Mortalidade por câncer na infância e adolescência: análises de tendência e distribuição espacial nas 133 regiões intermediárias brasileiras agrupadas por macrorregiões

Kamila Tessarolo Velame José Leopoldo Ferreira Antunes Sobre os autores

RESUMO

Objetivo:

Avaliar magnitude, tendência e padrões espaciais da mortalidade por câncer na infância e adolescência, entre 1996 e 2017, nas 133 regiões intermediárias brasileiras, utilizando indicadores socioeconômicos e de serviços de saúde.

Métodos:

É um estudo ecológico que analisa a tendência da mortalidade por câncer na infância e adolescência por meio de séries temporais. Os dados sobre óbitos foram extraídos do Sistema de Informações sobre Mortalidade. Os dados referentes à população foram extraídos dos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com interpolação para os anos intercensitários. Foram delineadas séries temporais para a mortalidade por tipo de câncer em cada região intermediária. Tais regiões foram agrupadas por macrorregiões para a apresentação dos resultados. O cálculo e interpretação das tendências de mortalidade utilizaram o procedimento de autorregressão de Prais-Winsten.

Resultados:

As taxas de mortalidade para todas as neoplasias foram maiores na Região Norte (7,79 óbitos por 100 mil habitantes), enquanto para as leucemias foram maiores na Região Sul (1,61 óbitos por 100 mil habitantes). Em ambas a mortalidade foi maior no sexo masculino e na faixa etária de zero a quatro anos. A tendência mostrou-se decrescente (annual percent change — APC -2,11 [intervalo de confiança — IC95% -3,14; -1,30]) para todas as neoplasias nas regiões brasileiras e estacionária (APC -0.43 [IC95%: -1.61; 2.12]) para as leucemias, no período analisado.

Conclusão:

A taxa de mortalidade, para todas as neoplasias, apresentou valores mais elevados nas regiões que dispõem de menores números de leito de Unidade de Terapia Intensiva do Sistema Único de Saúde.

