RESUMO:
Objetivo:
Analisar os fatores prognósticos para o óbito por COVID-19 em pacientes com câncer.
Métodos:
Estudo retrospectivo com base nos dados registrados no sistema de notificação de casos de internações por COVID-19 de Mato Grosso. Foram avaliados casos notificados entre abril de 2020 e junho de 2021 com câncer. Calcularam-se as frequências absolutas e relativas das variáveis sociodemográficas, de assistência hospitalar e comorbidades, assim como média, mediana e desvio padrão da idade e do tempo de internação. Estimaram-se o odds ratio e seu respectivo intervalo de confiança de 95%, bruto e ajustados, por meio do modelo de regressão logística.
Resultados:
Foram considerados 948 pacientes com câncer internados por COVID-19 em Mato Grosso, com média de idade de 59,7 anos. A proporção de óbitos foi de 34,5%, e a taxa de mortalidade, de 3,73 pessoas/dia (intervalo de confiança de 95% — IC95% 3,35–4,16), com mediana de tempo entre admissão e óbito de 18 dias. Foi maior a chance de óbito entre os pacientes com 60 anos ou mais de idade, com doença pulmonar crônica, que internaram em leitos de unidade de terapia intensiva e necessitaram de ventilação mecânica no momento da internação. Os pacientes internados no período de abril a dezembro de 2020 e janeiro a março de 2021 apresentaram maior chance de óbito quando comparados aos internados entre abril e junho de 2021.
Conclusão:
Foi maior a chance de óbitos por COVID-19 entre pacientes com câncer internados antes do período de vacinação desse grupo no estado e entre aqueles mais velhos e admitidos em piores condições clínicas.
Palavras-chave:
COVID-19; Câncer; Mortalidade hospitalar; Fatores prognósticos
INTRODUÇÃO
A infecção causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) teve seus primeiros casos oficialmente registrados na China no fim do ano de 2019 e chegou ao Brasil em fevereiro de 2020, quando o primeiro caso da doença foi notificado no país. Após mais de um ano de pandemia de COVID-19, o Brasil destaca-se entre os países com maior número de casos e óbitos pela doença, estando a Região Centro-Oeste em segundo lugar quanto à taxa de incidência e em primeiro no que tange à mortalidade por 100 mil habitantes entre as regiões do país. O estado de Mato Grosso teve o primeiro caso de COVID-19 confirmado em 20 de março de 2020 e o primeiro óbito em 3 de abril de 2020. Até 11 de agosto de 2021 foram registrados 497.463 casos e 14.277 mortes pela doença, colocando o estado em sexto lugar no que diz respeito à taxa de incidência (14.277 casos por 100 mil habitantes) e em primeiro lugar quanto à mortalidade (368 óbitos por 100 mil habitantes) entre as 26 Unidades da Federação11 Ministério da Saúde. Painel interativo COVID-19 [Internet]. 2022 [cited on Apr 19, 2022]. Available at: https://covid.saude.gov.br/
https://covid.saude.gov.br/... .
Na pandemia de COVID-19, os pacientes com câncer são considerados um grupo altamente vulnerável por causa das alterações metabólicas com o crescimento do tumor e pela supressão do sistema imunológico pelo tratamento anticâncer22 Giannakoulis VG, Papoutsi E, Siempos II. Effect of cancer on clinical outcomes of patients with COVID-19: a meta-analysis of patient data. JCO Glob Oncol 2020;6:799-808. https://doi.org/10.1200/GO.20.00225
https://doi.org/10.1200/GO.20.00225... . Em estudo de coorte de base populacional, após ajuste para características demográficas, tabagismo e comorbidades, o diagnóstico de câncer foi independentemente associado com maior chance de hospitalização e mortalidade em 30 dias por COVID-1933 Sun L, Surya S, Le AN, Desai H, Doucette A, Gabriel P, et al. Rates of COVID-19-related outcomes in cancer compared with noncancer patients. JNCI Cancer Spectr 2021;5(1):pkaa120. https://doi.org/10.1093/jncics/pkaa120
https://doi.org/10.1093/jncics/pkaa120... . Em recente metanálise sobre os fatores de risco para morte por COVID-19 entre pessoas com câncer, foi verificada maior mortalidade entre homens, indivíduos com mais de 65 anos de idade, portadores de comorbidades e com sintomas como dispneia e tosse44 Liu Y, Lu H, Wang W, Liu Q, Zhu C. Clinical risk factors for mortality in patients with cancer and COVID-19: a systematic review and meta-analysis of recent observational studies. Expert Rev Anticancer Ther 2021;21(1):107-19. https://doi.org/10.1080/14737140.2021.1837628
https://doi.org/10.1080/14737140.2021.18... .
