Projeto Saúde Brumadinho: insegurança alimentar e nutricional versus condições socioeconômicas e dimensões do sistema alimentar após desastre

Mariana Souza Lopes Patrícia Pinheiro de Freitas Mary Anne Nascimento-Souza Sérgio Viana Peixoto Aline Cristine Souza Lopes Sobre os autores

RESUMO

Objetivo:

Descrever a situação de insegurança alimentar das famílias segundo as características socioeconômicas e dimensões do sistema alimentar em Brumadinho, Minas Gerais, Brasil, após desastre.

Métodos:

Estudo descritivo com foco no domicílio realizado pela linha de base do Projeto Saúde Brumadinho. A insegurança alimentar, desfecho principal, foi avaliada pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar curta. Outras variáveis investigadas foram: socioeconômicas; estrato geográfico do domicílio; ativos (bens); renda; despesas familiares; cultivo de alimentos e criação de animais para consumo. Foram realizadas análises descritivas comparando a insegurança alimentar do domicílio segundo as demais variáveis pelo teste χ2 para comparação das proporções.

Resultados:

Dos domicílios investigados (n=1.441), 35,1% estavam em situação de insegurança alimentar. As famílias em insegurança alimentar apresentavam: menores prevalências de domicílios de alvenaria com revestimento (91,4%; IC95% 87,7%−94,1% vs. 96,7%; IC95% 94,9%−97,8%); maior proporção de fossa rudimentar (16,9%; IC95% 13,3%−21,2% vs. 9,4%; IC95% 7,4−11,9); menor prevalência de domicílios próprios e quitados (63,9%; IC95% 56,8−70,5 vs. 77,3%; IC95% 72,3−81,7); e redução da renda após o rompimento da barragem (33,0%; IC95% 27,1−39,6 vs. 14,1%; IC95% 11,2−17,6), quando comparadas àquelas em segurança alimentar.

Conclusão:

A prevalência de insegurança alimentar foi elevada, com relato de redução da renda das famílias após o rompimento da barragem. Ademais, boa parte dos domicílios apresentava pior qualidade estrutural e escoamento de esgoto. Esses resultados evidenciam a vulnerabilidade das famílias e possível violação do direito humano à alimentação adequada, denotando a urgência de ações reparadoras contínuas.

Palavras-chave:
Colapso estrutural; Desastres provocados pelo homem; Fatores socioeconômicos; Saúde; Segurança alimentar e nutricional

INTRODUÇÃO

Desastres são eventos que resultam em interrupção do funcionamento normal de uma comunidade, afetando o seu cotidiano e repercutindo em perdas materiais, econômicas, ambientais e de saúde11 Organização Pan-Americana da Saúde. Ministério da Saúde. Desastres naturais e saúde no Brasil. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Ministério da Saúde; 2014.. Esses eventos mobilizam toda a estrutura de saúde e podem distanciar a população de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, e, portanto, expô-la à insegurança alimentar e nutricional (IAN). A IAN ocorre quando o direito de acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente não é realizado22 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n° 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências [Internet]. 2006 [cited on Sept. 2, 2022]. Available at: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm
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No Brasil, em 2019, foi destaque o desastre ocasionado pelo rompimento da barragem de rejeitos da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais33 Romão A, Froes C, Barcellos CC, Silva DX, Saldanha R, Carrijo RSGG, et al. Avaliação preliminar dos impactos sobre a saúde do desastre da mineração da Vale (Brumadinho, MG). [cited on Aug. 16, 2022]. Available at: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/32268/3/Nota_Tecnica_Brumadinho_impacto_Saude_01022019.pdf
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Sistemas de produção industriais, como o da mineração, são constantemente denunciados por sua insustentabilidade e prejuízos ao meio ambiente e à saúde. Em Brumadinho, a mineração é uma atividade histórica, e seu sistema de produção, assim como de outras mineradoras, degrada os recursos naturais e produz toneladas de rejeitos33 Romão A, Froes C, Barcellos CC, Silva DX, Saldanha R, Carrijo RSGG, et al. Avaliação preliminar dos impactos sobre a saúde do desastre da mineração da Vale (Brumadinho, MG). [cited on Aug. 16, 2022]. Available at: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/32268/3/Nota_Tecnica_Brumadinho_impacto_Saude_01022019.pdf
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,44 Laschefski KA. Rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho (MG): desastres como meio de acumulação por despossessão. Ambientes Rev Geog Ecol Pol 2020; 2(1): 98. https://doi.org/10.48075/amb.v2i1.23299
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, os quais, em Brumadinho, eram acondicionados em barragens, por método ainda pouco seguros55 Centro Internacional de Métodos Numéricos en Ingeniería. Relatório Final. Análise computacional da ruptura da Barragem I na Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho [Internet] 2021. [cited on Aug. 16, 2022]. Available at: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/2021/relatorio-final-cinme-upc-traducao-do-sumario-executivo-final.pdf
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Esse desastre envolveu, entre outros aspectos, a perda da terra, a contaminação do solo e da água, configurando obstáculo à segurança alimentar e nutricional (SAN)66 Lourdes EB, Santana HC, Macedo LR, Correira FS, Cordeiro Pacheco T, Nascimento DP, et al. Changes in dietary and water use habits after the Doce River contamination with mining tailings. Food Sci Technol 2022; 42: e11021. https://doi.org/10.1590/fst.11021
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99 Romão A, Froes C, Barcellos C, Silva DX, Saldanha R, Gracie R, et al. Avaliação dos impactos sobre a saúde do desastre da mineração da Vale (Brumadinho, MG). Nota Técnica (15 fev 2019). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2019. [acessado em 18 jul. 2022]. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwiD5-nFpvb5AhWDqZUCHSz8DlgQFnoECAoQAQ&url=https%3A%2F%2Fwww.epsjv.fiocruz.br%2Fsites%2Fdefault%2Ffiles%2Ffiles%2Frelat%25C3%25B3rio_Brumadinho_impacto_sa%25C3%25BAde_01_fev_b.pdf&usg=AOvVaw0HhoaIPE_8ZtfA5b71GeAA
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. Contudo, Brumadinho, provavelmente, já vivia cenário de violações do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), haja vista o retorno do Brasil ao mapa da fome e a recessão no país. Nesse sentido, o rompimento da barragem revelou panorama devastador, denotando a urgência desta investigação.

