RESUMO
Objetivo:
descrever o acesso e a utilização de serviços de saúde na população brasileira segundo características sociodemográficas, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019.
Métodos:
estudo descritivo transversal, a partir de amostra da PNS; foram calculadas as prevalências e respectivos intervalos de confiança dos dados, estratificados por sexo, escolaridade, idade e macrorregião nacional de residência; os dados foram analisados utilizando-se o software Stata versão 16.1.
Resultados:
foram entrevistados 293.725 indivíduos; os do sexo masculino apresentaram menores proporções de consulta médica (66,6%) e de procura por atendimentos de saúde (17,6%); entre aqueles residentes na região Norte, 69,1% realizaram consulta médica; 16,5% dos indivíduos menos escolarizados obtiveram medicamentos pelo Programa Farmácia Popular.
Conclusão:
os resultados reforçam as iniquidades no acesso e na utilização dos serviços de saúde, além da necessidade de monitoração dos indicadores, para orientar políticas de saúde no Brasil.
Palavras-chave:
Serviços de Saúde; Acesso aos Serviços de Saúde; Equidade no Acesso; Fatores Socioeconômicos; Inquéritos Epidemiológicos
RESUMEN
Objetivo:
describir el acceso y uso de servicios de salud en la población brasileña según indicadores sociodemográficos de la Encuesta Nacional de Salud (Pesquisa Nacional de Saúde - PNS) 2019.
Métodos:
estudio descriptivo transversal con base en muestra de la PNS. Se calcularon prevalencias e intervalos de confianza para datos estratificados por sexo, escolaridad, edad y macrorregión. Datos analizados en el software Stata versión 16.1.
Resultados:
293.725 personas fueron entrevistadas; personas de sexo masculino tenían menor proporción de consulta médica (66,6%) y buscaban menos atención médica (17,6%). Entre los residentes en región Norte, 69,1% acudió a consulta médica. 16,5% de las personas con menor nivel educativo obtuvieron medicamentos mediante el Programa de Farmacia Popular.
Conclusión:
los resultados refuerzan las inequidades en uso y acceso a servicios de salud en Brasil y la necesidad de monitorear indicadores para orientar políticas de salud.
Palabras-clave:
Servicios de Salud; Acceso a los Servicios de Salud; Equidad en el Acceso; Factores socioeconómicos; Encuestas Epidemiológicas
INTRODUÇÃO
Os serviços ofertados pela rede do Sistema Único de Saúde (SUS) abrangem desde ações de prevenção de doenças e agravos até o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação das pessoas acometidas, além da promoção e manutenção da saúde. No Brasil, o acesso universal e gratuito a esses serviços é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988 e pelo SUS, este criado em 1990.11 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011;377(9779):1778-97. doi: 10.1016/S0140-6736(11)60054-8
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(11)60... ,22 Feigin V. Global, regional, and national life expectancy, all-cause mortality, and cause-specific mortality for 249 causes of death, 1980-2015: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2015. Lancet. 2016;388(10053):1459-1544. doi:10.1016/S0140-6736(16)31012-1
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)31... Entretanto, o acesso a tais serviços depende tanto da oferta e disponibilidade quanto da percepção e necessidade do indivíduo e da comunidade.33 Caram CS, Mendonça RD, Marques RJR, Brito MJM, Lopes ACS. Redução da desigualdade de acesso às ações de promoção da saúde na Atenção Primária brasileira: Programa Academia da Saúde. Demetra. 2021;16:e48519. doi: 10.12957/demetra.2021.48519
https://doi.org/10.12957/demetra.2021.48...
