Vigilância da coinfecção TB-HIV no Brasil: uma abordagem temporal e espacial

Beatriz Almeida Santos Caíque Jordan Nunes Ribeiro Allan Dantas dos Santos Álvaro Francisco Lopes de Sousa Thayane Santos Siqueira Lucas Almeida Andrade Adriano José dos Santos Shirley Verônica Melo Almeida Lima Sobre os autores

RESUMO

Objective

Identificar o padrão epidemiológico, espacial e temporal da coinfecção TB-HIV no Brasil durante o período de 2001 a 2020.

Métodos:

Estudo ecológico com técnicas de análise espacial e temporal. Incluiu os casos de coinfecção por TB-HIV registrados no Brasil entre 2001 e 2020. A análise de tendência temporal foi realizada por meio da regressão segmentada, através do Joinpoint regression. Para a análise espacial, foram calculados os índices de Moran e construídos mapas coropléticos através dos softwares TerraView e QGIS.

Resultados:

Observou-se tendência temporal estável das taxas de incidência da coinfecção por TB-HIV no Brasil durante o período analisado. Adicionalmente, foram identificadas áreas de alto risco para coinfecção localizadas em estados das regiões Norte, Sudeste, Sul e Centro-Peste.

Conclusão:

Houve estabilidade da incidência da coinfecção TB-HIV no Brasil nos últimos 20 anos e distribuição geográfica heterogênea das áreas de risco para o agravo.

Palavras-chave:
Tuberculose; HIV; Estudos de séries temporais; Análise espacial

INTRODUÇÃO

A tuberculose (TB) permanece como um desafio à saúde pública mundial e tornou-se ainda mais desafiadora quando seus efeitos impactaram de forma devastadora as pessoas que vivem com o Vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV). A associação TB-HIV provoca importantes complicações clínicas e de adesão ao tratamento, evidenciando que indivíduos com HIV têm 28 vezes mais chances de contrair TB11. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19) pandemic [Internet]. 2021 [cited on Oct. 5, 2022]. Available at: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019
https://www.who.int/emergencies/diseases...
. A elevada mortalidade, o aumento de casos de TB resistente aos medicamentos e a concentração da doença em populações socialmente vulneráveis estimularam a priorização do combate à doença, seja em nível global ou nacional22. Souza MD, Paz WS, Sales VBS, Jesus GFH, Tavares DS, Lima SVMA, et. al. Impact of the COVID-19 pandemic on the diagnosis of tuberculosis in Brazil: is the WHO end TB strategy at risk? Front Pharmacol 2022; 13: 891711. https://doi.org/10.3389/fphar.2022.891711
https://doi.org/10.3389/fphar.2022.89171...
.

Ao longo dos anos, a TB permaneceu estigmatizada e assumiu diferentes conotações na história, com destaque para uma caracterização reemergente em alguns países da Europa Ocidental e da América33. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilência em Saúde. Departamento de Vigilância das doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2019 [cited on Nov. 17, 2021]. Available at: https://sbpt.org.br/portal/wp-content/uploads/2019/06/manual_recomendacoes_tb_2ed_atualizada_8maio19.pdf
https://sbpt.org.br/portal/wp-content/up...
,44. Gioseffi JR, Batista R, Bringnol SM. Tuberculose, vulnerabilidades e HIV em pessoas em situação de rua: revisão sistemática. Rev Saude Publica 2022; 56: 43. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056003964
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022...
. No Brasil, se comporta como um grave problema de saúde pública envolvendo fatores multicêntricos, comportamentais e sociais. Globalmente, a TB causou 300 mil mortes entre as pessoas com HIV positivo. O Brasil é o único país das Américas com prioridade para ações de controle da coinfecção, pois representa 10,2% entre os diagnosticados com TB55. Barreira D. Os desafios para a eliminação da tuberculose no Brasil. Epidemiol Serv Saude 2018; 27 (1): e00100009. https://doi.org/10.5123/S1679-49742018000100009
https://doi.org/10.5123/S1679-4974201800...
,66. World Health Organization. Global tuberculosis report 2022 [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [cited on Dec. 15, 2022]. Available at: https://www.who.int/teams/global-tuberculosis-programme/tb-reports/global-tuberculosis-report-2022
https://www.who.int/teams/global-tubercu...
.