Ademais, ainda pouco se sabe sobre os impactos desse desastre na capacidade produtiva dos pequenos produtores. Ante isso, este artigo objetivou descrever a insegurança alimentar (IA) das famílias segundo as características socioeconômicas e dimensões dos sistemas alimentares após desastre.

MÉTODOS

Delineamento e local do estudo

Estudo descritivo desenvolvido com base em dados do domicílio da linha de base do “Projeto Saúde Brumadinho”1010 Peixoto SV, Firmo JOA, Fróes-Asmus CIR, Mambrini JVM, Freitas CM, Lima-Costa MF, et al. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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Brumadinho é um município brasileiro da macrorregião Sudeste do país com 643,52 km2, localizado na região metropolitana de Belo Horizonte. Em 2018, a sua população estimada era de 39.520 habitantes, composta de 52,1% de pessoas que se autodeclaravam pretas e pardas. O índice de desenvolvimento humano municipal do município é de 0,747 (2010), sendo suas principais atividades econômicas a mineração e agropecuária1111 Libânio CA, Trigger A, Zanandreis C, Santos DA, Aquino J, Soares MCR, et al. Guia da cidadania e identidade metropolitana na RMBH. Belo Horizonte: Favela é Isso Aí; 2018..

Em janeiro de 2019, o município vivenciou um desastre que liberou cerca de 11,7 milhões de metros cúbicos de lama e contabilizou centenas de vítimas fatais77 Polignano MV, Lemos RS. Rompimento da barragem da Vale em Brumadinho: impactos socioambientais na Bacia do Rio Paraopeba. Cienc Cult 2020; 72(2): 37-43. http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200011
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1010 Peixoto SV, Firmo JOA, Fróes-Asmus CIR, Mambrini JVM, Freitas CM, Lima-Costa MF, et al. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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População e amostra do estudo

Para o plano amostral, foram considerados três domínios de estimação:

