Acesso, utilização e qualidade dos serviços de saúde após um desastre: resultados do Projeto Saúde Brumadinho

James Macinko Josélia Oliveira Araújo Firmo Mary Anne Nascimento-Souza Juliana Vaz de Melo Mambrini Sérgio Viana Peixoto Sobre os autores

RESUMO

Objetivo:

Em janeiro de 2019, uma barragem da mina Córrego do Feijão sofreu um rompimento catastrófico que matou 270 pessoas e causou danos extensos. Não se sabe como a exposição a tal desastre pode afetar a utilização dos serviços de saúde.

Métodos:

Avaliamos os dados do Projeto Saúde Brumadinho, estudo de coorte que incluiu pessoas expostas ao rompimento da barragem e dois grupos de comparação: pessoas não expostas à mineração ou ao desastre e pessoas de uma comunidade mineira, mas não expostas ao desastre. Os desfechos avaliados foram consulta médica ou hospitalização no último ano, fonte habitual de cuidados, pressão arterial e glicemia verificadas e haver recebido vacinas recomendadas, entre adultos de 18 anos ou mais. A regressão de Poisson robusta ponderada foi usada para avaliar as diferenças entre os expostos e os dois grupos de comparação, controlando por fatores de confusão.

Resultados:

indivíduos expostos tiveram uma razão de prevalência (RP) 15% maior de relatar uma consulta médica do que os não expostos. Para hospitalização e medidas de pressão arterial e glicemia, não houve diferença significativa entre os grupos. O grupo exposto teve RP 24% maior, e a comunidade mineira RP 143% maior de haver recebido imunizações preventivas em relação ao grupo não exposto.

Conclusão:

Houve diferenças na utilização dos serviços de saúde entre os indivíduos expostos ao rompimento da barragem. O monitoramento contínuo da situação é necessário, pois as consequências de um evento tão traumático podem levar um tempo considerável para se manifestar.

Palavras-chave:
Desastre; Serviços de saúde; Mineração; Coorte

INTRODUÇÃO

Em 25 de janeiro de 2019, uma barragem de rejeitos (utilizada para armazenar subprodutos das operações de mineração) da mina Córrego do Feijão sofreu um rompimento catastrófico e liberou um fluxo de lama de cerca de 13 milhões de metros cúbicos em Brumadinho, município localizado na porção centro-sul do estado de Minas Gerais (MG), Brasil. Duzentas e setenta pessoas morreram como resultado do colapso da barragem, o que também causou extensos danos materiais e ambientais11 Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, Silva MA, Xavier DR. From Samarco in Mariana to Vale in Brumadinho: mining dam disasters and Public Health. Cad Saude Publica 2019; 35(5): e00052519. https://doi.org/10.1590/0102-311X00052519
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.

Os potenciais efeitos de tal desastre para a saúde, além de mortes e ferimentos imediatos, são inúmeros. Por isso, o Projeto Saúde Brumadinho, estudo de coorte prospectivo coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz, em MG e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro foi desenvolvido para avaliar as condições de vida e saúde dos moradores de Brumadinho. O desenho da coorte, descrito abaixo e no site do projeto http://www.minas.fiocruz.br/saudebrumadinho, incluiu aqueles diretamente afetados pelo rompimento da barragem e dois grupos de comparação: não afetados pelo rompimento da barragem ou pela atividade de mineração e que não foram expostos ao desastre, mas viviam em uma área com atividade de mineração22 Peixoto SV. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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Desastres de diversos tipos, além de danos imediatos, levam a importantes alterações na morbimortalidade, como o aumento potencial das taxas de doenças transmissíveis ou transmitidas por vetores, principalmente devido a mudanças ambientais, e aumento das doenças crônicas não transmissíveis, como as cardiovasculares, distúrbios respiratórios e mentais. Essas consequências podem aumentar a necessidade de uma gama de serviços de saúde, muitas vezes resultando em maiores taxas de consultas médicas e internações11 Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, Silva MA, Xavier DR. From Samarco in Mariana to Vale in Brumadinho: mining dam disasters and Public Health. Cad Saude Publica 2019; 35(5): e00052519. https://doi.org/10.1590/0102-311X00052519
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,33 Freitas CM, Barcellos C, Heller L, Luz ZMP. Mining dam disasters: lessons from the past for reducing current and future risks. Epidemiol Serv Saude 2019; 28(1): e20180120. https://doi.org/10.5123/S1679-49742019000100020
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. Como os efeitos da exposição a um evento tão traumático e potencialmente fatal podem levar tempo para se manifestar, é importante monitorar as necessidades de saúde das populações afetadas e fornecer suporte adicional, caso os serviços de saúde existentes não possam responder ao aumento da demanda44 Noal DS, Rabelo IVM, Chachamovich E. The mental health impact on individuals affected by the Vale dam rupture. Cad Saude Publica 2019; 35(5): e00048419. https://doi.org/10.1590/0102-311X00048419
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.