Para viabilizar a resposta global, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou, na Assembleia Mundial da Saúde de 2014, a Estratégia End TB55. Barreira D. Os desafios para a eliminação da tuberculose no Brasil. Epidemiol Serv Saude 2018; 27 (1): e00100009. https://doi.org/10.5123/S1679-49742018000100009
https://doi.org/10.5123/S1679-4974201800...
(pelo fim da tuberculose), que propõe uma mudança radical de paradigma na luta contra a TB, com o objetivo de erradicar a doença como problema de saúde pública: reduzir em 90% os casos de TB e em 95% as mortes por TB até 203555. Barreira D. Os desafios para a eliminação da tuberculose no Brasil. Epidemiol Serv Saude 2018; 27 (1): e00100009. https://doi.org/10.5123/S1679-49742018000100009
https://doi.org/10.5123/S1679-4974201800...
.

As metas globais são sustentadas por três pilares:

  1. Cuidados e prevenção integrados e centrados no paciente;

  2. Políticas ousadas e sistemas de apoio e suporte aos afetados pela TB; e

  3. Intensificação da inovação e da pesquisa55. Barreira D. Os desafios para a eliminação da tuberculose no Brasil. Epidemiol Serv Saude 2018; 27 (1): e00100009. https://doi.org/10.5123/S1679-49742018000100009
    https://doi.org/10.5123/S1679-4974201800...
    .

A emergência global da pandemia da COVID-19 culminou na reorganização de ações, serviços e sistemas de saúde em todo o mundo, e foram revertidos anos de progresso no controle da coinfecção TB-HIV11. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19) pandemic [Internet]. 2021 [cited on Oct. 5, 2022]. Available at: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019
https://www.who.int/emergencies/diseases...
. O processo pandêmico colocou em risco a estratégia pelo fim da TB no Brasil e impactou diretamente os novos diagnósticos22. Souza MD, Paz WS, Sales VBS, Jesus GFH, Tavares DS, Lima SVMA, et. al. Impact of the COVID-19 pandemic on the diagnosis of tuberculosis in Brazil: is the WHO end TB strategy at risk? Front Pharmacol 2022; 13: 891711. https://doi.org/10.3389/fphar.2022.891711
https://doi.org/10.3389/fphar.2022.89171...
.

A pandemia da COVID-19 exacerbou as desigualdades em saúde e favoreceu o negligenciamento da coinfecção TB-HIV desde o diagnóstico até o tratamento22. Souza MD, Paz WS, Sales VBS, Jesus GFH, Tavares DS, Lima SVMA, et. al. Impact of the COVID-19 pandemic on the diagnosis of tuberculosis in Brazil: is the WHO end TB strategy at risk? Front Pharmacol 2022; 13: 891711. https://doi.org/10.3389/fphar.2022.891711
https://doi.org/10.3389/fphar.2022.89171...
. De 2012 a 2019, a proporção de casos novos de TB testados para HIV apresentou um aumento de aproximadamente 15%, chegando a 82,8%, especialmente em 2019. Todavia, em 2020 e 2021 houve um decréscimo importante44. Gioseffi JR, Batista R, Bringnol SM. Tuberculose, vulnerabilidades e HIV em pessoas em situação de rua: revisão sistemática. Rev Saude Publica 2022; 56: 43. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056003964
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022...
. É fato que durante o período de pandemia houve redução de testagens para o HIV em casos de TB.

Em países em desenvolvimento, como no Brasil, a desigualdade social representa terreno fértil para a disseminação da coinfecção ao considerar que a TB-HIV está associada a condições de vida, saúde e trabalho precárias. A OMS manifestou a preocupação com a possibilidade de comprometimento do progresso alcançado em relação à prevenção e ao tratamento da TB, ressaltando a importância de os programas nacionais da doença garantirem a continuidade das ações destinadas ao controle da enfermidade44. Gioseffi JR, Batista R, Bringnol SM. Tuberculose, vulnerabilidades e HIV em pessoas em situação de rua: revisão sistemática. Rev Saude Publica 2022; 56: 43. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056003964
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022...
,66. World Health Organization. Global tuberculosis report 2022 [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [cited on Dec. 15, 2022]. Available at: https://www.who.int/teams/global-tuberculosis-programme/tb-reports/global-tuberculosis-report-2022
https://www.who.int/teams/global-tubercu...
.

