RESUMO:
Objetivo:
Estimar a magnitude das desigualdades de renda nas prevalências de dependência funcional em atividades básicas e instrumentais da vida diária (ABVDs e AIVDs, respectivamente) e no abandono de atividades avançadas (AAVDs).
Métodos:
Estudo transversal, de base populacional, desenvolvido com dados de amostra de 986 idosos de inquérito de saúde realizado no município de Campinas, São Paulo, em 2014/15. Foram estimadas as prevalências de dependência funcional em ABVDs e AIVDs e de abandono das AAVDs segundo a renda familiar mensal per capita, bem como desenvolvidas análises de regressão múltipla de Poisson para estimar razões de prevalência (RPs) ajustadas por sexo e idade.
Resultados:
Não houve associação significativa entre renda e dependência funcional em ABVDs. Das sete AIVDs analisadas, cinco apresentaram maior prevalência de dependência no estrato de menor renda, com destaque para o uso de telefone (RP = 3,50), o controle do uso de remédios (RP = 2,40) e o uso de transporte (RP = 2,35). O abandono de AAVDs foi maior entre os idosos de menor renda em todas as atividades analisadas, com maiores desigualdades observadas no contato por carta, telefone e e-mail (RP = 3,76), no uso de internet (RP = 3,34), em dirigir veículos (RP = 2,85) e na visita a familiares (RP = 2,77).
Conclusão:
As amplas desigualdades detectadas entre estratos de renda quanto à capacidade funcional nas AIVDs e no abandono das AAVDs ressaltam a importância da plena implementação e manutenção de políticas e programas voltados à proteção social de idosos, focando, em especial, os segmentos socialmente mais vulneráveis, na perspectiva de se atingir um patamar populacional mais equânime de um envelhecimento ativo, participativo e independente.
Palavras-chave:
Idoso; Inquéritos de saúde; Disparidades nos níveis de saúde; Atividades cotidianas
INTRODUÇÃO
Relevantes avanços científicos, tecnológicos e sociais ocorridos no século XX11. Kalache A, Veras RP, Ramos LR. O envelhecimento da população mundial: um desafio. Rev Saúde Pública 1987; 21(3): 200-10. https://doi.org/10.1590/S0034-89101987000300005
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... contribuíram para o rápido envelhecimento populacional, sobretudo nas regiões menos desenvolvidas do mundo11. Kalache A, Veras RP, Ramos LR. O envelhecimento da população mundial: um desafio. Rev Saúde Pública 1987; 21(3): 200-10. https://doi.org/10.1590/S0034-89101987000300005
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . Projeções demográficas apontam que, em 2050, dois bilhões (21%) de indivíduos da população mundial alcançarão 60 anos ou mais e, dentre eles, 425 milhões terão 80 ou mais anos de idade22. United Nations Department of Economic and Social. Affairs Population Division. World Prospects: The 2012 Revision. Highlights and Advance Tables. Nova York: United Nations; 2013.. No Brasil, estima-se que, em 2050, quase um terço da população será constituída de idosos (29,3%) e 6,7% terão 80 anos ou mais33. Brasil. Câmara dos Deputados. Brasil 2050: desafios de uma nação que envelhece. Centro de Estudos e Debates Estratégicos. Edições Câmara; 2017. Série Estudos Estratégicos (8) ..
Nesse cenário, torna-se fundamental a conquista de melhores níveis de saúde e de qualidade de vida dos idosos, de forma a preservar ao máximo sua autonomia. Essa meta representa um sério desafio para serviços de saúde, governos e organizações sociais44. World Health Organization. Relatório Mundial sobre Envelhecimento e Saúde. Genebra: WHO; 2015.. Preservar e estimular a capacidade funcional para realizar as atividades diárias é fundamental para um envelhecimento ativo, como preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelas políticas nacionais44. World Health Organization. Relatório Mundial sobre Envelhecimento e Saúde. Genebra: WHO; 2015.,55. Brasil. Ministério da Saúde. Estatuto do Idoso [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [acessado em 10 ago. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/estatuto_idoso_3edicao.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe... .
A capacidade funcional é um importante indicador de saúde no envelhecimento, pois revela o quanto os idosos são independentes para a realização de atividades de diferentes graus de complexidade, usualmente classificadas em básicas (ABVDs), instrumentais (AIVDs) e avançadas de vida diária (AAVDs)66. Campos ACV, Almeida MHM, Campos GV, Bogutchi TF. Prevalence of functional incapacity by gender in elderly people in Brazil: a systematic review with meta-analysis. Rev Bras Geriatr Gerontol 2016; 19(3): 545-59. https://doi.org/10.1590/1809-98232016019.150086
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . A incapacidade em executá-las, que é associada à presença de doenças crônicas77. Andriolo BNG, Santos NV, Volse AA, Fé LCM, Amaral ARC, Carmo BMSS, et al. Avaliação do grau de funcionalidade em idosos usuários de um centro de saúde. Rev Soc Bras Clin Med 2016; 14(3): 139-44., idade avançada88. Castro DC, Nunes DP, Pagoto V, Pereira LV, Bachion MM, Nakatani AYK. Incapacidade funcional para atividades básicas de vida diária de idosos: estudo populacional. Ciênc Cuid Saúde 2016; 15(1): 109-17. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i1.27569
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/... e declínios cognitivos99. Bleijenberg N, Zuithoff NPA, Smith AK, Wit NJ, Schuurmans MJ. Disability in the Individual ADL, IADL, and Mobility among Older Adults: a Prospective Cohort Study. J Nutr Health Aging 2017; 21: 897-903. https://doi.org/10.1007/s12603-017-0891-6
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/... , indica a dependência de cuidados por terceiros1010. Giacomin KC, Uchôa E, Firmo JOA, Lima-Costa MF. Projeto Bambuí: um estudo de base populacional da prevalência e dos fatores associados à necessidade de cuidador entre idosos. Cad Saúde Pública 2005; 21(1): 80-91. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000100010
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... e o risco de hospitalizações frequentes88. Castro DC, Nunes DP, Pagoto V, Pereira LV, Bachion MM, Nakatani AYK. Incapacidade funcional para atividades básicas de vida diária de idosos: estudo populacional. Ciênc Cuid Saúde 2016; 15(1): 109-17. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i1.27569
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/... .