Palavras-chave:
Epidemiologia; Câncer; Mortalidade; Séries temporais

INTRODUÇÃO

O câncer na infância e na adolescência, grave problema da saúde pública, responde por 2 a 3% de todos os cânceres no Brasil11. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer José de Alencar Gomes da Silva. Incidência, mortalidade e morbidade hospitalar por câncer em crianças, adolescentes e adultos jovens no Brasil: informações dos registros de câncer e do sistema de mortalidade. Rio de Janeiro: INCA; 2016.. Em países de baixa e média renda, os cânceres na infância e na adolescência são frequentemente fatais em razão da falta de diagnóstico e de tratamento precoces. Isso ocorre pela não existência de programas de rastreio populacional nem estratégias de redução de risco relacionadas ao estilo de vida que sejam mais efetivas para a obtenção de resultados favoráveis. O câncer infantil, portanto, é frequentemente fatal quando não realizados o diagnóstico e o tratamento apropriados. O câncer infantil geralmente progride rapidamente. Dessa forma, a melhoria dos resultados do câncer infantil exige sistemas de saúde que funcionem bem22. GBD 2017 Childhood Cancer Collaborators. The global burden of childhood and adolescent cancer in 2017: an analysis of the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet Oncol 2019; 20(9): 1211-25. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(19)30339-0
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Contudo, para que o sub-registro e a qualidade dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) melhorem não somente em algumas regiões brasileiras, mas em todas elas, deve haver planejamento adequado por parte das instituições políticas responsáveis, de forma que haja uma atribuição adequada de recursos para a causa em questão e, consequentemente, melhor funcionamento do sistema de saúde brasileiro. É essencial que modelos e estimativas sejam elaborados nos locais em que os dados são escassos ou talvez inexistentes22. GBD 2017 Childhood Cancer Collaborators. The global burden of childhood and adolescent cancer in 2017: an analysis of the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet Oncol 2019; 20(9): 1211-25. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(19)30339-0
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Tais variações são alvo de discussão na literatura, que correlaciona os dados com diferenças nos indicadores socioeconômicos entre as populações de países desenvolvidos e em desenvolvimento33. Nigenda G, Gonzalez-Robledo MC, Gonzalez-Robledo LM, Bejarano-Arias RM. Breast cancer policy in Latin America: account of achievements and challenges in five countries. Global Health 2016; 12(1): 39. https://doi.org/10.1186/s12992-016-0177-5
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. Com relação ao Brasil, por exemplo, é possível que os dados sejam divergentes nas regiões por causa da melhoria das informações disponibilizadas à comunidade científica, bem como por variações na organização do sistema de saúde. Entretanto, o consenso literário é de que essas diferenças regionais não podem existir, pois afetam os indicadores em saúde e levam a uma perda desproporcional de capital humano (crianças e adolescentes)44. Green AL, Furutani E, Ribeiro KB, Galindo CR. Death within 1 month of diagnosis in childhood cancer: an analysis of risk factors and scope of the problem. J Clin Oncol 2017; 35(12): 1320-7. https://doi.org/10.1200/JCO.2016.70.3249
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Entre os tipos de cânceres, a leucemia é a mais frequente, principalmente em crianças menores de cinco anos de idade, correspondendo a algo entre 25 e 35% de todos os tipos11. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer José de Alencar Gomes da Silva. Incidência, mortalidade e morbidade hospitalar por câncer em crianças, adolescentes e adultos jovens no Brasil: informações dos registros de câncer e do sistema de mortalidade. Rio de Janeiro: INCA; 2016.. No estudo de Ren et al.55. Ren HM, Liao MQ, Tan SX, Cheng C, Zhu S, Zheng L, et al. Global, regional, and national burden of cancer in children younger than 5 years, 1990-2019: analysis of the Global Burden of Disease Study 2019. Front Public Health 2022; 10: 910641. https://doi.org/10.3389/fpubh.2022.910641
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, a leucemia também foi responsável pela maior carga de câncer em menores de cinco anos, no ano de 2019, seguida pelo câncer de cérebro e do sistema nervoso central. A leucemia também foi o câncer incidente mais diagnosticado em 1990, embora esse número tenha diminuído consideravelmente entre os 1990 e 2019, em países desenvolvidos. O número de mortes e carga por câncer infantil, respectivamente, diminuiu em -47,8% (-60,7 para -26,4) no ano de 1990 e -47,7% (-60,7 para -26,2), no ano de 2019. Em 2019, as regiões de índice sociodemográfico médio tiveram a maior incidência e prevalência, enquanto as regiões de baixo índice socioeconômico tiveram a maior mortalidade e carga.

A tendência mundial, portanto, é de aumento na incidência do câncer infantil, o que pode ser explicado também pela melhoria nos sistemas de informação e redução das taxas de mortalidade graças ao diagnóstico e tratamento precoce em diversas regiões22. GBD 2017 Childhood Cancer Collaborators. The global burden of childhood and adolescent cancer in 2017: an analysis of the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet Oncol 2019; 20(9): 1211-25. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(19)30339-0
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. As estatísticas de neoplasias malignas infantis são pouco analisadas no Brasil, mesmo com a disponibilidade de bancos de dados, como no caso do SIM. Apesar de as pesquisas sobre as tendências temporais serem extensas em adultos, poucos estudos foram feitos em crianças e adolescentes nas últimas décadas66. Bastos LNV, Silveira Jr JC, Luna CF, Lucena-Silva N. Childhood and adolescent cancer in the state of Pernambuco, Brazil: incidence, geographical, distribution, and association with environmental health indicators. J Pediatr Hematol Oncol 2018; 40(1): 7-14. https://doi.org/10.1097/MPH.0000000000001017
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A importância da avaliação das variações geográficas das taxas de mortalidade por câncer na infância e adolescência justifica-se pela extensão territorial do Brasil e sua grande diversidade quanto ao acesso a diagnóstico e tratamento do câncer. De modo geral, esses recursos são insuficientes e estão centralizados nas capitais e nos estados mais desenvolvidos economicamente. O descompasso entre o local de residência e a localização do serviço de saúde alertam sobre problemas de acesso e repercutem nos sistemas de informações77. Silva FF, Zandonade E, Zouain-Figueiredo GP. Analysis of childhood leukemia mortality trends in Brazil, from 1980 to 2010. J Pediatr (Rio J) 2014; 90(6): 587-92. https://doi.org/10.1016/j.jped.2013.12.013
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O objetivo do estudo foi, portanto, avaliar magnitude, tendência e padrões espaciais da mortalidade por câncer na infância e adolescência, entre 1996 e 2017, nas 133 regiões intermediárias brasileiras, utilizando indicadores socioeconômicos e de serviços de saúde e agrupadas por macrorregiões.