Entre os fatores que possivelmente têm agravado a situação de muitos pacientes com câncer, durante o período pandêmico, destacam-se atraso no diagnóstico, atendimento oncológico inadequado55 Sharpless NE. COVID-19 and cancer. Science 2020;368(6497):1290. https://doi.org/10.1126/science.abd3377
https://doi.org/10.1126/science.abd3377... e suspensão do rastreamento de câncer66 Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer. Nota Técnica – DIDEPRE/CONPREV/INCA Detecção precoce de câncer durante a pandemia de Covid-19. Available at: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/nota-tecnica-deteccao-precoce.pdf.
https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.in... . No Brasil, esses efeitos podem ter sido causados não somente pela adoção de medidas mais rígidas de distanciamento social e redirecionamento de recursos nos períodos de colapso dos serviços de saúde, como também por percepção individual do risco de infecção durante o tratamento77 Lima ALMA, Borborema MCD, Matos APR, Oliveira KMM, Mello MJG, Lins MM. COVID-19 coorte de crianças com câncer: atraso no tratamento e aumento da frequência de óbitos. Rev Bras Saude Mater Infant 2021;21(Supl. 1):S305-10. https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S100017
https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S... ,88 Souza JB, Conceição VM, Araujo JS, Bitencourt JVOV, Silva Filho CC, Rossetto M. Câncer em tempos de COVID-19: repercussões na vida de mulheres em tratamento oncológico. Rev Enferm UERJ 2020;28:e51821. https://doi.org/10.12957/reuerj.2020.51821
https://doi.org/10.12957/reuerj.2020.518... , entretanto ainda são escassos os estudos no país que avaliem os fatores associados ao óbito entre pacientes com câncer internados por COVID-1999 Yang K, Sheng Y, Huang C, Jin Y, Xiong N, Jiang K, et al. Clinical characteristics, outcomes, and risk factors for mortality in patients with cancer and COVID-19 in Hubei, China: a multicentre, retrospective, cohort study. Lancet Oncol 2020;21(7):904-13. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30310-7
https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30... ,1010 Galindo RJSC, Andrade LB, Sena GR, Nogueira LRM, Lima TPF, Lima JTO, et al. Mulheres com câncer e COVID-19: uma análise da letalidade e aspectos clínicos em Pernambuco. Rev Bras Saude Mater Infant 2021;21(Supl 1):S167-75. https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S100008
https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S... .
Dessa forma, este estudo teve como objetivo avaliar os fatores prognósticos para o óbito entre pacientes com câncer internados por COVID-19 em Mato Grosso.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo retrospectivo por meio da análise dos casos de internação de pacientes com confirmação de COVID-19 em Mato Grosso, entre 1° de abril de 2020 e 10 de junho de 2021. Os dados foram obtidos pela Secretaria do Estado de Saúde de Mato Grosso (SES-MT) por meio do Painel COVID-19, que, por sua vez, tem como fonte de dados o Sistema IndicaSUS, instituído no estado de Mato Grosso para a notificação hospitalar de casos internados, suspeitos ou confirmados, de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) ou COVID-19. A notificação é compulsória e feita diariamente por todos os estabelecimentos públicos e privados de saúde que admitem internações no estado1111 Mato Grosso. Portaria no 141/2020/GBSES. Institui o Sistema INDICASUS para a notificação hospitalar de casos de internação, suspeitos ou confirmados, de Síndrome Respiratória Aguda Grave-SRAG ou COVID-19, que é de realização obrigatória e diária para todos os estabelecimentos públicos e privados de saúde que realizam internações de pacientes do estado de Mato Grosso, e dá outras providências. [Internet]. 2020. Available at: https://www.iomat.mt.gov.br/portal/visualizacoes/pdf/15876/#/p:23/e:15876
https://www.iomat.mt.gov.br/portal/visua... .
Para este estudo, foram considerados os casos notificados de COVID-19 internados nos hospitais públicos e privados do estado de Mato Grosso, no período de 2 de março de 2020 a 10 de junho de 2021, que tinha câncer entre as comorbidades registradas cujo desfecho fora alta hospitalar ou óbito.