Pesquisas têm evidenciado associações significativas entre capacidade funcional e diferentes indicadores de nível socioeconômico1010. Giacomin KC, Uchôa E, Firmo JOA, Lima-Costa MF. Projeto Bambuí: um estudo de base populacional da prevalência e dos fatores associados à necessidade de cuidador entre idosos. Cad Saúde Pública 2005; 21(1): 80-91. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000100010
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... ,1111. Nunes DP, Brito TRP, Giacomin KC, Duarte YAO, Lebrão ML. Performance pattern of activities of daily living for older adults in the city of São Paulo in 2000, 2006, and 2010. Rev Bras Epidemiol 2018; 21(Supl. 2). https://doi.org/10.1590/1980-549720180019.supl.2
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... ,1212. Bierhals IO, Meller FO, Assunção MCF. Dependência para a realização de atividades relacionadas à alimentação em idosos. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2016 [acessado em 18 jun. 2020]; 21(4): 1297-308. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015214.12922015
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159... analisando as ABVDs1313. Andrade TB, Andrade FB. Unmet need for assistance with activities of daily life among older adults in Brazil. Rev Saúde Pública 2018; 52: 75. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000463
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... ,1414. Andrade FB, Duarte YAO, Souza Júnior PRB, Torres JL, Lima-Costa MF, Andrade FCD. Inequalities in basic activities of daily living among older adults: ELSI-Brazil, 2015. Rev Saúde Pública 2018; 52(Supl. 2): 14s. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000617
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... ,1515. Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saúde Pública 2018; 52(Supl. 2): 9s. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000650
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... ou as AIVDs77. Andriolo BNG, Santos NV, Volse AA, Fé LCM, Amaral ARC, Carmo BMSS, et al. Avaliação do grau de funcionalidade em idosos usuários de um centro de saúde. Rev Soc Bras Clin Med 2016; 14(3): 139-44.,1616. Farías-Antúnez S, Lima NP, Bierhals IO, Gomes AP, Vieira LS, Tomasi E. Incapacidade funcional para atividades básicas e instrumentais da vida diária: um estudo de base populacional com idosos de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2014. Epidemiol Serv Saúde 2018; 27(2): e2017290. https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000200005
https://doi.org/https://doi.org/10.5123/... . A renda familiar per capita (RFPC), como indicador de nível socioeconômico, justifica-se pela sua importância na reprodução social no Brasil. Dada a ausência ou a insuficiência de suporte social à população, tais como educação de qualidade, oferta adequada de serviços de saúde, transporte, lazer e condições dignas de moradia, a renda assume um papel primordial como indicador do poder de despesa e de aquisição de bens e serviços considerados importantes para uma vida satisfatória1717. Parahyba MI, Simões CCS. A prevalência de incapacidade funcional em idosos no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2006 [acessado em 18 jun. 2020]; 11(4): 967-74. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232006000400018
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159... .
Em países como o Brasil, em que prevalecem profundas desigualdades socioeconômicas, é fundamental conhecer e monitorar o papel da renda na preservação de um envelhecimento ativo e saudável. Também se faz importante avaliar a magnitude das possíveis disparidades considerando atividades diárias de diferentes graus de complexidade, bem como as atividades específicas mais afetadas pelas diferenças de renda. Essa análise parte do princípio de que a dependência em cada atividade gera impactos distintos sobre a vida do idoso e na demanda de cuidado. Vários autores analisaram atividades específicas88. Castro DC, Nunes DP, Pagoto V, Pereira LV, Bachion MM, Nakatani AYK. Incapacidade funcional para atividades básicas de vida diária de idosos: estudo populacional. Ciênc Cuid Saúde 2016; 15(1): 109-17. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i1.27569
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/... ,1212. Bierhals IO, Meller FO, Assunção MCF. Dependência para a realização de atividades relacionadas à alimentação em idosos. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2016 [acessado em 18 jun. 2020]; 21(4): 1297-308. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015214.12922015
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159... ,1313. Andrade TB, Andrade FB. Unmet need for assistance with activities of daily life among older adults in Brazil. Rev Saúde Pública 2018; 52: 75. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000463
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... ,1818. Tareque MI, Tiedt AD, Islam TM, Begum S, Saito Y. Gender differences in functional disability and self-care among seniors in Bangladesh. BMC Geriatr. 2017;17(1):177. http://dx.doi.org/10.1186/s12877-017-0577-2
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.118... , mas há carência de estudos brasileiros sobre as desigualdades sociais na dependência dessas atividades.
Nessa perspectiva, o estudo teve como objetivo estimar a magnitude das desigualdades de renda nas prevalências de dependência funcional em ABVD e AIVD, bem como no abandono de AAVD, entre idosos residentes em um município do Sudeste brasileiro.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, desenvolvido com dados do Inquérito de Saúde no Município de Campinas (ISACamp), realizado em 2014 e 2015. A população do inquérito foi constituída por indivíduos com idade igual ou superior a 10 anos, residentes nos domicílios particulares da área urbana do município. O processo amostral foi estratificado e por conglomerados em dois estágios. No primeiro estágio foram sorteados 70 setores censitários e no segundo estágio, selecionados os domicílios.
