Estudo TransOdara: o desafio de integrar métodos, contextos e procedimentos durante a pandemia de COVID-19 no Brasil

Maria Amelia de Sousa Mascena Veras Thiago Felix Pinheiro Lenice Galan Laio Magno Andréa Fachel Leal Daniela Riva Knauth Ana Rita Coimbra Motta-Castro Rita Suely Bacuri de Queiroz Philippe Mayaud Daniel Jason McCartney Gwenda Hughes Camila Mattos dos Santos Leonardo Bastos Katia Cristina Bassichetto Sandro Sperandei Claudia Renata dos Santos Barros Rodrigo Calado da Silva Francisco Inácio Bastos Maria Inês Costa Dourado Sobre os autores

RESUMO

Objetivo

As infecções sexualmente transmissíveis (IST) afetam desproporcionalmente as mulheres trans e travestis (MTT), que muitas vezes não têm acesso a cuidados de saúde devido ao estigma e à discriminação. Descrevemos a abordagem e a metodologia de um estudo que investigou a prevalência de sífilis, HIV, hepatite A, B e C, Neisseria gonorrhoeae (NG), Chlamydia trachomatis (CT) e papilomavírus humano (HPV) entre as MTT, bem como seu conhecimento e percepção sobre a sífilis, para melhor as políticas para redução de IST nessa população vulnerável.

Métodos:

TransOdara foi um estudo multicêntrico, transversal, realizado em cinco capitais das principais regiões brasileiras entre dezembro de 2019 e julho de 2021. Mulheres autoidentificadas como mulheres trans ou travestis, com idade >18 anos, foram recrutadas usando respondent-driven sampling, após uma fase de pesquisa formativa. Responderam a um questionário conduzido por entrevistadoras. Foi oferecida consulta médica, com exame físico, e solicitou-se que fornecessem amostras de vários locais para detectar as IST citadas. Quando indicado e consentido, foram iniciadas a vacinação e o tratamento.

Resultados:

Foram recrutadas 1.317 participantes nos cinco locais de estudo: Campo Grande (n=181, 13,7%), Manaus (n=340, 25,8%), Porto Alegre (n=192, 14,6%), Salvador (n= =201, 15,3%) e São Paulo (n=403, 30,6%). O período de recrutamento variou em cada local em razão de restrições logísticas impostas pela pandemia de COVID-19.

Conclusão:

Apesar dos enormes desafios colocados pela ocorrência simultânea da pandemia da COVID-19 e do trabalho de campo dirigido a uma população vulnerabilizada e dispersa, o projeto TransOdara foi eficazmente implementado. As adversidades não impediram que mais de 1.300 mulheres trans e travestis tenham sido entrevistadas e testadas em meio a uma epidemia de tal magnitude que perturbou os serviços de saúde e os projetos de pesquisa no Brasil e no mundo.

Palavras-chave:
Pessoas transgênero; Sífilis; HIV; Infecções sexualmente transmissíveis; Amostragem; Respondent-driven sampling; Ciência da implementação

INTRODUÇÃO

As Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) continuam a ser um grande problema de saúde pública em todo o mundo, impactando a qualidade de vida e resultando em significativa morbidade e mortalidade. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de um milhão de IST curáveis são contraídas todos os dias, causadas principalmente por Chlamydia trachomatis (CT), Neisseria gonorrhoeae (NG), Treponema pallidum (sífilis) e Trichomonas vaginalis. Além disso, um número inaceitavelmente elevado de pessoas ainda morre de HIV e hepatite B ou C11. World Health Organization. Global health sector strategies on, respectively, HIV, viral hepatitis and sexually transmitted infections for the period 2022-2030. Geneve: World Health Organization; 2022..

Recentemente, foram propostas estratégias para reduzir o fardo global das IST, incluindo o desenvolvimento de testes rápidos no local de atendimento, que fornecem resultados imediatamente após a coleta da amostra, evitando a perda da oportunidade de tratamento e cuidados imediatos22. Toskin I, Blondeel K, Peeling RW, Deal C, Kiarie J. Advancing point of care diagnostics for the control and prevention of STIs: the way forward. Sex Transm Infect 2017; 93(S4): S81-S8. https://doi.org/10.1136/sextrans-2016-053073
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. Tais estratégias são especialmente relevantes para reduzir a incidência entre as populações que enfrentam barreiras no acesso aos cuidados e tratamento nas unidades de saúde.

