Causalidade em farmacoepidemiologia e farmacovigilância: uma incursão teórica

Daniel Marques Mota Ricardo de Souza Kuchenbecker Sobre os autores

RESUMO:

O artigo teceu algumas considerações sobre causalidade em farmacoepidemiologia e farmacovigilância. Inicialmente, fizemos uma breve introdução sobre a importância do tema, ressaltando que o entendimento da relação causal é considerado como uma das maiores conquistas das ciências e que tem sido, ao longo dos tempos, uma preocupação contínua e central de filósofos e epidemiologistas. Na sequência, descrevemos as definições e os tipos de causas, demonstrando suas influências no pensamento farmacoepidemiológico. Logo a seguir, apresentamos o modelo multicausal de Rothman como um dos fundantes para a explicação da causalidade múltipla, e o tema da determinação da causalidade. Concluímos com alguns comentários e reflexões sobre causalidade na perspectiva da vigilância sanitária, particularmente, para as ações de regulação em farmacovigilância.

Palavras-chave:
Aplicações da epidemiologia; Causalidade; Efeitos colaterais e reações adversas relacionados a medicamentos; Farmacoepidemiologia; Farmacovigilância; Vigilância sanitária

INTRODUÇÃO

O uso de medicamentos está relacionado à ocorrência de eventos adversos (eventos adversos a medicamentos - EAM) que, por definição, compreendem danos à saúde resultantes da exposição a medicamentos11. Nebeker JR, Hurdle JF, Hoffman JM, Roth B, Weir CR, Samore MH. Developing a taxonomy for research in adverse drug events: potholes and signposts. J Am Med Informatics Assoc. 2002;9(6 Suppl. 1):S80-5. e são causa frequente de hospitalizações e óbitos22. Carrasco-Garrido P, de Andrés LA, Barrera VH, de Miguel GA, Jiménez-García R. Trends of adverse drug reactions related-hospitalizations in Spain (2001-2006). BMC Health Serv Res. BioMed Central. 2010;10(1):287.,33. Mota DM, Melo JRR, Freitas DRC De, Machado M. Perfil da mortalidade por intoxicação com medicamentos no Brasil, 1996-2005: retrato de uma década. Ciên Saúde Colet. 2012;17(1):61-70.. Um dos objetivos da farmacoepidemiologia e da farmacovigilância é identificar e reunir evidências consistentes sobre as associações entre o uso de medicamentos e a ocorrência de eventos adversos. Tais evidências fundamentam processos decisórios em vigilância sanitária.

O uso de evidências consistentes pressupõe que inferências de causalidade possam ser elaboradas, tomando-se como referência o elo etiológico entre a exposição ao medicamento e um evento adverso44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p.. A determinação da causalidade pressupõe associação entre, pelo menos, dois fenômenos e, de uma maneira simplificada, consiste em responder à pergunta: É (ou seria) o fator F a causa do evento adverso E? Isso pressupõe relação temporal em que a exposição precede a ocorrência do evento44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p., sendo que a suposta relação causal é reforçada pela frequência de tal observação55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54..

O entendimento da causalidade é considerado como uma das maiores conquistas das ciências66. Bhopal R. Concepts of epidemiology: an integrated introduction to the ideas, theories, principles and methods of epidemiology. Oxford: Oxford University Press; 2002. 639p. e tem sido, ao longo dos tempos, uma preocupação contínua tanto de filósofos como de epidemiologistas. Os primeiros têm se dedicado a estudar o significado fundamental da noção de causa e os princípios gerais da causalidade, enquanto os epidemiologistas estão interessados na identificação das causas, na quantificação e caracterização dos efeitos, na elaboração de modelos causais e nos exemplos de relações de causa e efeito77. Holland P. Statistics and causal inference. J Am Stat Assoc. 1986;81:945-60.,88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.,99. Broadbent A. Philosophy of Epidemiology. Johannesburg: Palgrave Macmillan; 2013. 228p.. Para Bhopal (2002, p. 98)66. Bhopal R. Concepts of epidemiology: an integrated introduction to the ideas, theories, principles and methods of epidemiology. Oxford: Oxford University Press; 2002. 639p., o propósito de estudar a causalidade em epidemiologia é produzir conhecimentos para a prevenção, a cura, o tratamento e o controle de doenças e outros agravos à saúde.

Este artigo objetivou tecer considerações sobre um dos principais desafios conceituais e metodológicos em farmacoepidemiologia e farmacovigilância: as relações de causalidade entre medicamentos e eventos adversos, enfatizando a definição e os tipos de causas, modelo multicausal de Rothman1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92., a determinação da causalidade e a relação causal na perspectiva da vigilância sanitária. E não tem a pretensão de exaurir o tema e nem mesmo alcançar um consenso nos conteúdos apresentados, mas contribuir para um esboço inicial da causalidade em farmacoepidemiologia e farmacovigilância, procurando concatená-lo às práticas de vigilância sanitária.