O tamanho da amostra foi definido para garantir estimativas de proporção de 0,50, com intervalo de confiança de 95% (IC95%), com erro de 4 a 5 pontos percentuais, considerando-se o efeito de delineamento de 2. Dos três segmentos etários (adolescentes, adultos e idosos) que compuseram os domínios amostrais do inquérito, apenas os idosos foram analisados neste estudo. Foi definido um tamanho de amostra de mil idosos, sendo sorteados 2.853 domicílios para entrevistá-los, considerando-se uma taxa de não resposta de 20% com base em inquéritos prévios. Esses domicílios foram sorteados nos 70 setores censitários previamente amostrados, gerando uma amostra representativa da população de idosos do município. Em cada domicílio foram entrevistados todos os moradores do grupo de idade para o qual o endereço havia sido sorteado. A opção de não sortear os indivíduos em cada domicílio se deve ao fato de que esse tipo de delineamento é similar em termos de acurácia e tem menor custo em relação ao que prevê o sorteio de uma pessoa por domicílio1919. Alves MCGP, Escuder MML, Claro RM, Silva NN. Seleção dentro das famílias em pesquisas de saúde. Rev Saúde Pública [Internet]. 2014 [acessado em 18 jun. 2020]; 48(1): 86-93. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2014048004540
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... .
O questionário do ISACamp 2014/2015 foi estruturado em 13 blocos temáticos e aplicado por entrevistadores treinados e supervisionados, com a utilização de tabletes, diretamente ao indivíduo selecionado. No caso de idosos com dificuldades de responder ao questionário, as informações foram fornecidas por um familiar ou cuidador.
Em relação às variáveis do estudo, a dependência funcional referiu-se à necessidade de ajuda parcial ou total na realização das ABVDs e AIVDs. As ABVDs incluíram: tomar banho; vestir-se; usar o sanitário; deitar-se/levantar-se e alimentar-se2020. Katz S, Akpom CA. A measure of primary sociobiological functions. Int J Health Serv 1976; 6(3): 493-508. http://doi.org/10.2190/UURL-2RYU-WRYD-EY3K
https://doi.org/http://doi.org/10.2190/U... . As AIVDs analisadas foram: usar o telefone; usar transporte; fazer compras; preparar a própria refeição; realizar tarefas domésticas; controlar o uso dos medicamentos e cuidar de suas finanças2121. Lino VTS, Pereira SMR, Camacho LAB, Ribeiro Filho ST, Buksman S. Adaptação transcultural da Escala de Independência em Atividades da Vida Diária (Escala de Katz). Cad Saúde Pública 2008; 24(1): 103-12. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2008000100010
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . As prevalências de dependência em AIVDs foram estimadas em relação aos que costumavam fazer a atividade.
O estudo analisou ainda o abandono de AAVDs, ou seja, o relato de ter deixado de fazê-las. As AAVDs consideradas foram: trabalho voluntário; hábito de fazer contato com pessoas por meio de cartas, e-mails ou telefone; receber e fazer visitas a amigos e familiares; participar de atividades culturais ou sociais; utilizar a internet; hábito de fazer viagens curtas ou longas e dirigir automóvel2222. Oliveira EM, Silva HS, Lopes A, Cachioni M, Falcão DVS, Batistoni SST, et al. Advanced Activities of Daily Living (AADL) and cognitive performance among older adults. Psico-USF 2015; 20(1): 109-20. http://dx.doi.org/10.1590/1413-82712015200110
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159... ,2323. Dias EN, Silva JV, Pais-Ribeiro JL, Martins T. Validation of the advanced activities of daily living scale. Geriatr Nurs 2019; 40(1): 7-12. http://doi.org/10.1016/j.gerinurse.2018.05.008
https://doi.org/http://doi.org/10.1016/j... . As prevalências dos que abandonaram as AAVDs foram estimadas em relação aos que, algum dia, haviam feito a atividade.
A principal variável independente analisada foi a renda familiar mensal em salários mínimos per capita (que 2014 correspondia a R$ 724), obtida pela soma das rendas das pessoas da família, dividia pelo número de moradores da residência. Para essa renda foram construídas três categorias: menor de 1 salário mínimo, entre 1 e 2 salários mínimos, mais de 2 salários mínimos.
As demais variáveis independentes utilizadas para caracterizar a população do estudo foram:
Sexo: masculino e feminino;
Faixa etária em anos: 60 a 69, 70 a 79 e 80 e mais;
Escolaridade em anos de estudo: 0 a 3, 4 a 8 e 9 anos e mais;
Raça/cor: brancos, não brancos (pretos, pardos, indígena, amarelos);
Posse de equipamentos domiciliares: filtro, televisão, geladeira, freezer, máquina de lavar roupa, forno micro-ondas, videocassete/DVD, máquina de lavar louça, ar-condicionado, aspirador de pó, telefone fixo e celular, máquina fotográfica/câmera digital, computador, laptop/tablet, motocicleta, bicicleta e carro;
Trabalho remunerado: sim/não;
Filiação à plano privado de saúde: sim/não;
Doenças crônicas: hipertensão, diabetes, angina, infarto do miocárdio, arritmia, câncer, osteoporose, artrose/reumatismo, reumatismo, asma ou bronquite asmática, enfisema/doença pulmonar crônica, doença osteomuscular relacionada ao trabalho/lesão por esforços repetitivos, varizes nas pernas, acidente vascular cerebral, doenças na coluna;
Autoavaliação de saúde: boa/muito boa e regular/ruim/muito ruim.