Apesar desses esforços, a prevalência de IST não diminuiu, e surtos recentes de novas infecções transmitidas por contato sexual, tais como Mpox, Shigella sonnei, Neisseria meningitidis, Ébola e Zika, têm sido registrados, tornando difícil o controle dessas doenças e a sua consequências11. World Health Organization. Global health sector strategies on, respectively, HIV, viral hepatitis and sexually transmitted infections for the period 2022-2030. Geneve: World Health Organization; 2022.. Além disso, a resistência antimicrobiana representa uma ameaça significativa à saúde pública global, particularmente para a NG, uma vez que pode levar a infecções ainda mais difíceis de tratar33. Unemo M, Golparian D, Eyre DW. Antimicrobial resistance in neisseria gonorrhoeae and treatment of gonorrhea. Methods Mol Biol 2019; 1997: 37-58. https://doi.org/10.1007/978-1-4939-9496-0_3
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4. Machado HM, Martins JM, Schörner MA, Gaspar PC, Bigolin A, Ramos MC, et al. National surveillance of Neisseria gonorrhoeae antimicrobial susceptibility and epidemiological data of gonorrhoea patients across Brazil, 2018-20. JAC Antimicrob Resist 2022; 4(4): dlac076. https://doi.org/10.1093/jacamr/dlac076
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-55. Guimarães MDC, Kendall C, Magno L, Rocha GM, Knauth DR, Leal AF, et al. Comparing HIV risk-related behaviors between 2 RDS national samples of MSM in Brazil, 2009 and 2016. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1) :S62-S8. https://doi.org/10.1097/MD.0000000000009079
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.

No Brasil, os dados sobre a prevalência das IST mais comuns são limitados, provavelmente devido ao manejo sindrômico das IST implementado pelo sistema público de saúde desde o início da década de 1990. Isso resultou em notificações/vigilância etiológica limitadas de IST para fins de diagnóstico66. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilência em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para atenção integral às pessoas com infecções sexualmente transmissíveis. Brasilia: Ministério da Saúde; 2015..

As mulheres trans e travestis (MTT), termo abrangente que inclui todos os outros indivíduos que se identificam com uma identidade de gênero diferente do sexo masculino atribuído ao nascimento, correm um risco mais elevado de contrair HIV e outras IST. No entanto, há uma escassez de dados disponíveis sobre outras IST além do HIV para essa população, especialmente em países de baixa e média renda, como o Brasil77. World Health Organization. Consolidated guidelines on HIV, viral hepatitis and STI prevention, diagnosis, treatment and care for key populations. Geneva: World Health Organization; 2022.,88. MacCarthy S, Poteat T, Xia Z, Roque NL, Kim AHJ, Baral S, et al. Current research gaps: a global systematic review of HIV and sexually transmissible infections among transgender populations. Sex Health 2017; 14(5): 456-68. https://doi.org/10.1071/SH17096
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.

Os dados disponíveis sugerem que as taxas de IST em MTT no Brasil são altas99. Magno L, Silva LAV, Veras MA, Pereira-Santos M, Dourado I. Stigma and discrimination related to gender identity and vulnerability to HIV/AIDS among transgender women: a systematic review. Cad Saude Publica 2019; 35(4): e00112718. https://doi.org/10.1590/0102-311X00112718
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. Em um estudo realizado no Rio de Janeiro, 28,9% dos MTT foram diagnosticadas com sífilis, 14,6% com clamídia retal e 13,5% com gonorreia retal1010. Leite BO, Medeiros DS, Magno L, Bastos FI, Coutinho C, Brito AM, et al. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health 2021; 20(1): 199. https://doi.org/10.1186/s12939-021-01541-z
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, enquanto a prevalência estimada de HIV no Rio de Janeiro e em São Paulo ficou entre 30–40%1010. Leite BO, Medeiros DS, Magno L, Bastos FI, Coutinho C, Brito AM, et al. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health 2021; 20(1): 199. https://doi.org/10.1186/s12939-021-01541-z
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,1111. Costa AB, Rosa Filho HT, Pase PF, Fontanari AMV, Catelan RF, Mueller A, et al. Healthcare needs of and access barriers for brazilian transgender and gender diverse people. J Immigr Minor Health 2018; 20(1): 115-23. https://doi.org/10.1007/s10903-016-0527-7
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. Os determinantes da aquisição e transmissão de IST sobrepõem-se aos do HIV, incluindo relações sexuais anais receptivas sem preservativo1212. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilência em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para atenção integral às pessoas com infecções sexualmente transmissíveis. Brasilia: Ministério da Saúde; 2022.. Outros fatores de risco importantes para a infecção pelo HIV em MTT incluem abuso psicológico e físico resultante da não conformidade de gênero1313. Moseholm E, Fetters MD. Conceptual models to guide integration during analysis in convergent mixed methods studies. Method Innov 201; 10(2). https://doi.org/10.1177/2059799117703118
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, idade jovem, raça/cor de pele negra e histórico de trabalho sexual e/ou uso de cocaína. No entanto, são necessários dados mais robustos e oportunos sobre a frequência e os fatores de risco de IST não relacionadas com o HIV em MTT.