  1. Domicílios diretamente atingidos pelo rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Córrego do Feijão;

  2. Domicílios localizados em áreas com atividade de mineração; e

  3. Domicílios localizados em áreas não atingidas diretamente pelo rompimento da barragem ou pela atividade mineradora1010 Peixoto SV, Firmo JOA, Fróes-Asmus CIR, Mambrini JVM, Freitas CM, Lima-Costa MF, et al. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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Nos domínios 1 e 2, todos os domicílios foram elegíveis para participação no estudo. No domínio 1, foram também incluídos os moradores da região do Córrego do Feijão à época do desastre e que não residiam mais no local. Já no domínio 3, foram incluídos domicílios das demais regiões de Brumadinho1010 Peixoto SV, Firmo JOA, Fróes-Asmus CIR, Mambrini JVM, Freitas CM, Lima-Costa MF, et al. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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O plano de amostragem considerou ainda a estratificação da população de pesquisa por setor censitário. E em todos os domicílios visitados, moradores com idade igual ou maior de 18 anos foram convidados a responder a questões sobre o domicílio1010 Peixoto SV, Firmo JOA, Fróes-Asmus CIR, Mambrini JVM, Freitas CM, Lima-Costa MF, et al. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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Para o dimensionamento da amostra, considerou-se o equilíbrio entre os indivíduos atingidos (lama ou atividade mineradora) e os não atingidos. Dessa forma, o tamanho amostral da área não atingida foi calculado especificando uma proporção mínima igual a 3%, com margem de erro relativo da estimação de, no máximo, 45%, e coeficiente de confiança igual a 95% (1-α). Como a amostra foi estratificada, considerou-se ainda a estimativa do efeito do plano amostral (EPA) de 1,1. Foram estimados pesos amostrais para cada um dos domicílios entrevistados, de modo que produzisse estimativas com menor margem de erro1010 Peixoto SV, Firmo JOA, Fróes-Asmus CIR, Mambrini JVM, Freitas CM, Lima-Costa MF, et al. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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Variáveis de estudo

Os dados foram obtidos por entrevistas face a face1010 Peixoto SV, Firmo JOA, Fróes-Asmus CIR, Mambrini JVM, Freitas CM, Lima-Costa MF, et al. Projeto Saúde Brumadinho: aspectos metodológicos e perfil epidemiológico dos participantes da linha de base da coorte. Rev Bras Epidemiol 2022; (supl 2): E220002. https://doi.org/10.1590/1980-549720220002.supl.2.1
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. Foram analisados dados relativos aos domicílios, incluindo: IA; características socioeconômicas; estrato geográfico do domicílio; ativos (bens), renda e despesas familiares; cultivo de alimentos e criação de animais para consumo próprio.

Insegurança alimentar: variável desfecho

Utilizou-se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), versão curta, para avaliar a IA das famílias participantes do “Projeto Saúde Brumadinho”. Essa versão da EBIA é composta de oito questões fechadas (sim/não). Para cada questão positiva (sim), é atribuído um ponto1212 Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Melgar-Quiñorez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian household food insecurity measurement scale: recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27(2): 241-51. https://doi.org/10.1590/1415-52732014000200010
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,1313 Interlenghi GS, Reichenheim ME, Segall-Corrêa AM, Pérez-Escamilla R, Moraes C, Salles-Costa R. Suitability of the eight-item version of the Brazilian household food insecurity measurement scale to identify risk groups: evidence from a nationwide representative sample. Public Health Nutr 2019; 22(5): 776-84. https://doi.org/10.1017/S1368980018003592
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A análise da EBIA foi baseada no gradiente de pontuação final resultante do somatório das respostas afirmativas às questões. Para fins de análise, o escore final foi categorizado em segurança alimentar (SA) (0 ponto) ou IA (>0 ponto)1212 Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Melgar-Quiñorez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian household food insecurity measurement scale: recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27(2): 241-51. https://doi.org/10.1590/1415-52732014000200010
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,1313 Interlenghi GS, Reichenheim ME, Segall-Corrêa AM, Pérez-Escamilla R, Moraes C, Salles-Costa R. Suitability of the eight-item version of the Brazilian household food insecurity measurement scale to identify risk groups: evidence from a nationwide representative sample. Public Health Nutr 2019; 22(5): 776-84. https://doi.org/10.1017/S1368980018003592
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Demais variáveis

As variáveis socioeconômicas investigadas referiram-se: às características dos domicílios, aos ativos (ou seja, bens), à renda dos moradores do domicílio e às despesas dos domicílios, incluindo a alimentação. Ademais, investigou o estrato geográfico no qual o domicílio estava situado (diretamente atingido/região de mineração/demais regiões).

Quanto às características do domicílio, investigou-se: o número de residentes; se era o mesmo de antes do desastre (sim/não); tipo de materiais das paredes externas (alvenaria ou outro material); número de cômodos e de banheiros; energia elétrica (sim/não); escoamento do esgoto (rede geral de esgoto; fossa séptica; fossa rudimentar; outro como vala ou terreno, direto para rio, córrego ou lago); e destino do lixo.