DEFINIÇÃO DE CAUSA

Hume, no século XVIII, escreveu que as causas são invariavelmente seguidas por seus efeitos1111. Hitchcock C. Probabilistic causation [internet]. 2012 [cited 2014 Dec. 13]. Available from: http://plato.stanford.edu/entries/causation-probabilistic/#CauMarCon
http://plato.stanford.edu/entries/causat...
. Na conceituação epidemiológica contemporânea, Rothman1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92. define causa como um ato ou evento ou um estado da natureza que inicia ou permite, isoladamente ou em conjunto com outras causas, uma sequência de eventos que resultam em um efeito. Susser1212. Susser M. What is a cause and how do we know one - A Grammar of Causality. Am J Epidemiol. 1991;133(7):635-48. recorre a Hume para propor propriedades essenciais no reconhecimento de causa, fundamentais para inferências de causalidade:

  1. deve existir associação (causa e efeito ocorrem em conjunto);

  2. ordem temporal (a causa precede o efeito);

  3. conexão ou direção (ligações entre causa e efeito podem ser previsíveis)1212. Susser M. What is a cause and how do we know one - A Grammar of Causality. Am J Epidemiol. 1991;133(7):635-48.,1313. Susser M. Glossary: causality in public health science. J Epidemiol Community Health. 2001;55:376-8..

Rothman e Greenland1414. Rothman KJ, Greenland S. Modern Epidemiology. 2ª ed. Philadelphia: Lippincott-Raven; 1998. incorporam a dimensão de temporalidade na definição de causa: uma causa de uma doença é um evento, condição ou característica que precedeu a enfermidade e sem o qual esta não teria ocorrido de modo algum. Para Bhopal, causa compreende algo que altera a frequência da doença, o estado de saúde ou fatores associados na população66. Bhopal R. Concepts of epidemiology: an integrated introduction to the ideas, theories, principles and methods of epidemiology. Oxford: Oxford University Press; 2002. 639p..

Nenhuma definição do termo “causa” foi encontrada em materiais didáticos sobre farmacoepidemiologia44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p.,1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p.,1616. Carvajal García-Pando A. Farmacoepidemiología. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, Universida, D.L.; 1993. 162p.,1717. Kennedy DL, Goldman SA, Lillie RB. Spontaneous reporting in the United States. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. New York: John Willy & Sons; 2000. p. 151-74.,1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p.,1919. Coelho HLL, Santos DB. Farmacoepidemiologia. In: Almeida Filho N, Barreto ML, Eds. Epidemiologia & Saúde - Fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p. 670-7.. A omissão pode estar relacionada com a dificuldade em definir uma causa no contexto da determinação da causalidade entre medicamento e evento adverso, pois, em geral, pode envolver uma mescla de causas, sendo, então, preferível não falar de “causas”, e sim de “fatores de risco”1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p. ou “fatores de associação”1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p.,1919. Coelho HLL, Santos DB. Farmacoepidemiologia. In: Almeida Filho N, Barreto ML, Eds. Epidemiologia & Saúde - Fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p. 670-7.. Ambos os termos não implicam necessariamente relação causal. Outra possível explicação é o fato de a causalidade, e não os elementos que a compõem (causa e efeito), ser um tema estudado e priorizado nos capítulos sobre métodos empregados em farmacoepidemiologia e farmacovigilância1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p.,1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p.,1919. Coelho HLL, Santos DB. Farmacoepidemiologia. In: Almeida Filho N, Barreto ML, Eds. Epidemiologia & Saúde - Fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p. 670-7., muito embora a definição do que seja uma causa venha sendo fonte de discussão de epidemiologistas1313. Susser M. Glossary: causality in public health science. J Epidemiol Community Health. 2001;55:376-8.,1414. Rothman KJ, Greenland S. Modern Epidemiology. 2ª ed. Philadelphia: Lippincott-Raven; 1998..

TIPOS DE CAUSAS

Parascandola e Weed88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12. encontraram cinco definições diferentes dos tipos de causas em epidemiologia: causas produção, necessária, componente-suficiente, probabilística e causa contrafactual.

A definição de causa produção pressupõe que uma causa “cria” ou “produz” efeitos, ensejando “distinção ontológica” entre associações causais e não causais, ainda que essa caracterização seja um tanto vaga na própria visão do autor88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. A causa necessária retrata uma condição sem a qual não se produzirá o efeito. Por outro lado, sua presença não resulta, de modo inequívoco, na ocorrência do evento44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p.,88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. A visão de que as causas devem ser necessárias para a ocorrência de seus efeitos é tradicionalmente associada à teoria do germe, na qual há a pressuposição de que a doença é motivada por, pelo menos, um agente infeccioso específico88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. Tal situação é rara no âmbito da relação causal medicamento-evento adverso, e exemplos como a síndrome do bebê cinzento, após o uso de cloranfenicol, são difíceis de encontrar na prática clínica55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54..

Algumas causas são necessárias — embora não suficientes — para a ocorrência de uma doença. Uma explicação para isso é que se define o nome de algumas síndromes ou enfermidades a partir da exposição desencadeante, ou seja, o agente causal2020. Lagiou P, Adami HO, Trichopoulos D. Causality in cancer epidemiology. Eur J Epidemiol. 2005;20:565-74.. Assim, a beriliose não pode ocorrer na ausência de exposição ao berílio2020. Lagiou P, Adami HO, Trichopoulos D. Causality in cancer epidemiology. Eur J Epidemiol. 2005;20:565-74., e o enquadramento de um problema como EAM requer necessariamente que um medicamento tenha sido utilizado. Por exemplo, em vários códigos de diagnósticos da Classificação Internacional de Doenças (CID-10)2121. Organização Mundial da Saúde. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10a ed. São Paulo: Editora da USP; 2012., o medicamento é identificado na descrição do problema clínico.

