Alterações no acesso à água e na incidência de doenças de veiculação hídrica após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG)

Nayara Trovão Priscila Neves-Silva Leticia Cavalari Pinheiro Sergio Viana Peixoto Leo Heller Sobre os autores

RESUMO

Objetivo:

Descrever, na ótica dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (DHAES), o acesso à água e a incidência de doenças de veiculação hídrica na região atingida pelo rompimento da barragem da Mina B1 em Brumadinho (MG).

Métodos:

Utilizou-se a metodologia quantitativa e qualitativa, tendo como variáveis, em ambos os métodos, informações sobre o acesso à água e as doenças de veiculação hídrica. Os dados primários foram extraídos do Projeto de Saúde Brumadinho, sendo aqui utilizado um estrato amostral com 981 pessoas entrevistadas, totalizando 92,5% da população elegível das comunidades atingidas de Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira. Os dados secundários de Brumadinho foram coletados pelo Projeto Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020, em banco de dados públicos entre 2017 e 2020, e os dados qualitativos foram coletados em 2022 por meio de entrevistas individuais com profissionais de saúde residentes nas comunidades atingidas.

Resultados:

No tocante ao acesso à água, a análise combinada dos dados apontou que os DHAES estão sendo negligenciados na região, de maneira especial no que se refere à disponibilidade, acessibilidade física, aceitabilidade e qualidade da água. Observou-se também que houve aumento significativo na incidência das doenças de veiculação hídrica na região após o desastre.

Conclusão:

É necessária utilização dos DHAES como marco referencial na implementação de políticas públicas voltadas para reduzir as situações de vulnerabilidade relacionadas ao acesso à água.

Palavras-chave:
Saneamento; Abastecimento de água; Direitos humanos; Rompimento de barragens; Doenças infecciosas

INTRODUÇÃO

O acesso à água de qualidade e em quantidade adequadas é fator determinante como instrumento de promoção da saúde e garantia dos direitos humanos fundamentais como educação, trabalho, saúde, entre outros. Esse entendimento levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a aprovar o acesso adequado à água e ao esgotamento sanitário como direito humano em 2010, instando os Estados membros a instituírem leis para assegurar esse acesso a todos, de forma universal, igualitária e não discriminatória11 Office of the High Commissioner for Human Rights. General Comment No 15: The Rights To Water (Arts. 11 And 12 Of The Covenant) [Internet]. Ohchr; 2010 [cited on Jul 16, 2022]. Available at: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwi3gMKFpYv7AhUQqZUCHfBnBdMQFnoECBQQAQ&url=https%3A%2F%2Fwww.refworld.org%2Fpdfid%2F4538838d11.pdf&usg=AOvVaw1mRhmaARuUYIxIT0OmTlyX
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Ainda segundo o Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU, o acesso à água, da ótica do direito humano, deve respeitar requisitos como: disponibilidade, qualidade, aceitabilidade, acessibilidade financeira e acessibilidade física22 United Nations. Human rights indicators. A guide to measurement and implementation [Internet]. New York: United Nations; 2012. [cited on Jul 20, 2022]. Available at: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/issues/HRIndicators/AGuideMeasurementImplementationCover_en.pdf
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. Portanto, ao ser reconhecido como direito humano, o acesso à água passa a ser uma obrigação do Estado, que deve respeitá-lo, protegê-lo e garanti-lo. Assim, o Estado deve regular as ações dos atores não estatais, que, por sua vez, têm a responsabilidade de respeitar o direito humano à água evitando qualquer situação que possa violá-lo33 Winkler I, Roaf V. The human rights framework for water services. In: Bartram J, Baum R, Coclanis P, Gute D, Kay D, McFadyen S, et al., eds. Routledge handbook of water and health. London: Reutledge; 2015. https://doi.org/10.4324/9781315693606
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No entanto, no momento em que ocorrem desastres de grandes proporções, como o rompimento da barragem da Mina B1 em Córrego do Feijão (Brumadinho/MG), em 2019, da mineradora Vale, o acesso à água da população local transforma-se, podendo gerar novas formas de exposição aos riscos e, consequentemente, de efeitos sobre a saúde e a vida local tanto no curto quanto no médio e longo prazo.