Quanto aos ativos, avaliou-se: a situação de propriedade do domicílio atual e de antes do rompimento da barragem (própria e quitada; própria e não quitada; alugada; casa de familiar ou amigo, cedida ou outra condição) e se essa situação foi alterada após o rompimento da barragem (sim/não). Considerou-se como propriedade cedida quando o participante relatou que a casa foi concedida por um familiar, empregador ou outro.

Investigaram-se variáveis relacionadas à renda dos moradores do domicílio, como: renda total atual (em reais); se houve alteração da renda após o rompimento da barragem (sim/não); se era beneficiário do Programa Bolsa Família (PBF) (sim/não); se recebia Benefício Assistencial de Prestação Continuada (BPC) (sim/não); e se recebeu ou recebe benefício decorrente do rompimento da barragem (sim/não). Investigou-se, ainda, se as despesas do domicílio com alimentação foram alteradas após o rompimento da barragem (sim/não).

Adicionalmente, investigaram-se as práticas atuais e de antes de rompimento da barragem de cultivo de frutas e hortaliças e criação de animais para consumo. Destaca-se que, neste estudo, o cultivo de alimentos e a criação de animais foram analisadas como uma das dimensões dos sistemas alimentares.

Análise estatística

As análises descritivas realizadas constaram de distribuições de frequências para variáveis categóricas e medidas de tendência central e de dispersão para as variáveis contínuas. Os dados foram apresentados como porcentagem ou média e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).

Diferenças significativas entre as prevalências foram identificadas pelo teste estatístico de χ2 de Pearson com correção de Rao-Scott. Nos casos em que houve diferenças significativas, foram feitas comparações duas a duas com correção de Bonferroni.

As análises foram realizadas no software STATA, utilizando comando svy, que considera o peso calibrado do domicílio e a correção pelo efeito de desenho.

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (número do processo: 20814719.5.0000.5091), e todos os entrevistados estavam de acordo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TLCE).

RESULTADOS

Do total das famílias investigadas (n=1.441), 35,1% estavam em situação de IA, sem diferenças significativas segundo o estrato geográfico do domicílio (p=0,078) (Tabela 1).

Tabela 1
Características e estrato geográfico do domicílio segundo a situação de insegurança alimentar das famílias. Projeto Saúde Brumadinho. Brumadinho (MG), Brasil, 2021.

Aproximadamente 80% das famílias investigadas permaneceram nos mesmos domicílios de moradia após o rompimento da barragem. A média de moradores por domicílio foi de 2,7±2,3, sendo estatisticamente maior entre as famílias em situação de IA, quando comparadas àquelas em SA (2,9±9,4 vs. 2,6±6,3, p=0,025) (Tabela 1).

Quanto às características dos domicílios, quase a totalidade possuía luz elétrica (99,3%), e o lixo era coletado diretamente por serviço de limpeza municipal (95,9%). No entanto, as famílias em situação de IA viviam em domicílios com menor número de cômodos e banheiros, quando comparadas às demais (p<0,001).

A maior parte dos domicílios possuía paredes de alvenaria com revestimento (94,9%), sendo essa prevalência estatisticamente menor entre as famílias em situação de IA (91,4% vs. 96,7%, p=0,004) (Tabela 1).

Metade dos domicílios possuía rede geral de esgoto, sem diferenças segundo a situação de SA das famílias. Mas, ao investigar outras modalidades de esgotamento, verificou-se que 36,5% dos domicílios possuíam fossa séptica e 12,0% fossa rudimentar, sendo a prevalência de fossa rudimentar maior, quando comparados aqueles em SA (16,9 vs. 9,4%, p=0,001) (Tabela 1).

A Tabela 2 apresenta a situação de moradia atual e de antes do rompimento da barragem, bem como os ativos (bens), a renda e as despesas das famílias segundo a situação de IA. Mais de 70% dos domicílios investigados eram próprios e quitados, sendo essa prevalência menor entre as famílias em situação de IA (63,9 vs.77,3%, p=0,005). Tendência semelhante foi observada quando se investigou a situação antes do rompimento da barragem, sendo a prevalência de domicílios próprios e quitados também menor entre as famílias em IA (70,2 vs. 80,7%, p=0,024).

Tabela 2
Ativos (bens), renda e despesas familiares segundo a situação de insegurança alimentar das famílias. Projeto Saúde Brumadinho. Brumadinho (MG), Brasil, 2021.