O estigma e a discriminação são obstáculos significativos ao acesso aos serviços de saúde para as MTT, levando a piores resultados de saúde99. Magno L, Silva LAV, Veras MA, Pereira-Santos M, Dourado I. Stigma and discrimination related to gender identity and vulnerability to HIV/AIDS among transgender women: a systematic review. Cad Saude Publica 2019; 35(4): e00112718. https://doi.org/10.1590/0102-311X00112718
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,1010. Leite BO, Medeiros DS, Magno L, Bastos FI, Coutinho C, Brito AM, et al. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health 2021; 20(1): 199. https://doi.org/10.1186/s12939-021-01541-z
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. Essas mulheres frequentemente relatam experiências negativas em ambientes de cuidados de saúde, tais como linguagem insensível ou recusa de cuidados, enquanto os prestadores de cuidados de saúde muitas vezes se sentem despreparados para prestar cuidados adequados1111. Costa AB, Rosa Filho HT, Pase PF, Fontanari AMV, Catelan RF, Mueller A, et al. Healthcare needs of and access barriers for brazilian transgender and gender diverse people. J Immigr Minor Health 2018; 20(1): 115-23. https://doi.org/10.1007/s10903-016-0527-7
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. Essa falta de cuidados adequados de afirmação de gênero provavelmente inibe as pessoas trans de procurarem testes, diagnóstico e tratamento para IST, bem como outros cuidados de saúde necessários.

Há uma necessidade de dados robustos sobre a epidemiologia das IST em MTT e de uma compreensão das disparidades de saúde que enfrentam. Esses dados são essenciais para informar o desenvolvimento de serviços e estratégias eficazes de prevenção e tratamento1212. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilência em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para atenção integral às pessoas com infecções sexualmente transmissíveis. Brasilia: Ministério da Saúde; 2022..

Para abordar essas lacunas, estabelecemos o estudo TransOdara com os seguintes objetivos:

  1. Estimar a prevalência de IST, incluindo sífilis, HIV, NG, CT, papilomavírus humano (HPV), vírus da hepatite A (HAV), hepatite B (HBV) e hepatite C (HCV), entre mulheres trans e travestis em cada uma das cinco macrorregiões do Brasil;

  2. Demonstrar a viabilidade de implementação de tratamento e prevenção no local de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS); e

  3. Compreender os significados atribuídos à sífilis e as vivências nos serviços de saúde entre as MTT.

Aqui apresentamos a metodologia e os procedimentos do estudo TransOdara. Descrevemos alguns dos desafios enfrentados ao estabelecer o estudo durante a pandemia de COVID-19 e como eles foram abordados.

MÉTODOS

O TransOdara é um estudo multicêntrico e transversal realizado em cinco capitais brasileiras: Campo Grande, Manaus, Porto Alegre, Salvador e São Paulo entre dezembro de 2019 e julho de 2021, entre mulheres trans e travestis.

Este estudo de metodologia mista adotou um desenho convergente com uma estrutura bidirecional simultânea para análise de fusão de dados, que envolveu uma consideração interativa de perspectivas qualitativas e quantitativas1313. Moseholm E, Fetters MD. Conceptual models to guide integration during analysis in convergent mixed methods studies. Method Innov 201; 10(2). https://doi.org/10.1177/2059799117703118
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.

Pesquisa qualitativa

O estudo começou com uma fase formativa utilizando métodos e técnicas de pesquisa complementares. Inicialmente, foram mapeados e visitados locais sociais e instituições que ofereciam serviços para pessoas trans, a fim de obter informações sobre as redes sociais das MTT e pessoas que elas conheciam. Isso ajudou na seleção das ‘sementes’ para o componente quantitativo em cada local de estudo. Em seguida, identificamos potenciais participantes, indicados por informantes-chave, e realizamos grupos focais para: compreender os significados atribuídos por mulheres trans e travestis à sífilis e a outras IST; identificar os seus conhecimentos sobre prevenção, testagem e tratamento dessas infecções; avaliar a aceitabilidade de diferentes estratégias de teste e tratamento; e compreender sua experiência com os serviços de saúde. Em São Paulo, um grupo focal com MTT foi convocado inicialmente para nomear e desenvolver a identidade visual do estudo a partir de suas referências semânticas e estéticas, de acordo com suas expectativas para um projeto de saúde (Figura 1).

Figura 1
Produção visual – arte produzida para comunicação, conforme projeto imagético da pesquisa.