No Brasil, inquéritos populacionais têm identificado um aumento na oferta de ações e serviços de saúde, principalmente no período de 2008 a 2013. Observa-se, contudo, a manutenção das desigualdades, com maior dificuldade de acesso por usuários menos escolarizados, população de menor renda e residentes nas regiões Norte e Nordeste do país.44 Nunes BP, Flores TR, Garcia LP, Chiavegatto Filho ADP, Thumé E, Facchini LA et al. Tendência temporal da falta de acesso aos serviços de saúde no Brasil, 1998-2013. Epidemiol Serv Saude. 2016;25(4):777-87. doi:10.5123/S1679-49742016000400011
https://doi.org/10.5123/S1679-4974201600... –66 Viacava F, Porto SM, Carvalho CC, Bellido JG. Desigualdades regionais e sociais em saúde segundo inquéritos domiciliares (Brasil, 1998-2013). Cienc Saude Colet. 2019;24(7):2745-60. doi:10.1590/1413-81232018247.15812017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018247... Sabe-se que a iniquidade no acesso aos serviços acarreta piores desfechos e agravos de saúde para a população geral.77 Barreto ML. Desigualdades em Saúde: uma perspectiva global, 2017. Cienc Saude colet. 2017;22(7):2097-2108. doi:10.1590/1413-81232017227.02742017
https://doi.org/10.1590/1413-81232017227...
Estudos nacionais e internacionais têm enfatizado que o aumento da oferta de serviços de saúde não é suficiente para garantir o maior acesso e utilização desses serviços, principalmente quando as populações são mais vulneráveis.88 Burström B, Burström K, Nilsson G, Tomson G, Whitehead M, Winblad U, et al. Equity aspects of the Primary Health Care Choice Reform in Sweden - a scoping review. Int J Equity Health. 2017;16(1):29. doi: 10.1186/s12939-017-0524-z
https://doi.org/10.1186/s12939-017-0524-... ,99 Jahromi VK, Dehnavieh R, Mehrolhassani MH, Anari HS. Acesso aos cuidados de saúde na reforma do médico de família urbano na perspectiva dos médicos e dos pacientes: um projeto baseado em pesquisa em duas províncias-piloto no Irã. Electron Physician. 2017;9(1):3653-59. doi: 10.19082/3653.eCollection 2017Jan
https://doi.org/10.19082/3653.eCollectio... Nos últimos anos, o SUS sofreu importantes mudanças em seus programas e políticas, especialmente na atenção básica, ou Atenção Primária em Saúde (APS); entre essas mudanças, destacam-se a nova Política Nacional da Atenção Básica, de 2017, e o Programa Previne Brasil, de 2019, os quais reformularam a política de financiamento da atenção básica.1010 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica?. Cad Saude Publica. 2020;36(9):e00040220. doi: 10.1590/0102-311X00040220
https://doi.org/10.1590/0102-311X0004022... ,1111 Massuda A. Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso?. Cienc Saude Colet. 2020;25(4):1181-88. doi: 10.1590/1413-81232020254.01022020
https://doi.org/10.1590/1413-81232020254... A partir de então, como decorrência das novas políticas de saúde, a estimativa do custeio da APS no âmbito do SUS passou a ter por base o número de cidadãos cadastrados nos municípios e o desempenho alcançado pelas equipes de saúde, este avaliado por indicadores e metas definidos pelo Ministério da Saúde. Além disso, passam a vigorar novas possibilidades de relação entre Estado e empresas privadas, de maneira a que agentes públicos e privados participem, indistintamente, da prestação de serviços de saúde no SUS, o que acaba por reduzir o compromisso e dever do Estado, definido constitucionalmente, de promover a saúde dos brasileiros. Dessa forma, a ampliação no acesso e na qualificação dos serviços tende a ser contida, uma vez que possíveis distorções no financiamento podem restringir a atuação da APS.1010 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica?. Cad Saude Publica. 2020;36(9):e00040220. doi: 10.1590/0102-311X00040220
https://doi.org/10.1590/0102-311X0004022... ,1111 Massuda A. Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso?. Cienc Saude Colet. 2020;25(4):1181-88. doi: 10.1590/1413-81232020254.01022020
https://doi.org/10.1590/1413-81232020254... Nesse sentido, identificar as lacunas de acesso e utilização dos serviços públicos de saúde, nesse novo cenário, pode contribuir para identificar necessidades e reduzir as iniquidades no acesso universal aos serviços.