O objetivo deste estudo foi descrever os resultados dos participantes adultos da linha de base do Projeto Saúde Brumadinho, no que se refere aos padrões de acesso e utilização de serviços de saúde, comparar esses padrões com os do estado de MG e do Brasil e testar se os diretamente afetados pelo rompimento da barragem diferem no uso de serviços de saúde daqueles que não foram diretamente afetados.

MÉTODOS

Dados e desenho de amostragem

O plano amostral da pesquisa foi elaborado para representar a população residente no município de Brumadinho, com idade igual ou superior a 12 anos. Além disso, a amostra teve por objetivo obter informações sobre os indivíduos diretamente afetados pelo rompimento da barragem, bem como sobre os não diretamente afetados pelo rompimento da barragem ou atividade de mineração e uma amostra de indivíduos não expostos ao desastre, mas residentes em uma área com atividade de mineração.

O plano amostral incorporou a estratificação da população por setor censitário, conforme estabelecido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019. Cento e sete setores censitários foram amostrados. Nas regiões afetadas pelo desastre (setores censitários) todos os domicílios foram incluídos. Além disso, moradores da região de Córrego do Feijão na época do desastre, mas que não moravam mais nessa localidade, também foram incluídos, pois muitas propriedades foram destruídas, vendidas ou abandonadas. Nas áreas consideradas não afetadas diretamente, a amostra estratificada incluiu sete domicílios (unidades primárias de amostragem) que foram selecionados aleatoriamente por amostragem inversa simples. Para cada domicílio selecionado, foram entrevistados todos os moradores com idade igual ou superior a 12 anos que consentiram em participar da pesquisa. Um total de 3.080 pessoas (2.805 adultos com 18 anos ou mais) foram entrevistados, com uma taxa de resposta geral de 86,4%.

Para fins de comparação, foi utilizada a versão mais recente (2019) da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde. A PNS utilizou um desenho de amostra complexa em três estágios. Na primeira etapa, as unidades primárias de amostragem (UPA), representadas por setores censitários, foram selecionadas aleatoriamente a partir de uma amostra mestra de setores censitários estratificados por região geográfica e localização (urbana/rural). Na segunda etapa, os domicílios foram selecionados a partir das UPAs. Por fim, os entrevistados adultos foram selecionados aleatoriamente nos domicílios para entrevistas presenciais mais detalhadas, realizadas por meio de questionários estruturados que abrangeram uma série de questões demográficas, socioeconômicas e relacionadas à saúde55 Stopa SR, Szwarcwald CL, Oliveira MM, Gouvea ECDP, Vieira MLFP, Freitas MPS, et al. National Health Survey 2019: history, methods and perspectives. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(5): e2020315. https://doi.org/10.1590/S1679-49742020000500004
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,66 Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira MLFP, Conde WL, Souza Júnior PRB, et al. National Health Survey in Brazil: design and methodology of application. Cien Saude Colet 2014; 19(2): 333-42. https://doi.org/10.1590/1413-81232014192.14072012
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. O desenho amostral da PNS 2019 a torna representativa nos níveis estaduais (UF), regional e nacional.

Declaração de ética

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Brasil aprovou a PNS-2019 em agosto de 2019 (n° 3529376) e o Projeto Saúde Brumadinho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz, MG, em 07 de fevereiro de 2020 (CAAE 20814719.5.0000.5091). Todos os entrevistados forneceram consentimento informado para participar do estudo.