MÉTODOS

É um estudo ecológico que analisa a tendência da mortalidade por câncer na infância e na adolescência mediante séries temporais e observa conjuntamente a distribuição espacial dessa mortalidade entre 1996 e 2017, na faixa etária entre zero a 19 anos. Neste estudo utilizamos a tendência de séries temporais, que permitiu a comparação das taxas de mortalidade por câncer na infância e adolescência ao longo do tempo em grupos de população geograficamente definidos.

Foram analisados os óbitos por câncer na infância e na adolescência nas regiões intermediárias brasileiras entre 1996 e 2017. Os dados foram extraídos do SIM. Foram selecionados os óbitos classificados como neolpasias malignas de acordo com a 10a Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), que compreende o capítulo II, grupo C00 a C99, incluindo o D46. Os dados referentes aos óbitos foram extraídos pelo sistema de transferência de arquivos que o Sistema de Informática do SUS (DATASUS) possibilita.

Os dados referentes à população foram extraídos dos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para os anos intercensitários, de 1996 a 2017, foram utilizadas estimativas populacionais segundo sexo e faixa etária. Tais dados são disponibilizados pelo site do IBGE. As regiões intermediárias foram definidas também de acordo com a classificação do IBGE e para a apresentação dos resultados, e as regiões intermediárias foram agrupadas por macrorregiões. O Coeficiente Bruto de Mortalidade (CBM) foi calculado anualmente por faixa etária e por localização anatômica (tipo de câncer), dividindo-se o número de óbitos em decorrência de câncer infantil pela população e multiplicando-se esse quociente por 100.000. Para que os coeficientes de mortalidade sejam passíveis de comparação, foram calculados os coeficientes padronizados por sexo e faixa etária, utilizando-se o método direto proposto por Laurenti et al.88. Laurenti R, Mello Jorge MHP, Lebrão ML, Gotlieb SLD. Estatísticas de saúde. 2a ed. São Paulo: EPU; 1987.

As informações socioeconômicas foram baseadas nos dados do Censo Demográfico de 200099. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.. A análise de dados socioeconômicos utilizou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-M) para os municípios do Brasil. O IDH para as regiões intermediárias foi calculado por meio da média ponderada dos IDH-M dos municípios de cada região intermediária, usando como fator de ponderação o tamanho da população desses municípios. Os dados referentes à provisão dos serviços de saúde foram informados pelos sistemas de informação gerenciados pelo Ministério da Saúde. Foram utilizados neste estudo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS).

Foram delineadas séries temporais para a mortalidade por tipo de câncer em cada região intermediária. O cálculo e interpretação das tendências de mortalidade utilizaram o procedimento de Prais-Winsten1010. Antunes JLF, Cardoso MRA. Uso da análise de séries temporais em estudos epidemiológicos. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(3): 565-76. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000300024
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para regressão linear generalizada, que permite a correção de autocorrelação de primeira ordem. Para a análise de tendências, seguiram-se indicações metodológicas de Antunes e Cardoso1010. Antunes JLF, Cardoso MRA. Uso da análise de séries temporais em estudos epidemiológicos. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(3): 565-76. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000300024
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. Utilizou-se o modelo de regressão de Prais-Winsten; a variável dependente foi o logaritmo das taxas de mortalidade por câncer na infância e adolescência por todos os tipos de câncer e leucemias, e a variável independente foi constituída pelos anos da série histórica (1996 a 2017).

Também foi calculado o Annual Percent Change (APC) das taxas padronizadas por idade e sexo, como sugerido pelo estudo de Antunes e Waldman1111. Antunes JLF, Waldman EA. Trends and spatial distribution of deaths of children aged 12–60 months in São Paulo, Brazil, 1980–98. Bull World Health Organ 2002; 80(5): 391-8. PMID: 12077615.. No processo de modelagem foram incluídas as transformações das taxas padronizadas em uma função logarítmica de base 10. Foi empregado o teste de Durbin-Watson, que possibilitou verificar a existência de autocorrelação de primeira ordem da série temporal (como propõe a regressão de Prais-Winsten), composta das taxas anuais, bem como atestar a compatibilidade da correlação efetuada com a hipótese de resíduos de regressão com distribuição aleatória. Em seguida foram calculadas as taxas de crescimento ou declínio anual (APC) segundo sexo, faixas etárias e tipos de câncer (total e leucemias). Esse procedimento possibilitou classificar a tendência temporal da mortalidade por câncer na infância e adolescência entre zero e 19 anos de idade em decrescente, crescente ou estacionária.