Uma das limitações experimentadas pelo processo de inferência causal em farmacoepidemiologia e farmacovigilância é que algumas doenças possuem fatores causais sem que haja um componente definido como causa necessária. Em uma série de casos de hepatite fulminante, a depender da situação epidemiológica, não se poderá afirmar que todos as ocorrências estão relacionadas a um medicamento, pois outros agentes, como vírus da hepatite A ou B e citomegalovírus são também desencadeadores desse problema de saúde2222. Vineis P. Causality in epidemiology. Soz-Präventivmed. 2003;48:80-7.. Na maioria das situações a causa “medicamento” para um dado evento adverso está competindo ou talvez interagindo com várias outras possíveis causas55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54..

A definição de causa componente-suficiente foi proposta por Rothman1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92. e amplia a visão da causa necessária, ainda que conserve a linguagem determinística científica, à semelhança daquela88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. Causas componente-suficientes são constituídas por um número de causas componentes que, isoladamente, não são suficientes para a ocorrência do evento adverso. Um conjunto de causas componentes conforma uma causa suficiente, assegurando a ocorrência do evento em questão88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12..

A principal característica das causas probabilísticas é que estas aumentam a possibilidade da ocorrência de seus efeitos, ou seja, C causa E se, e somente se, C aumenta a probabilidade da ocorrência de E88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. A causa probabilística não precisa ser necessária e nem suficiente, bem como não exclui as causas necessárias e suficientes. Sua definição é mais abrangente do que a de causa componente-suficiente88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12..

Por último, a causa contrafactual é a diferença no resultado — ou na probabilidade do resultado — quando está presente comparada com quando se está ausente, ou seja, é o resultado de T menos o da ausência de T88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. Compara a frequência de ocorrência de desfechos observados entre os indivíduos expostos comparativamente àqueles não, assegurados os aspectos que permitam a comparabilidade. A contrafactualidade é explorada a partir de estudos experimentais e observacionais, sendo que, nestes últimos, a presença de confundimento residual nem sempre permite que inferências inequívocas de causa e efeito possam ser estabelecidas.

A definição de causa probabilística combinada à condição contrafactual fornece melhor substrato em farmacoepidemiologia88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. Ou seja, C causa E se a probabilidade de E — na presença de C — é maior do que a de E na ausência de C, em condições que asseguram a comparabilidade88. Parascandola M, Weed DL. Causation in epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001;55:905-12.. Um exemplo da combinação causa probabilística-contrafactual é a vacina antitétano (VAT), que causa a síndrome de Guillain-Barré com paralisia de membros (SGB) se a probabilidade P (SGB | VAT) > P (SGB |~VAT). Lê-se: a probabilidade de SGB na presença da VAT é maior do que a de SGB na ausência de VAT —, isso em condições ceteris paribus55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54.. Esses requisitos simplificam a estrutura causal dando oportunidades para a aceitação da combinação causa probabilística-contrafactual2323. Aguiar T. Hempel: a teoria da explicação científica. In: Aguiar T. Causalidade e direção do tempo: Hume e o debate contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2008. p. 177..

Na perspectiva da farmacovigilância, Edwards55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54. define dois tipos de causas para explicar, também, as maneiras possíveis de como elas podem agir:

  1. causas contributivas: ativamente envolvidas na adição de um efeito, como uma sobredosagem relativa ou interações medicamentosas;

  2. causas contingentes: essenciais para a ocorrência do efeito, mas que não têm nenhum efeito causal em si e que podem ser desconhecidas, tal como um fenótipo particular da enzima citocromometabólica que faz certos pacientes mais suscetíveis aos efeitos de um medicamento.

As primeiras são, possivelmente, intrínsecas e influenciam outra causa, mas não são necessárias, como a meia-vida longa de um fármaco. Elas podem ser modificadas, influenciando a relação causal, enquanto as contingentes não podem ser alteradas55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54..

Também são poucas vezes objeto de investigação de forma rotineira nas práticas de farmacovigilância, pois a ênfase está frequentemente no medicamento, como possível causa e não em outras causas contributivas, a exemplo do que ocorre com os erros de medicação55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54..

Há ainda na literatura epidemiológica outra tipologia de causas, baseada nos processos de determinação em saúde que pressupõem os determinantes causais, caracterizando-os como causas distais (estruturais ou socioeconômicas), intermediárias (características comportamentais, por exemplo) e proximais (características biológicas da pessoa, por exemplo)66. Bhopal R. Concepts of epidemiology: an integrated introduction to the ideas, theories, principles and methods of epidemiology. Oxford: Oxford University Press; 2002. 639p.. Na intoxicação acidental de crianças, o medicamento seria classificado como causa proximal, enquanto a omissão de legislação sanitária sobre sistemas de segurança nas embalagens de medicamentos estaria enquadrada como distal.

O dicionário de farmacoepidemiologia de Bégaud44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p. define dois tipos de causa: necessária e suficiente. O livro de Laporte e Tognoni1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p., uma das referências na área de farmacoepidemiologia e farmacovigilância, não faz menção alguma sobre os tipos de causas abordadas neste artigo. Essa constatação também foi verificada em outros livros pesquisados sobre farmacoepidemiologia1616. Carvajal García-Pando A. Farmacoepidemiología. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, Universida, D.L.; 1993. 162p.,1717. Kennedy DL, Goldman SA, Lillie RB. Spontaneous reporting in the United States. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. New York: John Willy & Sons; 2000. p. 151-74.,1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p.,1919. Coelho HLL, Santos DB. Farmacoepidemiologia. In: Almeida Filho N, Barreto ML, Eds. Epidemiologia & Saúde - Fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p. 670-7..

