, Pernambuco, identificou maior chance de desconhecimento da sorologia para HIV durante a assistência ao parto em gestantes que iniciaram o pré-natal tardiamente. Portanto, podendo interferir na procura pelos serviços de saúde especializados, na conduta e na utilização da TARV. Em um dos casos do estudo, o diagnóstico foi realizado durante os exames de morte encefálica.

Os casos estudados foram classificados duas vezes. A primeira classificação foi realizada pelos grupos técnicos, nos quais todos os óbitos foram considerados maternos obstétricos indiretos por consenso, tendo como referência a CID-10, na qual todos os óbitos maternos de mulheres que viviam com HIV seriam classificados com códigos de B20-B24. E a segunda classificação (reclassificação), realizada pelo grupo de especialistas, obedeceu à lógica do algoritmo, também por consenso, tendo o código O98.7 como referência.

CONCLUSÃO

Ao influenciar na distribuição de mortes maternas e mortes de mulheres por aids, essa nova perspectiva pode implicar em mudanças na organização e oferta de atenção a essas mulheres, sejam elas de saúde reprodutiva ou de doenças infecciosas. Para validação da reclassificação utilizada no estudo será necessária uma nova reclassificação com outros participantes na discussão dos casos e com padronização nos instrumentos de coleta de informação.

REFERÊNCIAS

  • 1
    World Health Organization, UNICEF, UNFPA, The World Bank, the United Nations Population Division. Trends in Maternal Mortality: 1990 - 2013. Geneva: WHO; 2014.
  • 2
    Brito AM, Castilho EA, Szwarcwald CL. AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada. Rev Soc Bras Med Trop. 2001;34(2):207-17.
  • 3
    Abdool-Karim Q, Abouzahr C, Dehne K, Mangiaterra V, Moodley J, Rollins N, et al. HIV and maternal mortality: turning the tide. Lancet. 2010;375(9730):1948-9.
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  • Fonte de financiamento: nenhuma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2016
  • Aceito
    06 Jul 2017
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