Para a construção das séries temporais de mortalidade, efetuamos a redistribuição dos óbitos classificados inicialmente como devidos a “causas mal definidas” ou “não especificadas” segundo o método proposto pelo estudo Global Burden of Disease — GBD1212. Ahmad OB, Boschi-Pinto C, Lopez AD, Murray CJL, Lozano R, Inoue M. Age standardization of rates: a new who standard. GPE Discuss Pap Ser No31; EIP/GPE/EBD. Geneva: World Health Organization; 2001., que permite estimar a proporção desses óbitos que deve ser reclassificada como atribuível ao câncer em cada ano e região, para cada grupo etário.

Para o gerenciamento dos bancos de dados e as análises estatísticas, foi utilizado o software Stata 14.2 2017.

RESULTADOS

Entre 1996 e 2017 ocorreram 62.635 óbitos de crianças e adolescentes cuja causa básica foi identificada como neoplasia. Desse total, 21.039 óbitos deviam-se às leucemias. Redistribuídos os óbitos por causas mal definidas, também conhecidos como garbage codes, o total estimado foi de 111.568 mortes para todas as neoplasias. No que se refere às leucemias, a estimativa foi de 22.571.

A avaliação da série histórica da mortalidade por todas as neoplasias em crianças e adolescentes por sexo mostra uma taxa de mortalidade em meninos maior que a de meninas em todas as regiões brasileiras, com tendência decrescente na maioria das regiões. Como demonstra a Figura 1, a Região Nordeste apresentou declínio significativo ao longo da série histórica, apesar de sua taxa de mortalidade maior no início da série (APC) -3.16 [IC95% -4.58; 0.37]).

Figura 1.
Mortalidade por todas as neoplasias em crianças e adolescentes (a cada 100 mil indivíduos): série histórica das taxas, por sexo, em cada macrorregião. Taxas padronizadas por sexo e faixa etária. Brasil, 1996–2017.

A série histórica da mortalidade por neoplasias em crianças e adolescentes por faixa etária revela que de zero a quatro anos as taxas de mortalidade são mais elevadas em todas as regiões brasileiras. As faixas etárias de cinco a nove e de dez a 14 anos sobrepõem-se ao longo da série para todas as regiões. Dos 15 aos 19 anos essas taxas são menores que de zero a quatro anos, embora maiores que as das outras duas faixas etárias.

A Tabela 1, com relação à APC da mortalidade por todas as neoplasias, mostra em todas as regiões declínio no número de óbitos ao longo da série histórica. Ou seja, o Brasil como um todo beneficia-se desse declínio (APC -2,11 [IC95% -3,14; -1,30]). Declínios mais significativos foram observados nas Regiões Nordeste (APC -3,16 [IC95% -4,58; 0,37]) e Sudeste (APC -2,11 [IC95% -2.68; -1,59]), percebendo-se o menor declínio na Região Centro-Oeste (APC -0,95 [-2,24; -0,63]).

Tabela 1
Annual Percent Change da mortalidade por todas as neoplasias em crianças e adolescentes: mediana e intervalo interquartil das Regiões Geográficas Intermediárias do Brasil, agrupadas por macrorregião, e distribuição das tendências. Brasil, 1996–2017.

Foram analisadas algumas variáveis, como IDH-M, cobertura da Estratégia Saúde da Família, despesas com saúde, despesas de saúde do governo com pacientes ambulatoriais e hospitalares, número total de leitos gerais, número de leitos gerais mantidos pelo SUS, número total de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e número de leitos em UTI mantidos pelo SUS. Aplicou-se nessa análise a correlação de Pearson (R) para verificar a presença de associação linear e a força entre as variáveis e a taxa de mortalidade. Apenas uma variável apresentou associação, o número de leitos de UTI do SUS (R: -0,23; p=0,007), conforme demonstrado na Tabela 2.