As definições e os tipos de causas têm influenciado o pensamento farmacoepidemiológico sobre causalidade66. Bhopal R. Concepts of epidemiology: an integrated introduction to the ideas, theories, principles and methods of epidemiology. Oxford: Oxford University Press; 2002. 639p., promovendo inclusive a elaboração de modelos causais, como o multicausal proposto por Rothman1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.. O mapeamento das diferentes causas, inclusive tipificando-as, em um contexto de uma estrutura causal sob investigação sanitária, pode facilitar a identificação das que são essenciais na manutenção do problema. A identificação torna mais eficiente o planejamento e a priorização de ações corretivas de regulação em farmacovigilância, uma vez que onde quer que a estrutura causal seja quebrada, o evento poderá ser reduzido, eliminado ou prevenido2424. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: Has anyone seen the spider? Soc Sci Med. 1994;39(7):887-903..

MODELO MULTICAUSAL DE ROTHMAN

Epidemiologistas têm buscado construir modelos causais como tentativas para entender e explicar como os eventos acontecem a partir de determinadas causas1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.,2424. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: Has anyone seen the spider? Soc Sci Med. 1994;39(7):887-903.. Nenhum dos livros sobre farmacoepidemiologia pesquisados menciona algum tipo de modelo causal como forma de representação da relação causal44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p.,1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p.,1616. Carvajal García-Pando A. Farmacoepidemiología. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, Universida, D.L.; 1993. 162p.,1717. Kennedy DL, Goldman SA, Lillie RB. Spontaneous reporting in the United States. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. New York: John Willy & Sons; 2000. p. 151-74.,1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p.,1919. Coelho HLL, Santos DB. Farmacoepidemiologia. In: Almeida Filho N, Barreto ML, Eds. Epidemiologia & Saúde - Fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p. 670-7., muito embora a maior parte dessas referências cita a expressão “causalidade multifatorial”44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p.,1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p.,1616. Carvajal García-Pando A. Farmacoepidemiología. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, Universida, D.L.; 1993. 162p.,1717. Kennedy DL, Goldman SA, Lillie RB. Spontaneous reporting in the United States. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. New York: John Willy & Sons; 2000. p. 151-74.,1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p..

Os anos de 1957 e 1960 testemunharam as primeiras menções sobre modelos de multicausalidade (“teia da causalidade”) na literatura epidemiológica2424. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: Has anyone seen the spider? Soc Sci Med. 1994;39(7):887-903.. Segundo Krieger2424. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: Has anyone seen the spider? Soc Sci Med. 1994;39(7):887-903., esse modelo não foi elaborado para fornecer explicações sobre as relações causais, mas para aumentar a capacidade dos epidemiologistas de descrever e estudar as complexas inter-relações entre fatores de risco e doenças. Com base nele foram apresentadas inferências importantes sobre a prevenção e a investigação que permanecem, até hoje, como parte do pensamento epidemiológico: “para efetuar as medidas preventivas, não é necessário compreender mecanismos causais, na sua totalidade” e que “mesmo o conhecimento de um pequeno componente pode permitir algum grau de prevenção”2424. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: Has anyone seen the spider? Soc Sci Med. 1994;39(7):887-903..

Em um artigo publicado em 1976, Rothman propôs um modelo conceitual de multicausalidade denominado causas componentes-suficientes1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.. Ele ilustra vários princípios relevantes sobre causas, sendo que talvez o mais importante é que uma determinada doença pode ser motivada por mais de um mecanismo causal e cada um envolve a ação conjunta de várias causas1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.. Nesse modelo, o agente causal pode ser composto de uma constelação de causas (três ou mais, por exemplo) que também são referidas como suficientes para a ocorrência de um evento adverso. Cada uma das que compõem uma causa suficiente é denominada componente, podendo existir um número mínimo destas necessárias para a manifestação do evento adverso1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.. Na composição de uma constelação de causas, há quase sempre uma origem componente genética e ambiental1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.,2525. Rothman KJ, Greenland S. Causation and causal inference in epidemiology. Am J Public Health. 2005;95(Suppl.1):S144-50..

Nas suspeitas de EAM, o medicamento é referido como uma causa componente, sendo que outras se fazem necessárias. Por exemplo, há pessoas que, em virtude da sua composição genética ou experiência ambiental, são suscetíveis às reações anafiláticas provocadas por medicamentos, enquanto outras não. Esses fatores de susceptibilidade são causas componentes de mecanismos causais completos por meio dos quais o medicamento provoca esse tipo de reação. Um mecanismo causal completo forma uma causa suficiente, podendo ou não existir um compartilhamento de causas componentes comuns entre diferentes mecanismos causais completos1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.,2525. Rothman KJ, Greenland S. Causation and causal inference in epidemiology. Am J Public Health. 2005;95(Suppl.1):S144-50..

O modelo multicausal de Rothman ainda postula que vários componentes causais agem em conjunto para produzir um efeito. Isso não implica, necessariamente, que as causas componentes devam agir ao mesmo tempo1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92.. As reações de hipersensibilidade aos medicamentos justificam essa afirmação, pois no primeiro contato do paciente com um fármaco, esse tipo de reação adversa, em geral, não é manifestado, ocorrendo, entretanto, a produção de anticorpos que será uma causa componente para a manifestação do efeito colateral numa segunda exposição do paciente à mesma droga ou outro fármaco pertencente a uma classe terapêutica similar. Toda essa situação ocorreu em intervalos de tempo diferentes.

