RESUMO
Objetivo:
Analisar a utilização de ivermectina como prevenção da COVID-19 pela população de Mato Grosso em 2020.
Métodos:
Trata-se de um inquérito de base domiciliar, realizado entre setembro e outubro de 2020, em dez municípios-polos das regiões socioeconômicas do estado. O uso da ivermectina foi avaliado por meio da pergunta: “Tomou ivermectina para prevenir a COVID-19?”. Foram avaliadas as variáveis sociodemográficas (sexo, faixa etária, escolaridade, renda familiar), a situação de trabalho atual, o recebimento de benefícios financeiros governamentais, bem como sintomas, a soroprevalência de anticorpos contra SARS-CoV-2 e o diagnóstico prévio de COVID-19. As estimativas de prevalência e suas associações foram realizadas por meio do teste χ2.
Resultados:
Foram analisados 4.206 indivíduos, e a prevalência de uso de ivermectina foi de 58,3%, sendo maior nos municípios da região Oeste (66,6%). Não houve diferença significativa entre os sexos, a prevalência foi maior na da faixa etária de 50–59 anos (69,7%), em pessoas brancas (66,5%), com ensino superior completo ou mais (68,8%) e maior renda familiar (≥3 salários-mínimos — 64,2%). A utilização do medicamento ainda foi maior entre os que consideraram seu conhecimento sobre a doença como bom ou muito bom (65,0%), entre os que referiram ter apresentado sintomas de COVID-19 (75,3%) e que foram diagnosticados com a doença previamente (91,2%).
Conclusão:
Verifica-se a elevada a prevalência do uso de ivermectina para a prevenção da COVID-19 pela população de Mato Grosso, indicando a necessidade de estratégias para informar a população sobre os riscos do uso off-label de medicamentos e combater a publicidade de medicamentos sem eficácia contra COVID-19.
Palavras-chave:
COVID-19; Uso off-label; Ivermectina; Coronavírus; Estudos transversais
INTRODUÇÃO
Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto causado pelo vírus SARS-CoV-2 constituía uma emergência de saúde pública de importância internacional e, em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como pandemia. Nesse contexto se configurou também um fenômeno denominado infodemia, termo utilizado para descrever o aumento no fluxo de informações circulando acerca de um assunto, algumas precisas e outras não, o que dificulta a seleção dessas informações pela população11 Zielinski C. Infodemics and infodemiology: a short history, a long future. Rev Panam Salud Publica 2021; 5: e40. https://doi.org/10.26633/RPSP.2021.40
https://doi.org/10.26633/RPSP.2021.40... .
Em excesso, essas informações podem ser usadas não para ajudar a população, mas sim para manipulá-las de acordo com interesses de terceiros22 Garcia LP, Duarte E. Infodemia: excesso de quantidade em detrimento da qualidade das informações sobre a COVID-19. Epidemiol Serv Saúde 2020; 29(4): e2020186. http://doi.org/10.1590/s1679-49742020000400019
http://doi.org/10.1590/s1679-49742020000... . No primeiro ano da pandemia da COVID-19, em que ainda não havia vacinas aprovadas para sua prevenção e os tratamentos terapêuticos estavam em avaliação, um assunto bastante publicizado foi a utilização de medicamentos sem comprovação científica33 Popp M, Stegemann M, Metzendorf MI, Gould S, Kranke P, Meybohm P, et al. Ivermectin for preventing and treating COVID-19. Cochrane Database Syst Rev 2021; 7(7): CD015017. http://doi.org/10.1002/14651858.CD015017.pub2
http://doi.org/10.1002/14651858.CD015017... , como hidroxicloroquina ou cloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida, além dos suplementos de zinco e das vitaminas C e D44 Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37(4): e00053221. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00053221