Outro componente qualitativo foi realizado com participantes já incluídas no componente quantitativo (exceto em Salvador, onde as duas etapas qualitativas foram realizadas simultaneamente). Nessa etapa, foram realizadas entrevistas em profundidade com participantes de diferentes níveis de escolaridade, tanto aquelas que relataram diagnóstico prévio de sífilis quanto aquelas que não o fizeram. As entrevistas tiveram como objetivo compreender a vulnerabilidade das mulheres trans e travestis às IST, os significados atribuídos a tais infecções, o acesso (ou falta dele) aos serviços de saúde e os itinerários no sistema de saúde, com foco na identificação de barreiras ao tratamento das IST.

Pesquisa quantitativa

Procedimentos de amostragem e tamanho da amostra

Um tamanho de amostra de 1.280 mulheres trans e travestis foi calculado a priori para fornecer uma estimativa da prevalência de sífilis com erros padrão para cada local, utilizando um método apropriado onde o tamanho da população é desconhecido1414. Salganik MJ. Variance estimation, design effects, and sample size calculations for respondent-driven sampling. J Urban Health 2006; 83(6 Suppl): i98-112. https://doi.org/10.1007/s11524-006-9106-x
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. O tamanho da amostra de cada local foi calculado para estimar a prevalência de sífilis ativa, considerando títulos >1:8 no VDRL e o tamanho das respectivas cidades, conforme observado na Tabela 1.

Tabela 1
Tamanho da amostra para cada local e respectivo erro padrão.

As questões operacionais e as restrições orçamentais foram considerações importantes na escolha da sífilis ativa como resultado primário para os cálculos do tamanho da amostra. Estudos anteriores sugeriram que outras IST poderiam ser menos prevalentes que a sífilis, levando a amostras muito maiores. Certamente, a nossa escolha pode resultar numa precisão inferior à ideal das estimativas de prevalência para infecções raras1515. Rothman KJ, Greenland S. Planning study size based on precision rather than power. Epidemiology 2018; 29(5): 599-603. https://doi.org/10.1097/EDE.0000000000000876
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. O impacto dessa limitação nas estimativas de ITS específicas será discutido nos documentos analíticos relevantes.

Recrutamento

As MTT foram recrutadas nos cinco locais de estudo através do método respondent-driven sampling (RDS). O RDS é uma abordagem apropriada para o recrutamento dessa população1616. Heckathorn DD. Respondent-driven sampling: a new approach to the study of hidden populations. Social Problems 1997; 44(2): 174-99. https://doi.org/10.2307/3096941
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e tem sido utilizado para o recrutamento de MTT em outros estudos no Brasil1717. Bastos FI, Bastos LS, Coutinho C, Toledo L, Mota JC, Velasco-de-Castro CA, et al. HIV, HCV, HBV, and syphilis among transgender women from Brazil: assessing different methods to adjust infection rates of a hard-to-reach, sparse population. Medicine (Baltimore) 2018; 97(1S Suppl 1): S16-S24. https://doi.org/10.1097/MD.0000000000009447
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.

Durante a pesquisa formativa em cada local de estudo, potenciais “sementes” (sete a nove) foram selecionadas através de entrevistas em profundidade e grupos focais com membros da comunidade de mulheres trans e travestis, que foram inicialmente contatados por trabalhadoras de proximidade/pares que já trabalhavam com as equipes de pesquisa locais. Os critérios para a escolha das “sementes” incluíam ligações a uma grande rede social de potenciais participantes e garantiam diversidade suficiente em características de interesse, como o nível de escolaridade e o envolvimento no trabalho sexual.

Cada semente recebeu um número limitado de cupons (5–6) para distribuir a outras pessoas em sua rede social, e as participantes subsequentes receberam um número semelhante de cupons cada para distribuir. A metodologia RDS exige que as participantes indiquem pessoas que conhecem e com quem mantêm relacionamento social. As participantes foram instruídas a convidar outras pessoas que se identificassem como parte da mesma população de interesse do estudo. O número de seis cupons distribuídos a cada participante foi estabelecido para maximizar o recrutamento para o estudo e foi baseado na experiência anterior de pesquisa com MTT. As cadeias de recrutamento foram rastreadas usando um “gerenciador de cupons”, com cada participante recebendo um número exclusivo que identificava o local da pesquisa, o número de identificação individual e a sequência de recrutamento.

Os critérios de elegibilidade das participantes incluíam: ter 18 anos ou mais, ter sido designada no sexo masculino ao nascer, autoidentificação com identidade de gênero feminina (incluindo travesti, mulher, mulher trans, agênero ou outra identificação feminina), residir na área metropolitana dos locais do estudo e apresentar um cupom de estudo válido para participação na pesquisa.

As participantes foram reembolsadas pelas despesas com alimentação e transporte e foi necessário que fornecessem consentimento informado para participar do estudo.