Foram estimadas as prevalências e razões de prevalência (RPs) de dependência de cada ABVD e de cada AIVD, bem como de ter abandonado cada AAVD, segundo estratos de renda. Também foram estimadas as prevalências de dependência em ao menos uma ABVD e em ao menos uma AIVD, bem como de ter deixado de fazer ao menos uma AAVD. Para determinar as associações, utilizou-se o teste do χ2 de Pearson, com ajuste de Rao-Scott, considerando-se estatisticamente significativos aqueles com p < 0,05. E para estimar as RPs ajustadas por sexo e idade, utilizou-se regressão múltipla de Poisson.
Por se tratar de uma amostra complexa, os dados foram analisados utilizando-se o comando svy do software estatístico Stata, versão 14.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos), que permite considerar os pesos amostrais, os pesos de pós-estratificação e o desenho por conglomerados.
O ISACamp foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas sob parecer nº 3.734.746, de 29 de novembro de 2019 (Plataforma Brasil, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE nº 24785519.0.0000.5404).
RESULTADOS
Nos 2.853 domicílios sorteados para entrevistar idosos, houve 6,8% entre recusas e outras perdas. Entre os 1.168 idosos localizados nos domicílios sorteados, houve 15,5% de perdas, subdivididas em 14% de recusas e 1,5% por outros motivos. A amostra final foi constituída por 986 idosos e para 57 deles (5,7%) o preenchimento do questionário foi feito com o auxílio de um familiar ou cuidador. A população de estudo foi constituída por 57,7% de mulheres e 56,8% de indivíduos de 60 a 69 anos.
Significativas desigualdades sociodemográficas diferenciam os idosos dos três estratos de renda analisados. Enquanto 51% dos idosos do segmento de RFPC inferior a um salário mínimo têm menos de quatro anos de estudo, esse percentual declina a 11,3% no estrato de renda superior. Nesse estrato, 49,2% dos idosos têm nove ou mais anos de estudo, enquanto apenas 10,2% do segmento de renda inferior atinge esse nível de escolaridade. No estrato de renda superior, 80% dos idosos são de raça/cor branca, 76,1% têm 11 equipamentos ou mais no domicílio, 61,5%, acesso a computador e 75,7%, plano de saúde privado, declinando esses percentuais, respectivamente, para 62,8, 32,4, 40, e 23% no estrato de renda inferior (Tabela 1).
O percentual de idosos com saúde autoavaliada como regular a muito ruim aumenta com o decréscimo da renda, atingindo 43,8% dos idosos do segmento mais pobre. As prevalências de dependência em alguma AIVD e de abandono de alguma AAVD também aumentaram significativamente com o declínio da renda (Tabela 1).
Em relação à dependência funcional para ABVD (Tabela 2), não foram verificadas diferenças significativas para a realização de nenhuma das atividades nas comparações entre as categorias de renda. Já em relação à dependência funcional nas AIVDs, a prevalência de idosos dependentes foi maior entre os pertencentes ao segmento de menor renda, em comparação aos de renda superior, em cinco atividades, sendo as maiores desigualdades detectadas em: usar o telefone (RP = 3,50), usar transporte (RP = 2,35) e controlar o próprio uso de medicamentos (RP = 2,40). Observa-se um gradiente com aumento dos percentuais de dependência acompanhando a redução da renda.
Observa-se, na Tabela 3, que as prevalências de abandono de todas as AAVDs analisadas foram significativamente superiores nos idosos de menor renda. As maiores diferenças encontradas entre os estratos extremos de renda foram na realização de contatos por carta, e-mail ou telefone (RP = 3,76), no uso da internet (RP = 3,34), em dirigir veículos (RP = 2,85) e em visitas a familiares e amigos (RP = 2,77). Observa-se aumento do percentual dos que abandonaram as AAVDs acompanhando a redução da renda dos estratos.
DISCUSSÃO
Importantes desigualdades demográficas, socioeconômicas e de acesso a plano privado de saúde foram observadas entre os estratos de renda da população idosa estudada. Esta pesquisa revelou a existência de significativas desigualdades de renda nas prevalências de dependência em cinco AIVDs e nas prevalências de abandono de todas as AAVDs estudadas. Evidenciou-se que os tamanhos das desigualdades diferem entre as atividades e que as disparidades tendem a ser mais presentes e de maior magnitude nas AAVDs em comparação às AIVDs. Neste estudo, não foram detectadas diferenças estatisticamente significantes entre as prevalências de dependência nas ABVDs segundo o nível de renda.