A variável dependente foi o óbito por COVID-19 ocorrido durante o período de internação entre os pacientes que disseram ter câncer. Como variáveis demográficas, foram considerados sexo (feminino e masculino), faixa etária (<40 anos, 40 a 49, 50 a 59 e 60 anos ou mais), raça/cor da pele (branca, preta/parda, amarela, indígena e ignorada) e macrorregião de residência do paciente (Sul, Oeste, Norte, Leste e Centro-Norte)1212 Governo do Estado de Mato Grosso. Secretaria de Estado de Saúde. Resolução CIB/MT no 57 de 26 de julho de 2018. Dispõe sobre as diretrizes e o cronograma do processo de Planejamento Regional Integrado (PRI) e estabelece a conformação das 16 (dezesseis) regiões de saúde no Estado de Mato Grosso em 06 (seis) macrorregiões. CIB 057 de 26 de julho de 2018 [Internet]. 2018. Available at: http://www.saude.mt.gov.br/legislacao?origem=19&p=&num=57&mes=&ano=2018
http://www.saude.mt.gov.br/legislacao?or... . Foram incluídas as principais comorbidades consideradas de risco (sim/não) para quadros mais severos de COVID-19 (hipertensão, diabetes, doença cardiovascular, doença pulmonar crônica, doença renal crônica e obesidade). Quanto às informações referentes à internação hospitalar, foram levados em conta o tipo de leito na internação (enfermaria e unidade de terapia intensiva — UTI) e ventilação mecânica (sim e não) no primeiro dia de internação, além do mês de admissão do paciente e do agrupamento dos meses em cinco períodos (abril-junho, julho-setembro e outubro-dezembro de 2020 e janeiro-março e abril-junho de 2021).
Foram calculadas as frequências absolutas e relativas das variáveis sociodemográficas, de assistência hospitalar e comorbidades, assim como a média, a mediana e o desvio padrão (DP) para idade (anos) e tempo de internação (dias). Calcularam-se as taxas de mortalidade hospitalar em relação ao total de internados e ao número de pessoas/dia de seguimento, e ambas foram multiplicadas por 100. O tempo de seguimento foi definido como o tempo decorrido entre a data da internação e a data de saída (óbito ou alta hospitalar).
Foram estimados os odds ratio e os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), não ajustado e ajustados, por meio do modelo de regressão logística, uma vez que a variável definida como desfecho do estudo é binária e tem como categorias alta hospitalar e óbito por COVID-19. As variáveis com p<0,20 na análise bivariada foram incluídas no modelo multivariado, e mantiveram-se no modelo final as variáveis com p<0,05, exceto a variável sexo, que foi mantida como ajuste. A adequação do modelo final foi verificada pelo teste de Hosmer-Lemeshow. Todas as análises foram realizadas utilizando o programa Stata versão 16.0 para Windows.
Este estudo faz parte do projeto de pesquisa "Monitoramento da COVID-19 em Mato Grosso", aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado de Mato Grosso (Parecer n° 4.602.628/2021).
RESULTADOS
No período de 2 de março de 2020 a 10 de junho de 2021, no estado de Mato Grosso, 60.244 indivíduos foram internados por COVID-19, 34.416 (57,1%) com comorbidades, dos quais 1.125 (3,3%) tinham câncer. Dos pacientes com câncer, foram excluídos os transferidos para outros hospitais (96% para hospitais do próprio estado), uma vez que poderia gerar análise de dados duplicados; os que não tinham informação sobre evolução do caso; e os que foram a óbito por outra causa que não COVID-19 (n=177). A primeira internação de paciente com câncer, cujo desfecho foi alta hospitalar ou óbito, ocorreu em 8 de abril de 2020. Dessa forma, os resultados deste estudo referem-se a 948 pacientes com câncer internados por COVID-19 e 327 óbitos.
Os meses de junho a agosto de 2020 e março e maio de 2021 foram os que mais registraram número de internações por COVID-19 entre pacientes com câncer, sendo junho de 2020 e março de 2021 os que mais registraram óbitos entre pacientes com câncer (Figura 1).
Número de internações e óbitos hospitalares de pacientes com câncer internados por COVID-19 segundo mês de ocorrência. Mato Grosso, 2020-2021.