A intoxicação medicamentosa, um tipo de EAM, pode ser vista no modelo multicausal de Rothman como o resultado de uma série de diferentes causas suficientes, em que cada uma apresenta doses distintas do medicamento como uma causa componente. Doses menores provavelmente requerem um conjunto mais complexo de causas componentes quando comparadas a uma exposição a doses maiores para a manifestação da intoxicação. Cabe lembrar que a dose está diretamente relacionada ao aumento do risco e inversamente ao tempo, podendo alterações na composição dessas variáveis originar diferentes intensidades do efeito do medicamento sobre a ocorrência da intoxicação. Ademais, a susceptibilidade do indivíduo é uma causa componente a ser considerada na manifestação desse tipo de evento adverso, muito embora pareça provável haver semelhanças nos componentes de causas suficientes de indivíduos diferentes1010. Rothman KJ. Causes. Am J Epidemiol. 1976;104(6):587-92..

Segundo Rothman e Greenland2525. Rothman KJ, Greenland S. Causation and causal inference in epidemiology. Am J Public Health. 2005;95(Suppl.1):S144-50., pode-se supor que nenhuma causa seja autossuficiente para resultar na ocorrência de um agravo. Nesse sentido, para explicar por que um evento adverso, como a síndrome de Reye, ocorreu em paciente que ingeriu ácido acetilsalicílico, podem-se identificar outros componentes de um modelo causal complexo, como doença de base, idade do paciente, predisposição genética e estado nutricional. Nesse caso, tal modelo, que pode envolver diferentes mecanismos causais, foi suficiente para o aparecimento dessa síndrome2222. Vineis P. Causality in epidemiology. Soz-Präventivmed. 2003;48:80-7..

Na prática, a vigilância e o controle de causas componentes de um modelo causal elaborado como resposta a um agravo podem ser compreendidos em termos de tempo e espaço geográfico. Tal argumentação corrobora a existência de uma diferenciação na tomada de decisão, otimizando ou não o tempo em ações corretivas a serem adotadas, bem como na percepção do risco por autoridades sanitárias de países diante de um risco iminente à sociedade. Um exemplo, nesse sentido, foi a demora (tempo) na proibição do uso da talidomida para enjoos na gravidez por autoridades sanitárias do Brasil e de outros países (espaço geográfico), resultando em maior número de crianças nascidas com malformações congênitas2626. Paumgartten FJR, Souza NR. Clinical use and control of the dispensing of thalidomide in Brasilia-Federal District, Brazil, from 2001 to 2012. Ciên Saúde Colet. 2013;18(11):3401-8.. Nessa tragédia de saúde pública, uma causa componente fundamental para a continuação do surto de focomelia foi a demora na definição de uma legislação sanitária, que proibisse ou restringisse a indicação do uso desse fármaco.

DETERMINAÇÃO DA RELAÇÃO CAUSAL

O estabelecimento de inferências de causalidade entre medicamento e evento adverso é um processo complexo e difícil1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p.,2727. Po ALW, Kendall MJ. Causality assessment of adverse effects: when is re-challenge ethically acceptable? Lancet. 1999;354(9179):683.. Vale dizer que nem sempre os modelos causais em farmacoepidemiologia e farmacovigilância contemplam aspectos referentes à tipologia das causas e seus significados supracitados neste artigo. Em algumas situações, a causalidade pode ser direta e a causa e o efeito facilmente perceptíveis e definidos. O fogo é uma causa direta de uma queimadura55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54.. Em outras circunstâncias, o estabelecimento de uma relação causal é bastante desafiador. Por exemplo, foram necessários 20 anos para associar o uso da aspirina ao aumento da incidência de hemorragias por ulceração gástrica2828. Gharaibeh MN, Greenberg HE, Waldman SA. Adverse Drug Reactions: A Review. Drug Inf J. 1998;32:323-38., sendo ainda mais difícil e complexo identificar e associar a causa ao efeito em intoxicações medicamentosas crônicas2929. Sipes I, Dart R, Fischer L. Toxicologia. In: Minneman K, Wecker L, Larner J, Brody T, Eds. Farmacalogia humana: da molecular à clínica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2006.. Uma das dificuldades na determinação de uma relação causal é a presença de explicações alternativas, viéses (erros sistemáticos) e fatores de confundimento.

Diante da complexidade, o pensamento técnico-científico sobre causalidade de EAM tem evoluído em duas grandes áreas da saúde pública: farmacoepidemiologia e farmacovigilância3030. Jones J. Determining causation from case reports. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. p. 525-38.. Uma demonstração dessa evolução é que as explicações alternativas para a determinação de causalidade estão notoriamente mencionadas em livros didáticos sobre farmacoepidemiologia44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p.,1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p.,1616. Carvajal García-Pando A. Farmacoepidemiología. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, Universida, D.L.; 1993. 162p.,1717. Kennedy DL, Goldman SA, Lillie RB. Spontaneous reporting in the United States. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. New York: John Willy & Sons; 2000. p. 151-74.,1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p.. Strom, por exemplo, dedica um capítulo exclusivo ao viés e confundimento nessa ciência1717. Kennedy DL, Goldman SA, Lillie RB. Spontaneous reporting in the United States. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. New York: John Willy & Sons; 2000. p. 151-74., enquanto Yang e West-Strum citam os aspectos de causalidade de Sir Austin Bradford Hill para a determinação da mesma1818. Yang Y, West-Strum D. Compreendendo a farmacoepidemiologia. Porto Alegre: AMGH; 2013. 198p..