Conhecer a distribuição temporal e espacial, assim como identificar o perfil das pessoas acometidas, contribui na orientação das políticas de controle da TB-HIV, direciona os esforços para as áreas com maior risco e orienta aquelas em que a situação operacional do programa de Controle Nacional da TB esteja aquém das metas estabelecidas. Nesse contexto, estudos dessa magnitude podem contribuir para o fortalecimento de novas investigações científicas e implementação de políticas públicas orientadas ao enfrentamento da coinfecção. Assim, objetiva-se neste trabalho identificar o padrão epidemiológico, espacial e temporal da coinfecção TB-HIV no Brasil durante o período de 2001 a 2020.

MÉTODOS

Tipo de estudo

Estudo ecológico com técnicas de análise espacial e tendência temporal. Foram incluídos todos os casos confirmados de coinfecção TB-HIV registrados no Brasil entre 2001 e 2020, considerando os meses de janeiro a dezembro em todos os anos, cujas unidades de análise e agregação foram os 5.570 municípios brasileiros. Temporalmente, foram coletados os dados notificados da coinfecção vinculados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), publicamente disponibilizados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS) em meio digital. Assim, foi dispensável a submissão ao comitê de ética.

Área do estudo

O Brasil ocupa uma área de 8.510.345,540 milhões de km², o que equivale a quase 50% do território da América do Sul, e possui uma população total de 215,1 milhões de habitantes77. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estimativas da população [Internet]. 2022 [cited on Dec. 15, 2022]. Available at: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9103-estimativas-de-populacao.html
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
, sendo o maior país da América Latina e o sexto maior contingente populacional do mundo. Delimitado pelo oceano Atlântico ao leste, tem um litoral de 7.491 km e faz fronteira com todos os outros países sul-americanos, exceto Chile e Equador. O Brasil está dividido em cinco regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste) e 27 Unidades Federativas (UF)88. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2022 [Internet]. 2022. [cited on Dec. 15, 2022]. Available at: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/22827-censo-demografico-2022.html?=&t=resultados
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
. Conforme o relatório de Desenvolvimento Humano (2021/202299. Instituto de Pesquisa Econômica aplicada. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas públicas [Internet]. Brasília: IPEA; 2009 [cited on Dec. 15, 2022] Available at: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/Livro_BrasilDesenvEN_Vol01.pdf
https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
), possui IDH de 0,754, portanto, encontra-se, na faixa de alto desenvolvimento, apesar de apresentar discrepâncias socioeconômicas importantes entre regiões1010. United Nations Development Programme. Human development report 2021/2022. Uncertain times, unsettled lives: shaping our future in a transforming world [Internet]. 2022 [cited on Nov. 19, 2022]. Available at: https://www.undp.org/pt/angola/publications/relatorio-do-desenvolvimento-humano-2021/2022
https://www.undp.org/pt/angola/publicati...
.

Análise exploratória dos dados

Foram utilizados como variável de desfecho todos os novos casos de coinfecção TB-HIV registrados no Brasil entre 2001 e 2020 no SINAN. O número total de casos de TB-HIV foi dividido pela população de casos novos de TB e multiplicado por 100.000 habitantes para obtenção das taxas de incidência dos anos analisados.

Apenas os casos novos foram utilizados para as análises. Foram desconsiderados aqueles que não apresentaram município de residência como localizador espacial, casos pós-óbito e recidiva como entrada no sistema.

As variáveis epidemiológicas utilizadas na análise descritiva foram: faixa etária, forma clínica, região de residência, zona de residência, escolaridade, sexo, raça/cor, realização de Tratamento Diretamente Observado (TDO) e situação de encerramento do caso. As categorias de cada variável priorizaram o segmento da ficha de notificação nacional adotada no Sistema Único de Saúde (SUS). As variáveis foram categorizadas e expressas por frequências absolutas e relativas. O software Microsoft Office Excel 2017 foi o utilizado na análise.