O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho lançou no ambiente cerca de 13 milhões de m3 de rejeitos de minério, avançando como uma onda gigantesca sobre a bacia do Rio Paraopeba. Esse desastre ocasionou 265 mortes, cinco desaparecidos, vários feridos e um raio de destruição ambiental estimado em 270 hectares nas margens a jusante do Rio Paraopeba, considerando apenas os limites do município de Brumadinho44 Instituto Estadual de Floresta. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Nota técnica n° 5/2019/NUBIO-MG/DITEC-MG/SUPES-MG [Internet]. 2019 [cited on Mar 23, 2021]. Available at: http://ibama.gov.br/phocadownload/notas/2019/SEI_IBAMA-4666823-NotaTecnica-Ibama-IEF.pdf
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A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, em conjunto com a Secretaria de Estado de Saúde e a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, recomendou que a população não fizesse uso da água bruta do rio para nenhuma finalidade e determinou que a empresa responsável pelo desastre suprisse a população com água potável, em condições seguras para os seus mais diversos usos.

No âmbito da saúde, esse tipo de desastre, além de provocar novos riscos que comprometem o acesso à água e a qualidade dela, podem gerar alterações nos ciclos de vetores, hospedeiros e reservatórios de doenças e sobrecarregar os serviços de saúde local, prejudicando sua capacidade de prevenção, detecção e cuidado55 Organização Pan-Americana da Saúde. Ministério da Saúde. Desastres naturais e saúde no Brasil [Internet]. Brasília: OPAS; 2014. [cited on Aug 20, 2020]. Available at: https://www.paho.org/bra/dmdocuments/Desastres%20e%20Saude%20Brasil.pdf
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. Assim, para além de comprometer o acesso à água, desastres como esse produzem efeitos sobre o ecossistema, aumentando o risco potencial de doenças relacionadas à água, oferecendo perigos ambientais que incrementarão a morbidade, incidindo na qualidade de vida futura da população66 Jiménez De la Jara J, Torres Hidalgo M, Salcedo Hansen R. A cidade na perspectiva dos determinantes da saúde. In: Galvão LAC, Finkelman J, Henao S. Determinantes ambientais e sociais da saúde. Rio de Janeiro: OPAS; 2011. p. 233-57..

Diante disso, este artigo teve como objetivo descrever, da ótica dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES), o acesso à água e a incidência de doenças relacionadas à água em Córrego do Feijão e em Parque da Cachoeira após o rompimento da barragem da Mina B1 em Brumadinho.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de método misto, quantitativo e qualitativo, utilizando os dados quantitativos gerados pelo Projeto Saúde Brumadinho, que é um estudo de coorte prospectivo coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz em Minas Gerais (Fiocruz Minas) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e os dados quantitativos e qualitativos provenientes da pesquisa “Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020”.

Área de estudo

Brumadinho foi escolhido para este estudo por ser o município sede do desastre do rompimento da barragem da Mina B1 da mineradora Vale em 2019. Ele está localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e seus dados populacionais, de 2017 a 2020, serviram como base para a construção dos indicadores apresentados aqui.

A barragem em questão estava localizada no distrito de Córrego do Feijão e era margeada pelo distrito de Parque da Cachoeira, ambos pertencentes ao município. Visto isso, tais comunidades foram aqui evidenciadas por terem sido diretamente impactadas pelo desastre.