Desfechos

Esta análise incluiu apenas respondentes adultos com 18 anos ou mais. Os desfechos avaliados incluíram:

  1. Se o indivíduo consultou algum médico nos últimos 12 meses;

  2. Qualquer hospitalização por pelo menos 24 horas nos últimos 12 meses;

  3. Se a pessoa tem uma fonte habitual de cuidados médicos a que recorre sempre que tem um problema de saúde ou precisa de aconselhamento médico;

  4. Se o indivíduo teve sua pressão arterial e glicemia verificadas nos últimos 12 meses; e

  5. Se o indivíduo tomou nos últimos 12 meses vacinas para febre amarela, gripe ou coronavírus.

Para comparação com a PNS 2019, também analisamos o número médio de consultas médicas nos últimos 12 meses e uma série de perguntas sobre acesso e qualidade da atenção primária, incluindo se os participantes concordavam que o médico era de fácil acesso por telefone, se era fácil entrar em contato com o médico, se o paciente pode sempre consultar o mesmo médico, se o médico sabe sobre os problemas de saúde do paciente e se é fácil explicar os problemas de saúde ao médico. Essas questões foram operacionalizadas como variáveis dicotômicas (não/sim), recodificando as respostas sempre/na maioria das vezes como 1 (sim) e raramente/nunca como 0 (não).

Variável de exposição

A variável de exposição incluiu três grupos:

  1. Afetados diretamente pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, denominados “grupo exposto”;

  2. Residentes em área com atividade minerária denominada “comunidade com mineração ativa”; e

  3. Não diretamente afetados pelo rompimento da barragem ou atividade de mineração, aqui referidos como “grupo não exposto”.

Variáveis de ajuste

Seguindo a estrutura conceitual de acesso à saúde de Anderson77 Andersen RM. Revisiting the behavioral model and access to medical care: does it matter? J Health Soc Behav 1995; 36(1): 1-10. PMID: 7738325, as análises foram ajustadas por fatores predisponentes, facilitadores e fatores de necessidade que influenciam o acesso e as necessidades de saúde entre os três grupos de exposição. Os fatores predisponentes incluíram faixas etárias de 10 anos, sexo, cor da pele autorreferida (branca vs. outras) e escolaridade (Ensino Fundamental 1/Primário ou menos vs. Ensino Fundamental 2/Ginásio ou mais). Os fatores facilitadores incluíram situação conjugal (com companheiro vs. solteiro), riqueza do domicílio (construída pela extração do primeiro fator da análise de componentes principais de uma lista de itens do domicílio e dividida em tercis), e enquanto todos os residentes no município são abrangidos pela Estratégia Saúde da Família (ESF), alguns tinham planos privados de saúde. As necessidades de saúde foram avaliadas extraindo o primeiro fator da análise de componentes principais de uma lista de diagnósticos médicos autorrelatados de condições crônicas comuns e fatores de risco (colesterol alto, infarto, angina, insuficiência cardíaca, acidente vascular cerebral, asma, bronquite, artrite, gastrite, doença hepática, doença renal, epilepsia, problemas de coluna, câncer, hipertensão, diabetes, depressão) e autoavaliação de saúde ruim/muito ruim sendo posteriormente divididas em tercis, representando aqueles com necessidades de saúde baixas (com menor número de problemas de saúde), médias e elevadas (os mais doentes). O fator extraído foi o único componente com autovalor de 1 ou mais.

