COVID-19 e doença hipertensiva no Brasil: possibilidade de uma tempestade perfeita

Daniela Oliveira de Melo Tatiane Bonfim Ribeiro Guilherme Brasil Grezzana Airton Tetelbom Stein Sobre os autores

PERSPECTIVA

Em meio ao bombardeio de informações sobre a pandemia, não tem havido destaque para a necessidade de manutenção das intervenções efetivas e conhecidas para controle de doenças crônicas. Houve redução de aproximadamente 40% nas admissões hospitalares por infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST-T (IAM c/ SST) e acidente vascular cerebral (AVC) nos departamentos de emergência dos Estados Unidos e da Espanha durante o período de epidemia11. Garcia S, Albaghdadi MS, Meraj PM, Schmidt C, Garberich R, Jaffer FA, et al. Reduction in ST-Segment Elevation Cardiac Catheterization Laboratory Activations in the United States during COVID-19 Pandemic. J Am Coll Cardiol [Internet]. 2020 [acessado em 25 maio 2020]; 75(22). Disponível em: Disponível em: https://www.onlinejacc.org/content/early/2020/04/07/j.jacc.2020.04.011 https://doi.org/10.1016/j.jacc.2020.04.011
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,22. Rodríguez-Leor O, Cid-Álvarez B, Ojeda S, Martín-Moreiras J, Ramón Rumoroso J, López-Palop R, et al. Impacto de la pandemia de COVID-19 sobre la actividad asistencial en cardiología intervencionista en España. REC Interv Cardiol [Internet]. 2020 [acessado em 25 maio 2020]; 2: 82-9. Disponível em: Disponível em: https://www.recintervcardiol.org/es/articulo-original/impacto-de-la-pandemia-de-covid-19-sobre-la-actividad-asistencial-en-cardiologia-intervencionista-en-espana https://doi.org/10.24875/RECIC.M20000120
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. Estima-se que tenha havido retardo da busca por cuidados médicos adequados devido a fatores como o distanciamento social ou as preocupações quanto à aquisição de COVID-19 no ambiente hospitalar, além de déficit de diagnósticos de doença cardiovascular (DCV) decorrente da redução dos procedimentos eletivos e do aumento na utilização de reperfusão farmacológica, resultando em perda de oportunidade de atendimento precoce crítico.

A experiência da China, da Itália e dos Estados Unidos demonstra que a COVID-19 pode levar ao caos do sistema de saúde, mesmo em países com bons recursos financeiros. Ademais, a infecção e as medidas adotadas em seu enfrentamento têm o potencial de promover ou agravar comportamentos não saudáveis que também impactariam o desenvolvimento e/ou o agravamento de DCV - aumento no consumo de álcool e tabaco, redução da atividade física e da ingesta de frutas e verduras. É imperioso começarmos a reorganizar o sistema de saúde para o atendimento das demandas não diretamente relacionadas à COVID-19. Entre as ações de curto prazo, podemos destacar o reforço na orientação de que pacientes com doenças crônicas devem procurar manter seu quadro clínico controlado e que aqueles com sintomas de IAM devem procurar atendimento médico tão logo seja possível, por exemplo.

Em vários países, a telemedicina tem sido uma alternativa bastante empregada para manutenção da prestação de cuidados. Nos Estados Unidos, houve ampliação da oferta e regulamentação desses serviços, bem como de seu reembolso. A American Academy of Family Physicians (AAFP) publicou uma diretriz e mantém um website atualizado com orientações sobre telessaúde33. American Academy of Family Physician. Using Telehealth to Care for Patients During the COVID-19 Pandemic [Internet]. 2020 [acessado em 25 maio 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.aafp.org/patient-care/emergency/2019-coronavirus/telehealth.html
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. No Brasil, há iniciativas locais e avanços, como o reconhecimento da consulta virtual durante a pandemia de COVID-19, pelo Conselho Federal de Medicina, e a publicação da Portaria nº 467/2020, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre a telemedicina em caráter excepcional e temporário. Também, foi anunciada parceria entre a Secretaria de Atenção Primária à Saúde e o Hospital Albert Einstein para disponibilizar consultas médicas e de enfermagem na atenção primária à saúde (APS) já a partir de maio de 2020, no entanto apenas a consulta não é efetiva: como se promove a adesão aos medicamentos e como será o acesso para os pacientes que participarem de teleconsultas?

As farmácias e drogarias têm sido mantidas abertas por serem consideradas estabelecimentos essenciais. Como medida para manter o acesso dos pacientes a medicamentos por meio do programa Farmácia Popular do Brasil, o Projeto de Lei nº 928/20 permite que um representante com firma reconhecida em cartório retire o medicamento no lugar do paciente. Há também programas na rede de APS do Sistema Único de Saúde (SUS) que promovem acesso a medicamentos com entrega em domicílio. Por outro lado, nos Estados Unidos, há relato de farmácias que fecharam devido à pandemia e há propostas para ampliação dos sistemas de entrega de medicamentos comprados via telefone ou internet (esse tipo de venda representa hoje menos de 10% de todas as receitas de venda no varejo naquele país). No Brasil, deve-se levar em conta que o lançamento do programa para autenticar assinatura digital dos médicos é recente e que as vendas remotas estão restritas aos centros urbanos. Além disso, mesmo havendo dispensação de medicamentos no SUS, é bem conhecido o problema de desabastecimento da assistência farmacêutica no Brasil44. Reis AMM, Perini E. Desabastecimento de medicamentos: determinantes, conseqüências e gerenciamento. Ciên Saúde Coletiva [Internet]. 2008 [acessado em 25 maio 2020]; 13(Supl.): 603-10. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000700009&lng=pt&tlng=pt https://doi.org/10.1590/S1413-81232008000700009
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,55. Nascimento RCRM do, Álvares J, Guerra Junior AA, Gomes IC, Costa EA, Leite SN, et al. Availability of essential medicines in primary health care of the Brazilian Unified Health System. Rev Saúde Pública [Internet]. 2017 [acessado em 25 maio 2020]; 51(Supl. 2). Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rsp/article/view/139736 https://www.revistas.usp.br/rsp/article/view/139736
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, que pode ser agravado em ocasião da recessão financeira.