A taxa de mortalidade foi de 3,73 pessoas/dia (IC95% 3,35–4,16) entre os pacientes com câncer internados por COVID-19. Já a mediana de tempo entre a admissão e o óbito foi de 18 dias e variou de um a 147 dias. A média de idade foi de 59,7 anos (DP=19,7) e variou de 0 a 99 anos, sendo maior entre aqueles que foram a óbito (65,5 anos e DP=16,0) quando comparados aos que tiveram alta hospitalar (56,6 anos e DP=20,7). Quando estratificado por sexo (Figura 2), verifica-se que a mediana de idade foi maior entre aqueles que foram a óbito para ambos os sexos (feminino: 64 anos para óbito e 56 anos para alta hospitalar; masculino: 69 anos para óbito e 65 anos para alta hospitalar).
Boxplot da idade de pacientes com câncer internados com COVID-19 segundo sexo e desfecho hospitalar. Mato Grosso, 2020-2021.
Foi maior a proporção de óbitos entre os pacientes do sexo masculino, de maiores faixas etárias (Tabela 1), com hipertensão, diabetes, doença pulmonar crônica, que internaram em leitos de UTI, que necessitaram de ventilação mecânica no momento da internação e nos meses iniciais da pandemia (Tabela 2).
Caracterização das hospitalizações por COVID-19 e proporção de óbito hospitalar entre pacientes com câncer segundo características sociodemográficas. Mato Grosso, 2020-2021.
Caracterização das hospitalizações por COVID-19 e proporção de óbito hospitalar entre pacientes com câncer segundo comorbidades e relacionadas à internação. Mato Grosso, 2020-2021.
No modelo múltiplo, apresentaram maior chance de óbito aqueles pacientes com 60 anos ou mais de idade (OR=2,39; IC95% 1,46–3,92), com doença pulmonar crônica (OR=1,64; IC95% 1,05–2,55), que internaram em leitos de UTI (OR=2,26; IC95% 1,63–3,12), que necessitaram de ventilação mecânica no momento da internação (OR=5,61; IC95% 3,66–8,58) e que internaram no período de abril a dezembro de 2020 e de janeiro a março de 2021 (Tabela 3).
Odds ratio brutos e ajustados das características socioeconômicas, comorbidades e condições da internação associadas ao óbito por COVID-19. Mato Grosso, 2020-2021.
DISCUSSÃO
Entre os pacientes com câncer internados por COVID-19 em Mato Grosso, foi verificada elevada proporção de óbitos, sendo maior a chance de ir a óbito entre os pacientes idosos, com doença pulmonar crônica e aparentemente internados em pior condição clínica, sendo cerca de duas vezes maior a chance de óbito entre aqueles admitidos diretamente em leitos de UTI e mais de cinco vezes maior entre aqueles que internaram já em ventilação mecânica invasiva. Além disso, destacou-se a maior chance de mortalidade nos meses anteriores ao início da vacinação desse grupo no estado de Mato Grosso.
Pacientes com câncer são suscetíveis às complicações graves à infecção pelo SARS-CoV-2 por causa da imunossupressão causada pela doença ou seu tratamento. Portanto, são considerados de alto risco para hospitalizações e óbito na pandemia de COVID-19. Quando comparados aos pacientes sem câncer, pacientes com câncer têm chance oito vezes maior de vir a óbito e três a cinco vezes maior de necessitar de ventilação mecânica e de internação em UTI99 Yang K, Sheng Y, Huang C, Jin Y, Xiong N, Jiang K, et al. Clinical characteristics, outcomes, and risk factors for mortality in patients with cancer and COVID-19 in Hubei, China: a multicentre, retrospective, cohort study. Lancet Oncol 2020;21(7):904-13. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30310-7
https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30... ,1313 Denys A, Guiu B, Chevallier P, Digklia A, Kerviler E, Baere T. Interventional oncology at the time os COVID-19 pandemic: problems and solutions. Diagn Interv Imaging 2020;101(6):347-53. https://doi.org/10.1016/j.diii.2020.04.005
https://doi.org/10.1016/j.diii.2020.04.0... ,1414 Al-Quteimat OM, AMER AM. The impactof the COVID-19 pandemic on cancer patients. Am J Clin Oncol 2020;43(6):452-55. https://doi.org/101.1097/COC0000000000000712
https://doi.org/101.1097/COC000000000000... . Estudo de coorte multicêntrico que avaliou 2.215 adultos em 65 hospitais nos Estados Unidos durante um período de um mês revelou que ter câncer ativo foi associado ao aumento da mortalidade1515 Gupta S, Hayek SS, Wang W, Chan L, Mathews KS, Melamed ML, et al. Factors associated with death in critically ill patients with coronavirus disease 2019 in the US. JAMA Intern Med 2020;180(11):1436-47. https://doi.org/10.1001/jamainternmed.2020.3596
https://doi.org/10.1001/jamainternmed.20... . Em contraponto, Jarahzadeh et al.1616 Jarahzadeh MH, Asadian F, Farbod M, Meibodi B, Abbasi H, Jafari M, et al. Cancer and coronavirus disease (COVID-19): comorbidity, mechanical ventilation, and death risk. J Gastrointest Cancer 2021;52(1):80-4. https://doi.org/10.1007/s12029-020-00529-2
https://doi.org/10.1007/s12029-020-00529... analisaram 12 estudos de coorte exclusivamente de pacientes com câncer infectados pelo SARS-CoV-2 e evidenciaram que esses indivíduos tiveram menor risco de ventilação mecânica ou morte do que os pacientes que não tinham câncer.