Análise estatística

Descreveu-se proporções/médias e intervalos de confiança de 95% (IC) para os desfechos e variáveis de ajuste, estratificados pelas categorias da variável de exposição. Dado o desenho complexo e ponderado da pesquisa, utilizou-se testes de Qui-quadrado com correção de Rao-Scott e testes t para avaliar as diferenças entre os três grupos de exposição e testes de Wald ajustados para teste de hipótese88 Heeringa SG, West BT, Berglund PA. Applied survey data analysis. 2nd ed. Boca Raton: CRC Press; 2017.. Em seguida, estimou-se associações entre as características sociodemográficas e os desfechos usando a regressão de Poisson robusta, usando os fatores e ponderação da amostra, para obter razões de prevalência (RP) ajustadas. Finalmente, gerou-se probabilidades preditas após análises de regressão probit multivariável e os resultados foram plotados para visualizar as interações entre faixa etária, sexo e a consulta médica nos últimos 12 meses. Para comparar os dados da PNS 2019 com os dados do Projeto Saúde Brumadinho, cada conjunto de dados foi analisado separadamente. Caso não houvesse sobreposição entre os IC 95% das estimativas feitas nas mesmas variáveis nas duas pesquisas, poderíamos dizer que a diferença é estatisticamente significativa. No entanto, notamos que ainda é possível que as estimativas entre os dois conjuntos de dados sejam estatisticamente diferentes, mesmo que seus ICs de 95% se sobreponham ligeiramente.

RESULTADOS

A Tabela 1 descreve as características dos participantes do estudo estratificadas pela variável de exposição. Algumas características demográficas, educacionais e relacionadas à saúde diferiram entre os três grupos. A média de idade dos não expostos foi mais alta, quase 49 anos. Houve uma proporção maior de mulheres no grupo não exposto e uma proporção significativamente maior daqueles que descreveram sua cor da pele como branca, quase o dobro daqueles da comunidade mineira. O grupo não exposto apresentou maior proporção de indivíduos que concluíram o ensino médio do que o grupo de expostos ou de comunidade mineira. Quanto à presença de diferentes bens domésticos (riqueza), não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos. Os três grupos diferiram significativamente em termos de suas necessidades de saúde. Em relação ao uso de serviços de saúde, aqueles do grupo exposto eram mais propensos do que os outros dois grupos a ter realizado uma consulta médica nos últimos 12 meses. Não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos em relação à hospitalização no último ano. Houve grandes diferenças em termos de ter uma fonte habitual de saúde, com a comunidade mineira relatando a proporção mais alta (quase 80%). Em média, cerca de 39% de todos os participantes foram imunizados para influenza, febre amarela e coronavírus no ano passado. No entanto, essa proporção chegou a 71% na comunidade mineira. Quase 80% dos participantes tiveram sua pressão arterial verificada no ano passado e cerca de 56% dos participantes se lembraram de ter sua glicemia avaliada, no entanto, nenhuma dessas medidas diferiu entre os grupos. Por fim, a cobertura por plano de saúde privado também foi significativamente diferente entre os grupos.

Tabela 1
Características da amostra, por status de exposição. Projeto Saúde Brumadinho, 2021.

A Tabela 1 do material suplementar fornece contexto adicional para os principais indicadores avaliados na população de Brumadinho. Em geral, a consulta médica no ano passado foi quase 10% menor em Brumadinho do que no estado de MG ou no Brasil como um todo. No entanto, para o número médio de consultas médicas nos últimos 12 meses, os IC 95% para as três áreas se sobrepõem. As médias de hospitalização foram semelhantes nas três áreas. A cobertura pela ESF (100%) e por plano privado de saúde foi maior em Brumadinho. As estimativas pontuais de medidas de atendimento clínico, como pressão arterial e glicemia nos últimos 12 meses, foram ligeiramente menores em Brumadinho em comparação ao estado e o país como um todo. Os entrevistados também apresentaram prevalência ligeiramente mais baixa de ter fonte habitual de atendimento médico dentro do município. No geral, os moradores de Brumadinho relataram um acesso um pouco melhor à atenção primária e avaliaram as habilidades de comunicação de seu médico (meu médico sabe sobre meus problemas de saúde, e é fácil explicar problemas para meu médico) como superiores aos de MG ou do Brasil como todo.

Como a utilização de serviços de saúde depende de vários fatores, incluindo o nível de necessidades de saúde e idade, a Figura 1 mostra a probabilidade predita ajustada de ter uma consulta médica nos últimos 12 meses e a compara com as necessidades de saúde baixas, médias e altas por faixa etária no município de Brumadinho e no estado de MG. Para indivíduos com necessidades de saúde altas e médias, a probabilidade de ter uma consulta médica nos últimos 12 anos aumentou ligeiramente com a idade, mas como pode ser visto na Tabela 2 do material suplementar, os IC de 95% para essas estimativas se sobrepõem. Para os indivíduos residentes em Brumadinho que relatam baixas necessidades de saúde, a probabilidade de ter tido uma consulta médica foi aproximadamente 20% menor do que a observada em MG, e conforme apresentado na Tabela 2 (material suplementar), essa diferença foi significativa para a maioria das faixas etárias.