Cada um dos locais de estudo teve a liberdade de adotar estratégias de recrutamento mais adequadas ao seu contexto, desde que não comprometessem os objetivos e o desenho geral do estudo. Em São Paulo, ao contrário dos outros locais, o estudo TransOdara foi integrado ao estudo de coorte TransNacional1818. Veras MASM, Saggese GSR, Gomez Junior JL, Silveira P, Paiatto B, Ferreira D, et al. Brief report: young age and sex work are associated with hiv seroconversion among transgender women in São Paulo, Brazil. J Acquir Immune Defic Syndr 2021; 88(1): e1-e4. https://doi.org/10.1097/QAI.0000000000002737
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, que também utilizou a metodologia RDS para recrutamento. As participantes da coorte foram convidadas a participar do estudo TransOdara e agendadas para os procedimentos propostos pelo novo estudo.

Apesar dos desafios impostos pela pandemia, toda a formação e supervisão planejadas no local foram realizadas de forma remota. As/os investigadoras/es em todos os locais de estudo possuíam experiência anterior na condução de outros estudos RDS, facilitando a transição para a formação online e a supervisão de todas as atividades de pesquisa.

Coleta de dados

Todas as participantes preencheram formulários específicos de coleta de dados incluindo:

  1. elegibilidade;

  2. aceitabilidade da coleta de amostras; e

  3. um questionário padrão conduzido por entrevistador/a para informações sociodemográficas com mais de duzentas perguntas relacionadas a procedimentos de afirmação de gênero, estigma e discriminação, encarceramento, saúde mental, uso de álcool e outras substâncias, comportamento sexual, acesso a cuidados de saúde e testes de HIV/IST, profilaxia pré-exposição (PrEP) e profilaxia pós-exposição (PEP) para prevenção do HIV e sintomas de IST nos últimos seis meses e no momento da visita do estudo.

As entrevistas presenciais foram realizadas por funcionárias/os bem treinadas/os, usando laptops.

Procedimentos clínicos e laboratoriais

As participantes foram solicitadas a fornecer voluntariamente amostras biológicas de vários locais do corpo para triagem de IST, com o direito de recusar qualquer um dos testes. Amostras de sangue foram coletadas e testadas para infecções por HIV, sífilis e hepatite (A, B, C), utilizando as diretrizes atuais do Ministério da Saúde do Brasil e com produtos registrados e aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Testes rápidos para detecção de anti-HIV-1/2, anti-HCV, anti-HBsAg e anti-Treponema pallidum foram realizados durante a visita do estudo, seguidos de testes laboratoriais para confirmação e para determinar o tempo de infecção.

Amostras de urina, anorretal e orofaríngea foram testadas para CT e NG usando o teste de Abbott RealTime CT/NG (Des Plaines, IL, EUA), que já demonstrou alta precisão para cada um desses locais anatômicos para cada patógeno1919. Gaydos CA, Cartwright CP, Colaninno P, Welsch J, Holden J, Ho SY, et al. Performance of the Abbott RealTime CT/NG for detection of Chlamydia trachomatis and Neisseria gonorrhoeae. J Clin Microbiol 2010; 48(9): 3236-43. https://doi.org/10.1128/JCM.01019-10
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. O Seegene Anyplex II HPV28 Detection (Seul, República da Coreia) foi usado para detectar o DNA do HPV e identificar genótipos específicos presentes em esfregaços da região perianal e genitais externos, com precisão demonstrada principalmente para amostras cervicais em mulheres cisgênero, mas considerada aceitável para detecção de genótipos de HPV no canal anal2020. Poynten IM, Jin F, Molano M, Machalek DA, Roberts JM, Hillman RJ, et al. Comparison of four assays for human papillomavirus detection in the anal canal. Clin Microbiol Infect 2022; 28(12): 1652.e1-e6. https://doi.org/10.1016/j.cmi.2022.06.027
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. As participantes puderam escolher se essas amostras foram autocoletadas ou coletadas por profissional de saúde, com diagramas instrutivos desenvolvidos especificamente para o estudo, levando em consideração corpos trans, para orientar as participantes na autocoleta. Procedimentos detalhados e aceitabilidade da coleta de amostras por conta própria ou por profissional de saúde foram publicados em outro estudo2121. McCartney DJ, Pinheiro TF, Gomez JL, Carvalho PGC, Veras MA, Mayaud P. Acceptability of self-sampling for etiological diagnosis of mucosal sexually transmitted infections (STIs) among transgender women in a longitudinal cohort study in São Paulo, Brazil. Braz J Infect Dis 2022; 26(3): 102356. https://doi.org/10.1016/j.bjid.2022.102356
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.