A farmacoepidemiologia é um ramo da epidemiologia que compreende a utilização de conceitos e métodos epidemiológicos nos estudos sobre usos e efeitos dos medicamentos em grandes populações3131. Shakir S, Layton D. Causal association in pharmacovigilance and pharmacoepidemiology thoughts on the application of the austin Bradford-Hill Criteria. Drug Saf. 2002;25(6):467-71.. A primeira menção relativa a essa ciência na literatura científica ocorreu no início da década de 19803232. Czeizel AE. The role of pharmacoepidemiology in pharmacovigilance: Rational drug use in pregnancy. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 1999;8(Suppl. 1):S55-61.. Na visão norte-americana e acadêmica, principalmente, ela engloba a farmacovigilância e os estudos epidemiológicos, ou seja, não se restringe apenas à segurança dos medicamentos3232. Czeizel AE. The role of pharmacoepidemiology in pharmacovigilance: Rational drug use in pregnancy. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 1999;8(Suppl. 1):S55-61..

Muitas das evidências consistentes no tocante à relação causal medicamento-evento adverso provêm de estudos farmacoepidemiológicos3333. Howland R. Understanding and assessing adverse drug reactions. J Psychosoc Nurs Ment Heal Serv. 2011;49(10):13-5.,3434. Tozzi A, Asturias E, Balakrishnan M, Halsey N, Law B, Zuber P. Assessment of causality of individual adverse events following immunization (AEFI): a WHO tool for global use. Vaccine. 2013;31(44):5041-6.. No entanto, um estudo, ainda que bem desenhado, por si só, não pode ser suficiente para refutar uma relação causal em um indivíduo55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54.. Outras relações, incluindo causais, ainda são possíveis, embora pouco prováveis, quando envolvem explicações alternativas inesperadas e não reconhecidas que podem ocasionar um evento adverso de menor incidência do que o poder do estudo poderia evidenciar55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54..

Um desafio constante em farmacovigilância — ciência e atividades relativas à detecção, avaliação, compreensão e prevenção de reações adversas ou quaisquer outros possíveis problemas relacionados com medicamentos3535. World Health Organization. The Importance of Pharmacovigilance: Safety Monitoring of Medicinal Products' World Health Organization [internet]. 2002. [cited 2014 Nov. 28]. p. 1-48. Available from: http://whqlibdoc.who.int/hq/2002/a75646.pdf — é que os dados completos que permitam a avaliação da causalidade a partir do emprego de diferentes métodos, como o algoritmo de Naranjo usado para estabelecer relações de causa e efeito, nem sempre estão disponíveis55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54., representando aspecto crítico para os sistemas de farmacovigilância2727. Po ALW, Kendall MJ. Causality assessment of adverse effects: when is re-challenge ethically acceptable? Lancet. 1999;354(9179):683.. Igualmente importante é a presença de incertezas em relação à natureza da evidência de causalidade advinda dos sistemas de notificações espontâneas de eventos adversos, caracterizados, principalmente, por elevada subnotificação. Outra limitação diz respeito ao binômio suspensão-reintrodução do medicamento — considerado padrão de referência para o estabelecimento de relações de causa e efeito em farmacovigilância — que se mostra pouco efetivo, por razões de segurança e ética2727. Po ALW, Kendall MJ. Causality assessment of adverse effects: when is re-challenge ethically acceptable? Lancet. 1999;354(9179):683..

Na perspectiva de contornar as suas limitações, esta ciência, em sua vertente europeia e de regulação sanitária, tem incorporado diferentes métodos que contribuam para vigilância e controle de EAM, incluindo os epidemiológicos, como os estudos observacionais3232. Czeizel AE. The role of pharmacoepidemiology in pharmacovigilance: Rational drug use in pregnancy. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 1999;8(Suppl. 1):S55-61.. Diferentemente da farmacoepidemiologia, a farmacovigilância está vocacionada exclusivamente para a segurança dos medicamentos.

Embora haja vantagens no processo inferencial de causalidade advinda dos estudos farmacoepidemiológicos prospectivos comparativamente aos retrospectivos, para ambos, a determinação de uma relação causal exige um grande número de indivíduos expostos e não expostos, acompanhados, em geral, por longos períodos de tempo55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54.. Dessa forma, esses estudos não são a melhor alternativa para oportunizar, no curto e médio prazos, a tomada de decisão em situações de emergência de saúde pública55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54., particularmente em vigilância sanitária. Investigações em farmacoepidemiologia de campo podem representar boa medida em resposta a essa limitação3636. Mota DM. Investigação em farmacoepidemiologia de campo: uma proposta para as ações de farmacovigilância no Brasil. Rev Bras Epidemiol. 2011;14(4):565-79..

Além da realização de estudos analíticos, os pontos de vista de Hill3737. Hill A. The Environment and disease: association or causation? Proc R Soc Med. 1965;58(5):295-300., publicados em 1965, têm sido sugeridos como aspectos a serem considerados nas inferências de causalidade entre exposição e desfecho oriundo de agravos não transmissíveis. Compreendem: força de associação, consistência, especificidade, temporalidade, gradiente biológico, plausibilidade, coerência, evidência experimental e analogia3737. Hill A. The Environment and disease: association or causation? Proc R Soc Med. 1965;58(5):295-300.. Tais pontos de vista são apresentados e discutidos em livros-texto sobre farmacoepidemiologia44. Bégaud B. Dictionary of pharmacopidemiology. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. 171p.,1515. Laporte JR, Tognoni G. Principios de epidemiología del medicamento. 2ª ed. Barcelona: Masson; 1993. 280p.,1616. Carvajal García-Pando A. Farmacoepidemiología. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, Universida, D.L.; 1993. 162p.,1717. Kennedy DL, Goldman SA, Lillie RB. Spontaneous reporting in the United States. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. New York: John Willy & Sons; 2000. p. 151-74.. Os aspectos de Hill foram importantes para a afirmação da abordagem contrafactual no desenvolvimento de estudos epidemiológicos, mas ainda são de escassa constatação empírica3838. Ioannidis JPA. Exposure-wide epidemiology: revisiting Bradford Hill. Statist Med. 2016;35:1749-62..