A prevalência de dependência em ao menos uma das cinco atividades básicas analisadas neste estudo foi de 8,4% nos idosos de 60 anos ou mais. Essa prevalência é superior à observada em estudo realizado em Cingapura (6,6%)2424. Ng TP, Niti M, Chiam PC, Kua EH. Prevalence and correlates of functional disability in multiethnic elderly singaporeans. J Am Geriatr Soc 2006; 54(1): 21-9. https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2005.00533.x
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/... e semelhante à encontrada em pesquisa desenvolvida na Irlanda (8%)2525. Millán-Calenti JC, Tubío J, Pita-Fernández S, Abraldes IG, Lorenzo T, Fernández-Arruty T, et al. Prevalence of functional disability in activities of daily living (ADL), instrumental activities of daily living (IADL) and associated factors, as predictors of morbidity and mortality. Arq Gerontol Geriatr 2010; 50(3): 306-10. https://doi.org/10.1016/j.archger.2009.04.017
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... . Mas estudo realizado em Nova York, com indivíduos de 65 anos ou mais, detectou que 28% deles tinham incapacidade em, pelo menos, uma ABVD2323. Dias EN, Silva JV, Pais-Ribeiro JL, Martins T. Validation of the advanced activities of daily living scale. Geriatr Nurs 2019; 40(1): 7-12. http://doi.org/10.1016/j.gerinurse.2018.05.008
https://doi.org/http://doi.org/10.1016/j... . No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) apontaram a presença dessas incapacidades em 16% dos idosos de 60 anos ou mais1313. Andrade TB, Andrade FB. Unmet need for assistance with activities of daily life among older adults in Brazil. Rev Saúde Pública 2018; 52: 75. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000463
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... . Prevalências ainda mais elevadas foram observadas em outros estudos brasileiros: 36,1% na pesquisa de Farías-Antúnez et al.1616. Farías-Antúnez S, Lima NP, Bierhals IO, Gomes AP, Vieira LS, Tomasi E. Incapacidade funcional para atividades básicas e instrumentais da vida diária: um estudo de base populacional com idosos de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2014. Epidemiol Serv Saúde 2018; 27(2): e2017290. https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000200005
https://doi.org/https://doi.org/10.5123/... e 26,8% no estudo de Del Duca et al.2626. Del Duca GF, Silva MC, Hallal PC. Disability relating to basic and instrumental activities of daily living among elderly subjects. Rev Saúde Pública [Internet]. 2009 [acessado em 18 jun. 2019]; 43(5): 796-805. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000057
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . Algumas pesquisas incluem a presença de incontinência urinária ou fecal entre as ABVDs estudadas, independentemente de a condição provocar ou não dependência funcional88. Castro DC, Nunes DP, Pagoto V, Pereira LV, Bachion MM, Nakatani AYK. Incapacidade funcional para atividades básicas de vida diária de idosos: estudo populacional. Ciênc Cuid Saúde 2016; 15(1): 109-17. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i1.27569
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/... ,1616. Farías-Antúnez S, Lima NP, Bierhals IO, Gomes AP, Vieira LS, Tomasi E. Incapacidade funcional para atividades básicas e instrumentais da vida diária: um estudo de base populacional com idosos de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2014. Epidemiol Serv Saúde 2018; 27(2): e2017290. https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000200005
https://doi.org/https://doi.org/10.5123/... ,2626. Del Duca GF, Silva MC, Hallal PC. Disability relating to basic and instrumental activities of daily living among elderly subjects. Rev Saúde Pública [Internet]. 2009 [acessado em 18 jun. 2019]; 43(5): 796-805. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000057
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . Outros estudos incluem na prevalência os idosos que apresentam alguma dificuldade em realizar a atividade, mesmo que não necessitem da ajuda de terceiros1313. Andrade TB, Andrade FB. Unmet need for assistance with activities of daily life among older adults in Brazil. Rev Saúde Pública 2018; 52: 75. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000463
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... ,1414. Andrade FB, Duarte YAO, Souza Júnior PRB, Torres JL, Lima-Costa MF, Andrade FCD. Inequalities in basic activities of daily living among older adults: ELSI-Brazil, 2015. Rev Saúde Pública 2018; 52(Supl. 2): 14s. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000617
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... . Essas duas condições tendem a elevar os valores da prevalência. No presente estudo, a incontinência urinária/fecal não foi incluída e só foram considerados como dependentes em ABVD os idosos que precisavam de alguma ajuda, seja parcial, seja total. Assim, as diferenças de prevalências entre os estudos dependem do rol de atividades investigadas, do segmento etário analisado e de diferenças em outros aspectos metodológicos, além das diferenças nas condições de saúde das populações-alvo.
Neste estudo, não foi detectada associação entre a dependência nas ABVDs e a renda familiar. Resultado semelhante foi observado em estudo realizado na Holanda, utilizando-se diferentes níveis de escolaridade88. Castro DC, Nunes DP, Pagoto V, Pereira LV, Bachion MM, Nakatani AYK. Incapacidade funcional para atividades básicas de vida diária de idosos: estudo populacional. Ciênc Cuid Saúde 2016; 15(1): 109-17. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i1.27569
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/... , e em estudo realizado em Pelotas, que não encontrou desigualdade na prevalência de dependência em ABVD entre estratos de renda ou de escolaridade2626. Del Duca GF, Silva MC, Hallal PC. Disability relating to basic and instrumental activities of daily living among elderly subjects. Rev Saúde Pública [Internet]. 2009 [acessado em 18 jun. 2019]; 43(5): 796-805. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000057
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . Contudo, muitos estudos têm detectado desigualdades socioeconômicas na prevalência de dependência em ABVD1313. Andrade TB, Andrade FB. Unmet need for assistance with activities of daily life among older adults in Brazil. Rev Saúde Pública 2018; 52: 75. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000463
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... ,1616. Farías-Antúnez S, Lima NP, Bierhals IO, Gomes AP, Vieira LS, Tomasi E. Incapacidade funcional para atividades básicas e instrumentais da vida diária: um estudo de base populacional com idosos de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2014. Epidemiol Serv Saúde 2018; 27(2): e2017290. https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000200005
https://doi.org/https://doi.org/10.5123/... . Diferenças nos instrumentos utilizados para a avaliação das ABVDs, no poder estatístico dos estudos e nos indicadores socioeconômicos empregados podem responder, em parte, pela detecção ou não de desigualdades socioeconômicas. Como as prevalências de dependência em ABVD são baixas, a detecção de diferenças significativas exige maiores tamanhos amostrais. Também não se pode descartar o viés de sobrevivência, considerando-se que indivíduos de níveis socioeconômicos inferiores tendem a apresentar maior mortalidade prematura.
