Com o final da pandemia de covid-19, o vetor Aedes aegypti volta à cena, assim como as arboviroses que transmite, e se ouve novamente a queixa “Por que ainda temos que conviver com o mosquito?”.
Diversos aspectos contribuem para tornar o diagnóstico dessa situação - e, portanto, sua superação - confuso, difícil ou mesmo inalcançável. Para entendimento de todo esse contexto, relacionamos dez pontos, alguns parcialmente sobrepostos ou com narrativas contraditórias. Esses pontos foram percebidos ao longo de mais de duas décadas de trabalho com vigilância e controle do vetor, sob a perspectiva da biologia, e em interação com agentes de saúde, gestores, pesquisadores, comunicadores e outros profissionais comprometidos com o tema.
1. Saúde versus ausência de doença
“Muitas vezes, a saúde fica sozinha na história, como se o problema fosse só dela”.11. Maltchik R, Portela M. Rio pode ter epidemia no verão, diz Ministério. O Globo (Editora Globo). 2010 Maio 31:O País:4 (col. 5). O desabafo do então coordenador do Programa Nacional de Controle da Dengue, durante uma epidemia de dengue no país, evidencia a desarticulação entre os diferentes setores do governo. Em parte, isso expressa a redução do conceito de saúde à “ausência de doença”.
Nesse sentido, vale lembrar a Carta de Ottawa (1986)22. Carta de Ottawa [Internet]. Ottawa: Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde; 1986 [citado 2023 Jun 29]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco... : ‘‘A promoção da saúde não é responsabilidade exclusiva do setor saúde, e vai para além de um estilo de vida saudável, na direção do bem-estar global. A saúde é um recurso da vida cotidiana, e não o objetivo da vida”.
2. Cuidado com o diagnóstico: soluções técnicas versus questões políticas e/ou estruturais
Desde 1986, quando o vírus da dengue se instalou definitivamente no Brasil, intensificaram-se as ações de controle do vetor. Atualmente, multiplicam-se estratégias, em geral de caráter técnico: além de inseticidas, estão em foco abordagens como as estações disseminadoras, machos estéreis ou linhagens de A. aegypti contendo a bactéria endossimbionte Wolbachia.33. Valle D, Aguiar R, Pimenta DN, Ferreira V. Aedes de A a Z. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 172 p. (Coleção temas em saúde). São soluções técnicas, com foco na redução das populações de mosquitos transmissores de arbovírus. Apesar disso, A. aegypti está disseminado em aproximadamente 90% dos municípios do país.44. Siqueira E. Aedes aegypti está presente em 86% dos municípios, afirma coordenador-geral das Arboviroses [Internet]. Salvador: Universidade Federal da Bahia - Instituto de Saúde Coletiva; 2019 [atualização 2019 Jul 15; citado 2023 Jun 29]. Disponível em: Disponível em: http://www.isc.ufba.br/espanol-aedes-aegypti-esta-presente-em-86-dos-municipios-afirma-coordenador-geral-das-arboviroses/
http://www.isc.ufba.br/espanol-aedes-aeg...
A importância do diagnóstico se impõe. Como negligenciar a desigualdade da ocupação dos espaços urbanos, do acesso à água potável, à coleta de lixo, ao saneamento, entre outros aspectos diretamente ligados ao maior risco de exposição à infestação por A. aegypti?55. Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. 458 p. São manifestações da vulnerabilidade social, estrutural e econômica do país. Vale ainda destacar a ênfase, não raro com viés político e teor assistencialista, que acompanha algumas novas “soluções”, apresentadas como a “bala mágica” da vez.66. Pimenta DN. A (des)construção da dengue. In: Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 23-59.
3. Um mosquito doméstico (público versus privado)
Aedes aegypti “gosta de sombra e água fresca”, adaptou-se à convivência com o homem. Embora seja sinantrópico, por vezes é tratado como “doméstico”. Em geral, 80% de seus criadouros são intra ou peridomiciliares, situação que reitera a importância da verificação periódica nas residências.33. Valle D, Aguiar R, Pimenta DN, Ferreira V. Aedes de A a Z. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 172 p. (Coleção temas em saúde).