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Especificamente a ivermectina, apesar de não ter até o momento eficácia comprovada contra o novo coronavírus55 Naggie S, Boulware DR, Lindsell CJ, Stewart TG, Gentile N, Collins S, et al. Effect of ivermectin vs placebo on time to sustained recovery in outpatients with mild to moderate COVID-19 a randomized clinical trial. JAMA 2022; 328(16): 1595-603. https://doi.org/10.1001/jama.2022.18590
https://doi.org/10.1001/jama.2022.18590... , foi recomendada por médicos, secretarias de saúde e governo federal como parte do chamado tratamento precoce, o que fez com que esses medicamentos tivessem um pico de venda que movimentou a receita de seus laboratórios. A venda da ivermectina obteve um salto de R$ 44,4 milhões em 2019 para R$ 409 milhões em 2020, representando alta de 829%44 Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37(4): e00053221. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00053221
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00053... ,66 Scaramuzzo M. Venda de remédios do ‘kit covid’ movimenta R$ 500 mi em 2020. Valor Econômico [Internet]. 2021 [cited on Jun 7, 2022]. Available at: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/02/05/venda-de-remedios-do-kit-covid-movimenta-r-500-mi-em-2020.ghtml
https://valor.globo.com/empresas/noticia... . Em Mato Grosso, por exemplo, houve a adoção do chamado “kit COVID”, que incluía medicamentos sem eficácia comprovada para COVID-1977 Celestino C. Centro de triagem entregou mais de 12 mil kits de medicamentos para tratamento da COVID-19. Governo do Estado de Mato Grasso. Secretaria de Estado de Saúde [Internet]. 2020 [cited on Jun 7, 2022]. Available at: http://www.saude.mt.gov.br/noticia/6786
http://www.saude.mt.gov.br/noticia/6786... . Na capital do estado, por exemplo, o uso do kit foi regulamentado para uso nas unidades de saúde, e os pacientes foram orientados a ler e assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para o uso dos medicamentos como tratamento sem comprovação da eficácia no combate à COVID-1988 Prefeitura de Cuiabá. Portaria n° 053, de 26 de junho de 2020. Cuiabá MT, 2020. Disponibiliza a distribuição dos medicamentos que compõem o KIT COVID-19 nas unidades de Atenção Básica e Secundária do Município de Cuiabá, mediante prescrição médica e disponibilidade dos medicamentos na rede. Diário Oficial do Município de Cuiabá, 26 de junho de 2020. [cited on Jun 7, 2022]. Available at: https://www.cuiaba.mt.gov.br/download.php?id=113017
https://www.cuiaba.mt.gov.br/download.ph... .
Os achados da literatura mostram que são poucos os estudos que avaliaram o perfil das pessoas que fizeram o uso da ivermectina como forma de prevenção contra a COVID-19. Apenas o estudo de base populacional de Manaus estimou essa utilização, verificando que 38% das pessoas fizeram automedicação para prevenir ou tratar a COVID-19, e 31% utilizaram ivermectina. A proporção foi ainda maior de automedicação entre os que tiveram diagnóstico prévio de COVID-19 (73%), e 67,5% fizeram uso de ivermectina99 Lalwani P, Salgado BB, Pereira-Filho IV, Silva DSS, Morais TBN, Jordão MF, et al. SARS-CoV-2 seroprevalence and associated factors in Manaus, Brazil: baseline results from the DETECTCoV-19 cohort study. Int J Infect Dis. 2021; 110: 141-50. https://doi.org/10.1016/j.ijid.2021.07.017
https://doi.org/10.1016/j.ijid.2021.07.0... . O conhecimento do perfil dos usuários desse medicamento pode colaborar para a compreensão do fenômeno ocorrido no primeiro ano da pandemia de COVID-19 no uso off-label de medicamentos sem eficácia comprovada. Diante disso, o presente estudo teve como objetivo analisar a utilização de ivermectina como prevenção da COVID-19 pela população de Mato Grosso no ano de 2020, primeiro ano da pandemia.