O objetivo deste estudo foi descrever o acesso e a utilização de serviços de saúde pela população brasileira segundo características sociodemográficas, de acordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo transversal, em que foram analisados dados da PNS de 2019, inquérito domiciliar de base populacional realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. Tal pesquisa visa produzir dados sobre a situação de saúde e os estilos de vida da população brasileira, como também sobre a atenção à saúde em âmbito nacional, no que diz respeito ao acesso e utilização dos serviços, ações preventivas, continuidade dos cuidados e financiamento da assistência.
A amostragem da PNS 2019 foi estimada por conglomerados, em três estágios de seleção. No primeiro estágio, foram estratificadas unidades primárias de amostragem (UPAs), por municípios, mediante seleção aleatória simples. O tamanho da amostra foi definido em 8.036 UPAs, que representam 53% das UPAs e correspondem a um conjunto de unidades de área a partir das quais é possível selecionar subamostras que atendam ao objetivo da pesquisa. No segundo estágio, realizou-se a distribuição dos domicílios por UPA, onde seriam realizadas as entrevistas: para Unidades da Federação (UFs) com maior quantidade de UPAs, menor número de domicílios (12 domicílios); para UFs com menor quantidade de UPAs, maior número de domicílios (18 domicílios); e finalmente, para UFs não contempladas nos dois critérios anterior-mente definidos, a quantidade alocada foi de 15 domicílios por UPA. No terceiro estágio, foi selecionado um morador com 15 anos de idade ou mais, com equiprobabilidade entre todos os moradores adultos do domicílio, para responder à entrevista individual. Neste estudo, o critério de elegibilidade adicional foi ter respondido às perguntas sobre acesso e utilização dos serviços do SUS e serviços de saúde privados, independentemente de sexo e do local de residência.
Descrições mais detalhadas do processo de amostragem e métodos de coleta de dados estão no relatório da PNS 2019, disponível online no sítio eletrônico do IBGE. Os dados foram acessados no dia 21 de julho de 2021.
A coleta de dados da PNS ocorreu entre agosto de 2019 e março de 2020, mediante a proposição de um questionário composto de três blocos de informações: a) variáveis do domicílio; b) características gerais de todos os moradores da residência; e c) questões sobre trabalho e saúde, direcionadas a um morador selecionado aleatoriamente. O questionário foi aplicado por entrevistadores devidamente treinados, segundo a personal digital assistance (PDA). As entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade de cada morador, tendo sido previstas duas ou mais tentativas de visitas em cada domicílio.
As variáveis relacionadas ao uso de serviços estudadas remeteram às seguintes questões:
Deixou de realizar atividades habituais por motivo de saúde, nas duas últimas semanas;
Procurou o mesmo profissional médico ou serviço, para atendimento, nas duas últimas semanas;
Realizou consulta com médico nos últimos 12 meses;
Realizou consulta com dentista nos últimos 12 meses;
Procurou atendimento em serviço de saúde, nas duas últimas semanas;
Conseguiu atendimento na primeira vez que o procurou, nas duas últimas semanas;
Teve atendimento de saúde realizado e medicamento receitado, nas duas últimas semanas;
Obteve todos os medicamentos receitados (por algum meio);
Obteve pelo menos um dos medicamentos receitados no último atendimento de saúde;
Obteve pelo menos um dos medicamentos receitados pelo Programa Farmácia Popular no último atendimento de saúde;
Obteve pelo menos um medicamento no serviço público, no último atendimento de saúde;
Foi internado em hospital por 24 horas, nos últimos 12 meses; e
A última internação foi realizada em uni-dade do SUS nos últimos 12 meses.
Todas as questões utilizadas foram dicotomizadas: não; sim.
Foram calculadas as prevalências das variáveis e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), mediante estratificação por sexo (feminino; masculino), grupos de idade (em anos: 0 a 17; 18 a 29; 30 a 39; 40 a 59; 60 ou mais), nível de instrução/escolaridade do chefe da família (sem instrução; ensino fundamental incompleto; ensino fundamental completo e ensino médio incompleto; ensino médio completo e ensino superior incompleto; ensino superior completo) e macrorregião do país (Norte; Nordeste; Sudeste; Sul; Centro-Oeste).