O câncer abarca uma diversidade de doenças, classificadas por subtipos e estágios, o que pode acarretar prognósticos e desfechos muito diferentes. Entretanto, durante a pandemia de COVID-19, não considerando tais particularidades, mudanças drásticas ocorreram no cuidado dos pacientes com câncer, resultando em diminuição ou postergação das sessões de radioterapia, mudança de esquemas de quimioterapia intravenosa para oral e modificações no uso de imunoterapia1717 Lee LYW, Cazier JB, Starky T, Briggs SEW, Arnold R, Bisht V, et al. COVID-19 prevalence and mortality in patients with cancer and the effect of primary tumour subtype and patient demographics: a prospective cohort study. Lancet Oncol 2020;21(10):1309-16. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30442-3
https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30... . Estudos apontam os efeitos da pandemia sobre a assistência de pacientes com câncer, tendo como consequência o aumento da mortalidade da doença55 Sharpless NE. COVID-19 and cancer. Science 2020;368(6497):1290. https://doi.org/10.1126/science.abd3377
https://doi.org/10.1126/science.abd3377... ,1818 Disis ML. Oncology and COVID-19. JAMA 2020;324(12):1141-2. https://doi.org/10.1001/jama.2020.16945
https://doi.org/10.1001/jama.2020.16945... .
Em relação às características sociodemográficas, no presente estudo, observou-se maior chance de óbito hospitalar entre os pacientes idosos (com 60 ou mais de idade), semelhantemente aos resultados descritos para a população geral, no Rio de Janeiro e Espírito Santo1919 Escosteguy CC, Eleuterio TA, Pereira AGL, Marques MRVE, Brandão AD, Batista JPM. COVID-19: estudo seccional de casos suspeitos internados em um hospital federal do Rio de Janeiro e fatores associados ao óbito hospitalar. Epidemiol Serv Saude 2021;30(1):e2020750. https://doi.org/10.1590/S1679-49742021000100023
https://doi.org/10.1590/S1679-4974202100... ,2020 Maciel EL, Jabor P, Goncalves Júnior E, Tristão-Sá R, Lima RCD, Reis-Santos B, et al. Fatores associados ao óbito hospitalar por COVID-19 no Espírito Santo, 2020. Epidemiol Serv Saúde 2020;29(4):e2020413. https://doi.org/10.1590/s1679-49742020000400022
https://doi.org/10.1590/s1679-4974202000... , e entre pacientes com câncer de ambos os sexos internados, no Reino Unido2121 Lee LYW, Cazier JB, Angelis V, Arnold R, Bisht V, Campton NA, et al. COVID-19 mortality in patients with cancer on chemotherapy or other anticancer treatments: a prospective cohort study. Lancet 2020;395(10241):1919-26. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31173-9
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... . No entanto, em estudo com mulheres com câncer, em Pernambuco, essa associação não foi observada1010 Galindo RJSC, Andrade LB, Sena GR, Nogueira LRM, Lima TPF, Lima JTO, et al. Mulheres com câncer e COVID-19: uma análise da letalidade e aspectos clínicos em Pernambuco. Rev Bras Saude Mater Infant 2021;21(Supl 1):S167-75. https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S100008
https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S... . Quanto ao sexo, apesar de ser verificada maior proporção de óbitos entre os homens, essa associação não se manteve significativa no modelo ajustado, o que foi diferente em alguns estudos, como o de Gupta et al.1515 Gupta S, Hayek SS, Wang W, Chan L, Mathews KS, Melamed ML, et al. Factors associated with death in critically ill patients with coronavirus disease 2019 in the US. JAMA Intern Med 2020;180(11):1436-47. https://doi.org/10.1001/jamainternmed.2020.3596
https://doi.org/10.1001/jamainternmed.20... e Lee et al.2121 Lee LYW, Cazier JB, Angelis V, Arnold R, Bisht V, Campton NA, et al. COVID-19 mortality in patients with cancer on chemotherapy or other anticancer treatments: a prospective cohort study. Lancet 2020;395(10241):1919-26. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31173-9
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31... , que encontraram maior chance de óbito por COVID-19 no sexo masculino, após ajuste, na população geral e entre pacientes com câncer, respectivamente.