Há, no Brasil, dezenas de milhares de agentes de combate às endemias (ACEs), responsáveis por visitas domiciliares, atividade que desafia os conceitos de “público” e “privado”: são agentes “públicos” vistoriando ambientes “privados”. Esta ambiguidade é subjacente a dois comportamentos distintos, ambos com potencial de impactar no aumento dos níveis de infestação: (i) a limitação de acesso do ACE - esta conduta, disseminada, chega a restringir a visita em mais de 50% das casas; e (ii) a adoção de comportamento negligente em relação ao espaço doméstico, com o argumento de que se trata de uma “atribuição do ACE”.
4. Know-do gap
O termo remete à lacuna entre conhecer um problema e atuar em sua solução. Um exemplo clássico é o “médico que fuma”. Para o indivíduo, ultrapassar o know-do gap requer mudança de conduta, desafio não trivial. Coletivamente, mudanças desse tipo são estimuladas por campanhas de sensibilização, estratégias efetivas de comunicação ou mesmo adoção de regulamentação associada a penalidades. O uso do cinto de segurança ao dirigir é um exemplo, alvo de monitoramento em espaços públicos.
Em relação ao Aedes, a prática de eliminação rotineira de criadouros, forma mais efetiva de prevenção no que diz respeito ao espaço domiciliar, tem uma contradição adicional, pois requer mudança de conduta da coletividade em espaços privados, geralmente inacessíveis ao rastreio do setor público. O know-do gap tangencia ainda a percepção de risco: no caso do cinto de segurança, para quem não tem a experiência de um acidente, a multa é o ‘‘risco’’; no caso de Aedes, uma arbovirose pode significar risco “limitado” e passageiro - e portanto, facilmente esquecido.
5. Hiato 10/90
O termo original indica que apenas 10% dos recursos para pesquisas em saúde versam sobre condições que afetam 90% da carga de doenças. São as doenças, ou populações, negligenciadas.66. Pimenta DN. A (des)construção da dengue. In: Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 23-59. O conceito, no entanto, pode ser extrapolado para outros contextos. Em relação ao Aedes, poder-se-ia dizer que 90% das ações de controle alcançam apenas 10% das populações de mosquitos; ou ainda, que 90% dos recursos são empregados na solução de aspectos periféricos do tema, de maior visibilidade.
6. Atenção ao diagnóstico: soluções técnicas versus falsa sensação de segurança
Três particularidades da biologia do vetor corroboram a relevância de atitudes preventivas periódicas: (i) o Aedes espalha seus ovos por muitos criadouros; (ii) A. aegypti adultos podem resultar de ovos eclodidos há 7-10 dias; e (iii) a pulverização com inseticidas só tem efeito sobre mosquitos que atravessam a nuvem do produto. É comum que a visita do ACE, bimestral, ou a pulverização eventual de inseticidas contra adultos77. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes nacionais para prevenção e controle de epidemias de dengue. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. 162 p. (Série normas e manuais técnicos). seja recebida com alívio, como solução ou soluções “corretas”. Considerando-se a eficiência limitada dos inseticidas e os hábitos de A. aegypti, essa sensação de segurança pode resultar em temerário relaxamento das atitudes preventivas no ambiente doméstico.
7. Controle versus controle químico
“Controle do mosquito”, na concepção popular, é praticamente sinônimo de “uso de inseticida”; ou até de UBV químico a ultra baixo volume. A confusão entre “controle” e “controle químico do vetor”, ou ainda “controle químico do vetor adulto”, chega a ser institucionalizada em algumas situações.
Duas ideias estão subjacentes a esse equívoco. A primeira reside na perspectiva de uma solução mágica para o problema - atribuído, de forma reducionista, ao mosquito. A segunda consiste na naturalização do assistencialismo, em oposição a uma atitude participativa, cidadã.