A análise de dados foi realizada com o uso do software Stata versão 16.1, por meio do módulo survey, que considera efeitos da amostragem complexa.
O projeto da PNS 2019 foi submetido à apreciação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)/Conselho Nacional de Saúde (CNS) e aprovado: Parecer n° 3.529.376, emitido em 23 de agosto de 2019. Todos os entrevistados foram consultados, devidamente esclarecidos e aceitaram participar da pesquisa.
RESULTADOS
O tamanho estimado da amostra foi de 108.457 domicílios e 279.210 indivíduos. Foram investigados 293.725 indivíduos, dos quais 51,9% eram do sexo feminino, 24,1% possuíam entre 18 e 29 anos de idade, cerca de 35,0% residiam na região Nordeste e 36,7% tinham ensino fundamental incompleto.
A Figura 1 apresenta a prevalência dos indicadores investigados. Observou-se que a maioria dos participantes (76,6%; IC95% 75,9;77,2) costumavam procurar o mesmo lugar, médico ou serviço de saúde, quando necessitavam, e 67,9% (IC95% 66,5;69,2) conseguiram atendimento na primeira vez que o buscaram; 19,2% (IC95% 18,5;19,9) se consultaram com médico nos últimos 12 meses e, para esse mesmo período, 49,2% dos entrevistados se consultaram com dentista (IC95% 48,5;49,9). Relativamente ao uso de medicamentos, 6 a cada 10 usuários tiveram medicamento receitado no último atendimento, e destes, 84,6% (IC95% 83,1;86,0) conseguiram obter todos os medicamentos; porém, somente para 11,5% (IC95% 10,4;12,9), a fonte para obtenção de pelo menos um medicamento foi a Farmácia Popular, e 19,4% (IC95% 17,8;21,1) obtiveram medicamentos em algum serviço público. Quanto a internação hospitalar realizada no último ano, 7,6% (IC95% 7,2;7,9) utilizaram o serviço, e, para 63,4% (IC95% 60,8;65,9) deles, a internação foi pelo SUS.
Prevalência de variáveis relacionadas ao acesso e ao uso de serviços de saúde, Pesquisa Nacional de Saúde, Brasil, 2019
Ao se estratificar a amostragem por sexo, verificou-se maior proporção de pessoas do sexo feminino (11,6%; IC95% 10,7;11,7) que deixaram de realizar atividades habituais por motivo de saúde, nas duas semanas anteriores à pesquisa. Os indivíduos do sexo masculino apresentaram menor proporção de consulta médica nos últimos 12 meses (66,6%; IC95% 66,3;66,8), menor consulta com dentista (45,2%; IC95% 44,3;46,2) e também procuraram menos por atendimentos de saúde nas duas semanas anteriores à pesquisa (17,6%; IC95% 17,1;18,4). Os demais indicadores apresentaram proporções semelhantes entre os sexos, conforme se observa na Tabela 1.
Frequência de acesso e utilização de serviços de saúde segundo sexo, Pesquisa Nacional de Saúde, Brasil, 2019
A Tabela 2 apresenta a distribuição dos indicadores de acordo com grupos etários.
Frequência de acesso e utilização de serviços de saúde segundo grupos etário, Pesquisa Nacional de Saúde, Brasil, 2019
Os resultados revelaram aumento progressivo da prevalência de atividades habituais por motivo de saúde, à medida que aumentou a idade, passando de 5,2% (IC95% 3,5;7,8) entre indivíduos de 0 a 17 anos para 12,0% (IC95% 11,4;12,8) em idosos. O mesmo ocorreu com os indicadores relacionados à procura por serviço de saúde nas últimas duas semanas, acesso a medicamentos pelo Programa Farmácia Popular, acesso a medicamentos por algum serviço público de saúde, consulta com médico nos últimos 12 meses e internação nos últimos 12 meses. Por sua vez, a consulta com dentista nos últimos 12 meses mostrou menor prevalência com o aumento da idade (Tabela 2).