O plano amostral do Projeto Saúde Brumadinho foi desenhado para representar a população residente no município com 12 anos ou mais de idade e realizado em sua primeira etapa no ano de 2021. Especificamente para este estudo, foi feito um recorte populacional utilizando os dados estratificados das comunidades de Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira. Nessas comunidades todos os domicílios foram convidados a participar da pesquisa, correspondendo a 1.061 pessoas elegíveis. Ao final, a amostra contou com 981 pessoas entrevistadas totalizando 92,5% da população dessas comunidades. Os 7,5% não entrevistados foram considerados recusas, pois não quiseram participar da pesquisa ou não foram localizados nos domicílios.

As entrevistas extraídas da pesquisa “Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020” foram realizadas com quatro profissionais de saúde residentes nas comunidades de Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira.

Coleta de dados e variáveis de estudo

A construção dos questionários do estudo “Projeto Saúde Brumadinho” foi baseada em evidências científicas já produzidas sobre os efeitos de desastres para saúde das populações. A partir daí, as entrevistas foram realizadas por meio de questionário estruturado, padrão, aplicado por entrevistadores utilizando dispositivos eletrônicos, na residência do participante. O módulo domiciliar foi respondido por um morador adulto, e as entrevistas individuais foram realizadas com o próprio morador ou com auxílio de respondente próximo, caso o participante tivesse dificuldades para responder ao questionário (o que ocorreu em 9,1% das entrevistas).

Selecionaram-se, para fins de análise deste estudo, apenas as variáveis relacionadas a “acesso à água” e “doenças de veiculação hídrica” e dispostas no questionário com as seguintes perguntas: “nos últimos 30 dias, você teve algum episódio de cólicas ou dores abdominais?”; “atualmente, qual é a principal forma de abastecimento de água deste domicílio?; “atualmente, qual é a fonte principal da água usada para beber neste domicílio?”.

A coleta dos dados secundários deu-se mediante a extração, pela pesquisa “Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020”, de informações de bancos de dados públicos governamentais: Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), sistema de informações epidemiológicas do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde/Sistema de Informação de Vigilância (DATASUS/SIVEP) e Sistema IBGE de Recuperação Automática do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (SIDRA/IBGE) de 2017 a 2020, para o município de Brumadinho.

No SIDRA/IBGE foi extraída a estimativa populacional de Brumadinho para os anos de 2017 a 2020, que serviu de base para o cálculo dos indicadores. Os dados analisados, retirados do SNIS, foram sobre o abastecimento de água no município para os anos de 2017 e 2020. Já os dados analisados, retirados do DATASUS/SIVEP, foram as notificações das doenças relacionadas à transmissão fecal-oral (doenças diarreicas agudas e hepatites virais) e as notificações das doenças relacionadas à transmissão por inseto vetor (febre amarela, dengue, zika e chikungunya) para cada ano. Tais doenças foram escolhidas por terem seus dados atualizados nos bancos de dados públicos e refletirem, diretamente na saúde da população, as consequências da ausência ou deficiência no acesso à água.

Os dados qualitativos retirados dessa mesma pesquisa, de caráter primário, foram coletados em março de 2022 por meio de entrevistas utilizando roteiro semiestruturado e tiveram como objetivo a compreensão das alterações no acesso à água, bem como a incidência das doenças de veiculação hídrica nas comunidades da perspectiva dos entrevistados.

Análise dos dados

As análises dos dados coletados pelo estudo “Projeto Saúde Brumadinho” foram realizadas por meio do software R (RCore Team 2021) com a utilização do pacote Survey (Lumley T, 2020), considerando-se o peso amostral e o efeito de desenho, necessários para a análise dos dados de uma amostra complexa. Foram estimados as incidências das variáveis de interesse e os respectivos intervalos de confiança de 95%, e foi utilizado o teste χ2 de Pearson com correção de Rao-Scott para comparar as incidências entre as regiões de interesse.