Em relação às AIVDs, este estudo verificou que 42,9% dos idosos apresentavam dependência em ao menos uma das atividades analisadas. Essa prevalência assemelha-se à encontrada em Lafaiete Coutinho, na Bahia (41%)2727. Freitas RS, Fernandes MH, Coqueiro RS, Reis Júnior WM, Rocha SV, Brito TA. Functional capacity and associated factors in the elderly: a population study. Acta Paul Enferm 2012; 25(6): 933-9. https://doi.org/10.1590/S0103-21002012000600017
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... , e em pesquisa com idosos de áreas rurais de Pelotas (45,4%)2828. Pinto AH, Lange C, Pastore CA, Llano PMP, Castro DP, Santos F. Capacidade funcional para realizar atividades de vida diária entre idosos residentes em áreas rurais cadastradas na Estratégia de Saúde da Família. Ciênc Saúde Coletiva 2016; 21(11): 3545-55. https://doi.org/10.1590/1413-812320152111.22182015
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... , mas é inferior à encontrada na Espanha em pessoas com 65 anos ou mais (53,5%)2525. Millán-Calenti JC, Tubío J, Pita-Fernández S, Abraldes IG, Lorenzo T, Fernández-Arruty T, et al. Prevalence of functional disability in activities of daily living (ADL), instrumental activities of daily living (IADL) and associated factors, as predictors of morbidity and mortality. Arq Gerontol Geriatr 2010; 50(3): 306-10. https://doi.org/10.1016/j.archger.2009.04.017
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... , entretanto essa prevalência é superior à encontrada em outros estudos1616. Farías-Antúnez S, Lima NP, Bierhals IO, Gomes AP, Vieira LS, Tomasi E. Incapacidade funcional para atividades básicas e instrumentais da vida diária: um estudo de base populacional com idosos de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2014. Epidemiol Serv Saúde 2018; 27(2): e2017290. https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000200005
https://doi.org/https://doi.org/10.5123/... ,2929. Torres JL, Lima-Costa MF, Marmot M, Oliveira C. Riqueza e incapacidade em vida posterior: O Estudo Longitudinal Inglês do Envelhecimento (ELSA). PloS One 2016; 11(11): e0166825. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0166825
https://doi.org/https://doi.org/10.1371/... .
Neste estudo, foram detectadas desigualdades entre os estratos de renda na dependência de cinco AIVDs. As desigualdades foram de diferentes magnitudes, sendo que o estrato de pior renda apresentou prevalência de dependência entre 1,56 e 3,5 vezes maior que o de melhor renda, a depender da AIVD considerada. Semelhantemente ao presente estudo, algumas pesquisas também detectaram desigualdades sociais na prevalência de ter dependência em ao menos uma AIVD, porém ao utilizar o nível de escolaridade1515. Giacomin KC, Duarte YAO, Camarano AA, Nunes DP, Fernandes D. Cuidado e limitações funcionais em atividades cotidianas - ELSI-Brasil. Rev Saúde Pública 2018; 52(Supl. 2): 9s. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000650
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... ,3030. Nunes JD, Saes MO, Nunes BP, Siqueira FCV, Soares DCS, Fassa MEG, et al. Functional disability indicators and associated factors in the elderly: a Population-based study in Bagé, Rio Grande do Sul, Brazil. Epidemiol Serv Saúde 2017; 26(2): 295-304. https://doi.org/10.5123/S1679-49742017000200007
https://doi.org/https://doi.org/10.5123/... como indicador de desigualdade social. Mas outros estudos não encontraram associação entre os indicadores de nível socioeconômico e a incapacidade em AIVD2626. Del Duca GF, Silva MC, Hallal PC. Disability relating to basic and instrumental activities of daily living among elderly subjects. Rev Saúde Pública [Internet]. 2009 [acessado em 18 jun. 2019]; 43(5): 796-805. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000057
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... ,3131. Virtuoso Júnior JS, Tribess S, Menezes AS, Meneguci J, Sasaki JE. Factors associated with functional disability in Brazilian older adults. Rev Andal Med Deporte 2016. http://doi.org/10.1016/j.ramd.2016.05.003
https://doi.org/http://doi.org/10.1016/j... .
Alguns trabalhos analisaram as prevalências da dependência em tarefas específicas das AIVDs. Em estudo realizado em Goiânia, a incapacidade variou de 12,4% no uso dos medicamentos a 30,5% no uso do telefone3030. Nunes JD, Saes MO, Nunes BP, Siqueira FCV, Soares DCS, Fassa MEG, et al. Functional disability indicators and associated factors in the elderly: a Population-based study in Bagé, Rio Grande do Sul, Brazil. Epidemiol Serv Saúde 2017; 26(2): 295-304. https://doi.org/10.5123/S1679-49742017000200007
https://doi.org/https://doi.org/10.5123/... . Pesquisa realizada em Pelotas apontou que 11,8% dos idosos tinham incapacidade no manejo de dinheiro e 17,6%, no uso de transportes2626. Del Duca GF, Silva MC, Hallal PC. Disability relating to basic and instrumental activities of daily living among elderly subjects. Rev Saúde Pública [Internet]. 2009 [acessado em 18 jun. 2019]; 43(5): 796-805. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000057
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... .
Entretanto, não foram encontrados estudos que tenham avaliado a desigualdade socioeconômica na prevalência de dependência em AIVDs específicas. Os resultados desta pesquisa revelaram que apenas nas tarefas domésticas e no preparo de refeições não foram encontradas desigualdades significativas entre os estratos de renda. As maiores desigualdades foram detectadas em atividades que reduzem a participação social ou que têm implicações mais diretas para a saúde. Por exemplo, desigualdades no uso do telefone implicam limitações nos contatos sociais e até na assistência à saúde, em caso de necessidade de solicitação de socorro em emergências. A dependência no uso do transporte público pode reduzir a mobilidade e aumentar a demanda para familiares ou cuidadores. A incapacidade no controle do uso de medicamentos e, especialmente, a necessidade de atenção domiciliar médica mais complexa tornam-se importante problemas para a saúde pública pelos custos e riscos que representam.