Shakir e Layton3131. Shakir S, Layton D. Causal association in pharmacovigilance and pharmacoepidemiology thoughts on the application of the austin Bradford-Hill Criteria. Drug Saf. 2002;25(6):467-71. citam que os pontos de vista de Hill podem ser aplicados na caracterização das inferências de causalidade em farmacovigilância desde que consideradas as especificidades dos dados disponíveis e fatores como subnotificação, classificação incorreta e má qualidade das informações.

Qualquer consideração causal baseada apenas em estudos farmacoepidemiológicos não é logicamente defensável e certamente não aceitável do ponto de vista social55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54.. Um exemplo que fortalece essa argumentação é o sinal de segurança convincentemente iniciado a partir das notificações espontâneas de série de casos de arritmias graves após o uso de cisaprida, incluindo evidências após a reintrodução do fármaco. Nenhuma arritmia cardíaca havia sido observada nesses estudos e o sinal de segurança não foi aceito até um mecanismo causal ter sido descoberto — prolongamento do intervalo QT — no ecocardiograma55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54.. Esse efeito grave deveria ter ocasionado ações corretivas oportunas, como alertas sobre o risco do uso em pacientes propensos a irregularidades no ritmo cardíaco55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54..

Outro ponto importante no percurso da determinação da causalidade é a diferença entre associação (correlação) e causalidade. Parcela substantiva da evidência científica disponível na literatura está baseada na associação de variáveis, condição insuficiente para demonstrar causalidade. A suposição de que A causa B, simplesmente porque A está associada à B, é um erro3939. Novella S. Evidence in Medicine: Correlation and Causation [internet]. 2009 [cited 2015 Feb. 19]. Available from: http://www.sciencebasedmedicine.org/evidence-in-medicine-correlation-and-causation/
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, condição que, em estudos ecológicos, é denominada falácia ecológica. No entanto, às vezes, é frequente ocorrer a falácia inversa, representada pelo descarte de certas associações, como se não fossem suficientes para demonstrar causalidade3939. Novella S. Evidence in Medicine: Correlation and Causation [internet]. 2009 [cited 2015 Feb. 19]. Available from: http://www.sciencebasedmedicine.org/evidence-in-medicine-correlation-and-causation/
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. Reforça-se que uma única associação não é suficiente para se chegar a uma conclusão sobre a causalidade, mas associações múltiplas podem concluir que A causa B, combinadas com uma plausibilidade biológica4040. Spiegelman D. Commentary: some remarks on the seminal 1904 paper of Charles Spearman "The proof and measurement of association between two things." Int J Epidemiol. 2010;39:1156-9..

Em farmacovigilância, quando se investiga caso individual de evento adverso, cujo medicamento é considerado suspeito, a probabilidade de haver relação causal não é suficiente para assegurar conclusões definitivas. A ausência de um desenho experimental limita a validade da inferência causal em farmacovigilância. Isso não reduz a relevância do processo de investigação nesta ciência55. Edwards IR. Considerations on causality in pharmacovigilance. Int J Risk Saf Med. 2012;24:41-54.. A análise de pelo menos cinco aspectos deve ser considerada na determinação da causalidade em farmacovigilância:

  1. relação temporal;

  2. dados sobre suspensão-reintrodução do medicamento;

  3. relação ou não do evento com a enfermidade de base;

  4. presença de uma causa mais provável;

  5. informação sobre plausibilidade biológica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS NA PERSPECTIVA DA VIGILÂNCIA SANITÁRIA

Uma das possíveis indagações que pode ser feita no âmbito da vigilância sanitária é como usar o conhecimento sobre causalidade produzido pela farmacoepidemiologia e farmacovigilância para circunscrever danos ou melhorar a saúde da população gerando evidências estáveis. Trata-se de tarefa complexa, pois há relatos na literatura em que determinados estudos observacionais sugeriram certas relações causais que foram posteriormente refutadas quando testadas em estudos subsequentes99. Broadbent A. Philosophy of Epidemiology. Johannesburg: Palgrave Macmillan; 2013. 228p..

O tema da causalidade adquire enorme relevância prática em vigilância sanitária, ao sinalizar a necessidade ou, pelo menos, a possibilidade de fundamentar decisões regulatórias que reduzam a exposição ao medicamento causador do dano ou aumentá-la quando for benéfica4141. Glass TA, Goodman SN, Hernán MA, Samet JM. Causal inference in public health. Annu Rev Public Health. 2013;34:61-75.. As decisões envolvem desde a inclusão de novas advertências e informações em bula até a retirada do medicamento do mercado. Esse gradiente de decisões incorpora de forma implícita e, às vezes, explícita o reconhecimento da relação causal, assim como considera a frequência e a gravidade do evento em questão. Em outras situações emergenciais em vigilância sanitária, embora o enigma causal não tenha sido satisfatoriamente elucidado, decisões são tomadas, inclusive a de manter o status quo ou fazer uso do princípio da precaução4242. Vineis P. Scientific basis for the precautionary principle. Toxicol Appl Pharmacol. 2005;207:658-62.,4343. Tallacchini M. Before and beyond the precautionary principle: Epistemology of uncertainty in science and law. Toxicol Appl Pharmacol. 2005;207:645-51..