Os meses de internação anteriores à vacinação contra o SARS-CoV-2 se mostraram associados à maior chance de óbito entre os pacientes com câncer hospitalizados, o que pode ser explicado não só pela maior susceptibilidade desse grupo de risco, ainda sem o imunizante, como também pela inadequada assistência dos serviços de saúde nos períodos de elevada demanda pelos casos de COVID-19. Assim como muitos estados brasileiros, Mato Grosso passou por períodos de colapso dos serviços de saúde com pacientes em fila de espera para acessar leitos de UTI. Entre junho e julho de 2020 e de fevereiro a maio de 2021, a taxa de ocupação dos leitos pactuados permaneceu superior a 90%, como apontado em diversas publicações do Observatório COVID-19, da Fundação Oswaldo Cruz2222 Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz. Observatório Covid-19 – Boletim Extraordinário de 30 de julho de 2021. Available at: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/boletim_covid_2021_extraordinario_30dejunho.pdf
https://portal.fiocruz.br/sites/portal.f... , e do Painel COVID-19, da SES-MT2323 Governo do Estado de Mato Grosso. Secretaria do Estado de Saúde. Informes. Painel informativo Covid-19. Available at: http://www.saude.mt.gov.br/informe/584
http://www.saude.mt.gov.br/informe/584... . O mesmo padrão foi observado em análise das primeiras 250 mil internações por COVID-19 no Brasil, sendo observada maior mortalidade hospitalar durante semanas com alta taxa de internações hospitalares, sobretudo nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul2424 Ranzani OT, Bastos LSL, Gelli JGM, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, et al. Characterisation of the first 250,000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil : a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med 2021;9(4):407-18. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30560-9
https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30... .
A presença de doença pulmonar crônica foi positivamente associada ao óbito por COVID-19 no presente estudo. A predisposição de pacientes com câncer à maior incidência de doenças cardiovasculares e pulmonares pode afetar a gravidade da infecção por coronavírus1818 Disis ML. Oncology and COVID-19. JAMA 2020;324(12):1141-2. https://doi.org/10.1001/jama.2020.16945
https://doi.org/10.1001/jama.2020.16945... . Entre pacientes internados no Rio de Janeiro1919 Escosteguy CC, Eleuterio TA, Pereira AGL, Marques MRVE, Brandão AD, Batista JPM. COVID-19: estudo seccional de casos suspeitos internados em um hospital federal do Rio de Janeiro e fatores associados ao óbito hospitalar. Epidemiol Serv Saude 2021;30(1):e2020750. https://doi.org/10.1590/S1679-49742021000100023
https://doi.org/10.1590/S1679-4974202100... e no Espírito Santo2020 Maciel EL, Jabor P, Goncalves Júnior E, Tristão-Sá R, Lima RCD, Reis-Santos B, et al. Fatores associados ao óbito hospitalar por COVID-19 no Espírito Santo, 2020. Epidemiol Serv Saúde 2020;29(4):e2020413. https://doi.org/10.1590/s1679-49742020000400022
https://doi.org/10.1590/s1679-4974202000... , a presença de comorbidade foi positivamente associada à mortalidade hospitalar por COVID-19, sendo as mais prevalentes doenças cardiovasculares e diabetes. Em Pernambuco, estudo que avaliou a letalidade da COVID-19 entre mulheres com câncer mostrou que cerca de 40% apresentavam outras comorbidades, destacando-se doenças cardiovasculares (27,9%) e diabetes (13,2%)1010 Galindo RJSC, Andrade LB, Sena GR, Nogueira LRM, Lima TPF, Lima JTO, et al. Mulheres com câncer e COVID-19: uma análise da letalidade e aspectos clínicos em Pernambuco. Rev Bras Saude Mater Infant 2021;21(Supl 1):S167-75. https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S100008
https://doi.org/10.1590/1806-9304202100S... .