Para a análise dos dados secundários coletados na pesquisa “Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020”, foram construídos os seguintes indicadores:

  1. Doenças relacionadas à transmissão fecal-oral=(doenças diarreicas agudas do ano de referência+hepatites virais do ano de referência)/total da população de Brumadinho do ano de referência;

  2. Doenças relacionadas à transmissão por inseto vetor (arboviroses)=(notificação dos casos de febre amarela do ano de referência+notificação dos casos de dengue do ano de referência+notificação dos casos de zika do ano de referência+notificação dos casos de chikungunya do ano de referência)/total da população de Brumadinho do ano de referência.

A análise dos dados qualitativos deste mesmo estudo foi feita mediante a técnica de análise de conteúdo77 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016..

Cabe ressaltar que, em ambos os estudos, o acesso à água foi analisado tendo como referência os elementos normativos definidos pelo DHAES (disponibilidade, acessibilidade física, qualidade e aceitabilidade).

Considerações éticas

O Projeto Saúde Brumadinho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Minas (20814719.5.0000.5091). Já a pesquisa “Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020” foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Minas (53250421.0.0000.5091).

Com os intuitos de manter a confidencialidade e preservar a identidade dos entrevistados na pesquisa “Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020”, eles foram aqui identificados com os códigos E1, E2, E3 e E4 e por meio das siglas referentes ao local de sua residência: Parque da Cachoeira (PC) e Córrego do Feijão (CF).

Em ambos os estudos, todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou Termo de Assentimento Livre e Esclarecido do menor, acompanhado pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido do seu responsável.

RESULTADOS

Acesso à água

De acordo com os dados extraídos do SNIS, em 2018 apenas 68,39% da população de Brumadinho era atendida com abastecimento de água (Tabela 1). Especificamente nas comunidades PC e CF, antes do rompimento da barragem, o fornecimento de água era realizado por meio de reservatórios localizados nas partes altas das comunidades, com captação de água diretamente no Rio Paraopeba e/ou em poços artesianos locais88 Companhia de Saneamento de Minas Gerais. Cronograma de abastecimento público via caminhão-pipa [internal document]. SPDA n° 076/2022.. Contudo, mesmo com essa forma de abastecimento, a disponibilidade e acessibilidade dos serviços eram asseguradas, conforme relato dos entrevistados: “Era um poço artesiano grande que encaminhava a água para as casas. Sei que a água nunca foi da [Companhia de Saneamento de Minas Gerais] Copasa nem nada não. Sempre foi desse poço” (E4, CF); “Antes da tragédia, minha casa não faltava água, não. Sempre tinha bastante água” (E1, PC).

Tabela 1
Taxa de abastecimento de água no município de Brumadinho (MG) entre 2017 e 2020.

Todavia, a imediata suspensão do uso das águas do Rio Paraopeba após o desastre fez com que os reservatórios para o fornecimento coletivo nas comunidades atingidas passassem a ser abastecidos por caminhões pipa99 Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Força-Tarefa Brumadinho. Processo n° 5000053-16.2019.8.13.0090.,1010 Aedas MG. Assessoria técnica independente. Matriz de medidas reparatórias emergenciais. Região 1 – Brumadinho [internal document].. Para 85% dos entrevistados pelo “Projeto Saúde Brumadinho” (Tabela 2), em 2021, o abastecimento dos reservatórios era realizado pela Copasa, porém quem provê essa água, por meio de caminhões pipa, é a mineradora Vale S.A., por causa do acordo de reparação de danos99 Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Força-Tarefa Brumadinho. Processo n° 5000053-16.2019.8.13.0090.,1010 Aedas MG. Assessoria técnica independente. Matriz de medidas reparatórias emergenciais. Região 1 – Brumadinho [internal document].. Essa informação também é percebida pelos moradores locais: “Tem um caminhão que abastece a caixa-d’água agora e tem um funcionário da prefeitura que fica lá fazendo o tratamento” (E4, CF).

Tabela 2
Formas de abastecimento de água dos domicílios em Brumadinho (MG).