Análise da tendência temporal

A análise de tendência temporal foi realizada por meio de modelos de regressão log-linear segmentada, utilizando-se o Joinpoint Regression Program (versão 4.2.0)1111. Kim HJ, Fay MP, Feuer EJ, Midthune DN. Permutation tests for joinpoint regression with applications to cancer rates. Stat Med 2000; 19(3): 335-51. https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-0258(20000215)19:3%3C335::AID-SIM336%3E3.0.CO;2-Z
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-0258(...
.

Para o desenvolvimento de tendência, foram consideradas seis variáveis dependentes em cada segmento de análise: incidência de coinfecção TB-HIV no Brasil; incidência de coinfecção TB-HIV por regiões brasileiras; por sexo; por faixa etária e zona de residência; evolução do caso e os anos como variável independente.

O teste de permutação de Monte Carlo foi empregado para selecionar o melhor modelo por pontos de inflexão, aplicando-se 999 permutações e considerando-se o maior coeficiente de determinação. Foram calculados o incremento anual percentual (APC — annual percent change) e o incremento das médias percentuais anuais (AAPCs — average annual percentage changes) para todo o período, quando existia mais de um ponto de inflexão significativo1111. Kim HJ, Fay MP, Feuer EJ, Midthune DN. Permutation tests for joinpoint regression with applications to cancer rates. Stat Med 2000; 19(3): 335-51. https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-0258(20000215)19:3%3C335::AID-SIM336%3E3.0.CO;2-Z
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-0258(...
.

Foi considerada tendência estatisticamente significativa quando a APC apresentou p<0,05 e seu Intervalo de Confiança (IC) de 95% não incluía o valor zero. Os valores de APC e AAPC positivos e significativos indicaram tendências crescentes; os negativo e significativo, tendência decrescente. As tendências não significativas foram descritas como estáveis, independentemente dos valores de APC e AAPC1212. Albuquerque MAC, Dias DM, Vieira LT, Lima CA, Silva AM. Mortality trends for neglected tropical diseases in the state of Sergipe, Brazil, 1980–2013. Infect Dis Poverty 2017; 6(1): 20. https://doi.org/10.1186/s40249-016-0232-8
https://doi.org/10.1186/s40249-016-0232-...
.

Análise espacial

Os coeficientes brutos da incidência TB-HIV foram usados na análise. No entanto, empregou-se o Estimador Bayesiano Local para minimizar a instabilidade ocasionada pela flutuação aleatória dos casos, suavizando os coeficientes padronizados por aplicação de médias ponderadas e criando um segundo coeficiente corrigido. A Taxa Bayesiana Empírica ilustra a correção da taxa multiplicativa igual a 100.000, considerando-se a população em risco e o número de casos durante o período analisado1313. Bailey A, Le Couteur A, Gottesman I, Bolton P, Simonoff E, Yuzda E, et al. Autism as a strongly genetic disorder: evidence from a British twin study. Psychol Med 1995; 25(1): 63-77. https://doi.org/10.1017/S0033291700028099
https://doi.org/10.1017/S003329170002809...
,1414. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. INPE – 2010 [Internet]. 2010 [cited on Feb. 18, 2021]. Available at: http://www3.inpe.br/50anos/linha_tempo/10.html
http://www3.inpe.br/50anos/linha_tempo/1...
.

A autocorrelação espacial global entre os coeficientes brutos foi utilizada para investigar se a distribuição espacial dos casos ocorre de forma aleatória ou se segue algum padrão no espaço. Elaborou-se uma matriz de proximidade espacial, obtida pelo critério de contiguidade, adotando-se um nível de significância de 5%, e calculou-se o Índice Global de Moran (I), variando entre -1 e +1, que representa a expressão da autocorrelação espacial dos casos no espaço geográfico analisado, para identificar aglomerados espaciais e áreas de risco. Valores próximos a zero indicaram aleatoriedade espacial; valores entre 0 e +1 autocorrelação espacial positiva e entre -1 e 0 autocorrelação espacial negativa1515. Medronho R. Epidemiologia. 4a ed. Porto Alegre: Artmed Editora; 2006.,1616. Medronho RA, Werneck GL. Análise de dados espaciais em saúde. In: Medronho RA, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL, eds. Epidemiologia. 2a ed. São Paulo: Atheneu; 2009. p. 493-511..