Foi observada maior chance de óbito para pacientes internados diretamente em leitos de UTI ou ventilação mecânica invasiva. Altas taxas de mortalidade estão descritas em estudos internacionais relacionando-as com a internação em UTI e o uso de ventilação mecânica2525 Auld SC, Caridi-Scheible M, Blum JM, Robichaux C, Kraft C, Jacob JT, et al. ICU and ventilator mortality among critically ill adults with coronavirus disease 2019. Crit Care Med 2020;48(9):e799-e804. https://doi.org/10.1097/CCM.0000000000004457
https://doi.org/10.1097/CCM.000000000000... ,2626 Clark A, Jit M, Warren-Gash C, Guthrie B, Wang HHX, Mercer SW, et al. Global, regional, and national estimates of the population at increased risk of severe COVID-19 due to underlying health conditions in 2020: a modelling study. Lancet Glob Health 2020;8(8):e1003-e1017. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30264-3
https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30... , fato este que expressa a evolução clínica para as formas graves da doença com colapso respiratório. No Brasil, a admissão hospitalar já em leitos de UTI foi maior nas regiões Norte e Sudeste, quando comparadas à Região Centro-Oeste, sendo observada a mortalidade geral de 59% dos pacientes admitidos em leitos de UTI e 80% dos que precisaram de ventilação mecânica2525 Auld SC, Caridi-Scheible M, Blum JM, Robichaux C, Kraft C, Jacob JT, et al. ICU and ventilator mortality among critically ill adults with coronavirus disease 2019. Crit Care Med 2020;48(9):e799-e804. https://doi.org/10.1097/CCM.0000000000004457
https://doi.org/10.1097/CCM.000000000000... .
Apesar de as macrorregiões de residência não permanecerem associadas à chance de morte entre os pacientes com câncer, cabe destacar a heterogeneidade da rede de assistência aos casos graves de COVID-19 em Mato Grosso, que pode ser uma barreira considerável para o acesso equitativo aos cuidados de saúde para os pacientes de maneira geral. Todas as macrorregiões do estado apresentaram leitos de UTI exclusivos para atendimento de casos graves de Covid-10, entretanto mais da metade dos leitos se situa na região metropolitana e, em meados de 2020, apenas nove entre os 141 municípios possuíam esse tipo de leito pactuado2727 Muraro AP, Santos ES, Oliveira LR, Ceconello MS, Silva RCR. Demanda por UTIs em Mato Grosso em decorrência da pandemia da Covid-19: situação e projeção para as macrorregiões de saúde. Nota Técnica. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso; 2020. Available at: https://cms.ufmt.br/files/galleries/50/COVID/saude%20coletiva/NotaTecnica-DemandaporUTIsemMatoGrossoCovid-19.pdf
https://cms.ufmt.br/files/galleries/50/C... , passando esse número para 19 em junho de 2021, segundo os boletins do estado2323 Governo do Estado de Mato Grosso. Secretaria do Estado de Saúde. Informes. Painel informativo Covid-19. Available at: http://www.saude.mt.gov.br/informe/584
http://www.saude.mt.gov.br/informe/584... . Na Região Centro-Oeste, 52% dos leitos de UTI se concentram nas capitais2424 Ranzani OT, Bastos LSL, Gelli JGM, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, et al. Characterisation of the first 250,000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil : a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med 2021;9(4):407-18. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30560-9
https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30... .
Não obstante a utilização de fonte oficial de dados secundários da SES-MT, que se reveste de grande utilidade para a descrição epidemiológica de casos, internações e óbitos por COVID-19 em Mato Grosso, deve-se ressaltar entre as limitações do estudo a ausência de variáveis socioeconômicas, como escolaridade e renda, e relacionadas aos aspectos clínicos, como o tempo de internação em cada tipo de leito e o uso de ventilação mecânica.