Cada participante foi solicitada a consentir a realização de um exame físico por um/a médico/a do estudo, com o objetivo de observar e relatar sinais de infecção usando um formulário padronizado de relato de caso, independentemente de quaisquer sintomas relatados. A participante poderia ainda optar por não participar de todos ou quaisquer exames. Os exames incluíam uma avaliação geral da pele, orofaringe e gânglios linfáticos axilares e inguinais (para detectar possíveis sinais de sífilis, verrugas, úlceras, inflamação e adenomegalia); exame genital (para detectar a presença de corrimento genital, verrugas e úlceras); e um exame anal (para detectar a presença de secreção anal, verrugas e úlceras). O exame genital foi baseado na genitália presente (pênis e escroto ou neovagina pós-cirurgia).

No geral, os exames clínicos e laboratoriais foram bem aceitos pelas entrevistadas e o número de recusas foi insignificante (ou seja, 98,5% consentiram a coleta de amostras biológicas).

Quando necessário, as participantes foram encaminhadas para tratamento de qualquer condição evidenciada por exames laboratoriais ou clínicos. A situação vacinal de cada participante foi avaliada e, quando indicado, foram encaminhadas para receber as vacinas nos serviços do SUS conforme indicação. Todas as participantes, independentemente da cidade, seguiram os mesmos procedimentos em relação à oferta de testes, exames e vacinas. Além disso, foram desenvolvidos procedimentos operacionais padrão (POPs) para garantir a homogeneidade entre os cinco locais de estudo. Uma gestora de dados trabalhou durante todo o período do estudo para verificar a qualidade dos dados coletados e solicitar correções ou complementações sempre que necessário.

Armazenamento e limpeza de dados

Todos os dados, incluindo as respostas de questionários conduzidos por entrevistadoras/es e formulários de relatos de casos, foram coletados e gerenciados como uma única entrada usando a REDCap2222. Harris PA, Taylor R, Thielke R, Payne J, Gonzalez N, Conde JG. Research electronic data capture (REDCap)--a metadata-driven methodology and workflow process for providing translational research informatics support. J Biomed Inform 2009; 42(2): 377-81. https://doi.org/10.1016/j.jbi.2008.08.010
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, uma plataforma segura baseada na web projetada para apoiar a coleta de dados validados para estudos de pesquisa, hospedados na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. A limpeza dos dados e a análise estatística foram realizadas utilizando o R2323. R Core Team. R: A language and environment for statistical computing. Vienna: R Foundation for Statistical Computing; 2009.. Para estimar a prevalência das IST de interesse, cada cidade foi tratada como um cluster devido ao recrutamento entre pares e à diversidade das redes. Os pesos RDS não foram utilizados na análise, pois estudos recentes demonstraram que não melhoram o desempenho do modelo e podem introduzir mais incerteza, dependendo da estrutura da rede subjacente2424. Avery L, Rotondi N, McKnight C, Firestone M, Smylie J, Rotondi M. Unweighted regression models perform better than weighted regression techniques for respondent-driven sampling data: results from a simulation study. BMC Med Res Methodol 2019; 19(1):202. https://doi.org/10.1186/s12874-019-0842-5
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,2525. Sperandei S, Bastos LS, Ribeiro-Alves M, Reis A, Bastos FI. Assessing logistic regression applied to respondent-driven sampling studies: a simulation study with an application to empirical data. Int J Soc Res Methodol 2023; 26(3): 319-33. https://doi.org/10.1080/13645579.2022.2031153
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.

Aspectos éticos

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (CAAE 05585518.7.0000.5479 - Nº parecer: 3.126.815 - 30/01/2019), assim como pelas demais instituições participantes: Instituto Leônidas e Maria Deane — ILMD/Fiocruz — Manaus; Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids, Instituto Adolfo Lutz; Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre; Universidade Federal da Bahia; Universidade Federal de Mato Grosso do Sul — UFMS, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre — UFCSPA e Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS.

O consentimento livre e esclarecido por escrito foi obtido de todas as participantes individuais incluídas no estudo. Indivíduos que se identificaram com uma identidade transfeminina estiveram envolvidas na concepção e implementação do estudo e lideraram o recrutamento de participantes utilizando RDS.

RESULTADOS

Foram recrutadas 1.317 participantes nos cinco locais de estudo: Campo Grande (n=180, 13,7%), Manaus (n=333, 25,8%), Porto Alegre (n=191, 14,6%), Salvador (n=207, 15,3%) e São Paulo (n=406, 30,6%). O período de recrutamento variou em cada local de estudo, devido aos diferentes prazos para obtenção da aprovação ética e às consequências das ondas epidemiológicas da pandemia de COVID-19. Em diferentes fases da curva epidemiológica, medidas como aconselhar as pessoas a ficarem em casa, restringir o acesso a unidades de saúde primárias (em quatro de cada cinco locais) apenas a emergências, e fechar campi universitários, entre outras medidas, afetaram diretamente as atividades de pesquisa.