Uma revisão de 2013 caracterizou como heterogêneo o controle da hipertensão no Brasil, sendo 57,6% o maior índice descrito e 10,1% o menor66. Pinho N de A, Pierin AMG. O controle da hipertensão arterial em publicações Brasileiras. Arq Bras Cardiol. 2013; 101(3): e65-e73. https://doi.org/10.5935/abc.20130173
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. No contexto da pandemia, os pacientes menos estáveis é que precisariam de maior atenção, mas como acessá-los? A Estratégia Saúde da Família (ESF) tem papel fundamental: diretrizes especiais foram emitidas pelo Ministério Saúde a fim de orientar os Agentes Comunitários de Saúde (ACSs), mencionando que a visita domiciliar deve priorizar “pacientes de risco (pessoas com 60 anos ou mais ou com doenças crônicas não transmissíveis como diabetes, hipertensão, doença cardíaca, doença renal crônica, asma, DPOC, doença cardíaca, imunossuprimidos, entre outras)”77. Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Recomendações para adequação das ações dos agentes comunitários de saúde frente à atual situação epidemiológica referente ao COVID-19[Internet]. Brasília: Secretaria de Atenção Primária à Saúde; 2020 [acessado em 25 maio 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.saudedafamilia.org/coronavirus/informes_notas_oficios/recomendacoes_adequacao_acs_versao-001.pdf
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.

É bastante conhecido que determinantes sociais impactam significativamente a prevalência de doenças cardiovasculares e que a desigualdade social tende a ser agravada durante e após a pandemia de COVID-1988. Yusuf S, Joseph P, Rangarajan S, Islam S, Mente A, Hystad P, et al. Modifiable risk factors, cardiovascular disease, and mortality in 155 722 individuals from 21 high-income, middle-income, and low-income countries (PURE): a prospective cohort study. Lancet. 2020; 395(10226): 795-808. https://doi.org/10.1016/s0140-6736(19)32008-2
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. O fortalecimento de ações do âmbito da APS e da ESF pode aumentar o controle da hipertensão e de outras doenças crônicas, reduzindo tanto o risco para infecções respiratórias agudas graves, como a COVID-19, quanto os custos com o cuidado de complicações no futuro. O problema de subfinanciamento do SUS é crônico e, a médio e longo prazo, vai se agravar em decorrência das Emendas Constitucionais nº 86/2015 e nº 95/201699. Lima RTS. Austerity and the future of the Brazilian Unified Health System (SUS): health in perspective. Health Promot Int. 2019; 34(Supl. 1): i20-i27. https://doi.org/10.1093/heapro/day075
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,1010. Paes-Sousa R, Schramm JMA, Mendes LVP. Fiscal austerity and the health sector: the cost of adjustments. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2019[acessado em 25 maio 2020]; 24(12): 4375-84. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.23232019
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.

Considerando-se o contexto brasileiro, uma revisão sistemática de estudos transversais e de coorte estimou que a prevalência de hipertensão nos anos 2000 era de 28,7% (26,2‒31,4% - critério JNC8)1111. Picon RV, Fuchs FD, Moreira LB, Riegel G, Fuchs SC. Trends in Prevalence of Hypertension in Brazil: A Systematic Review with Meta-Analysis. PLoS One [Internet]. 2012 [acessado em 25 maio 2020]; 7(10): e48255. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0048255
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. Os gastos com hospitalização por hipertensão já representavam US$ 15,2 milhões com financiamento público em 2012, valor que não inclui as complicações das DCVs.

O gerenciamento de questões tão sensíveis em contexto de epidemia remete à metáfora da tempestade inflamatória desencadeada pela COVID-19, em que os sistemas homeostáticos perdem o controle estrutural no enfrentamento à infecção. Esse ambiente fica ainda mais complexo para melhorar os indicadores de saúde, assim como reduzir as iniquidades e eliminar barreiras de acesso aos serviços de saúde. Portanto, está se anunciando uma tempestade perfeita, principalmente por termos uma agenda incompleta no sistema de saúde brasileiro. Para evitar a tempestade perfeita durante a pandemia, é essencial aumentar a adesão ao tratamento anti-hipertensivo, sendo que a hipertensão é um fator prognóstico modificável para ser infectado pela COVID-19 e que pode ser promovido na atenção primária com medidas de custo baixo. É essencial que resgatemos os princípios que nortearam a construção do SUS, com o fortalecimento da rede de atenção à saúde centrada na atenção primária. As questões relacionadas ao cuidado, desde o atendimento emergencial até consultas por telemedicina e a promoção do acesso aos medicamentos com menor risco possível para os pacientes, devem estar na agenda dos gestores, dos profissionais de saúde e dos pacientes. Essas reflexões subsidiam elementos para um debate sobre a complexidade das circunstâncias atuais no sistema de saúde, o qual deve ser orientado na perspectiva do fortalecimento do SUS e do direito à saúde, com uma APS, cujas bases se sustentam em práticas integrais, resolutivas e que respondam às necessidades da comunidade local.

REFERÊNCIAS

  • Fonte de financiamento: nenhuma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2020
  • Revisado
    27 Maio 2020
  • Aceito
    03 Jun 2020
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