Na Tabela 3, são apresentados os indicadores segundo as macrorregiões do país. A região Norte referiu menor proporção de pessoas que consultaram com médico e com dentista nos últimos 12 meses, 69,1% (IC95% 68,8;70,0) e 41,3% (IC95% 39,9;42,8) respectivamente. O Nordeste teve maior proporção de última internação pelo SUS, 77,1% (IC95% 73,9;80,0), e maior sucesso em conseguir atendimento na primeira busca, 72,7% (IC95% 70,1;74,5). A maior proporção de obtenção, pelo Farmácia Popular, de ao menos um dos medicamentos receitados, no último atendimento de saúde, foi observada no Sul: 17,8% (IC95% 15,1;21,0).
Frequência de acesso e utilização de serviços de saúde segundo macrorregiões do país, Pesquisa Nacional de Saúde, Brasil, 2019
Quanto à escolaridade, encontrou-se uma relação inversamente proporcional de maior prevalência entre aqueles com menor escolaridade, ao se considerarem os seguintes indicadores: deixar de realizar atividades habituais por motivo de saúde nas duas semanas anteriores à pesquisa (14,0%; IC95% 12,7;15,4); ter atendimento de saúde nas duas últimas semanas e ter medicamento receitado (65,8%; IC95% 61,3;70,0); obter no Programa Farmácia Popular pelo menos um dos medicamentos receitados no último atendimento de saúde (16,5%; IC95% 12,2;22,0); e obter, no serviço público de saúde, ao menos um dos medicamentos receitados no último atendimento de saúde (13,2%; IC95% 9,0;18,9). No entanto, os participantes com maior escolaridade apresentaram maiores proporções de consultas odontológicas nos últimos 12 meses (71,9%; IC95% 70,6;73,2) e de obtenção de todos os medicamentos receitados no último atendimento de saúde (90,0%; IC95% 87,0;92,4), quando comparados aos participantes sem instrução ou de menor escolaridade (Tabela 4).
Frequência de acesso e utilização de serviços de saúde segundo nível de instrução, Pesquisa Nacional de Saúde, Brasil, 2019
DISCUSSÃO
A análise dos principais resultados deste estudo sugere iniquidades no acesso e na utilização dos serviços de saúde no Brasil. Os achados mostraram menor uso de serviços odontológicos entre idosos e, para aqueles que residiam nas regiões Norte e Nordeste e entre os de menor escolaridade, adicionalmente, menor proporção de atendimento na busca de medicamentos pelo Programa Farmácia Popular ou pelo serviço público, evidenciando as diferenças nesse acesso entre grupos sociodemográficos.
Ao se compararem os resultados apresentados com os dados da PNS de 2013, identificou-se um pequeno aumento no acesso a consultas médicas e odontológicas, nos últimos 12 meses, assim como na busca e no atendimento realizado nas últimas duas semanas que antecederam a pesquisa, resultado também identificado em outras pesquisas nacionais.55 Stopa SR, Malta DC, Monteiro CN, Szwarcwald CL, Goldbaum M, Cesar CLG, et al. Acesso e uso de serviços de saúde pela população brasileira, Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Rev Saude Publica. 2017;51(Supl 1):1-11. doi: 10.1590/S1518-8787.2017051000074
https://doi.org/10.1590/S1518-8787.20170... ,1212 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Cienc Saude Colet. 2018;23(6):1751-62. doi:10.1590/1413-81232018236.06022018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236... Paradoxalmente, chama a atenção a redução proporcional daqueles que conseguiram atendimento na primeira vez que o procuraram, que passou de 95,3%, em 2013, para 67,9% em 2019.55 Stopa SR, Malta DC, Monteiro CN, Szwarcwald CL, Goldbaum M, Cesar CLG, et al. Acesso e uso de serviços de saúde pela população brasileira, Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Rev Saude Publica. 2017;51(Supl 1):1-11. doi: 10.1590/S1518-8787.2017051000074