Identificada a autocorrelação global, foi avaliada a ocorrência de autocorrelação local pelo cálculo do Índice de Moran Local (Local Indicators of Spatial Association — LISA), o qual determina a dependência de dados locais em relação a seus vizinhos. Uma vez determinada a significância estatística do LISA, foram identificadas áreas que apresentam correlação local significativamente diferente do resto dos dados, possibilitando a definição de padrões de associação espacial que podem indicar a ocorrência de aglomerados espaciais, gerando um diagrama de espalhamento de quatro quadrantes1717. Anselin L. Local indicators of spatial association-LISA. Geogr Anal 1995; 27(2): 93-115. https://doi.org/10.1111/j.1538-4632.1995.tb00338.x
https://doi.org/10.1111/j.1538-4632.1995...
: Q1 (alto/alto) e Q2 (baixo/baixo), que indicam municípios com valores semelhantes aos do entorno e representam áreas de concordância com agregados de associação espacial positiva; Q3 (alto/baixo) e Q4 (baixo/alto), que indicam municípios com valores diferentes e representam áreas de transição com agregados de associação espacial negativa1313. Bailey A, Le Couteur A, Gottesman I, Bolton P, Simonoff E, Yuzda E, et al. Autism as a strongly genetic disorder: evidence from a British twin study. Psychol Med 1995; 25(1): 63-77. https://doi.org/10.1017/S0033291700028099
https://doi.org/10.1017/S003329170002809...
.

As análises foram realizadas por meio dos softwares TerraView 4.2.2 e QGIS 3.4 e os resultados significativos foram expressos visualmente em forma de mapas coropléticos, considerando as análises locais de Lisa Map e Moran Map.

RESULTADOS

Foram notificados 179.067 novos casos de coinfecção TB-HIV no período de 2001 a 2020 no Brasil. Houve predomínio de indivíduos do sexo masculino (71,0%), pardos (34,0%), entre 35 e 44 anos de idade (33,8%), com ensino fundamental incompleto (37,7%), residentes em zona urbana (70,0%) e na região Sudeste (46,2%) (Tabela 1).

Tabela 1
Características epidemiológicas da incidência da coinfecção TB-HIV – Brasil (2001 a 2020).

Quanto à forma clínica, observou-se maior percentual de casos da forma pulmonar (66%). Em relação às variáveis associadas ao tratamento, constatou-se importante subnotificação de dados referentes ao TDO, com 46,2% dos casos sem registro dessa informação. Dentre aqueles com registro, observou-se que a maior parte dos indivíduos não realizou o TDO (33,3%). Além disso, quanto à situação de encerramento, verificou-se a cura na maioria dos casos (46,0%). No entanto, é importante destacar os significativos percentuais de óbito por TB (20,5%) e abandono do tratamento (17,2%) (Tabela 1).

Durante o intervalo analisado, observou-se maior incidência por TB-HIV em 2011 e 2012 (5,1 casos por 100 mil habitantes), seguidos do ano de 2014 (5,0 casos por 100 mil habitantes). O maior percentual de cura foi observado em 2007 (50,5%) e, no período em estudo, esse indicador não alcançou os valores preconizados, apontando apenas 46% dos indivíduos curados. Adicionalmente, verificou-se maior percentual de abandono em 2013 (20,6%) e mudanças em relação ao tratamento em 2016 (1,9%) (Figura 1).

Figura 1
Evolução da taxa de incidência (100 mil habitantes), proporção de cura, abandono e mudança de tratamento por coinfecção TB-HIV – Brasil (2001 a 2020).

No Quadro 1 são apresentadas as tendências das taxas brutas de incidência da coinfecção por TB-HIV. Identificou-se uma tendência estável para todo o Brasil, que apresentou um AAPC de 0.0% (IC95% -1.1 a 1.1; p=0.973). Quando as regiões do país são analisadas individualmente, observam-se tendências crescentes no Norte (AAPC=7,1%; IC95% 5.4–8.9; p≤0.001), Nordeste (AAPC=6,0%; IC95% 5.0-7.1; p≤0.001) e Centro-Oeste (AAPC=7,1%; IC95% 5.4–8.9; p≤0.001); tendência estável no Sul (AAPC=-0,6%; IC95% -1.6–0.4; p=0.232) e decrescente na região Sudeste (APC=-1,9%; IC95% -2.3–1.5; p≤0.001). Além disso, quanto à zona de residência, foram visualizadas tendências crescentes das taxas nas zonas urbana, rural e periurbana, com maior incremento percentual nesta última (APC=6.4%; IC95% 3.2–9.7; p≤0.001) (Quadro 1).