Originalmente, “controle do vetor” é a redução da infestação com abordagens que alcançam, indiscriminadamente, todos os indivíduos da população do vetor - neste panorama, o controle mecânico tem destaque. O efeito do controle químico não é homogêneo nas populações. Inseticidas selecionam indivíduos naturalmente resistentes, aumentando sua frequência na população. Quando a frequência dos indivíduos resistentes é muito alta, o inseticida perde efeito.33. Valle D, Aguiar R, Pimenta DN, Ferreira V. Aedes de A a Z. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 172 p. (Coleção temas em saúde).),(88. Valle D, Belinato TA, Martins AJ. Controle químico de Aedes aegypti, resistência a inseticidas e alternativas. In: Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 93-126. A pulverização é uma exacerbação adicional deste equívoco. Seu impacto é ainda mais limitado, pois depende da capacidade do produto de alcançar vetores alados.88. Valle D, Belinato TA, Martins AJ. Controle químico de Aedes aegypti, resistência a inseticidas e alternativas. In: Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 93-126.
Porém, quando inseticidas são usados como complemento ao controle mecânico, há “espaço” para a reposição de indivíduos de perfis variados, resistentes ou não a inseticidas.
8. Metáfora da guerra: inimigo público versus mosquito “pet”
Aedes aegypti é um inimigo público. Esta metáfora de guerra99. Pimenta DN. Mosquito bom é mosquito morto? [Internet]. Ciência Hoje, 336. Rio de Janeiro; 2016 [citado 2023 Jun 29]. Disponível em: Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/mosquito-bom-e-mosquito-morto/
https://cienciahoje.org.br/artigo/mosqui... remete a uma ameaça externa e à postura, não sustentável, de excepcionalidade.
Aqui, vale dizer que o “inimigo” é “fogo amigo”. Negligência com os espaços domésticos e com os espaços comuns, e descaso com ações que mitiguem as desigualdades, como o saneamento básico e a coleta de lixo, colaboram para a presença do vetor. Evidencia-se a contradição entre o discurso, de combate ao Aedes, e a prática, que confere ao vetor o status de um animal de estimação, com garantia de múltiplos criadouros.
9. Epidemia de arbovirose ou de informação?
Mídia e ciência têm dinâmicas e lógicas distintas e, por vezes, conflitantes. A mídia veicula notícia, a ciência testa hipóteses. A mídia tende a amplificar conflitos, a ciência investiga soluções.
Duas emergências sanitárias globais recentes tiveram efeitos antagônicos sobre a vigilância de Aedes. Em 2015, a identificação da relação do vírus Zika com a síndrome congênita em recém-natos provocou pânico e intensificou a busca por ferramentas de controle do vetor. Em 2020, a covid-19 praticamente invisibilizou as arboviroses, interrompendo até a vigilância entomológica, baseada na visitação domiciliar pelos ACEs.1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. Coordenação-Geral de Vigilância de Arboviroses. Nota Informativa nº 8/2020-CGARB/DEIDT/SVS/MS. Recomendações aos Agentes de Combate a Endemias (ACE) para adequação das ações de vigilância e controle de zoonoses frente à atual situação epidemiológica referente ao Coronavírus (COVID-19) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde ; 2020 [citado 2023 Jun 29]. Disponível em: Disponível em: https://coronavirus.ceara.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/covid19_espce_Nota-Informativa-08-2020-sobre-os-ACES.pdf
https://coronavirus.ceara.gov.br/wp-cont...
Ambas as situações revelam a necessidade de articulação entre ciência, mídia e também gestão: (i) a ciência, notadamente biomédica - reconhecimento da relevância dos determinantes estruturais e da limitação de soluções com foco exclusivo no vetor; (ii) a mídia - o desafio é conceitual, consistindo em transformar em notícia a sensibilização para condutas que deveriam ser cotidianas; e (iii) a gestão - comunicação menos vertical e impositiva, valorização de soluções que privilegiem a cidadania e minimizem as desigualdades, em detrimento de “balas mágicas”.