https://doi.org/10.1590/S1518-8787.20170... Este resultado representa um retrocesso nos avanços alcançados nos últimos 30 anos, pelo Sistema Único de Saúde, especialmente na atenção básica, sendo um possível reflexo das iniciativas governamentais adotadas desde 2017, que causaram drástica redução do financiamento, diminuição dos serviços de saúde e de recursos humanos, levando à fragilização dos serviços e do cuidado à saúde dos usuários do SUS.66 Viacava F, Porto SM, Carvalho CC, Bellido JG. Desigualdades regionais e sociais em saúde segundo inquéritos domiciliares (Brasil, 1998-2013). Cienc Saude Colet. 2019;24(7):2745-60. doi:10.1590/1413-81232018247.15812017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018247... ,1212 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Cienc Saude Colet. 2018;23(6):1751-62. doi:10.1590/1413-81232018236.06022018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
Nesse sentido, o acesso a medicamentos pelo Programa Farmácia Popular e por serviços públicos reduziu-se em cerca de 15 p.p., entre 2013 e 2019. Há 15 anos, o Programa Farmácia Popular vem ampliando e facilitando o acesso da população a medicamentos, especialmente entre idosos e portadores de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), pelo que recebeu o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), haja vista os resultados alcançados.1313 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Os 10 anos do Programa Farmácia popular do Brasil. In: VII Fórum Nacional de Assistência Farmacêutica [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2014 [Citado 2021 08 05].102 p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br › bvs › publicacoes/programa_farmacia_popular.pdf
https://bvsms.saude.gov.br... ,1414 World Health Organization. The Pursuit of Responsible Use of Medicines: Sharing and Learning from Country Experiences [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2012 [Cited 2021 08 05]. 64 p. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/75828
https://apps.who.int/iris/handle/10665/7... Outrossim, a redução no acesso a medicamentos expõe principalmente os idosos e doentes crônicos, maiores usuários desses programas, situação que deve se agravar à medida que avance a transição demográfica e epidemiológica.1515 Costa EA, Araújo PS, Penaforte TR, Barreto JL, Guerra Junior AA, Acurcio FA, et al. Concepções de assistência farmacêutica na atenção primária à saúde, Brasil. Rev Saude Publica. 2017;51(Supl 2):1-11. doi:10.11606/S1518-8787.2017051007107
https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017... ,1616 Alencar TOS, Araújo OS, Costa EA, Barros RD, Lima YOR, Paim JS, et al. Programa Farmácia Popular do Brasil: uma análise política de sua origem, seus desdobramentos e inflexões. Saude Debate. 2018;42(spe2):159-72. doi:10.1590/0103-11042018S211
https://doi.org/10.1590/0103-11042018S21...
Quanto ao sexo, o menor acesso e utilização de serviços de saúde pelos homens é amplamente discutido na literatura nacional e internacional.1717 Bibiano AMB, Moreira RS, Tenório MMGO, Silva VL. Fatores associados à utilização dos serviços de saúde por homens idosos: Uma revisão sistemática da literatura. Cienc Saude Colet. 2019;24(6):2263-78. doi:10.1590/1413-81232018246.19552017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018246...
18 Bibiano AMB, Silva VL, Moreira RS. Fatores associados à utilização de serviços de saúde por homens idosos no Brasil: um estudo transversal. BMC Public Health. 2019;859(19). doi:10.1186/s12889-019-7232-0
https://doi.org/10.1186/s12889-019-7232-... -1919 Stefan Ek, Gender differences in health information behaviour: a Finnish population-based survey. Health Promot Int. 2015;30(3):736-45. doi: 10.1093/heapro/dat063
https://doi.org/10.1093/heapro/dat063... Os homens, além de apresentarem maior prevalência de comportamentos de risco para a saúde, como tabagismo, consumo de álcool e sedentarismo, também são mais resistentes a buscar cuidados em saúde, o que aumenta a chances de problemas no longo prazo.1717 Bibiano AMB, Moreira RS, Tenório MMGO, Silva VL. Fatores associados à utilização dos serviços de saúde por homens idosos: Uma revisão sistemática da literatura. Cienc Saude Colet. 2019;24(6):2263-78. doi:10.1590/1413-81232018246.19552017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018246... Consoante isso, Bibiano et al. mostraram, em seu estudo, que o atendimento dos homens idosos tem perfil curativo e de reabilitação, não de prevenção e promoção da saúde.