MÉTODOS
Trata-se de um inquérito de base domiciliar realizado entre setembro e outubro de 2020 em dez municípios-polos das regiões socioeconômicas do estado, tendo como principais cidades: Cuiabá, Várzea Grande, Cáceres, Rondonópolis, Barra do Garças, Tangará da Serra, Alta Floresta, Água Boa, Juína e Sinop. Foi adotado delineamento transversal, com amostragem por conglomerado em três estágios: setor censitário (selecionado com probabilidade proporcional ao número de domicílios permanentes, conforme dados do censo de 2010); domicílio (selecionado com base em uma amostragem sistemática); morador com mais de 18 anos (um morador selecionado de forma aleatória)1010 Oliveira EC, Terças-Trettel ACP, Andrade ACS, Muraro AP, Santos ES, Espinosa MM, et al Prevalência de anticorpos contra SARS-CoV-2 em Mato Grosso, Brasil: pesquisa de base populacional. Cad Saude Pública 2022; 38(5):e00093021. https://doi.org/10.1590/0102-311XPT093021
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A amostra foi estimada em 4.530 indivíduos, sendo considerada para o cálculo amostral a estimativa populacional de 2019 para os municípios selecionados (espaço amostral: 1.650.643 habitantes dos dez municípios integrantes do estudo), adotando-se nível de confiança de 95%, efeito de desenho igual a 1,5, prevalência de 3% de soroprevalência de antígenos contra o SARS-CoV-2 e precisão de 0,65%. O tamanho da amostra foi calculado com a ferramenta OpenEpi1111 Dean AG, Sullivan KM, Soe MM. OpenEpi: open source epidemiologic statistics for public health [Internet]. 2013 [cited on Jun 7, 2022]. Available at: www.OpenEpi.com.. Adicionou-se ao tamanho da amostra o percentual de 13% de recomposição, considerando-se as perdas antecipadas advindas de recusas e da existência de domicílios fechados durante a visita. Maiores detalhes sobre o delineamento do estudo podem ser acessados em Oliviera et al.1010 Oliveira EC, Terças-Trettel ACP, Andrade ACS, Muraro AP, Santos ES, Espinosa MM, et al Prevalência de anticorpos contra SARS-CoV-2 em Mato Grosso, Brasil: pesquisa de base populacional. Cad Saude Pública 2022; 38(5):e00093021. https://doi.org/10.1590/0102-311XPT093021
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A coleta dos dados foi realizada por profissionais das secretarias municipais e estaduais de saúde, bem como estudantes de cursos da área da saúde das universidades parceiras, após treinamento para padronização das entrevistas. Durante a coleta, o setor censitário selecionado foi percorrido seguindo uma sistemática para a seleção dos domicílios por pulos determinados para cada setor. Se o domicílio selecionado estava vazio no momento ou o morador selecionado não concordava em participar da pesquisa, a casa seguinte à esquerda foi tomada como substituição.
No domicílio, um morador com mais de 18 anos foi selecionado aleatoriamente para responder ao questionário estruturado que foi aplicado por meio de aparelhos celulares (IOS ou Android) pelo software Epi InfoTM, com exportação diária para a composição do banco de dados final. O trabalho de campo foi conduzido por um coordenador em cada município em parceria com o técnico do Escritório Regional de Saúde de abrangência do município selecionado.
Neste estudo, foram analisadas as informações sobre o uso de ivermectina para prevenir a COVID-19 por meio da pergunta: “tomou ivermectina para prevenir a COVID-19?”, tendo como opções de resposta: “eu já fiz isso”, “continuo fazendo isso”, “pretendo fazer” e “não pretendo fazer”. Para a análise, a variável foi dicotomizada em não (“não pretendo fazer”) e sim (“já fiz”, “continuo fazendo” ou “pretendo fazer”). Apenas 49 indivíduos referiram pretender fazer o uso, portanto foram considerados na categoria “sim”.