A idade das participantes variou de 18 a 68 anos, com média de idade de 30 anos (desvio padrão — DP=9,9), variando conforme as cidades: 29 — DP=10,7 (Campo Grande), 30 — DP 9,3 (Manaus), 32 — DP=9,9 (Porto Alegre), 28 — DP=9,6 (Salvador) e 33 — DP=9,7 (São Paulo). Idade mediana de 31 anos (intervalo interquartil — AIQ 24–38). A maioria das participantes identificou-se como tendo raça/cor de pele ‘parda’ (44%), com proporções semelhantes relatando ‘preta’ ou ‘branca’ (27 e 26%, respectivamente). A maioria das participantes se identificou como mulher transexual (56,3%) ou travesti (29,8%).

Menos de um terço (29,3%) das participantes relatou ter mudado o nome em algum documento oficial. Mais de um terço das participantes relataram não ter religião (36%). O catolicismo foi a religião mais citada (26%), seguida pelas afro-brasileiras (22%). A maioria referiu ter ensino secundário (58%), enquanto um quarto (25%) reportou ter apenas o nível primário ou nenhuma escolaridade.

Uma percentagem substancial de participantes (37,6%) vivia em condições instáveis (como abrigos ou dormindo no local de trabalho), incluindo pessoas sem-teto (1,8%). A situação profissional variou, com a maior proporção sendo de desempregadas (22,3%), seguida de trabalhadoras do sexo (21,3%) ou trabalhadoras independentes (16,1%). Apenas uma pequena proporção relatou estar formalmente empregada (8,4%). A renda mensal da maioria das participantes (57%) era de até um salário mínimo — em reais (BRL), aproximadamente 1.000,00 (R$ 998,00 em 2019, 1.100,00 em 2021, ou aproximadamente US$ 200).

Mais de um quarto (27%) das participantes relatou ter sido submetida a algum procedimento ou cirurgia relacionado à transição, enquanto uma proporção muito pequena (1,7%) relatou ter uma neovagina após ser submetida a uma cirurgia para remover o pênis e o escroto. A maioria das participantes (86%) já usou hormônios antes, enquanto pouco menos da metade (48%) estava usando hormônios para afirmação de gênero.

O estudo constatou altos níveis de discriminação e violência, com a maioria das participantes relatando ter sofrido algum tipo de discriminação (85,0%) ou sexo forçado (51%). Quase um quarto (23%) relatou ter sido presa e, entre essas, menos de 1% (0,8%) foi colocada em uma cela dedicada a pessoas LGBTQI+.

A maioria das participantes relatou sua orientação sexual como heterossexual (78,7%) e seu status de parceria como solteira (69,9%). Nos últimos seis meses, menos de metade relatou ter um parceiro sexual fixo (48,6%) ou parceiros sexuais casuais (44,0%). Enquanto dois quintos (39,7%) indicaram ter tido pelo menos um parceiro sexual comercial nos últimos seis meses, um quinto (21,3%) relatou o trabalho sexual como a sua principal fonte de renda. A maioria das participantes relatou ter praticado sexo transacional (73,7%).

As características das participantes por local e a amostra total são apresentadas na Tabela 2.

Tabela 2
Características sociodemográficas das mulheres trans e travestis participantes do estudo TransOdara, segundo cidades de estudo. Dezembro de 2019 a julho de 2021.

DISCUSSÃO

O estudo TransOdara foi o primeiro grande estudo no Brasil projetado para mulheres trans e travestis testando oito diferentes IST, incluindo HIV, sífilis, hepatite A, hepatite B, hepatite C, HPV, gonorreia e clamídia. As características das participantes confirmam que um número substancial de MTT enfrenta vulnerabilidade social, discriminação e barreiras no acesso aos seus direitos.

O estudo concluiu que a autoamostragem para diagnóstico etiológico de IST em locais potenciais de infecção era altamente aceitável entre mulheres trans e travestis, e poderia ser uma ferramenta importante na prevenção e tratamento dessas infecções nessa população. A aceitabilidade foi facilitada por uma equipe de profissionais amigável e bem treinada2121. McCartney DJ, Pinheiro TF, Gomez JL, Carvalho PGC, Veras MA, Mayaud P. Acceptability of self-sampling for etiological diagnosis of mucosal sexually transmitted infections (STIs) among transgender women in a longitudinal cohort study in São Paulo, Brazil. Braz J Infect Dis 2022; 26(3): 102356. https://doi.org/10.1016/j.bjid.2022.102356
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.