As marcantes desigualdades detectadas na dependência em AIVD e o fato de que diferem conforme a atividade considerada apontam para a necessidade de mais estudos que avaliem e monitorem as disparidades sociais em AIVDs específicas, de modo que elas sejam consideradas nas políticas e nos programas de promoção da saúde de idosos.
No envelhecimento, a perda da capacidade funcional evolui gradualmente com o avançar da idade, o que gera prejuízos cognitivos, funcionais e sensoriais. Inicialmente, há comprometimento das AAVDs e, depois, das AIVDs e ABVDs, tornando parcela dos idosos dependente de assistência contínua3232. Dias EG, Duarte YAO, Almeida MHM, Lebrão ML. Characterization of advanced activities of daily living (AADL): a review. Rev Ter Ocup Univ 2011; 22(1): 45-51. http://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v22i1p45-51
https://doi.org/http://doi.org/10.11606/... . Em revisão sistemática desenvolvida com 31 artigos, a maioria dos estudos concorda que o abandono das AAVDs implica riscos aumentados de piora do estado cognitivo, de depressão e de mortalidade3333. Barbosa BR, Almeida JM, Barbosa MR, Rossi-Barbosa LAR. Evaluation of the functional capacity of the elderly and factors associated with disability. Ciên Saúde Coletiva 2014; 19(8): 3317-25. https://doi.org/10.1590/1413-81232014198.06322013
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . O abandono da realização de atividade avançada está associado a fatores demográficos, comportamentais e de condição de saúde3434. Nogueira SL, Ribeiro RCL, Rosado LEFPL, Franceschini SCC, Ribeiro AQ, Pereira ET. Determinant factors of functional status among the oldest old. Rev Bras Fisioter 2010; 14(4): 322-9. https://doi.org/10.1590/S1413-35552010005000019
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... .
Verificou-se que o abandono das sete AAVDs analisadas apresentou prevalências significativamente superiores no estrato de menor renda. Abandonar visitas e o contato com amigos e familiares por carta, e-mail ou telefone foi 2,8 e 3,8 vezes, respectivamente, mais prevalente no estrato mais pobre. O abandono do uso de internet foi 3,3 vezes maior nos idosos do estrato mais pobre, resultado que difere do observado em pesquisa desenvolvida em Florianópolis, Santa Catarina, em que não foi detectada diferença no abandono da utilização da internet entre estratos de escolaridade ou de renda3535. Krug RR, Xavier AJ, d’Orsi E. Fatores associados à manutenção do uso da internet, estudo longitudinal EpiFloripa Idoso. Rev Saúde Pública 2018; 52: 37. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000216
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... . Pesquisa desenvolvida em quatro localidades brasileiras avaliou o abandono de treze AAVDs e identificou que os maiores percentuais foram no trabalho remunerado, na realização de viagens longas e na participação em eventos sociais3636. Neri AL, Vieira LAM. Social involvement and perceived social support in old age. 2013; 16(3): 419-32. https://doi.org/10.1590/S1809-98232013000300002
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... , mas o abandono não foi avaliado segundo o nível socioeconômico. Estudo que analisou a frequência e a diversidade de contatos (com familiares e amigos) em idosos do município de São Paulo constatou que, no sexo masculino, os idosos do quartil mais pobre apresentavam maiores chances de baixa frequência (OR = 2,54; IC95% 1,36 - 4,73) e de baixa diversidade de contatos (OR = 4,97; IC95% 2,54 - 9,69) comparados aos mais ricos (3º e 4º quartil de renda), mas no sexo feminino essa associação não foi observada3737. Rosa TEC, Benício MHD, Alves MCGP, Lebrão ML. Structural and functional aspects of social support for the elderly in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saúde Pública 2007; 23(12): 2982-92. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007001200019
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... .
As significativas desigualdades de renda detectadas, tanto na dependência funcional dos idosos em AIVDs quanto no abandono das AAVDs, ressaltam a importância da garantia aos idosos brasileiros, especialmente aos segmentos em maior vulnerabilidade social, de acesso aos programas e benefícios de proteção social existentes, bem como a necessidade de manutenção desses programas3838. Brasil. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal; 1988.. A Lei Orgânica da Assistência Social3939. Brasil. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências [Internet]. Brasília: Presidência da República, 1993 [acessado em 10 ago. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI... , por sua vez, garante renda mínima necessária para a sobrevivência dos idosos e de sua família, auxílio que oportuniza melhores condições de vida, ao mesmo tempo em que pode reparar parte das perdas sociais vivenciadas em fases pregressas da vida. Esses fatores são relevantes para prevenir e reduzir a incapacidade e a dependência funcional4040. Amorim JSC, Salla S, Trelha CS. Factors associated with work ability in the elderly: systematic review. Rev Bras Epidemiol 2014; 17(4): 830-41. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400040003
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... .