As variáveis sociodemográficas empregadas foram: macrorregião de saúde do município (Norte, Centro-Norte, Leste, Oeste, Sul e Centro-Noroeste; porte do município (pequeno — até 65 mil hab.; médio — 65 mil a 150 mil hab.; e grande — >150 mil hab.); sexo; faixa etária (18 a 29, 30 a 49, 50 a 59, 60 e mais); raça/cor (branca, parda, preta, amarela e indígena); escolaridade (até fundamental completo, médio incompleto e completo, superior completo ou mais); e renda familiar (menos de um salário-mínimo (menos de R$ 1.045,00), de um a menos de três salários-mínimos (de R$ 1.045,00 a R$ 3.134,99); três ou mais salários-mínimos (R$ 3.135,00 ou mais). Os entrevistados também foram questionados sobre a situação de trabalho atual (trabalha, estuda, trabalha e estuda, aposentado, dona de casa, não trabalha/não estuda) e se algum morador do domicílio recebia benefício financeiro governamental (sim/não). Avaliou-se a alteração da renda familiar mensal com as medidas de distanciamento social, por meio das seguintes categorias: diminuiu totalmente ou mais que a metade, diminuiu pela metade, diminuiu menos da metade, não diminuiu ou aumentou.
Perguntou-se também se o entrevistado já havia sido infectado (análise laboratorial) e diagnosticado com COVID-19 e sobre a apresentação de sintomas no período anterior à entrevista ou se estava com sintomas naquele período. Além disso, examinou-se a autoavaliação do conhecimento sobre a COVID-19. A análise laboratorial foi conduzida utilizando kit comercial importado pela Diasorin (Registro do Ministério da Saúde: 103.398.40-56), da empresa italiana Liaison®, sob lote 354020 e validade 15 de dezembro de 2020; e foi feita por meio da quimioluminescência, para a determinação quantitativa de anticorpos do tipo imunoglobulina G (IgG) contra as proteínas S1 e S2 do SARS-CoV-2, com relato do fornecedor de 97,4% de sensibilidade (percentual de acerto de positivos) e 98,5% de especificidade (percentual de acerto de negativos). Os autores também fizeram uma validação interna, além de seguirem os protocolos de biossegurança do Laboratório Central de Saúde Pública do Mato Grosso (LACEN-MT) em todas as etapas da testagem. A escolha desse teste foi realizada após acesso aos kits comerciais disponíveis e testagem interna para a aferição da qualidade.
Sobre o conhecimento com relação à COVID-19 e seu tratamento, questionou-se dos entrevistados como eles avaliavam seu conhecimento sobre a doença, a ser categorizado em bom/muito bom; regular; e ruim/muito ruim. Além disso, como opções para a pergunta “sobre o tratamento da doença, você acredita que…” havia estas opções de resposta: “existe um medicamento para tratar o novo coronavírus”; “existe uma vacina para o novo coronavírus”; “existe medicamento e vacina para o novo coronavírus”; “não há medicamento ou vacina para o novo coronavírus”; e “não sei”.
Todas as análises foram realizadas utilizando-se o software Stata 12. Foram feitas com o comando “svy”, que permite incorporar fatores de ponderação e considera o desenho complexo da amostra. O peso amostral de cada unidade selecionada (setor censitário, domicílio e indivíduo) foi calculado separadamente para cada município, considerando o inverso da probabilidade de seleção conforme o plano de amostragem do estudo, e foram incluídas as calibrações para ajustes dos totais populacionais conhecidos. As variáveis foram descritas por meio de frequências relativas. Foi aplicado o teste χ2 de Pearson para avaliar a associação entre as variáveis. Considerou-se o nível de significância estatística de 5% (α≤0,05).
Foram respeitados todos os aspectos éticos em pesquisa, de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Este projeto integra o projeto matricial “Doenças Endêmicas e Epidêmicas de Mato Grosso” com apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e Parecer de aprovação no 3.986.293/2020. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram atendidos em seus domicílios seguindo-se protocolos rígidos de biossegurança.
RESULTADOS
De 4.306 visitas realizadas (95% da amostra estimada), foram analisadas 4.206 (92,8% da amostra estimada), que também tiveram a amostra da coleta de sangue avaliadas. A prevalência do uso de ivermectina para prevenir a COVID-19 em Mato Grosso foi de 58,3%, sendo maior na região Oeste (66,6%) e menor na região Norte (39,7%) do estado (Tabela 1).
Prevalência do uso de ivermectina para prevenir a COVID-19, segundo variáveis sociodemográficas e econômicas. Mato Grosso, setembro/outubro de 2020.