Embora os dados demonstrem que a acessibilidade e a disponibilidade de água estão sendo garantidas após o rompimento da barragem, os relatos dos residentes das comunidades de CF e PC revelam que a realidade local é diferente da explicitada. Há recorrente falta de água na região desde o rompimento da barragem, afetando a disponibilidade do acesso: “Depois da tragédia, falta água até hoje. Essa semana estava sem água a semana toda. Antes da tragédia não faltava” (E1, PC).

Importante ressaltar que a orientação das autoridades locais à população atingida é a de utilizar a água de abastecimento coletivo apenas para banho, higienização da casa e demais serviços domésticos1010 Aedas MG. Assessoria técnica independente. Matriz de medidas reparatórias emergenciais. Região 1 – Brumadinho [internal document].. Vê-se então que, mesmo com esse recorrente abastecimento de água, a quantidade disponibilizada ainda é insuficiente para atendimento às necessidades básicas da população. Além disso, os relatos também demonstram que a pouca água que chega às torneiras é de qualidade duvidosa: “A gente vive desconfiada, né. Toma banho com medo. É um cheiro forte que sai. Parece que está tudo contaminado, água, solo, verduras…” (E2, PC). “É uma água barrenta, amarelada, que não é normal” (E3, PC).

Cabe salientar que a água para beber e cozinhar é fornecida pela mineradora Vale, conforme acordo de reparação, e verifica-se sua continuidade por meio dos dados do “Projeto Saúde Brumadinho” (Tabela 3). Para os moradores, no início do processo de distribuição de água mineral, em 2019, logo após o desastre, a quantidade era suficiente e atendia à demanda familiar, no entanto a quantidade distribuída semanalmente foi sendo reduzida e hoje em dia é considerada insuficiente por alguns que têm de buscar água em outros locais, afetando o elemento do DHAES relacionado à acessibilidade física: “Falta muita água aqui, e a Vale está dando uns fardos que não dá. Antes eram 10 fardos, agora eles entregam cinco fardos toda segunda. Só pra fazer comida, beber e não dá” (E3, PC).

Tabela 3
Fonte de água usada para beber.

No início a gente recebia 20 fardos com seis garrafas de 1,5 litro toda semana. Agora passou para 10 fardos por semana. […] Quando falta a gente pede [para] alguém, quando a pessoa mora sozinha ou não tem muita gente na família. Quem tem mais vai passando uns para os outros, ajudando assim (E4, CF).

Observa-se nos relatos que a distribuição de água pela empresa Vale S.A. aumenta ainda mais a desconfiança da população local sobre a contaminação do ambiente e da água do Rio Paraopeba:

É engraçado, olha pra você ver. A Vale dá essa água para consumo, né, mas a gente toma banho, rega as plantas sem ser com essa água aí que a Vale dá. E aí? Acho que todo mundo pensa isso também. Por que está distribuindo? Porque certamente está tudo contaminado (E2, PC).

Doenças relacionadas ao abastecimento inadequado de água

De acordo com os dados secundários coletados e utilizados pela pesquisa “Condições de Saneamento e Saúde da População da Bacia do Rio Paraopeba, a Jusante da Barragem B1 da Mineradora Vale, entre 2017 e 2020”, em 2019 foi observado expressivo aumento nas notificações das doenças relativas à transmissão fecal-oral em relação aos anos pré-desastre, conforme Gráfico 1.

Gráfico 1
Taxa de notificação das doenças de transmissão fecal-oral (por 1.000 habitantes) no município de Brumadinho (MG).

Embora essas notificações tenham caído no município no ano de 2020, o “Projeto Saúde Brumadinho” identificou que em 2021 19% (intervalo de confiança de 95% — IC95%: 16,4–22) da população das comunidades de CF e PC relatou algum episódio de dores abdominais ou cólicas nos últimos 30 dias, contra 11,8% (IC95% 10–14) da população das demais regiões (p<0,001), indicando que, mesmo com uma notificação menor, os possíveis sintomas de doenças de transmissão fecal-oral na população das comunidades atingidas persistem.