A média de renda das famílias foi de R$2.088,00±104,20, sendo inferior entre aquelas em situação de IA, quando comparadas às demais (R$1.209,90±105,24 vs. 2.607,22±176,02, p<0,001). Famílias em situação de IA relataram ainda menor manutenção da renda (30,2 vs. 44,2%, p<0,001) e sua maior redução após o rompimento da barragem (33,0 vs. 14,1%, p<0,001), quando comparadas àquelas em situação de SA. Quando se investigou a não alteração das despesas do domicílio após o rompimento da barragem, observou-se menor prevalência de resposta afirmativa a essa questão entre as famílias em IA quando comparadas àquelas em SA (16,1 vs. 32,5%, p<0,001). Ademais, menos de 2% das famílias recebiam BPC, e aproximadamente 7% eram beneficiárias do PBF, sendo essa prevalência maior entre aquelas em situação de IA (p=0,015) (Tabela 2).

A criação atual e de antes do rompimento da barragem de animais e o cultivo de frutas/hortaliças para consumo foi superior a 85%, sem diferenças estatísticas segundo a situação de IA das famílias. Exceção foi identificada para a criação de animais antes do desastre. Famílias em IA criavam animais com menor frequência, quando comparadas àquelas em SA (88,5 vs. 95,5%, p=0,004) (Tabela 3).

Tabela 3
Prevalência (%) do cultivo de alimentos e criação de animais para consumo doméstico, atualmente e antes do rompimento da barragem, segundo a situação de insegurança alimentar das famílias. Projeto Saúde Brumadinho. Brumadinho (MG), Brasil, 2021.

DISCUSSÃO

A prevalência de IA em Brumadinho foi elevada. Famílias em situação de IA, quando comparadas àquelas em SA, relataram menor renda per capita, com redução após o rompimento da barragem, maior número de pessoas no domicílio e maior proporção de beneficiárias do PBF. Além disso, essas famílias residiam em domicílios com pior qualidade estrutural, com menor número de cômodos e banheiros, paredes externas sem revestimento e sistemas primários de esgotamento sanitário.

A IAN é um problema global crítico1414 Fagundes A, Ribeiro RCL, Brito ERB, Recine E, Rocha C. Public infrastructure for food and nutrition security in Brazil: fufilling the constitutional commitment to the human right to adequate food. Food Secur 2022; 14(4): 897-905. https://doi.org/10.1007/s12571-022-01272-1
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. Estima-se que, em 2020, 2,3 bilhões da população mundial não possuíam acesso suficiente aos alimentos1515 FAO, IFAD, UNICEF, WFP, WHO. The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome: FAO; 2021. https://doi.org/10.4060/cb4474en
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. No Brasil, a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF 2017-2018) mostrou que 36,7% das famílias brasileiras apresentavam algum nível de IA1616 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 2017–2018: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE; 2019.. Em 2020, resultados do Inquérito Nacional sobre IA no contexto da pandemia da COVID-19, conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), mostrou que 55,2% das famílias conviviam com IA, um aumento de 54% em comparação com 2018 (36,7%). Já o número de indivíduos em IA grave, ou seja, em situação de fome, chegava a 19 milhões de brasileiros1717 Rede PENSSAN. Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil [Internet]. 2021 [cited on July 18, 2022]. Available at: https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/
https://pesquisassan.net.br/olheparaafom...
. Na segunda edição do inquérito, realizada em 2022, verificou-se que 58,7% da população vivenciava algum grau de IA e 33,1 milhões estavam em IA grave1818 Rede PENSSAN. 2° inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil [Internet]. 2022. [cited on July 18, 2022]. Available at: https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/
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O acesso a alimentos e à IA também tem sido investigado em momentos críticos do país, como na crise econômica de 2014-20151919 Costa NS, Santos MO, Carvalho CPO, Assunção ML, Ferreira HS. Prevalence and factors associated with food insecurity in the context of the economic crisis in Brazil. Current Developments in Nutrition 2017; 1(10): e000869. https://doi.org/10.3945/cdn.117.000869
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e, mais recentemente, durante a greve dos caminhoneiros2020 Lopes MS, Araújo ML, Lopes ACS. National general truck drivers’ strike and food security in a Brazilian metropolis. Public Health Nutr 2019; 22(17): 3220-8. https://doi.org/10.1017/S1368980019001939
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e na pandemia da COVID-19 com o fechamento dos estabelecimentos comerciais2121 Lopes MS, Freitas PP, Carvalho MCR, Silva UM, Lopes ACS. The COVID-19 pandemic in a Brazilian metropolis: repercussion on food prices. Cad Saúde Pública 2022; 38(4): e00166721. https://doi.org/10.1590/0102-311XEN166721
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. Verificou-se que a crise econômica brasileira de 2014-2015 se associou ao aumento acentuado na prevalência de IA no estado de Alagoas1919 Costa NS, Santos MO, Carvalho CPO, Assunção ML, Ferreira HS. Prevalence and factors associated with food insecurity in the context of the economic crisis in Brazil. Current Developments in Nutrition 2017; 1(10): e000869. https://doi.org/10.3945/cdn.117.000869
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. Já a greve dos caminhoneiros foi associada à redução da disponibilidade e variedade de alimentos e ao aumento dos preços dos hortifrutigranjeiros2020 Lopes MS, Araújo ML, Lopes ACS. National general truck drivers’ strike and food security in a Brazilian metropolis. Public Health Nutr 2019; 22(17): 3220-8. https://doi.org/10.1017/S1368980019001939
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. As estratégias de combate à pandemia de COVID-19 relacionadas ao fechamento dos estabelecimentos comerciais, por sua vez, podem ter reduzido a demanda por alimentos in natura2121 Lopes MS, Freitas PP, Carvalho MCR, Silva UM, Lopes ACS. The COVID-19 pandemic in a Brazilian metropolis: repercussion on food prices. Cad Saúde Pública 2022; 38(4): e00166721. https://doi.org/10.1590/0102-311XEN166721
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.