A população foi composta de adultos (≥18 anos), em sua maioria homens (53,8%), na faixa etária de 30 a 49 anos (42,5%), com 60 anos e mais (22,4%) e 50 a 59 anos (17,70%). Observou-se ainda que a maior proporção se autodeclara parda (55,27%), com ensino médio incompleto (42,0%), renda familiar de um a três salários-mínimos (55,1%) e afirma receber receber auxílios ou benefícios (66,9%). Quando foi perguntado se houve alteração na renda familiar mensal, 59,4% afirmaram não ter havido diminuição nem aumento com as medidas de distanciamento social (Tabela 1).
Não houve diferença significativa no uso de ivermectina entre os sexos e porte do município, renda e alteração da renda, além da rotina no último mês. Por outro lado, foi maior a prevalência de uso do medicamento entre os entrevistados da faixa etária de 50 a 59 anos, que se declararam brancos, com maior escolaridade (nível superior ou mais) e maior renda familiar (três ou mais salários-mínimos) (Tabela 1).
A Tabela 2 mostra que 12,5% testaram positivo no teste sorológico para SARS-CoV-2 e 75,3% não tiveram sintomas da doença. Quando indagados se já tiveram COVID-19, 4,5% dos entrevistados afirmaram que tiveram confirmação pelo teste. Apenas 24,8% dos participantes consideraram seu conhecimento sobre o novo coronavírus ruim ou muito ruim. A prevalência de uso de ivermectina foi maior entre os que apresentaram teste sorológico positivo para anticorpos contra o SARs-CoV-2, os que relataram ter apresentado sintomas da doença e que consideraram o seu conhecimento sobre COVID-19 como bom ou muito bom. Destacou-se o fato de quase a totalidade dos casos que relataram ter sido diagnosticado com COVID-19 terem feito uso de ivermectina (91,2%).
Prevalência do uso de ivermectina para prevenir a COVID-19, segundo resultado do teste sorológico, diagnóstico prévio de COVID-19 e sintomas referidos. Mato Grosso, setembro/outubro de 2020.
A prevalência do uso de ivermectina foi maior entre os indivíduos que consideraram seu conhecimento sobre a doença como bom ou muito bom (65,0%). Apenas 18% dos entrevistados informaram não saber se havia tratamento ou vacina para COVID-19, verificando-se maior prevalência do uso de ivermectina entre aqueles que informaram acreditar que já existia medicamento para tratar a COVID-19 (66,9%).
DISCUSSÃO
Por meio de inquérito soroepidemiológico de base domiciliar realizado em Mato Grosso, estimou-se que 58,3% dos entrevistados fizeram uso de ivermectina para prevenir a COVID-19, havendo diferenças entre as regiões de saúde do estado e maior uso entre os de maior faixa etária, escolaridade e renda. Destacou-se que a maioria dos indivíduos que apresentavam anticorpos para COVID-19, aqueles que relataram ter apresentado sintomas e os que tiveram confirmação laboratorial para doença, fizeram uso do medicamento, até então sem eficácia comprovada.