Tabela 2
Mediana da Annual Percent Change da mortalidade por todas as neoplasias em crianças e adolescentes, por quartil das variáveis, e coeficiente de correlação de Pearson (R) entre a Annual Percent Change e as variáveis. Brasil, 1996–2017.

Com relação às leucemias, é patente a maior mortalidade por leucemia em meninos que em meninas em todas as regiões brasileiras ao longo dos anos. Além disso, na Região Norte aumenta a mortalidade a cada 100 mil habitantes nos anos finais, permanecendo estacionária a Região Sudeste. Crianças de 0–4 anos apresentaram maiores taxas de mortalidade em todas as regiões do Brasil. No sul, a faixa etária de 15 a 19 anos ultrapassa a de zero a quatro anos em dado momento, porém, nos anos finais, ela retorna à posição abaixo da faixa etária de zero a quatro anos.

Verificou-se tendência estacionária para o Brasil como um todo. Na Região Norte, das 22 regiões intermediárias, 17 mantiveram-se estacionárias ao longo da série, e cinco em crescimento. A Região Nordeste apresentou APC 0,27 (IC95% -1,08; 3,68) e, das 42 regiões intermediárias, 28 permaneceram estacionárias, 12 mostraram crescimento e duas, declínio. A Região Sudeste apresentou 30 regiões intermediárias com tendência estacionária e três em declínio. Já no sul do país foram 17 as regiões intermediárias com tendência estacionária e quatro em declínio. Das 15 regiões intermediárias do centro-oeste, 12 mantiveram-se estacionárias, duas mostraram crescimento e uma, declínio, conforme demonstrado na Tabela 3.

Tabela 3
Annual Percent Change da mortalidade por leucemia em crianças e adolescentes: mediana e intervalo interquartil das Regiões Geográficas Intermediárias do Brasil, agrupadas por macrorregião, e distribuição das tendências. Brasil, 1996–2017.

Para as leucemias também foi aplicado o teste de associação, o coeficiente de correlação de Pearson, para verificar as variáveis de certa forma influentes na taxa de mortalidade por leucemias em crianças e adolescentes. Das nove variáveis analisadas, cinco apresentaram significância estatística, com valor de p<0.05, a saber: IDH-M (R: -0,38; p<0,01), despesas de saúde do governo com paciente ambulatorial (R: -0,27; p<0,01), número de leitos (R: -0,18; p=0,040), de leitos de UTI (R: -0,21; p=0,015) e leitos de UTI do SUS (R: -0,24; p=0,001), conforme a Tabela 4.

Tabela 4
Mediana da Annual Percent Change da mortalidade por leucemia em crianças e adolescentes, por quartil das variáveis, e coeficiente de correlação de Pearson (R) entre a Annual Percent Change e as variáveis. Brasil, 1996–2017.

DISCUSSÃO

No que se refere à mortalidade por câncer em crianças e adolescentes, tendo em vista todas as neoplasias, observou-se mudança na taxa de mortalidade ao longo do período estudado. Também foram diferentes os padrões geográficos da mortalidade por câncer em crianças e adolescentes, com predominância nas Regiões Norte e Nordeste. Não só houve mudança na taxa de mortalidade como a APC foi decrescente.

Na América Latina, o Brasil é o sexto país com a maior taxa de mortalidade por câncer infantil, ficando atrás somente de Cuba (4,93 óbitos a cada 100 mil habitantes), México (4,92), Colômbia (4,87), Panamá (4,43) e Costa Rica (4,30)1313. Malvezzi M, Santucci C, Alicandro G, Carioli G, Boffetta P, Ribeiro KB, et al. Childhood cancer mortality trends in the Americas and Australasia: an update to 2017. Cancer 2021; 127(18): 3445-56. https://doi.org/10.1002/cncr.33642
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. A taxa de mortalidade por câncer em crianças e adolescentes no Brasil, neste estudo, foi de 7,33 óbitos a cada 100 mil habitantes, 8,07 para o sexo masculino e 6,49 óbitos para o feminino a cada 100 mil habitantes. O estudo de Malvezzi et al.1313. Malvezzi M, Santucci C, Alicandro G, Carioli G, Boffetta P, Ribeiro KB, et al. Childhood cancer mortality trends in the Americas and Australasia: an update to 2017. Cancer 2021; 127(18): 3445-56. https://doi.org/10.1002/cncr.33642
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, acima mencionado, havia registrado, para o Brasil, a taxa de mortalidade de 4,04 óbitos a cada 100 mil habitantes — 4,33 e 3,74, respectivamente, para os sexos masculino e feminino. Os dados diferem dos que foram aqui relatados e, como possíveis fatores para explicar essa diferença, mencionamos os diferentes períodos de referência de cada estudo e a redistribuição, em nosso estudo, dos óbitos classificados como devidos a causas mal definidas e não especificadas.