A prevalência de IA em Brumadinho, apesar de semelhante aos dados nacionais, promove uma reflexão adicional por se sobrepor a um desastre. Em Brumadinho, o desastre promoveu profunda transformação no ambiente natural, social e construído. Análise documental do desastre semelhante ao aqui estudado, por exemplo, revelou que a IA se manifestou pela impossibilidade da pesca, pela devastação das áreas de cultivo e de pastagens e pela incerteza da inocuidade dos alimentos2222 Prata DA. Insegurança alimentar e comunidades tradicionais: desdobramentos no caso Samarco. In: Saad-Diniz E, Trentini F, Ribeiro IP, Bertan MPC, orgs. Anais de Congresso. Food law: um diálogo interdisciplinar; 2018. p. 120-31; Ribeirão Preto: Faculdade de Direito de Ribeirão Preto. [cited on July 18, 2022]. Available at: https://bit.ly/2QryiNr
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.

É provável que a menor produtividade do pequeno agricultor e dos pescadores decorrente do desastre possa ter repercutido negativamente na disponibilidade dos alimentos, gerando aumento dos preços nas lojas de alimentos. No ambiente social, foi notória a perda da cultura alimentar local. Brumadinho era destaque por seus múltiplos festivais, tais como o da Jabuticaba, da Mexerica e do Milho, os quais tiveram de ser suspensos1111 Libânio CA, Trigger A, Zanandreis C, Santos DA, Aquino J, Soares MCR, et al. Guia da cidadania e identidade metropolitana na RMBH. Belo Horizonte: Favela é Isso Aí; 2018.. O hiato provocado por esse prejuízo cultural associado às perdas de familiares, fotos, livros e outros pertences também figuram como violações do DHAA.

Verificou-se entre as famílias em situação de IA menor renda per capita, com redução após o rompimento da barragem, bem como maior número de pessoas beneficiárias do PBF. A redução da renda e a ineficiência na gestão da reparação dos danos e indenização das vítimas pode tornar ainda mais complexo o quadro de IA44 Laschefski KA. Rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho (MG): desastres como meio de acumulação por despossessão. Ambientes Rev Geog Ecol Pol 2020; 2(1): 98. https://doi.org/10.48075/amb.v2i1.23299
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. Da mesma forma, a extinção e a reestruturação de programas exitosos, como o PBF, substituído pelo Auxílio Brasil, com regras pouco claras e orçamento indefinido, pode afetar as famílias.

A menor prevalência de imóveis próprios/quitados associada à maior proporção de domicílios de alvenaria sem revestimento pode ser indicativa do menor poder aquisitivo das famílias em situação de IA. De modo semelhante, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de 2019, identificou que nas regiões mais pobres do país estavam as maiores prevalências de imóveis cedidos e sem revestimento2323 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Características gerais dos domicílios e dos moradores: 2018. Rio de Janeiro: IBGE; 2019..