A literatura científica já mostrou que houve grande procura pela ivermectina para prevenir e tratar a COVID-191212 Bryant A, Lawrie TA, Dowswell T, Fordham EJ, Mitchell S, Hill SR, et al. Ivermectin for prevention and treatment of COVID-19 infection: a systematic review, meta-analysis, and trial sequential analysis to inform clinical guidelines. Am J Ther 2021; 28(4): e434-e460. https://doi.org/10.1097/MJT.0000000000001402
https://doi.org/10.1097/MJT.000000000000... ,1313 Molento MB. COVID-19 and the rush for self-medication and self-dosing with ivermectin: a word of caution. One Health 2020; 10: 100148. https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2020.100148
https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2020.10... . O cenário de medo e ansiedade imposto pela pandemia do novo coronavírus impulsionou a busca por estratégias farmacológicas terapêuticas e/ou profiláticas, porém a inexistência de um medicamento com eficácia comprovada contra o SARS-CoV-2 durante os primeiros anos da pandemia estimulou a população a utilizar medicamentos ainda em avaliação com relação ao vírus1414 Bramante CT, Huling JD, Tignanelli CJ, Buse JB, Liebovitz DM, Nicklas JM, et al. Randomized trial of metformin, ivermectin, and fluvoxamine for Covid-19. N Engl J Med 2022; 387(7): 599-610. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2201662
https://doi.org/10.1056/NEJMoa2201662... . Entretanto, verificou-se que dor abdominal, diarreia e alteração do paladar foram mais frequentes entre os casos de COVID-19 que receberam múltiplas doses dessa droga1515 Pedroso C, Vaz S, Martins Netto E, Souza S, Deminco F, Mayoral R, et al. Self-prescribed ivermectin use is associated with a lower rate of seroconversion in health care workers diagnosed with COVID, in a dose-dependent response. Braz J Infect Dis 2021; 25(4): 101603. https://doi.org/10.1016/j.bjid.2021.101603
https://doi.org/10.1016/j.bjid.2021.1016... , e dor abdominal entre aqueles que receberam dose única1616 Mohan A, Tiwari P, Suri TM, Mittal S, Patel A, Jain A, et al. Single-dose oral ivermectin in mild and moderate COVID-19 (RIVET-COV): a single-centre randomized, placebo-controlled trial. J Infect Chemother 2021; 27(12): 1743-9. https://doi.org/10.1016/j.jiac.2021.08.021
https://doi.org/10.1016/j.jiac.2021.08.0... . Além disso, doses elevadas de ivermectina foram associadas à hipotensão e a efeitos neurológicos, como diminuição da consciência, confusão, alucinações, convulsões, coma e morte1717 CDC Health Alert Network. Rapid increase in ivermectin prescriptions and reports of severe illness associated with use of products containing ivermectin to prevent or treat COVID-19 [Internet]. 2021 [cited on Jun 7, 2022]. Available at: https://emergency.cdc.gov/han/2021/pdf/CDC_HAN_449.pdf
https://emergency.cdc.gov/han/2021/pdf/C... . Ainda existem potenciais riscos do uso da ivermectina, como reações cutâneas, sistêmicas e oftalmológicas1818 Merck. Company statement. Merck statement on ivermectin use during the COVID-19 pandemic [Internet]. 2021. [cited on Jun 7, 2022]. Available at: https://www.merck.com/news/merck-statement-on-ivermectin-use-during-the-covid-19-pandemic/
https://www.merck.com/news/merck-stateme... .
No Brasil, são poucos os estudos que avaliaram a automedicação no contexto da COVID-19 e que incluíram a ivermectina entre os fármacos avaliados33 Popp M, Stegemann M, Metzendorf MI, Gould S, Kranke P, Meybohm P, et al. Ivermectin for preventing and treating COVID-19. Cochrane Database Syst Rev 2021; 7(7): CD015017. http://doi.org/10.1002/14651858.CD015017.pub2
http://doi.org/10.1002/14651858.CD015017... ,77 Celestino C. Centro de triagem entregou mais de 12 mil kits de medicamentos para tratamento da COVID-19. Governo do Estado de Mato Grasso. Secretaria de Estado de Saúde [Internet]. 2020 [cited on Jun 7, 2022]. Available at: http://www.saude.mt.gov.br/noticia/6786
http://www.saude.mt.gov.br/noticia/6786... . No presente trabalho, não é possível diferenciar o uso de ivermectina como automedicação ou após prescrição médica, sendo verificado que mais da metade dos entrevistados fizeram uso do medicamento. Tal resultado foi superior aos estimado em inquérito realizado em Manaus, no qual foi estimado que 38,6% dos indivíduos fizeram automedicação para prevenir a infecção por SARS-CoV-2, sendo a azitromicina e a ivermectina os fármacos mais utilizados99 Lalwani P, Salgado BB, Pereira-Filho IV, Silva DSS, Morais TBN, Jordão MF, et al. SARS-CoV-2 seroprevalence and associated factors in Manaus, Brazil: baseline results from the DETECTCoV-19 cohort study. Int J Infect Dis. 2021; 110: 141-50. https://doi.org/10.1016/j.ijid.2021.07.017
https://doi.org/10.1016/j.ijid.2021.07.0... .