A maior frequência de busca por atendimento médico e o menor acesso imediato a cuidados odontológicos foram majoritariamente identificados entre os idosos. O processo fisiológico de envelhecimento, somado à maior ocorrência de doenças crônicas nessa população, ademais do fomento de políticas públicas voltadas para o aumento e facilitação do acesso aos serviços, faz com que os idosos busquem mais cuidados em saúde, demanda que vem aumentando nos últimos anos, com perspectiva crescente, ainda que a dificuldade de acesso em algumas áreas reforce uma importante lacuna na oferta de serviços de saúde.44 Nunes BP, Flores TR, Garcia LP, Chiavegatto Filho ADP, Thumé E, Facchini LA et al. Tendência temporal da falta de acesso aos serviços de saúde no Brasil, 1998-2013. Epidemiol Serv Saude. 2016;25(4):777-87. doi:10.5123/S1679-49742016000400011
https://doi.org/10.5123/S1679-4974201600... ,2020 Almeida, APSC, Nunes BP, Duro SMS, Lima RCD, Facchini LA. Falta de acesso e trajetória de utilização de serviços de saúde por idosos brasileiros. Cienc Saude Colet. 2020;25(6):2213-26. doi:10.1590/1413-81232020256.27792018
https://doi.org/10.1590/1413-81232020256...
A propósito, sobre a macrorregião de residência, os resultados deste trabalho retratam as desigualdades regionais no acesso e na utilização dos serviços de saúde no Brasil, já reconhecidas pelo Ministério da Saúde em iniciativas como a instituição da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a realização de outras pesquisas populacionais, caso do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel).2121 Cambota JN, Rocha FF. Determinantes das desigualdades na utilização de serviços de saúde: análise para o Brasil e regiões. Pesquisa e planejamento econômico. 2015;45(2):219-43. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6008
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https://doi.org/10.1590/1413-81232017224... O menor acesso a consulta médica e odontológica nas regiões Norte e Nordeste está associado à menor disponibilidade desses profissionais na rede pública, pois, ainda que, nos últimos anos, as políticas de ampliação dos serviços de saúde no Brasil tenham focado as regiões mais vulneráveis e reduzido as desigualdades, a garantia de recursos humanos para a assistência à população é uma dificuldade.66 Viacava F, Porto SM, Carvalho CC, Bellido JG. Desigualdades regionais e sociais em saúde segundo inquéritos domiciliares (Brasil, 1998-2013). Cienc Saude Colet. 2019;24(7):2745-60. doi:10.1590/1413-81232018247.15812017
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https://doi.org/10.1590/S0102-311X201200...
A estratificação por nível de instrução escolar reforça as desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Apesar de estudos de tendência mostrarem aumento no acesso a consulta odontológica no Brasil,1212 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Cienc Saude Colet. 2018;23(6):1751-62. doi:10.1590/1413-81232018236.06022018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236... barreiras como baixa renda, baixa escolaridade e escassa oferta de serviços públicos de atenção à saúde bucal ainda são impeditivos, no sentido de suprir as demandas existentes, principalmente de idosos.2424 Moreira RS, Nico LS, Tomita NE, Ruiz T. A saúde bucal do idoso brasileiro: revisão sistemática sobre o quadro epidemiológico e acesso aos serviços de saúde bucal. Cad Saude Publica. 2005;21(6):1665-75. doi:10.1590/S0102-311X2005000600013
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... ,2525 Baldani MH, Brito WH, Lawder JAC, Mendes YBE, Silva FFM, Antunes JLF, et al. Determinantes individuais da utilização de serviços odontológicos por adultos e idosos de baixa renda. Rev Bras Epidemiol. 2010;13(1):150-62. doi:10.1590/S1415-790X2010000100014
https://doi.org/10.1590/S1415-790X201000... Os resultados do trabalho em tela corroboram a literatura, ao mostrarem que a disponibilidade de atendimento à saúde bucal ainda é limitada, para os mais vulneráveis. Cabe lembrar que 70% da população brasileira tem o SUS como única fonte de acesso a serviços de saúde, além de o quantitativo de serviços odontológicos de acesso gratuito distribuídos no território nacional ser insuficiente para atender a população geral, causando demanda reprimida e dificuldade de acesso.2626 Cardozo DP, Schaab LL, Cunha MS, Costa CKF. Perfil da demanda de saúde bucal no Sistema Único de Saúde (SUS). Orbis Latina. 2016;6(2):58-72. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/index.php/orbis
https://revistas.unila.edu.br/index.php/...