Figura 1
Probabilidade predita de ter consultado algum médico nos últimos 12 meses, por faixa etária, localização geográfica e necessidades de saúde. Projeto Saúde Brumadinho, 2021.
Tabela 2
Fatores associados à utilização e qualidade dos serviços de saúde.

A Tabela 2 mostra os resultados de uma análise de regressão multivariável para explorar ainda mais as diferenças na utilização de serviços de saúde e na qualidade clínica do atendimento entre os moradores de Brumadinho, com base na exposição ou não ao rompimento da barragem. Para consultas médicas, o grupo exposto teve uma RP cerca de 15% maior de ter uma consulta médica nos últimos 12 meses do que aqueles que não foram expostos.

Os indivíduos da comunidade mineira tiveram uma RP igualmente elevada de consultas médicas. Mulheres, indivíduos de maior poder aquisitivo, com maiores necessidades de saúde e com plano de saúde privado também tiveram maior RP de ter uma consulta médica. Para internação no último ano, não houve diferença significativa entre os grupos comparados. No entanto, a comunidade mineira teve uma RP quase 50% maior de internação no ano passado em comparação com o grupo não exposto. O único outro preditor significativo de hospitalização foi ter altas necessidades de saúde. As pessoas do grupo exposto relataram uma RP 29% menor de ter uma fonte habitual de cuidados do que as do grupo não exposto, enquanto as da comunidade mineira tiveram uma probabilidade maior de relatar uma fonte habitual de cuidados médicos do que o grupo controle. Ter uma fonte habitual de atendimento médico foi maior entre os mais velhos, as mulheres, os que se identificam como brancos, os com nível superior, os com altas necessidades de saúde e os que possuem plano de saúde privado. Relatos de verificação de pressão arterial no ano passado não diferiram entre os grupos de expostos e não expostos. No entanto, a comunidade mineira teve uma RP 11% maior, aproximadamente, de relatar uma verificação recente de pressão arterial. Essa proporção aumentou com a idade e as necessidades de saúde e para aqueles com plano de saúde privado. Não existem diferenças entre os grupos em termos de avaliação da glicemia, uma vez que a idade e as necessidades de saúde são controladas. Por fim, o grupo exposto teve uma RP 24% maior e os da comunidade mineira tiveram uma RP 143% maior de terem recebido vacinas no ano passado do que o grupo não exposto. A cobertura vacinal aumentou com a idade, com o maior poder aquisitivo e com o aumento das necessidades de saúde e para quem tinha plano de saúde privado.

A Figura 2 mostra a probabilidade predita de ter consultado algum médico nos últimos 12 meses por status de exposição, faixa etária e sexo, entre os três grupos de exposição. Esses números foram ajustados para todas as covariáveis apresentadas na Tabela 2 e estratificados por sexo. Tanto para homens quanto para mulheres, a probabilidade de ter uma consulta médica no último ano aumentou com a idade. Aqueles residentes em comunidade não exposta, uma vez que outros fatores são controlados estatisticamente, tiveram as menores probabilidades de terem consultado um médico por idade e sexo. Aqueles pertencentes às comunidades expostas relataram a maior probabilidade, em todas as idades, tanto para homens quanto para mulheres, enquanto àqueles da comunidade mineira tiveram probabilidades preditas intermediárias de ter consultado algum médico. A diferença entre os grupos de expostos e não expostos foi maior entre os homens, principalmente nas faixas etárias mais jovens.

Figura 2
Probabilidade predita de ter consultado algum médico nos últimos 12 meses, por status de exposição, faixa etária e sexo. Projeto Saúde Brumadinho, 2021.

