A saúde de pessoas trans tem recebido crescente atenção no Brasil e no mundo, ocupando diversos espaços sociais, com destaque para a produção científica, que teve um crescimento substancial nos últimos anos. Uma simples busca no PubMed revela que, entre 2013 e 2023, a produção científica sobre “transgender health” aumentou quase 900%. Pessoas trans, por não se enquadrarem nas normas e regras hegemônicas da sociedade, são frequentemente discriminadas e excluídas de diversas esferas de socialização, como a família, a escola, o trabalho, e espaços públicos e privados. Muitas vezes, são forçadas a viver à margem em suas cidades de origem, migrar dentro do próprio país ou até mesmo para o exterior. Essa trajetória envolve o enfrentamento contínuo de estigmas e discriminações em diferentes níveis, incluindo um risco elevado de violência de gênero, com agressões físicas e sexuais que impactam profundamente sua saúde física e mental.11 Reis A, Sperandei S, de Carvalho PGC, Pinheiro TF, de Moura FD, Gomez JL, Porchat P, Bastos FI, McFarland W, Wilson EC, Veras MA. A cross-sectional study of mental health and suicidality among trans women in São Paulo, Brazil. BMC Psychiatry. 2021 Nov 10;21(1):557.,22 Luz PM, Jalil EM, Castilho J, Velasque L, Ramos M, Ferreira ACG, Ferreira AL, Wilson EC, Veloso VG, Thombs BD, Moodie EEM, Grinsztejn B. Association of discrimination, violence, and resilience with depressive symptoms among transgender women in Rio de Janeiro, Brazil: A cross-sectional analysis. Transgend Health. 2022 Feb 14;7(1):101-106.,33 Medeiros DS, Magno L, Crosland Guimarães MD, Grangeiro A, Filho ME, Soares F, Greco D, Westin M, Ferraz D, Zucchi EM, Dourado I. Violence, discrimination, and high levels of symptoms of depression among adolescent men who have sex with men and transgender women in Brazil. J Adolesc Health. 2023 Dec;73(6S).
É fundamental reconhecer que a população trans enfrenta situações de extrema vulnerabilidade social. Nesse contexto, o sofrimento decorrente da transfobia vivida diariamente é agravado pela omissão ou restrição do cuidado em saúde – hoje viável em termos biotecnocientíficos – por parte de profissionais e instituições.44 Lionço T. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis. 2009;19(1):43-63.,55 Ventura M, Schramm FR. Limites e possibilidades do exercício da autonomia nas práticas terapêuticas de modificação corporal e alteração da identidade sexual. Physis. 2009;19(1).,66 Krüger A, Sperandei S, Bermudez XPCD, Merchán-Hamann E. Characteristics of hormone use by travestis and transgender women of the Brazilian Federal District. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2019;22:e190004.
Duas décadas se passaram desde que a Visibilidade Trans começou a ganhar força no Brasil, marcando uma trajetória única e desafiadora, especialmente no campo da saúde coletiva. Ao longo desse período, o setor da saúde se tornou palco de intensas lutas e importantes conquistas pela inclusão e garantia de direitos para as pessoas trans. Esse movimento, claramente protagonizado pelas próprias pessoas trans, reflete a potência da participação social na saúde, princípio garantido desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ao longo desses 20 anos, importantes conquistas foram alcançadas, tanto na área da saúde quanto em outras esferas da sociedade. No SUS, houve o reconhecimento e a utilização do nome social, além da oferta de cuidados especializados para pessoas trans, como hormonização, cirurgias de redesignação sexual e outras intervenções de modificação corporal. Também foram incluídos, em alguns sistemas de informação e vigilância em saúde, os campos de nome social e identidade de gênero. Fora do setor da saúde, outras vitórias significativas foram obtidas, como a possibilidade de alteração de prenome e sexo nos registros civis, sem a exigência de cirurgias ou laudos médicos, e a criminalização da homotransfobia como crime de racismo, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal.
Este número especial da Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde: revista do SUS (RESS), em comemoração aos 20 anos da Visibilidade Trans no Brasil, tem como objetivo apresentar artigos que abordam diferentes dimensões da saúde e da vida de pessoas trans no país. A nota editorial, escrita por Simpson K. e Benevides B., reflete sobre a trajetória dessas duas décadas de Visibilidade Trans, destacando que, apesar do intenso estigma e da alta vulnerabilidade social, essa população nunca se limitou a esses padrões ou aos desfechos negativos em saúde. O protagonismo das pessoas trans, aliado ao comprometimento de diversos atores e atrizes, demonstra que a participação social ativa se traduz em ações de saúde adaptadas às necessidades específicas de cada população, em conformidade com o princípio da equidade previsto pelo SUS.
Os 29 artigos que compõem este número foram produzidos em diferentes regiões do Brasil, empregando uma variedade de abordagens metodológicas, e discutem o acesso a cuidados de saúde, incluindo prevenção e profilaxias (PrEP e vacinas), saúde mental, vulnerabilidades sociais e violências, por meio de pesquisas originais, e estudos de revisão.
Esses artigos tratam de questões fundamentais envolvendo saúde, direitos e condições de vida da população trans no Brasil, além de oferecerem uma análise das complexas interseções entre esses temas, incluindo violência e acesso a serviços essenciais.
Esperamos que a publicação desses artigos contribua para fortalecer o compromisso de uma epidemiologia e de uma saúde coletiva voltadas para a melhoria das condições de vida das pessoas trans. Sim, trata-se de vidas! Ou seja, não apenas identificar as necessidades específicas das pessoas trans, mas também promover ações que melhorem suas condições de vida e saúde, com base em evidências científicas e políticas públicas inclusivas. Esse é o compromisso da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde e de todas as pessoas que atuaram como autoras e editoras nesta iniciativa.
Referências bibliográficas
- 1Reis A, Sperandei S, de Carvalho PGC, Pinheiro TF, de Moura FD, Gomez JL, Porchat P, Bastos FI, McFarland W, Wilson EC, Veras MA. A cross-sectional study of mental health and suicidality among trans women in São Paulo, Brazil. BMC Psychiatry. 2021 Nov 10;21(1):557.
- 2Luz PM, Jalil EM, Castilho J, Velasque L, Ramos M, Ferreira ACG, Ferreira AL, Wilson EC, Veloso VG, Thombs BD, Moodie EEM, Grinsztejn B. Association of discrimination, violence, and resilience with depressive symptoms among transgender women in Rio de Janeiro, Brazil: A cross-sectional analysis. Transgend Health. 2022 Feb 14;7(1):101-106.
- 3Medeiros DS, Magno L, Crosland Guimarães MD, Grangeiro A, Filho ME, Soares F, Greco D, Westin M, Ferraz D, Zucchi EM, Dourado I. Violence, discrimination, and high levels of symptoms of depression among adolescent men who have sex with men and transgender women in Brazil. J Adolesc Health. 2023 Dec;73(6S).
- 4Lionço T. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis. 2009;19(1):43-63.
- 5Ventura M, Schramm FR. Limites e possibilidades do exercício da autonomia nas práticas terapêuticas de modificação corporal e alteração da identidade sexual. Physis. 2009;19(1).
- 6Krüger A, Sperandei S, Bermudez XPCD, Merchán-Hamann E. Characteristics of hormone use by travestis and transgender women of the Brazilian Federal District. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2019;22:e190004.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Dez 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
25 Out 2024 - Aceito
03 Nov 2024