Este estudo identificou que uso da ivermectina foi maior entre os indivíduos de 50 a 59 anos (69,7%), o que pode estar relacionado ao fato de essa faixa etária ser considerada economicamente ativa e ter maior risco para o agravamento da doença, bem por essas pessoas estarem se sentindo com medo de contrair a forma mais grave e acabarem tomando medicamentos com a intenção de prevenir ou tratar a COVID-191919 Ebi SJ, Deml MJ, Jafflin K, Buhl A, Engel R, Picker J, et al. Parents’ vaccination information seeking, satisfaction with and trust in medical providers in Switzerland: a mixed-methods study. BMJ Open 2022; 12(2): e053267. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2021-053267
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2021-053... .
Ainda com relação ao perfil dos usuários de ivermectina no contexto estudado, a maior prevalência foi entre os que se autodeclararam brancos, com ensino superior completo e com três ou mais salários-mínimos. Esses fatores podem indicar maior descrédito das informações oficiais ou menor percepção de risco da doença entre indivíduos de maior nível socioeconômico, a exemplo do que já foi discutido em estudos anteriores quanto às possíveis explicações da recusa à vacinação, que incluem, além desses fatores, as múltiplas e divergentes fontes de informação diposníveis1919 Ebi SJ, Deml MJ, Jafflin K, Buhl A, Engel R, Picker J, et al. Parents’ vaccination information seeking, satisfaction with and trust in medical providers in Switzerland: a mixed-methods study. BMJ Open 2022; 12(2): e053267. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2021-053267
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2021-053... ,2020 Hijazi R, Gesser-Edelsburg A, Feder-Bubi P, Mesch GS. Pro-vaccination groups expressing hesitant attitudes: a cross-sectional study about the difference between attitudes and actual behavior in Israel. Front Public Health 2022; 10: 871015. https://doi.org/10.3389/fpubh.2022.871015
https://doi.org/10.3389/fpubh.2022.87101... . Tal hipótese é reforçada pelo resultado verificado aqui de maior uso do medicamento entre os indivíduos que consideraram seu conhecimento sobre a doença como bom ou muito bom — visto que nem sempre as informações são de base fidedigna, principalmente dada a polarização da discussão sobre a COVID-19 e sendo notável a produção em larga escala de fake news sobre a pandemia, de maneira deliberada e intencional, com o objetivo de enganar, manipular, ludibriar e negar a realidade por razões políticas e econômicas2121 Freire NP, Cunha ICKO, Ximenes Neto FRG, Machado MH, Minayo MCS. A infodemia transcende a pandemia. Ciênc Saúde Coletiva 2021; 26(9): 4065-8. https://doi.org/10.1590/1413-81232021269.12822021
https://doi.org/10.1590/1413-81232021269... .
Em Mato Grosso, esse “kit COVID” também foi adotado pelo governo do estado, que adquiriu grande quantidade de lotes dos medicamentos para distribuir entre os municípios. A justificativa dada pelo governo foi permitir o tratamento precoce dos pacientes e evitar que chegassem em estado grave nos serviços de saúde77 Celestino C. Centro de triagem entregou mais de 12 mil kits de medicamentos para tratamento da COVID-19. Governo do Estado de Mato Grasso. Secretaria de Estado de Saúde [Internet]. 2020 [cited on Jun 7, 2022]. Available at: http://www.saude.mt.gov.br/noticia/6786
http://www.saude.mt.gov.br/noticia/6786... .