10. Controle do vetor como oportunidade de negócios
Hoje, há mais gente vivendo, do que morrendo, de dengue. Ou, “vivendo de Aedes”.
Na gestão pública de saúde, há uma estrutura consolidada alcançando cada município do país. Proliferam empresas privadas de controle, via de regra, químico. A pesquisa biomédica multiplica soluções, inovadoras e tecnológicas. O foco é sempre o mosquito, reconhecido como elo vulnerável da cadeia de transmissão. Ficam assim mantidas todas as estruturas públicas, empresas privadas e iniciativas tecnológicas.
Na prática, A. aegypti é o grande empregador, mantenedor e articulador de um pujante conglomerado de “economia mista”, com benefícios para muitos dos envolvidos. Em contrapartida, segue o drama humano dos acometidos pelas arboviroses. A equação não é justa.
Um bom remédio depende de diagnóstico correto. Pergunta-se: até que ponto o diagnóstico é a manutenção de cada posição individual no tabuleiro (ou, nos “criadouros”) de oportunidades?
Referências bibliográficas
- 1Maltchik R, Portela M. Rio pode ter epidemia no verão, diz Ministério. O Globo (Editora Globo). 2010 Maio 31:O País:4 (col. 5).
- 2Carta de Ottawa [Internet]. Ottawa: Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde; 1986 [citado 2023 Jun 29]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf
» https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf - 3Valle D, Aguiar R, Pimenta DN, Ferreira V. Aedes de A a Z. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 172 p. (Coleção temas em saúde).
- 4Siqueira E. Aedes aegypti está presente em 86% dos municípios, afirma coordenador-geral das Arboviroses [Internet]. Salvador: Universidade Federal da Bahia - Instituto de Saúde Coletiva; 2019 [atualização 2019 Jul 15; citado 2023 Jun 29]. Disponível em: Disponível em: http://www.isc.ufba.br/espanol-aedes-aegypti-esta-presente-em-86-dos-municipios-afirma-coordenador-geral-das-arboviroses/
» http://www.isc.ufba.br/espanol-aedes-aegypti-esta-presente-em-86-dos-municipios-afirma-coordenador-geral-das-arboviroses/ - 5Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. 458 p.
- 6Pimenta DN. A (des)construção da dengue. In: Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 23-59.
- 7Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes nacionais para prevenção e controle de epidemias de dengue. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. 162 p. (Série normas e manuais técnicos).
- 8Valle D, Belinato TA, Martins AJ. Controle químico de Aedes aegypti, resistência a inseticidas e alternativas. In: Valle D, Pimenta DN, Cunha RV. Dengue: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 93-126.
- 9Pimenta DN. Mosquito bom é mosquito morto? [Internet]. Ciência Hoje, 336. Rio de Janeiro; 2016 [citado 2023 Jun 29]. Disponível em: Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/mosquito-bom-e-mosquito-morto/
» https://cienciahoje.org.br/artigo/mosquito-bom-e-mosquito-morto/ - 10Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. Coordenação-Geral de Vigilância de Arboviroses. Nota Informativa nº 8/2020-CGARB/DEIDT/SVS/MS. Recomendações aos Agentes de Combate a Endemias (ACE) para adequação das ações de vigilância e controle de zoonoses frente à atual situação epidemiológica referente ao Coronavírus (COVID-19) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde ; 2020 [citado 2023 Jun 29]. Disponível em: Disponível em: https://coronavirus.ceara.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/covid19_espce_Nota-Informativa-08-2020-sobre-os-ACES.pdf
» https://coronavirus.ceara.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/covid19_espce_Nota-Informativa-08-2020-sobre-os-ACES.pdf
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Ago 2023 - Data do Fascículo
2023