Quanto às formas alternativas de esgotamento sanitário, famílias em situação de IA possuíam maior prevalência de fossas rudimentares e menor de fossa séptica. Fossas rudimentares são poços ou buracos escavados no solo, sem impermeabilização ou com impermeabilização parcial. Essa via de esgotamento sanitário, portanto, pode afetar o lençol freático e ocasionar a disseminação de doenças2424 Fundação Nacional de Saúde. Manual de saneamento. Brasília: Funasa; 2015.. O que sugere maior precariedade das famílias em situação de IA no município.

Diferenças estruturais nos domicílios de famílias em situação de IA também já foram identificadas em outros estudos. Análises de dados da POF (2008–2009) indicaram que a prevalência de IA foi associada às condições insatisfatórias de moradia, pior iluminação, piores serviços de coleta de lixo e de esgotamento sanitário2525 Araújo ML, Nascimento DR, Lopes MS, Passos CM, Lopes ACS. Condições de vida de famílias brasileiras: estimativa da insegurança alimentar. Rev Bras Est Pop 2020; 37: e0110. https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0110
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Essas desigualdades socioeconômicas e estruturais dos domicílios, bem como a situação de vulnerabilidade da população prévia ao desastre, podem potencializar a IA e afetar diretamente os impactos do desastre. A falta ou redução de renda, desemprego, deficiências habitacionais, acesso insuficiente à educação e precárias condições de saúde estão diretamente interrelacionados com o agravamento da IA, como revelou o último inquérito da Rede PENSSAN1818 Rede PENSSAN. 2° inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil [Internet]. 2022. [cited on July 18, 2022]. Available at: https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/
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Esse cenário atual da IA é deflagrado após uma série de acontecimentos políticos e econômicos no país. Os anos de 2014 a 2016 foram marcados por uma grave crise econômica e política. Na sequência, foi aprovado um novo regime fiscal com a aprovação da Emenda Constitucional no 95, que implicou o congelamento dos gastos com a saúde e com a educação2626 Paiva AB, Mesquita ACS, Jaccoud LB, Passos L. O novo regime fiscal e suas implicações para a política de assistência social no Brasil. Brasília: IPEA; 2016.2828 Vasconcelos FAG, Machado ML, Medeiros MAT, Neves JA, Recine E, Pasquim EM. Políticas públicas de alimentação e nutrição do Brasil: de Lula a Temer. Rev Nutr 2019; 32: e180161. http://dx.doi.org/10.1590/1678-9865201932e180161
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. Paralelamente, foram revisadas as leis trabalhistas e previdenciárias, reduzindo a seguridade social dos trabalhadores2626 Paiva AB, Mesquita ACS, Jaccoud LB, Passos L. O novo regime fiscal e suas implicações para a política de assistência social no Brasil. Brasília: IPEA; 2016.2828 Vasconcelos FAG, Machado ML, Medeiros MAT, Neves JA, Recine E, Pasquim EM. Políticas públicas de alimentação e nutrição do Brasil: de Lula a Temer. Rev Nutr 2019; 32: e180161. http://dx.doi.org/10.1590/1678-9865201932e180161
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. Em 2019, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) foi extinto, comprometendo o funcionamento do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN)2929 Castro IRR. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad Saúde Pública 2019; 35(2): e00009919. https://doi.org/10.1590/0102-311X00009919
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. Todas essas questões fragilizaram as políticas sociais e a SA no Brasil e, provavelmente, também em Brumadinho.

Um aspecto que pode contribuir para a SA das famílias é o cultivo de alimentos e a criação de animais para consumo doméstico, sobretudo os mais vulneráveis. A produção de alimentos é menos onerosa do que a aquisição em estabelecimentos comerciais. Além disso, a criação de animais pode produzir, além da carne, produtos como ovos e leite, complementando a alimentação. A produção doméstica de alimentos associa-se à SA por aspectos tanto econômicos quanto nutricionais, além de promover valorização da produção local, autossuficiência e sustentabilidade. Além disso, famílias que produzem o seu próprio alimento conhecem a sua origem e prezam pela qualidade assegurada3030 Grigol NS, Molina SMG, Sant’Ana GC, Garavello MEPE. Produção para autoconsumo e segurança alimentar entre assentados rurais do Alto Xingu, Mato Grosso, Brasil. Rev Econ Sociol Rural 2022; 60(2): e233195. https://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.233195
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. Tal resultado revela a necessidade de que ações de reparação que tenham como foco a SA contemplem questões relacionadas à produção doméstica de alimentos.