Considera-se que o tratamento antecipado com os medicamentos do chamado “kit COVID” sempre teve teor duvidoso e baixa qualidade metodológica em estudos clínicos, produzindo estimativas não confiáveis de eficácia e segurança e não havendo evidências de sua eficácia ao fim do primeiro ano de pandemia2222 Santos-Pinto CDB, Miranda ES, Osorio-de-Castro CGS. O “kit-covid” e o Programa Farmácia Popular do Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37(2): e00348020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00348020
https://doi.org/10.1590/0102-311X0034802... . Discute-se a possibilidade de os esforços e recursos empregados pelo poder público na promoção terem sido direcionados para diminuir a adesão à vacinação e às medidas de proteção não farmacológicas no país2323 Couto MT, Barbieri CLA, Matos CCSA. Considerações sobre o impacto da covid-19 na relação indivíduo-sociedade: da hesitação vacinal ao clamor por uma vacina. Saúde Soc 2021; 30(1): e200450. https://doi.org/10.1590/S0104-12902021200450
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ,2424 Furlan L, Caramelli B. The regrettable story of the “Covid Kit” and the “Early Treatment of Covid-19” in Brazil. Lancet Reg Health Am 2021, 4: 100089. https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.100089
https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.1000... .
Entre as limitações do presente estudo estão o fato de não haver diferenciação entre o uso por automedicação e por orientação médica, a não avaliação da dose e duração do uso e, principalmente, a cronologia perante o caso de sintomas ou diagnóstico, ou seja, não foi possível diferenciar o uso preventivo do uso terapêutico da ivermectina. Apesar de a questão feita para o entrevistado relacionar-se apenas ao uso para prevenir a COVID-19, não se descarta a possibilidade de os indivíduos terem relatado positivamente o uso após o aparecimento de sintomas relacionados à COVID-19 ou com diagnóstico da doença.
Como ponto forte, com base na literatura pesquisada, este é o primeiro estudo de base domiciliar na Região Centro-Oeste que avaliou o uso de medicamentos para a prevenção da COVID-19 pela população. Foi adotado cálculo amostral que permite a inferência para a população de dez municípios de Mato Grosso, que são centros polarizadores em função da estrutura urbana e da intensidade dos fluxos nas redes existentes e representam 47,37% da população total do estado88 Prefeitura de Cuiabá. Portaria n° 053, de 26 de junho de 2020. Cuiabá MT, 2020. Disponibiliza a distribuição dos medicamentos que compõem o KIT COVID-19 nas unidades de Atenção Básica e Secundária do Município de Cuiabá, mediante prescrição médica e disponibilidade dos medicamentos na rede. Diário Oficial do Município de Cuiabá, 26 de junho de 2020. [cited on Jun 7, 2022]. Available at: https://www.cuiaba.mt.gov.br/download.php?id=113017
https://www.cuiaba.mt.gov.br/download.ph... .
Conclui-se que a caracterização da elevada prevalência de uso de ivermectina pela população dos dez municípios pesquisados no estado de Mato Grosso direciona a um perfil com maior faixa etária, cor da pele branca, alta escolaridade e renda. Tal resultado pode estar relacionado com a disseminação de notícias falsas sobre a efetividade do medicamento para a prevenção da COVID-19, relacionada à defesa do tratamento precoce em vez das medidas de prevenção, símbolo de viés político no enfrentamento da pandemia.
Acredita-se que o estudo possa contribuir para que as autoridades de saúde continuem intensificando e promovendo medidas efetivas para o controle da doença de acordo com o momento epidemiológico, como vacinação, distanciamento social, uso de máscaras e protocolos de higiene sanitários, e que implementem estratégias para informar a população sobre os riscos do uso off-label de medicamentos e combater a publicidade de fármacos com indicação para a prevenção e tratamento da COVID-19 sem a devida comprovação de segurança e eficácia.
- FONTE DE FINANCIAMENTO: apoio do Governo do Estado de Mato Grosso, que forneceu os testes diagnósticos e a estrutura para a análise laboratorial.
AGRADECIMENTOS:
Os autores são extremamente gratos a todos que aceitaram participar da pesquisa, aos profissionais de saúde e aos estudantes voluntários que participaram do trabalho de campo. Este estudo foi realizado com o apoio do Governo do Estado de Mato Grosso, que forneceu os testes diagnósticos e estrutura para a análise laboratorial, em conjunto com a coordenação logística da Universidade Federal do Mato Grosso e da Universidade do Estado de Mato Grosso.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Maio 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
24 Ago 2022 - Revisado
06 Jan 2023 - Aceito
31 Jan 2023