Essa subnotificação dos casos também é relatada pelos entrevistados associada à intensa desconfiança sobre a qualidade da água que chega até a casa das pessoas: “É muito difícil a pessoa vir ao posto de saúde por causa de diarreia. A não ser que esteja exageradamente incomodo” (E2, PC).

Aqui, por exemplo, a gente passava num lugar e fulano estava com diarreia, aí outro comentava que fulano também estava. Tudo na mesma semana. Aí, na outra semana, uma turma diferente tinha. Mas ninguém ia no posto de saúde. Tudo travava em casa com soro e chá (E4, CF).

De seis pessoas da casa, só uma pessoa veio ao posto. Então, quer dizer que só uma notificou, ficou cinco pra notificar. Aí eles falam que comeram alguma coisa. Não é que eles comeram alguma coisa, é a água, é a água” (E1, PC).

Os dados secundários também demonstraram em 2019 uma variação expressiva nas notificações das arboviroses (dengue, zica, febre amarela e chikungunya) em relação aos anos anteriores, conforme Gráfico 2. Tais doenças são de notificação compulsória, porém há relatos de possíveis subnotificações: Assim que rompeu, passando meses, teve bastante casos. Mas agora com essas doenças novas, corona, às vezes a pessoa pegou até uma dengue e nem sabe. Porque hoje a gente nem sabe identificar o que é dengue, Covid, exatamente (E1, PC).

Gráfico 2
Taxa da notificação das arboviroses (por 1.000 habitantes) no município de Brumadinho (MG).

DISCUSSÃO

Os impactos de grandes empreendimentos, como os da mineração e das barragens, são forças motrizes que interferem nos determinantes socioambientais do saneamento1111 Neves-Silva P, Heller L. Rompimento da barragem em Brumadinho e o acesso à água das comunidades atingidas: um caso de direitos humanos. Cienc. Cult 2020; 72(2): 47-50. http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200013
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. Tais constatações vão ao encontro dos impactos identificados tanto no município de Brumadinho como um todo quanto nas comunidades diretamente impactadas de CF e PC, de acordo com os resultados demonstrados. As informações apresentadas nos resultados deixaram claros a relação da degradação ambiental decorrente do rompimento da barragem e o não cumprimento dos atributos normativos do DHAES.

De acordo com os entrevistados, desde o rompimento da barragem, no início de 2019, até os dias atuais existe indisponibilidade hídrica sem precedentes na região. Verificou-se que, mesmo com abastecimento dos reservatórios comunitários locais por caminhão pipa, existe recorrente falta de água para uso geral.

Sobre a quantidade de água para ingestão e cocção, distribuída pela mineradora Vale, identificou-se que ela não é considerada suficiente pelos moradores, e estes dependem da ajuda de vizinhos e amigos para conseguirem satisfazer às suas necessidades básicas. Vê-se então que tanto a disponibilidade como a acessibilidade à água nas comunidades estão comprometidas.

Fora isso, a qualidade da água que chega até a casa das pessoas é duvidosa, o que pode ser fonte provável das doenças de veiculação hídrica, além da não completude das necessidades diárias básicas e de comprometer a realização do atributo de aceitabilidade do DHAES. Essa informação aponta para a relação entre o desastre e suas consequências na saúde da população local.