A condição socioeconômica também aparece como fator relacionado ao acesso e utilização de diferentes serviços de saúde: maior renda ou melhor nível socioeconômico mantêm relação direta com maior probabilidade de utilização de serviços de saúde, como é o caso do acesso e utilização de medicamentos.2727 Arrais PSD, Brito LL, Barreto ML, Coelho HLL. Prevalência e fatores determinantes do consumo de medicamentos no Município de Fortaleza, Ceará, Brasil. Cad Saude Publica. 2005;21(6):1737-46. doi:10.1590/S0102-311X2005000600021
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... –2929 Bertoldi AD, Barros AJD, Hallal PC, Lima RC. Utilização de medicamentos em adultos: prevalência e determinantes individuais. Rev Saúde Pública. 2004;38(2):228-38. doi:10.1590/S0034-89102004000200012
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200400... Assim, pode-se inferir que aqueles de menor renda ou nível socioeconômico mais baixo apresentam maiores dificuldades e dependência do SUS para o acesso a medicamentos.3030 Katrein F, Tejada CAO, Restrepo-Méndez MC, Bertoldi AD. Desigualdade no acesso a medicamentos para doenças crônicas em mulheres brasileiras. Cad Saude Publica. 2015;31(7):1416-26. doi:10.1590/0102-311X00083614
https://doi.org/10.1590/0102-311X0008361... O estudo também evidenciou que pessoas com menor nível de escolaridade obtiveram, no Programa Farmácia Popular, pelo menos um dos medicamentos receitados no último atendimento de saúde, e conseguiram pelo serviço público de saúde ao menos um dos medicamentos receitados no último atendimento recebido. Tais resultados reforçam o princípio de equidade promovido pelo SUS no acesso aos medicamentos, superando as disparidades entre grupos sociais nesse serviço de saúde.
O estudo apresenta como limitação o método de obtenção das informações da PNS, aqui extrapoladas para a população, embora tenham sido fornecidas por um único indivíduo, na qualidade de representante dos demais membros do domicílio, além de adotar o grau de instrução escolar na estratificação da população por renda e não considerar a renda per capita. No entanto, o trabalho foi capaz de analisar importantes características de saúde da população brasileira, ao observar que, apesar da melhora observada em alguns indicadores, como o maior número de consultas médicas e odontológicas, o SUS – enquanto principal e, muitas vezes, a única forma de acesso a serviços de saúde para a população de baixa renda – ainda se mostra insuficiente, uma vez que persiste grande desigualdade regional: o Norte e o Nordeste mantêm-se como as regiões de menor acesso aos serviços, e os indivíduos de baixo nível socioeconômico são os que enfrentam mais dificuldades para terem suas demandas atendidas.
Os resultados apresentados demonstram a relevância do monitoramento das características sociodemográficas e de vulnerabilidades da população. O conhecimento dessas condições permite compreender sua influência e assim contribuir para o desempenho mais efetivo do SUS, de forma a orientar políticas de saúde equânimes, baseadas na identificação dos riscos e demandas populacionais de acesso e utilização dos serviços de saúde no Brasil.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Dez 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
01 Fev 2022 - Aceito
14 Set 2022