A produção de alimentos e a criação de animais podem também contribuir para o aumento da renda das famílias. No entanto, nos últimos anos, houve redução expressiva do financiamento de programas de incentivo à agricultura familiar. Na mesma direção, está a redução de estoques públicos da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) que poderiam garantir o preço e a renda do produtor e atenuar as oscilações dos preços dos alimentos.

Paralelamente às políticas de austeridade e à volta do país para o mapa da fome, está em aceleração a flexibilização da legislação ambiental. Tal arcabouço legislativo pode ter afetado diretamente o município de Brumadinho44 Laschefski KA. Rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho (MG): desastres como meio de acumulação por despossessão. Ambientes Rev Geog Ecol Pol 2020; 2(1): 98. https://doi.org/10.48075/amb.v2i1.23299
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No Brasil e no mundo, as mineradoras possuem força para influenciar as relações de poder, de forma que se beneficiem. Nesse sentido, o sistema ambiental parece se ajustar aos interesses econômicos das grandes corporações44 Laschefski KA. Rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho (MG): desastres como meio de acumulação por despossessão. Ambientes Rev Geog Ecol Pol 2020; 2(1): 98. https://doi.org/10.48075/amb.v2i1.23299
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. Parte desse discurso é justificado pelo desenvolvimento econômico produzido pela mineração nos municípios. Contudo, sabe-se que a mineração configura uma atividade de curta duração e com pouca articulação com os demais setores da economia, além de prejudicar o meio ambiente. Nesse sentido, os avanços econômicos alcançados em curto e médio prazos não necessariamente contribuem para a redução das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza e o desenvolvimento sustentável44 Laschefski KA. Rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho (MG): desastres como meio de acumulação por despossessão. Ambientes Rev Geog Ecol Pol 2020; 2(1): 98. https://doi.org/10.48075/amb.v2i1.23299
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, aspectos centrais para a garantia do DHAA.

Os resultados deste estudo são inéditos e relevantes, porém a sua interpretação requer cautela. O uso da versão reduzida da EBIA limita a investigação dos níveis de IA das famílias e não permite a análise da dimensão nutricional do conceito de SAN. Contudo, até o momento, não se dispõe de escala validada para o Brasil que abarque tal complexidade. Quanto ao fato de ter sido usada a versão curta da EBIA, destaca-se que essa escala foi elaborada pelos mesmos autores da escala original, com bons resultados. Ademais, o seu uso é indicado em estudos epidemiológicos de grande porte, que apresentam limitações quanto ao tempo de entrevista e/ou aos recursos financeiros para a coleta dos dados1313 Interlenghi GS, Reichenheim ME, Segall-Corrêa AM, Pérez-Escamilla R, Moraes C, Salles-Costa R. Suitability of the eight-item version of the Brazilian household food insecurity measurement scale to identify risk groups: evidence from a nationwide representative sample. Public Health Nutr 2019; 22(5): 776-84. https://doi.org/10.1017/S1368980018003592
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.

Outra limitação deste estudo se refere à diferença de tempo entre o momento do desastre (2019) e a coleta dos dados (2021), o que pode ter gerado vieses de informação, sobretudo em virtude da pandemia da COVID-19. Contudo não foi possível controlar tais efeitos.

Em contrapartida, é o primeiro estudo quantitativo a avaliar a situação de IA das famílias após um desastre dessas proporções, sendo um diferencial na literatura nacional e internacional. Passo subsequente na compreensão desse fenômeno deverá envolver a realização de análises multivariadas e multiníveis. Também se aponta para a importância de se realizar análises longitudinais dos dados sobre o cultivo de alimentos e a criação de animais visando melhor explorar os sistemas alimentares.

A prevalência de IA entre as famílias após o rompimento de barragem denota a urgência da implementação de ações contínuas que visem garantir esse direito. Ademais, as piores condições socioeconômicas e estruturais dos domicílios podem influenciar diretamente os impactos do desastre sobre a alimentação da população, o que poderá se agravar ainda mais nas próximas décadas decorrente do retorno do país ao mapa da fome.

  • FONTE DE FINANCIAMENTO: Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (DECIT/SCTIE) do Ministério da Saúde (Processo 25000.127551/2019-69). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Bolsista de produtividade de SVP).

AGRADECIMENTOS:

Agradecemos aos participantes do projeto a cooperação e participação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Revisado
    17 Ago 2022
  • Aceito
    17 Ago 2022
  • Corrigido
    13 Set 2024
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