Apesar de reconhecer que há limitações quanto à natureza das evidências de causalidade provenientes da farmacoepidemiologia e da farmacovigilância, ainda assim é possível, em alguns contextos, utilizá-las em prol de ações de regulação sanitária que promovam e protejam a saúde da população. O principal desafio é decidir se o conhecimento gerado sobre a causalidade é reprodutível e estável, isto é, tendência de um achado não ser contrariado rapidamente por pesquisas científicas posteriores99. Broadbent A. Philosophy of Epidemiology. Johannesburg: Palgrave Macmillan; 2013. 228p.. Uma maneira prática de vivenciar isso é demonstrar que a relação causal em questão não pode estar facilmente equivocada, dada a melhor evidência científica atual disponível99. Broadbent A. Philosophy of Epidemiology. Johannesburg: Palgrave Macmillan; 2013. 228p..

Dessa forma, o papel dos sistemas de farmacovigilância é contribuir com a identificação de resultados que têm boas chances de serem verdadeiros e consistentes. Atentar que tais resultados podem ser nitidamente contrários a fortes interesses econômicos, capazes de gerar novas pesquisas frequentemente com elevado risco de viés99. Broadbent A. Philosophy of Epidemiology. Johannesburg: Palgrave Macmillan; 2013. 228p.. As empresas de tabaco fizeram isso ao financiarem uma grande quantidade de pesquisas que contradisseram a afirmação de que havia uma relação causal entre fumo e determinadas doenças, mas a plausibilidade no nexo causal mostrou-se suficiente para embasar o desenvolvimento de políticas amplamente reconhecidas na área do controle do tabagismo em diversos países99. Broadbent A. Philosophy of Epidemiology. Johannesburg: Palgrave Macmillan; 2013. 228p..

No entanto, muitas das decisões em vigilância sanitária não são adotadas meramente pela natureza das evidências técnico-científicas de casualidade. Há sempre um componente “extra” além das evidências. Por exemplo, o governo pode optar em não proibir diretamente um medicamento em razão das liberdades civis, e propor legislação que restrinja apenas seu uso99. Broadbent A. Philosophy of Epidemiology. Johannesburg: Palgrave Macmillan; 2013. 228p., pois as evidências de causalidade por si só não podem dizer se uma proibição total de um medicamento corresponde à medida político-sanitária mais adequada.

Uma ilustração do componente “extra” foi a polêmica em torno da resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) que, em 2011, proibiu a comercialização de três inibidores de apetite e impôs restrições à venda de sibutramina no Brasil. A decisão foi baseada em evidências causais apontando na direção de que os riscos ocasionados pelos medicamentos superam os benefícios esperados para uso no tratamento da obesidade. Passados quase três anos, a norma sanitária foi revogada por meio do Decreto Legislativo nº 273, de 5 de setembro de 20144444. República Federativa do Brasil. Decreto Legislativo no 273, de 2014. Brasília: Congresso Nacional; 2014. p. 1.. Uma das justificativas do decreto foi que a resolução da ANVISA causou “grande insatisfação entre a classe médica, constituindo-se num retrocesso ao tratamento dos obesos no país”4545. Brasil. Senado Federal do Brasil. Projeto de Decreto Legislativo nº 52, de 2014 - Original nº 1.123, de 2013. Brasil: Senado Federal do Brasil; 2013. p. 1-6..

Diante de diferentes cenários advindos do debate acadêmico e regulatório, a determinação da causalidade pressupõe a integração de referenciais teórico-metodológicos, como da farmacoepidemiologia e da farmacovigilância, continua a ser matéria de julgamento, raramente baseado apenas em um único estudo4646. Vandenbroucke JP. Can counterfactual theory be a complete theory of causality as we practice it in epidemiology? In: Centre for Statistical Methodology Seminar, London School of Hygiene & Tropical Medicine [internet]. 2012 [cited 2012 Jan. 23]. Available from: http://csm.lshtm.ac.uk/previous-events/seminars/
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e fundamental na avaliação da segurança de medicamentos3030. Jones J. Determining causation from case reports. In: Strom BL, editor. Pharmacoepidemiology. 3ª ed. Chichester: John Wiley & Sons; 2000. p. 525-38.,4747. Meyboom RHB, Hekster YA, Egberts ACG, Gribnau FWJ, Edwards IR. Causal or casual? The role of causality assessment in pharmacovigilance. Drug Saf. 1997;17(6):374-89.. A adoção desses preceitos contribui com o aprimoramento, o fortalecimento e a oportunidade das ações em vigilância sanitária no que diz respeito à segurança do paciente e da população. Novas abordagens analíticas utilizando grandes volumes de dados (Big-data), incluindo estratégias de mineração de dados e de textos e o chamado “aprendizado de máquina”, já são realidade em farmacoepidemiologia e farmacovigilância4848. Salathé M. Digital Pharmacovigilance and Disease Surveillance: Combining Traditional and Big-Data Systems for Better Public Health. J Infectious Diseases. 2016;214(Suppl. 4):S399-403., e estão a requerer novas e dinâmicas abordagens em causalidade4949. Antunes JLF. Um dicionário na dinâmica da epidemiologia. Rev Bras Epidemiol. 2016;19(1):219-23..

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  • Fonte de financiamento: nenhuma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2016
  • Aceito
    18 Maio 2017
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