Além disso, apesar da relevância da identificação das principais comorbidades entre os pacientes internados por COVID-19 em Mato Grosso, os dados disponibilizados não incluem detalhes sobre o câncer, como cânceres incidentes ou recorrentes, tipologia, estadiamento e tratamento. A exemplo do estudo realizado por Liang et al.2828 Liang W, Guan W, Chen R, Wang W, Li J, Xu K, et al. Cancer patients in SARS-CoV-2 infection: a nationwide analysis in China. Lancet Oncol 2020;21(3):335-7. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30096-6
https://doi.org/10.1016/S1470-2045(20)30... na China, de representatividade nacional, que identificou câncer e outras comorbidades entre os pacientes chineses internados por COVID-19, o tipo câncer de pulmão foi o mais frequente, no entanto não apresentou maior probabilidade de eventos graves do que os outros tipos de câncer, sendo a idade avançada o único fator de risco associado.
Vos et al.2929 Vos D, Smith DA, Martin S, Tirumani SH, Ramaiya NH. COVID-19 infection in the cancer population: a study of emergency department imaging utilization and findings. Emerg Radiol 2021;28(6):1073-81. https://doi.org/10.1007/s10140-021-01983-6
https://doi.org/10.1007/s10140-021-01983... verificaram que, embora haja preocupação com as complicações relacionadas ao tratamento do câncer, achados de imagem ou hospitalizações em pacientes com câncer e COVID-19 estão predominantemente relacionados à infecção por SARS-CoV-2, em vez do histórico de câncer ou status de terapia anticâncer. Cabe ressaltar, também, a qualidade dos dados do Sistema IndicaSUS para pacientes internados. As variáveis utilizadas foram classificadas, conforme proposto por Romero e Cunha3030 Romero DE, Cunha CB. Avaliação da qualidade das variáveis sócio-econômicas e demográficas dos óbitos de crianças menores de um ano registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Brasil (1996/2001). Cad Saúde Pública 2006;22(3):673-84. http://doi.org/10.1590/S0102-311X2006000300022
http://doi.org/10.1590/S0102-311X2006000... , para sistemas de informação em saúde e apresentaram excelente qualidade, com menos de 5% de incompletude, exceto para a variável raça/cor, que apresentou 17,9%, sendo classificada como regular. Apesar do aprimoramento dos sistemas de informação em saúde, o preenchimento da variável raça/cor/etnia ainda é de baixa qualidade3131 Braz RM, Oliveira PTR, Reis AT, Machado NMS. Avaliação da completude da variável raça/cor nos sistemas nacionais de informação em saúde para aferição da equidade étnico-racial em indicadores usados pelo Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde. Saúde Debate 2013,37(99):554-62..
Este estudo identificou fatores demográficos e clínicos associados à morte por COVID-19 em pacientes com câncer que, além de poucos explorados na literatura, podem contribuir com a melhoria do cuidado a esse tipo de paciente durante a pandemia, que persiste. Interrupções do tratamento, modificações ou diagnósticos de câncer atrasados resultantes do isolamento social imposto pela pandemia de COVID-19 exigirão avaliação adicional para determinar a consequência clínica, se houver, para pacientes com câncer. Para mitigar o impacto esperado da pandemia de COVID-19 nesses pacientes, serão necessárias diferentes estratégias para gerir o acúmulo nos serviços de diagnóstico e tratamento de pessoas com câncer no estado.
- Fonte de financiamento: nenhuma.
Errata
https://doi.org/10.1590/1980-549720220020.supl.1.1erratumNo artigo "Fatores associados ao óbito entre pacientes com câncer internados por COVID-19 em Mato Grosso, Brasil", DOI: https://doi.org/10.1590/1980-549720220020.supl.1.1, publicado no periódico Rev Bras Epidemiol 2022; 25: e220020.supl.1:Na página 1 foi incluído:EDITORAS ASSOCIADAS: Elisete Duarte http://orcid.org/0000-0002-0501-0190, Gulnar Azevedo e Silva http://orcid.org/0000-0001-8734-2799EDITORA CIENTÍFICA: Cassia Maria Buchalla http://orcid.org/0000-0001-5169-5533
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à SES-MT a disponibilização dos dados, não identificados, dos pacientes internados registrados no IndicaSUS.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
24 Jun 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
13 Ago 2021 - Revisado
21 Dez 2021 - Aceito
10 Jan 2022 - Preprint
18 Abr 2022