A piora na qualidade da água que chega às torneiras, juntamente com a insuficiência na distribuição de água para ingestão, refletiu no aumento da incidência de doenças de veiculação hídrica, que foi explícito sobretudo no ano de 2019. Na literatura, estudos vêm amplamente evidenciando a qualidade e a quantidade de água como fatores determinantes para a doença diarreica aguda1212 Silva PN, Cabral AR, Dias AP, Matida AH, Kligerman DC, Carneiro FF, et al. Saneamento e saúde. Saneamento: entre os direitos humanos, a justiça ambiental e a promoção da saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018. [cited on May 10, 2021]. Available at: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/46304/2/06_saneamento.pdf
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1919 Fewtrell L, Kaufmann RB, Kay D, Enanoria W, Haller L, Colford Jr JM. Water, sanitation, and hygiene interventions to reduce diarrhea in less developed countries: a systematic review and meta-analysis. Lancet Infec Dis 2005; 5(1): 42-52. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(04)01253-8
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Mesmo com a diminuição dos casos no município de Brumadinho em 2020 (Gráfico 1), os moradores de CF e PC continuaram relatando possíveis sintomas de doenças de transmissão fecal-oral tanto em 2021 quanto em 2022. Isso nos sugere que há aumento da subnotificação dessas doenças, assim como continuidade temporal dos casos nessa região.

No caso das arboviroses, sabe-se que elas podem estar relacionadas às alterações do uso da água, principalmente em decorrência da indisponibilidade hídrica e de complicações na acessibilidade. Ou seja, o comprometimento no acesso à água torna o meio favorável para a disseminação dessas doenças2020 Kronemberger DM, Pereira RS, Freitas EAV, Scarcello JA, Clevelario Junior J. Saneamento e meio ambiente [Internet]. In: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas de Saneamento; 2011. [cited on May 10, 2021]. Available at: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv53096_cap3.pdf
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. Isso ocorre porque a deficiência no abastecimento por água encanada obriga a população a armazenar água em reservatórios desprotegidos, sem tampas ou telas e em local aberto, habilitando mais um criadouro para o mosquito transmissor2121 Queiros JTM, Silva PN, Heller L. Novos pressupostos para o saneamento no controle de arboviroses no Brasil. Cad Saúde Pública 2020; 36(5): e00233719. https://doi.org/10.1590/0102-311X00223719
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Cabe ressaltar que, para as populações rurais, a importância do acesso à água não se limita a questões como beber e realizar a higiene pessoal e da casa; a água também é necessária ao cuidado com os animais, à produção de alimentos para consumo próprio, à geração de renda e às práticas culturais, sociais e de cuidado. Nesse sentido, quando não há acesso adequado à água, essas formas de uso ficam prejudicadas, impactando o modo de vida da população2222 Almeida LS, Cota ALS, Rodrigues DF. Saneamento, arboviroses e determinantes ambientais: impactos na saúde urbana. Ciênc Saude Coletiva 2020; 25(10): 3857-68. https://doi.org/10.1590/1413-812320202510.30712018
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,2323 Neves-Silva P, Lopes JAO, Heller L. The right to water: impact on the quality of life of rural workers in a settlement of the Landless Workers Movement, Brazil. PLoS One 2020; 15(7): e0236281. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0236281
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Visto isso, pode-se afirmar que a falta de acesso adequado à água, além de violar os atributos normativos do DHAES, impacta diretamente na saúde dos territórios estudados, aumentando as desigualdades sociais locais, podendo também acentuar situações de vulnerabilidade social e econômica. Portanto, tem-se então como necessária a discussão da garantia desses atributos normativos na região, de forma aprofundada, em conjunto com as metodologias qualitativas e quantitativas, principalmente voltadas para melhorar a saúde da população local e ser instrumento de fortalecimento da comunidade na reconstrução dos territórios impactados pela tragédia.

  • Fonte de financiamento: O estudo foi financiado com recursos públicos e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Minas, como segue: o Projeto Saúde Brumadinho é financiado pelo Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (DECIT/SCTIE) do Ministério da Saúde (Processo 25000.127551/2019-69) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Minas (20814719.5.0000.5091).

AGRADECIMENTOS:

Agradecemos ao Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, o financiamento das pesquisas.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Revisado
    12 Set 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
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