No Brasil, GBD 2017 Childhood Cancer Collaborators22. GBD 2017 Childhood Cancer Collaborators. The global burden of childhood and adolescent cancer in 2017: an analysis of the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet Oncol 2019; 20(9): 1211-25. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(19)30339-0
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estudaram as tendências da mortalidade por câncer infantil entre 1979 e 2008, encontrando tendências de aumento nas taxas de mortalidade para as Regiões Norte e Nordeste. Neste estudo, as taxas de mortalidade nas Regiões Norte e Nordeste foram maiores que as das demais regiões brasileiras, porém as tendências nessas regiões foram decrescentes. GBD 2017 Childhood Cancer Collaborators22. GBD 2017 Childhood Cancer Collaborators. The global burden of childhood and adolescent cancer in 2017: an analysis of the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet Oncol 2019; 20(9): 1211-25. https://doi.org/10.1016/S1470-2045(19)30339-0
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ainda relatam que essa situação se reflete na distribuição desigual dos recursos destinados à saúde ou a ela disponibilizados.

Constata-se disparidade entre as áreas com melhores estruturas urbanas (Regiões Sul e Sudeste), dispondo-se de uma equipe de saúde bem equipada e territórios com recursos de saúde escassos, como o norte e o nordeste do país.

Ainda se observou que os moradores de alguns locais mais periféricos e do nordeste, como Maranhão, sul do Piauí e oeste da Bahia, têm menor acesso a quimioterapia e radioterapia, em comparação com outras regiões brasileiras. As cirurgias oncológicas e as internações por câncer mostraram padrões semelhantes. Por exemplo, os moradores das Regiões Norte e Nordeste usufruem de menor acesso a internação e cirurgia oncológica, o que configura desigualdade no acesso. Locais com menos leitos, principalmente de UTI, implicam maior taxa de mortalidade por câncer em crianças e adolescentes.

O estudo de Curado et al.1414. Curado MP, Souza DLB. Cancer burden in Latin America and the Caribbean. Ann Glob Health 2014; 80(5): 370-7. https://doi.org/10.1016/j.aogh.2014.09.009
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sobre as tendências de mortalidade por leucemia entre crianças, adolescentes e adultos jovens (zero a 24 anos) na América Latina detectou, entre 2000 e 2004, no Brasil, uma taxa de mortalidade para o sexo feminino de 1,12 óbito por cem mil habitantes e, para o sexo masculino, de 1,77 óbito na mesma proporção. As leucemias também mostram maior taxa de mortalidade para o sexo masculino, como demonstrado anteriormente e em outros estudos e nos dados dos resultados obtidos neste estudo.

Com relação à tendência, as taxas de mortalidade por leucemias em crianças e adolescentes diminuíram (APC: -4,0) na Europa de 1990 a 20171515. Bertuccio P, Alicandro G, Malvezzi M, Carioli G, Boffetta P, Levi F, et al. Childhood cancer mortality trends in Europe, 1990-2017, with focus on geographic differences. Cancer Epidemiol 2020; 67: 101768. https://doi.org/10.1016/j.canep.2020.101768
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. As tendências favoráveis devem-se ao aumento da disponibilidade de diagnóstico e tratamento, bem como à criação de centros especializados em oncologia pediátrica no continente, levando a avanços, com aproximadamente 80% dos pacientes tendo sobrevida de cinco anos após o diagnóstico. Malvezzi et al.1313. Malvezzi M, Santucci C, Alicandro G, Carioli G, Boffetta P, Ribeiro KB, et al. Childhood cancer mortality trends in the Americas and Australasia: an update to 2017. Cancer 2021; 127(18): 3445-56. https://doi.org/10.1002/cncr.33642
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também encontraram tendência decrescente para a mortalidade em crianças e adolescentes (zero a 19 anos) por leucemias entre 1990 e 2017, com exceção do sexo masculino no Brasil e na Colômbia, onde as tendências foram estacionárias.