Apesar das interrupções e atrasos causados pela pandemia da COVID-19, o estudo foi realizado com sucesso. Em São Paulo, único local que já havia sido iniciado (3 de dezembro de 2019) quando a pandemia surgiu no Brasil, o estudo atingiu metade da amostra alvo quando o trabalho de campo foi interrompido em 18 de março de 2020. O estudo foi reiniciado quatro meses depois, mas não foi possível manter a cadeia original de recrutamento do RDS e houve limitações no uso da análise de rede. O estudo foi retomado sob um protocolo rígido, incluindo contato prévio por telefone para avaliação de suspeita de infecção por SARS-CoV-2 entre as participantes. A coleta de dados durou até 29 de outubro de 2020.

Embora o RDS possa recrutar eficientemente um grande número de participantes num período relativamente curto e a um custo baixo, também pode resultar em viés de amostragem e seleção. Como o processo de recrutamento depende de redes sociais, a amostra pode não ser totalmente representativa e pode excluir subgrupos específicos. Além disso, as participantes que optaram por participar podem ter características específicas diferentes daquelas que não o fizeram. Neste estudo, por exemplo, dependendo das “sementes” selecionadas para recrutamento em cada local, as pessoas envolvidas no trabalho sexual podem estar super-representadas em alguns ou em todos os locais. Além disso, as diferenças nas características da população em vários locais podem dificultar a comparação dos resultados, sendo necessária uma interpretação cuidadosa, especialmente ao relatar a prevalência global. A mitigação desses vieses pode ser alcançada através de várias abordagens estatísticas para levar em conta os efeitos do RDS2424. Avery L, Rotondi N, McKnight C, Firestone M, Smylie J, Rotondi M. Unweighted regression models perform better than weighted regression techniques for respondent-driven sampling data: results from a simulation study. BMC Med Res Methodol 2019; 19(1):202. https://doi.org/10.1186/s12874-019-0842-5
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.

Até onde sabemos, este é o primeiro estudo multicêntrico direcionado a uma população trans e travesti vulnerabilizada e dispersa em meio à pandemia de COVID-19. Estamos cientes sobre as limitações impostas pela pandemia e os prejuízos que as interrupções nas cadeias de recrutamento fraturadas podem causar. Conforme discutido por Christenfeld et al.2626. Christenfeld NJS, Sloan RP, Carroll D, Greenland S. Risk factors, confounding, and the illusion of statistical control. Psychosom Med 2004; 66(6): 868-75. https://doi.org/10.1097/01.psy.0000140008.70959.41
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, a ciência não deve ser vista como uma fonte inesgotável de “truques de mágica”. No entanto, as cadeias de referência fragmentadas nunca serão tão eficazes quanto redes originais, e uma epidemia mortal deve ser abordada em primeiro lugar, como foi o caso deste estudo.

As participantes deram feedback positivo significativo sobre os serviços recebidos da estratégia no local de atendimento que integra testagem, tratamento e prevenção, incluindo início da PrEP e vacinas (dados não mostrados aqui), utilizando recursos disponíveis no SUS. Embora o modelo tenha sido implementado em graus variados em cada local, valeu a pena segui-lo com base em nossa experiência. Os dados qualitativos recolhidos em todos os locais registaram que várias participantes estiveram ligadas a um serviço de saúde pela primeira vez nas suas vidas (resultados do estudo TransOdara, não apresentados aqui por uma questão de concisão).

Para a realização do estudo foi necessário, em vários locais, incluir profissionais que inicialmente tinham pouca experiência no atendimento de pessoas trans. Por sua vez, isso exigiu diversos cursos de formação antes e durante o período de coleta de dados. Dessa forma, nosso estudo contribuiu para o fortalecimento de capacidades no SUS, uma vez que ampliar o número de profissionais bem capacitados/as para atuar com a população trans é fundamental para sua vinculação ao cuidado, adesão e retenção aos cuidados de saúde.

As conclusões deste estudo confirmam a vulnerabilidade social das MTT, que partilham identidades estigmatizadas que se cruzam. É evidente a necessidade de implementar uma saúde pública melhorada e políticas intersetoriais eficazes que aumentem o acesso dessa população aos serviços de saúde.

AGRADECIMENTOS:

Gostaríamos de expressar nossa gratidão às mulheres trans e travestis que participaram do estudo TransOdara; agradecemos também às instituições que apoiaram este estudo nas cinco capitais; o Ministério da Saúde do Brasil – Departamento de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI), especialmente Maria Cristina Pimenta de Oliveria e Silvana Pereira Giozza e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), especialmente Grasiela Damasceno de Araújo.

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  • FONTE DE FINANCIAMENTO: Este estudo foi financiado pela Organização Pan-Americana da Saúde / Ministério da Saúde do Brasil – Departamento de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI). Carta Acordo n° SCON2019-00162. MAV é uma cientista que também conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (CNPq nº 312529/2020-8). FIB é cientista de carreira (1A) pelo CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2023
  • Aceito
    29 Nov 2023
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revbrepi@usp.br