Quadro 1
Tendência temporal da incidência da coinfecção TB-HIV no Brasil por região, zona de residência, sexo e faixa etária (2001 a 2020)

Quando se analisam as tendências das taxas de incidência na população masculina e feminina, observa-se processo de estacionariedade para ambas. Já no tocante à faixa etária, é identificado aumento gradativo com o avanço da idade, com maior crescimento das taxas de incidência a partir de 45 anos, sendo os maiores incrementos percentuais visualizados nas faixas etárias de 55 a 64 anos (APC=5.3%; IC95% 4.2–6.4; p≤0.001) e entre maiores de 65 anos (APC=5.3%; IC95% 4.3–6.3; p≤0.001). Quanto ao desfecho dos casos, verificaram-se tendências estáveis para cura, abandono e óbito (Quadro 1).

Para identificar áreas com maior concentração de casos de TB-HIV, avaliou-se a distribuição espacial da coinfecção entre os municípios do Brasil e observou-se que os casos foram amplamente distribuídos no país. A comparação entre a distribuição das taxas brutas e suavizadas é visualizada nas Figuras 2A e 2B, respectivamente. Ao analisar as taxas brutas, identificou-se dispersão de municípios com alta incidência de TB-HIV em todas as regiões do Brasil. No entanto, considerando as taxas suavizadas, nota-se a homogeneização dos casos e a existência de aglomerados formados por municípios com elevada incidência (5 ou mais casos por 100 mil habitantes) localizados nos estados do Amazonas, Roraima, Pará, Pernambuco, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Figura 2
A: Análise espacial da incidência da coinfecção TB-HIV no Brasil (2001 a 2020). B: Análise espacial por meio do estimador bayesiano empírico da coinfecção TB-HIV no Brasil (2001 a 2020). C: Análise espacial considerando a significância estatística da coinfecção TB-HIV no território brasileiro entre 2001 e 2020. D: Índice de Moran Local (LISA) da incidência de TB-HIV – Brasil (2001-2020).

Adicionalmente, foram encontradas áreas que apresentam correlação local significativa, compreendendo 1.004 municípios em todos os estados do país, com exceção do Amapá (Figura 2C). Da mesma forma, foi encontrada autocorrelação espacial positiva e significativa do tipo alto/alto, caracterizando áreas de alto risco para a ocorrência da coinfecção TB-HIV, e que compreendem 270 municípios considerados prioritários, localizados principalmente nos estados do Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul (Figura 2D).

DISCUSSÃO

Os achados apontam que a incidência de coinfecção TB-HIV no Brasil entre 2001 e 2020 apresentou tendência estável. Quando analisadas as regiões, destaca-se tendência crescente para Norte, Nordeste e Centro-Oeste durante o período de estudo. É possível notar que na última década houve decréscimo significativo na taxa de incidência de TB-HIV. A redução pode ser explicada por avanços no sistema de saúde, no diagnóstico e tratamento precoce das infecções e, tragicamente, também pela diminuição da notificação dos casos de coinfecção TB-HIV no período de pandemia da COVID-19.

Historicamente as regiões Norte e Nordeste apresentam índice de desenvolvimento humano menor quando comparadas às demais regiões do país. Esse fator pode explicar a tendência crescente de coinfecção TB-HIV no Norte e Nordeste99. Instituto de Pesquisa Econômica aplicada. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas públicas [Internet]. Brasília: IPEA; 2009 [cited on Dec. 15, 2022] Available at: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/Livro_BrasilDesenvEN_Vol01.pdf
https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
. O agravamento das condições sociais e econômicas resulta em uma degradação significativa das condições de vida, aumentando a vulnerabilidade e, consequentemente, o risco de adoecimento por TB-HIV1818. Silva JDP, Azevedo RCS, Reiners AAO, Santana AZR, Andrade ACS, Vendramini ACMG. Tendência temporal da incidência da coinfecção TB/HIV e testagem de HIV da população idosa brasileira de 2008 a 2018. Rev Bras Geriatr Gerontol 2020; 23(3): e200215. https://doi.org/10.1590/1981-22562020023.200215
https://doi.org/10.1590/1981-22562020023...
.