DISCUSSÃO

O rompimento da barragem de rejeitos da mina Córrego do Feijão resultou em grande perda de vidas humanas e considerável destruição de propriedades e do meio ambiente. Mas as consequências em longo prazo de ser exposto a tal desastre ainda são desconhecidas. O Projeto Saúde Brumadinho busca monitorar a saúde e o bem-estar das pessoas expostas ao desastre usando um desenho de pesquisa que incluiu dois grupos de comparação diferentes. O estudo descobriu que os três grupos examinados aqui difeririam em importantes características demográficas, educacionais e relacionadas à saúde. Cada um desses fatores está associado a diferentes tipos de utilização de saúde e pode ajudar a explicar algumas das diferenças observadas no nível de acesso e utilização de saúde entre os três grupos.

Para o grupo de indivíduos expostos ao desastre, observamos consultas médicas acima do esperado, mesmo após ajuste por confundidores. Isso chama a atenção porque o grupo exposto tem menor prevalência de fonte habitual de cuidados, menor cobertura por planos privados de saúde e menor nível de escolaridade —isso sugere que suas taxas de utilização de saúde deveriam ser menores do que a do grupo controle, considerado não exposto. Da mesma forma, expostos à mineração, apresentaram níveis mais altos de consultas médicas e hospitalizações do que os não expostos, embora a comunidade mineira exibisse menos fatores predisponentes e facilitadores do que o grupo de controle não exposto. Em conjunto, isso sugere que o grupo exposto pode estar utilizando os cuidados de saúde a uma taxa mais alta devido as necessidades de saúde diferentes ou mais graves. Para a comunidade com mineração (não exposta), essa diferença pode ser devido aos serviços adicionais de saúde fornecidos (ou facilitados) pelas empresas de mineração a seus funcionários.

Estudos sobre a utilização de serviços de saúde após desastres apresentam resultados divergentes99 Iqbal U, Li YCJ, Tang KP, Chien HC, Yang YT, Hsu YHE. A positive legacy of trauma? A study on the impact of natural disasters on medical utilization. Int J Qual Health Care 2019; 31(1): 64-9. https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy130
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1111 Boscarino JA, Adams RE, Figley CR. Mental health service use 1-year after the World Trade Center disaster: implications for mental health care. Gen Hosp Psychiatry 2004; 26(5): 346-58. https://doi.org/10.1016/j.genhosppsych.2004.05.001
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. O uso de serviços de saúde mental e de substâncias quase dobrou após a enchente de 2016 na capital da Louisiana. Além disso, os custos desses cuidados médicos aumentaram de 8 a 10%, o que demonstra um ônus econômico adicional para os afetados1010 Phillippi SW, Beiter K, Thomas CL, Sugarman OK, Wennerstrom A, Wells KB, et al. Medicaid utilization before and after a natural disaster in the 2016 Baton Rouge-Area flood. Am J Public Health 2019; 109(S4): S316-S321. https://doi.org/10.2105/AJPH.2019.305193
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. A necessidade de serviços de saúde pode não se limitar aos diretamente afetados. Em Taiwan, após o terremoto de 1999, os sobreviventes que perderam familiares apresentaram maior uso de serviços de saúde em comparação aos sobreviventes não enlutados, mas essa diferença deixou de ser observada após um ano99 Iqbal U, Li YCJ, Tang KP, Chien HC, Yang YT, Hsu YHE. A positive legacy of trauma? A study on the impact of natural disasters on medical utilization. Int J Qual Health Care 2019; 31(1): 64-9. https://doi.org/10.1093/intqhc/mzy130
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. O contexto também é importante; por exemplo, na cidade de Nova York, não houve aumento da demanda por serviços de saúde mental na população geral após o desastre do World Trade Center, mas o número total de consultas entre os pacientes atuais aumentou1111 Boscarino JA, Adams RE, Figley CR. Mental health service use 1-year after the World Trade Center disaster: implications for mental health care. Gen Hosp Psychiatry 2004; 26(5): 346-58. https://doi.org/10.1016/j.genhosppsych.2004.05.001
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. Assim, os planejadores de saúde devem monitorar a necessidade de diferentes tipos de serviços de saúde entre os afetados direta e indiretamente por desastres, entendendo que essas necessidades podem evoluir ao longo do tempo.