Bigoni et al.1616. Bigoni A, Antunes JLF, Weiderpass E, Kjærheim K. Describing mortality trends for major cancer sites in 133 intermediate regions of Brazil and an ecological study of its causes. BMC Cancer 2019; 19(1): 940. https://doi.org/10.1186/s12885-019-6184-1
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, ao buscarem descrever a mortalidade pelos principais tipos de câncer em adultos nas 133 regiões intermediárias brasileiras, encontraram tendências de aumento para as Regiões Norte e Nordeste, enquanto as tendências crescentes ou estacionárias foram verificadas nas Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Uma das causas para essas tendências foi o IDH. Em regiões com maior IDH, maiores gastos do governo com a saúde e maior quantidade de leitos hospitalares, a mortalidade foi menor. Além disso, a mortalidade por câncer deve-se à falta de acesso aos cuidados de saúde nos municípios vizinhos e circunvizinhos. Tais achados reforçam os dados dos resultados obtidos neste estudo, em que o IDH-M, as despesas de saúde do governo com paciente ambulatorial, o número de leitos, o número de leitos de UTI e o número de leitos de UTI do SUS apresentaram significância estatística, ou seja, de alguma forma contribuem para a mortalidade por leucemia de crianças e adolescentes.

Ribeiro et al.1717. Ribeiro KB, Lopes LF, Camargo B. Trends in childhood leukemia mortality in Brazil and correlation with social inequalities. Cancer 2007; 110(8): 1823-31. https://doi.org/10.1002/cncr.22982
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associam a taxa de mortalidade às desigualdades sociais, confirmando mais uma vez os resultados obtidos neste estudo. Apesar de a tendência na mortalidade por leucemia infantil decrescer nos anos estudados, os autores observaram grande heterogeneidade entre os estados brasileiros, intimamente relacionada ao desenvolvimento socioeconômico. A mortalidade diminuiu mais em estados mais desenvolvidos, com melhores cuidados de saúde. Tais descobertas apontam para a necessidade de melhoria das intervenções, dada a ampla manifestação de exclusão social nas regiões brasileiras.

Na avaliação da série histórica, observou-se que a mortalidade em meninos foi maior que a de meninas em todas as regiões brasileiras, com tendência decrescente na maioria das regiões. A Região Nordeste apresentou declínio significativo ao longo da série, apesar de a taxa de mortalidade ter sido maior no início da série. Além disso, a taxa de mortalidade mostrou-se mais elevada nas regiões que dispõem de menores números de leitos de UTI do SUS e vice-versa. Das 133 regiões intermediárias, 88 apresentaram declínio, 41 apresentaram tendência estacionária e quatro apresentaram crescimento.

Quanto às leucemias, quando nos reportamos às tendências, verificou-se que a faixa etária de zero a quatro anos apresentou maiores taxas de mortalidade que as demais. Houve estacionariedade para o Brasil como um todo. Das nove variáveis analisadas no teste de associação, cinco apresentaram significância estatística, sendo: IDH-M, despesas de saúde do governo com paciente ambulatorial, número de leitos, número de leitos de UTI e número de leitos de UTI do SUS.

Com relação à mortalidade por todas as neoplasias, percebemos uma lacuna de fontes secundárias, com poucos estudos, o que demanda a ampliação de investigações nessa linha a fim de contribuir para a compreensão real do contexto atual, bem como fornecer subsídios para que os estudiosos dessa área busquem a mudança necessária à diminuição dessas desigualdades sociais e regionais.

Outras limitações deste estudo residem na utilização de um único valor de APC para a verificação da tendência ao longo de todo o período de análise. De 1996 a 2017, foram incluídos 22 pontos nas séries temporais utilizadas para o cálculo da tendência. Nesse sentido, é possível haver tendências discrepantes se a análise fosse segmentada em diferentes subperíodos. Assim, as tendências estacionárias nos resultados podem ter começado a diminuir recentemente, o que o valor de um único APC não conseguiria detectar. Além disso, as tendências crescentes de mortalidade por câncer infantil em regiões menos desenvolvidas podem ter sido influenciadas por um aumento na qualidade dos dados no SIM ao longo dos anos.

  • FONTE DE FINANCIAMENTO:
    nenhuma.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2023
  • Revisado
    26 Out 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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