Tanto neste estudo quanto no de Cavalin1919. Cavalin RF, Pellini ACG, Lemos RRG, Sato APS. Coinfecção TB-HIV: distribuição espacial e temporal na maior metrópole brasileira. Rev Saude Publica 2020; 54: 112. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054002108
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020...
houve crescimento nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, ao passo que a Sul não apresentou diferença significativa. Ao contrário das demais, a região Sudeste manteve a curva decrescente. Não obstante, a análise das tendências regionais deve ser feita com cautela devido às desigualdades referentes ao registro dos dados no SINAN-TB, visto que as tendências de crescimento podem refletir uma melhoria na qualidade do sistema de informação, e não necessariamente um amento na incidência1818. Silva JDP, Azevedo RCS, Reiners AAO, Santana AZR, Andrade ACS, Vendramini ACMG. Tendência temporal da incidência da coinfecção TB/HIV e testagem de HIV da população idosa brasileira de 2008 a 2018. Rev Bras Geriatr Gerontol 2020; 23(3): e200215. https://doi.org/10.1590/1981-22562020023.200215
https://doi.org/10.1590/1981-22562020023...
.

Há, ainda, que se considerar que as diferenças regionais brasileiras manifestam situações divergentes de diagnóstico, tratamento e crescimento da coinfecção em cada região, fato que pode ser explicado por políticas de saúde implementadas com velocidades diferentes, bem como capacidade de oferta e discrepante acesso a serviços em cada região. Tanto o Norte quanto o Nordeste, historicamente, apresentam níveis de desenvolvimento mais baixos quando comparados a regiões do Sul e Sudeste do país, o que pode justificar a tendência crescente da coinfecção nessas regiões.

A pesquisa de Barbosa2020. Barbosa IR, Costa ICC. Estudo epidemiológico da coinfecção tuberculose-HIV no nordeste do Brasil. Rev Patol Trop 2014; 43(1): 27-38. https://doi.org/10.5216/rpt.v43i1.29369
https://doi.org/10.5216/rpt.v43i1.29369...
, que analisou a coinfecção TB-HIV no Nordeste do Brasil, acrescentou fatores que contribuem para manter a ascensão da incidência de coinfecção TB-HIV nessa região. O baixo percentual de cura, o elevado percentual de abandono, a ocorrência de formas graves de tuberculose extrapulmonar e a elevada taxa de letalidade refletem o desafio na assistência ao paciente e na vigilância dos casos de TB-HIV no Nordeste2020. Barbosa IR, Costa ICC. Estudo epidemiológico da coinfecção tuberculose-HIV no nordeste do Brasil. Rev Patol Trop 2014; 43(1): 27-38. https://doi.org/10.5216/rpt.v43i1.29369
https://doi.org/10.5216/rpt.v43i1.29369...
.

Fica nítido nesta pesquisa o alto nível de absenteísmo de dados relacionados ao TDO: 46,2% o ignoraram e 33% não o realizaram, mesmo sendo uma meta do programa nacional contra a eliminação da TB. Esse fato levanta questionamentos sobre se os sistemas de informações em saúde estão sendo alimentados com fidedignidade. A cura, tanto em Barbosa2020. Barbosa IR, Costa ICC. Estudo epidemiológico da coinfecção tuberculose-HIV no nordeste do Brasil. Rev Patol Trop 2014; 43(1): 27-38. https://doi.org/10.5216/rpt.v43i1.29369
https://doi.org/10.5216/rpt.v43i1.29369...
quanto neste estudo, não foi alcançada, e a subnotificação também contribui para incompletude dos dados, refletindo nos sistemas de vigilância epidemiológica resultados de problemas organizacionais e estruturais, como falha humana, preenchimento inadequado e notificação tardia, o que reforça a necessidade de melhoria dos dados.

O maior acometimento a indivíduos do sexo masculino coinfectados por TB-HIV é um achado que se assemelha a diversos estudos realizados no Brasil e está relacionado ao fato de que homens são mais propensos a negar sua vulnerabilidade a doenças e se eximirem da responsabilidade pelo autocuidado, além de procurarem menos os serviços de saúde.