Quando comparados ao estado de MG, moradores de Brumadinho foram mais propensos a relatar que podem entrar em contato com seu médico por telefone, que foi fácil entrar em contato com seu médico, que acreditam que seu médico sabe sobre seus problemas de saúde e que consideram fácil explicar os problemas ao médico. Esses fatores têm sido associados a uma orientação mais forte da atenção primária à saúde (APS), como tem sido observado com a ESF1212 Macinko J, Harris MJ. Brazil's family health strategy––delivering community-based primary care in a universal health system. N Engl J Med 2015; 372(23): 2177-81. https://doi.org/10.1056/NEJMp1501140
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. Além disso, o maior contato com o sistema de saúde entre os grupos comunitários expostos e a comunidade mineira ocorre ao lado de níveis mais altos de cuidados preventivos, incluindo uma maior RP de ter cuidados preventivos de rotina e receber imunizações. Embora não possamos avaliar se essa relação é causal, um maior contato com o sistema de saúde certamente poderia oferecer maiores oportunidades para aprimorar algumas formas de cuidados preventivos. Freitas et al. também enfatizaram a importância de uma forte infraestrutura de saúde e sua rápida mobilização em Brumadinho, o que pode ter mitigado alguns dos impactos imediatos do desastre 11 Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, Silva MA, Xavier DR. From Samarco in Mariana to Vale in Brumadinho: mining dam disasters and Public Health. Cad Saude Publica 2019; 35(5): e00052519. https://doi.org/10.1590/0102-311X00052519
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. Nesse sentido, a organização da APS deve permitir que as ações de tratamento e cuidado estejam alinhadas às ações de prevenção e promoção da saúde, tanto no nível individual quanto populacional. Diante do contexto do desastre, a APS deve, portanto, fazer mais para compreender as necessidades da população residente nas regiões afetadas, especialmente as mais vulneráveis1313 Norman AH, Tesser CD. Acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família: equilíbrio entre demanda espontânea e prevenção/promoção da saúde. Saude Soc 2015; 24(1): 165-79. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100013
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.

Por fim, os resultados do estudo sugerem que indivíduos que atualmente não têm necessidades de saúde médias ou altas parecem estar utilizando os serviços de saúde em uma taxa abaixo do esperado, em comparação com as médias estaduais. Essas taxas mais baixas de consulta médicas significam menos oportunidades para monitorar o desenvolvimento de novos problemas de saúde que poderiam ser resultado de sua exposição ao desastre1313 Norman AH, Tesser CD. Acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família: equilíbrio entre demanda espontânea e prevenção/promoção da saúde. Saude Soc 2015; 24(1): 165-79. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100013
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.

Em conclusão, apesar das limitações impostas pela natureza transversal do desenho da pesquisa, constatou-se que houve diferenças na utilização dos serviços de saúde entre os indivíduos expostos ao rompimento da barragem. Assim, justifica-se o acompanhamento continuado da situação e avaliação da capacidade local para a prestação dos serviços requeridos, uma vez que as consequências da exposição a tal evento podem levar um tempo considerável para se desdobrar33 Freitas CM, Barcellos C, Heller L, Luz ZMP. Mining dam disasters: lessons from the past for reducing current and future risks. Epidemiol Serv Saude 2019; 28(1): e20180120. https://doi.org/10.5123/S1679-49742019000100020
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.

  • FONTE DE FINANCIAMENTO: A pesquisa foi financiada pelo Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (DECIT/SCTIE) do Ministério da Saúde do Brasil (Bolsa 25000.127551/2019-69) e pela Fundação Oswaldo Cruz (VPPIS-004-FIO-18).

AGRADECIMENTOS:

Agradecemos aos participantes do Projeto Saúde Brumadinho por seu tempo e participação no estudo.

Referências bibliográficas

  • 1
    Freitas CM, Barcellos C, Asmus CIRF, Silva MA, Xavier DR. From Samarco in Mariana to Vale in Brumadinho: mining dam disasters and Public Health. Cad Saude Publica 2019; 35(5): e00052519. https://doi.org/10.1590/0102-311X00052519
    » https://doi.org/10.1590/0102-311X00052519
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2022
  • Revisado
    22 Jul 2022
  • Aceito
    25 Jul 2022
  • Corrigido
    13 Set 2024
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