Além disso, políticas de promoção da saúde, de prevenção de doenças e de cobertura assistencial de qualidade são fundamentais para reduzir o efeito da desigualdade socioeconômica sobre a capacidade funcional da população que envelhece rapidamente4040. Amorim JSC, Salla S, Trelha CS. Factors associated with work ability in the elderly: systematic review. Rev Bras Epidemiol 2014; 17(4): 830-41. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400040003
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . Contudo, estudos apontam retrocessos na cobertura e universalização dos serviços de saúde, além da falta de articulação e financiamento das ações específicas que deveriam estar à disposição dos idosos4141. Oxfam Brasil. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras [Internet]. São Paulo: Oxfam; 2017 [acessado em 18 ago. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/a-distancia-que-nos-une/
https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-... ,4242. Stuckler D, Reeves A, Loopstra R, Karanikolos M, McKee M. Austerity and health: the impact in the UK and Europe. European J Public Health 2017; 27(Supl. 4): 18-21. http://doi.org/10.1093/eurpub/ckx167
https://doi.org/http://doi.org/10.1093/e... . A implementação de ações e políticas de proteção à saúde do idoso é especialmente importante em períodos de aumento de concentração da renda4343. Pickety T. O capital do século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014.,4444. FGV Social. A escalada da desigualdade: qual o impacto da crise sobre a distribuição de renda e a pobreza [Internet]. Rio de Janeiro: FGV Social; 2019 [acessado em 15 abr. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://www.cps.fgv.br/cps/bd/docs/A-Escalada-da-Desigualdade-Marcelo-Neri-FGV-Social.pdf
https://www.cps.fgv.br/cps/bd/docs/A-Esc... e de crises econômicas e políticas que tendem a ampliar as desigualdades sociais e de saúde4242. Stuckler D, Reeves A, Loopstra R, Karanikolos M, McKee M. Austerity and health: the impact in the UK and Europe. European J Public Health 2017; 27(Supl. 4): 18-21. http://doi.org/10.1093/eurpub/ckx167
https://doi.org/http://doi.org/10.1093/e... .
Uma das limitações deste estudo, pelo seu desenho transversal, é a impossibilidade de estabelecer relações de causa e efeito. Dessa forma, não é possível excluir a ocorrência de redução da renda provocada pelo surgimento de incapacidades funcionais1313. Andrade TB, Andrade FB. Unmet need for assistance with activities of daily life among older adults in Brazil. Rev Saúde Pública 2018; 52: 75. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2018052000463
https://doi.org/https://doi.org/10.11606... . Mas esse efeito estaria mais presente nas incapacidades em ABVDs nas quais não foram encontradas, neste estudo, diferenças segundo a categoria de renda. As comparações com resultados de outros estudos são dificultadas pela utilização de diferentes indicadores e estratégias de análise. Também é preciso considerar as perdas amostrais ocorridas, mas o percentual de perdas foi menor que o esperado no planejamento da amostra (20%), e um viés que pudesse decorrer de perda diferencial teria sido, em boa parte, controlado pelos pesos de pós-estratificação utilizados nas análises deste estudo. O tamanho da amostra também limitou o poder estatístico do estudo na identificação de RPs < 1,7 como estatisticamente significantes quando as prevalências das deficiências eram inferiores a 20%.
O estudo evidenciou que o nível de renda dos idosos se associa a disparidades étnicas, educacionais, de condições de vida e à dependência funcional nas AIVDs e no abandono de AAVDs. Também possibilitou avaliar a desigualdade social em um perfil mais abrangente de capacidade funcional ao analisar três níveis de atividades (ABVD, AIVD e AAVD), o que havia sido feito por poucos estudos88. Castro DC, Nunes DP, Pagoto V, Pereira LV, Bachion MM, Nakatani AYK. Incapacidade funcional para atividades básicas de vida diária de idosos: estudo populacional. Ciênc Cuid Saúde 2016; 15(1): 109-17. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i1.27569
https://doi.org/https://doi.org/10.4025/... ,2626. Del Duca GF, Silva MC, Hallal PC. Disability relating to basic and instrumental activities of daily living among elderly subjects. Rev Saúde Pública [Internet]. 2009 [acessado em 18 jun. 2019]; 43(5): 796-805. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000057
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... ,3737. Rosa TEC, Benício MHD, Alves MCGP, Lebrão ML. Structural and functional aspects of social support for the elderly in the city of São Paulo, Brazil. Cad Saúde Pública 2007; 23(12): 2982-92. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007001200019
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... , e permitiu mensurar as desigualdades socioeconômicas em atividades específicas da vida diária, o que ainda não havia sido feito. Considerando-se o aumento contemporâneo dos índices de concentração da renda4141. Oxfam Brasil. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras [Internet]. São Paulo: Oxfam; 2017 [acessado em 18 ago. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/a-distancia-que-nos-une/
https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-... , das desigualdades socioeconômicas e da pobreza, dos já constatados efeitos nocivos das políticas de austeridade econômica4545. Stuckler D, Bau S. A economia desumana: porque mata a austeridade. Lisboa: Bizâncio; 2014. e dos prejuízos produzidos por modalidades de reformas da previdência social4646. Oliveira SC, Machado CV, Hein AA. Reformas da Previdência Social no Chile: lições para o Brasil. Cad Saúde Pública 2019; 35(5): e00045219. http://doi.org/10.1590/0102-311x00045219
https://doi.org/http://doi.org/10.1590/0... , reconhece-se a necessidade do monitoramento da magnitude das desigualdades sociais na saúde e na capacidade funcional dos idosos.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a bolsa de produtividade de M. B. A. Barros; à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2012/23324-3, e ao Ministério da Saúde via Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, o financiamento da pesquisa; e a Secretaria de Saúde do Estado do Piauí, por ter concedido a primeira autora participar do curso de doutorado.
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- Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2012/23324-3; Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde/Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, com suporte financeiro complementar ao inquérito nº 02-P-28749/2013
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Set 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
03 Abr 2020 - Revisado
23 Jun 2020 - Aceito
24 Jun 2020