Neste estudo a incidência da coinfecção TB-HIV aumentou de acordo com a faixa etária, o que reflete um elo perigoso entre o envelhecimento populacional e a coinfecção TB-HIV, tornando os idosos mais vulneráveis à coinfecção. Paiva et al.2121. Paiva JPS, Brito AB, Bezerra-Santos M, Carmo RF, Souza CDF. Temporal trend of tuberculosis incidence in northeastern Brazilian municipalities according to Social Vulnerability Index parameters: an ecological study. J Bras Pneumol 2023; 49(1): e20220353. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20220353
https://doi.org/10.36416/1806-3756/e2022...
destaca que a população idosa não se percebe em risco de contrair a doença, por conseguinte, não costuma utilizar o preservativo nas relações sexuais por considerar esse dispositivo de uso adequado apenas para os mais jovens2121. Paiva JPS, Brito AB, Bezerra-Santos M, Carmo RF, Souza CDF. Temporal trend of tuberculosis incidence in northeastern Brazilian municipalities according to Social Vulnerability Index parameters: an ecological study. J Bras Pneumol 2023; 49(1): e20220353. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20220353
https://doi.org/10.36416/1806-3756/e2022...
.

Este estudo apresentou limitações relacionadas às condições técnico-operacionais dos sistemas de informação, pois sabe-se que o uso de fontes secundárias, embora oficial e amplamente utilizadas em trabalhos científicos, pode apresentar incompletude de dados e condições divergentes, considerando a baixa qualidade do sistema de informação em alguns locais do país. Salienta-se que a falácia ecológica é um dos principais vieses de um estudo epidemiológico, sendo que a complementariedade com um estudo de coorte seria importante para avançar nessa limitação. Entretanto, a análise dos dados não foi comprometida, e a relevância da problemática de pesquisa pode ser aquilatada não somente pelas conhecidas fragilidades enfrentadas na prevenção e no controle da doença, mas, principalmente, pelos impactos causados à saúde da população.

A incidência da coinfecção TB-HIV no Brasil tem se mantido estável ao longo dos vinte anos. Quando analisada por região, apresenta tendência crescente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A maioria dos casos de TB-HIV ocorreu predominantemente em indivíduos do sexo masculino, de 35 a 44 anos, de raça/cor parda, residentes na zona urbana e com baixa escolaridade. Ademais, a situação de encerramento não atingiu as metas preconizadas para o plano de erradicação da TB-HIV, representando apenas 46% com desfecho de cura.

A coinfecção TB-HIV apresentou correlação espacial, apontando para uma distribuição não aleatória no espaço. Assim, foram percebidos aglomerados espaciais, com áreas e vizinhos apresentando altas taxas em 270 municípios tidos como prioritários, localizados principalmente no Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.

Tendências crescentes da incidência de coinfecção TB-HIV também foram observadas entre homens e adultos com idade superior a 40 anos. Já o percentual de cura tem decrescido ao longo dos anos. As técnicas de análise espacial tornaram o estudo viável e configuraram-se como uma importante ferramenta metodológica para um melhor conhecimento desse agravo e definição das principais áreas de risco.

Como implicações para a saúde coletiva da população brasileira, salienta-se que a identificação do perfil epidemiológico dos casos de coinfecção TB-HIV no Brasil subsidia a elaboração e implementação de políticas públicas direcionadas à prevenção dessa epidemia da coinfecção por meio de uma abordagem temporal e espacial.

Sugere-se o desenvolvimento de novas ferramentas que fortaleçam a adesão ao tratamento da coinfecção TB-HIV com base na subjetividade de cada indivíduo e foco na determinação social e econômica, incluindo a localização geográfica de áreas de risco e considerando os bolsões de pobreza das grandes cidades, a moradia precária, as comorbidades existentes e o uso de álcool e drogas. Realça-se que a maior capacidade no serviço de diagnóstico e tratamento deve estar concentrada onde as necessidades do indivíduo, da família e da comunidade são maiores.

Referências bibliográficas

  • FONTE DE FINANCIAMENTO: nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2023
  • Revisado
    01 Mar 2024
  • Aceito
    22 Mar 2024
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revbrepi@usp.br