Tendência temporal e características das notificações de violências autoprovocada e interpessoal na população transgênera nos municípios brasileiros, 2015-2022

Kelly Roberta Estrela Marinho Neto Jeane Tomazelli Vania Reis Girianelli Sobre os autores

RESUMO

Objetivo

Analisar a tendência temporal e características das notificações de violências ocorridas na população transgênera no período de 2015 a 2022, nos municípios brasileiros.

Métodos

Estudo epidemiológico do tipo painéis repetidos, com base em dados de violência ocorrida na população transgênera de 20 a 59 anos, disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Realizada análise de tendência temporal anual por regressão linear generalizada, utilizando-se o método de Prais-Winsten e distribuição espacial dos municípios brasileiros com notificação.

Resultados

As notificações de violência na população transgênera decresceram no período (1,7%; β = -0,07; p = 0,010), mas com aumento dos municípios notificantes (45,8%), da violência autoprovocada (28,9%; β = 2,21; p < 0,001) e sexual (β = 0,79; p < 0,001). A maioria dos agressores é do sexo masculino e com relacionamento afetivo, principalmente para mulheres transgêneras (43,4%; p < 0,001).

Conclusão

A notificação da violência ainda não reflete a realidade dessa população, mas é o primeiro passo para a sua visibilidade e enfrentamento.

Palavras-chave
Pessoas Transgênero; Violência de Gênero; Sistema de Informação em Saúde; Direitos Humanos; Epidemiologia Descritiva

Contribuições do estudo

Principais resultados

Identificou-se que 1,7% das notificações de violência no país, ocorreram contra a população trans. A violência autoprovocada e a sexual aumentaram de 2015 a 2022. Quase metade dos municípios brasileiros já estão notificando violências que atingem essa população.

Implicações para os serviços

A notificação contínua e com qualidade contribuirá para monitorar e conhecer a violência nesse grupo populacional, possibilitando direcionar os serviços à demanda específica dessa população.

Perspectivas

O desenvolvimento de pesquisas sobre a população transgênera possibilitará conhecer e orientar ações especificas de saúde nesse grupo. As informações sobre violências nessa população contribuem para subsidiar as políticas públicas.

Palavras-chave
Pessoas Transgênero; Violência de Gênero; Sistema de Informação em Saúde; Direitos Humanos; Epidemiologia Descritiva

INTRODUÇÃO

A violência é um conceito complexo cujos danos à saúde física e psicológica impactam, além da saúde e segurança, outras áreas da sociedade, como educação e economia, e por isso tem que ser uma das prioridades para as políticas públicas desenvolvidas no país.11 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Relatório mundial sobre violência e saúde [Internet]. Organização Mundial da Saúde; 2002 [citado em 5 de maio de 2022]. Disponível em: https://www.opas.org.br/relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude
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Desde 1893, o óbito por violência faz parte da lista de Classificação Internacional de Doenças.22 Laurenti R. Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos da Classificação Internacional de Doenças. Rev Saúde Pública. Dezembro de 1991;25(6):407-17. Apenas na década de 1990, a Organização Pan-Americana da Saúde, diante do aumento da morbimortalidade por violência na América Latina, passou a recomendar a inclusão da violência na agenda de intervenção33 Minayo MCDS. A difícil e lenta entrada da violência na agenda do setor saúde. Cad Saúde Pública. Junho de 2004;20(3):646-7.. Posteriormente, a Organização Mundial da Saúde considerou a violência como um problema de saúde pública que pode ser evitado, tendo organizado o primeiro relatório mundial contendo recomendações para o seu enfrentamento.11 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Relatório mundial sobre violência e saúde [Internet]. Organização Mundial da Saúde; 2002 [citado em 5 de maio de 2022]. Disponível em: https://www.opas.org.br/relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude
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A violência caracteriza-se pelo uso intencional da força ou poder que possa ocasionar lesão, morte, privação, deficiência ou dano psicológico.11 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Relatório mundial sobre violência e saúde [Internet]. Organização Mundial da Saúde; 2002 [citado em 5 de maio de 2022]. Disponível em: https://www.opas.org.br/relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude
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A violência autoprovocada é um ato de autoagressão do indivíduo, causando ferimentos leves ou graves e até mesmo comportamentos suicidas, enquanto na violência interpessoal há uso de força física, poder ou influência psicológica para dominação ou exclusão do outro. A violência interpessoal é subdividida em doméstica e comunitária. Na violência doméstica, os agressores são familiares, parceiros íntimos ou pessoas que convivam no espaço doméstico, mesmo que esporadicamente, como empregados e agregados, podendo esse tipo de violência ocorrer fora do ambiente familiar. Por seu turno, na violência interpessoal comunitária, os agressores são desconhecidos ou conhecidos, mas sem vínculo familiar ou afetivo.44 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. VIVA: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada [Internet]. Brasília; 2015 [citado em 3 de janeiro de 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf
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Em 2001, o Brasil instituiu a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências,55 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 737 de 16 de maio de 2001. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Diário Oficial da União. maio 18, 2001. e em 2004 implantou a Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde.66 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 936 de 19 de maio de 2004. Dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios. Diário Oficial da União. 20 de maio de 2004. A partir de 2011, a notificação de violência autoprovocada e interpessoal integrou a lista de notificação compulsória77 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 104 de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelecer fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Diário Oficial da União. 26 de janeiro de 2011. e foi incluída no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), passando a conter registros de todo o país, embora a legislação já incorporasse a notificação de violência contra crianças e adolescentes, idosos, mulheres e de suicídios. Em 2015, para contemplar a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais,88 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 2013. foram incluídas, na ficha de notificação, as variáveis “orientação sexual” e “identidade de gênero”.44 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. VIVA: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada [Internet]. Brasília; 2015 [citado em 3 de janeiro de 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf
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A identidade de gênero é a forma como o indivíduo se percebe e se expressa socialmente, e quando ela difere do sexo biológico o indivíduo é denominado transgênero.99 Jesus JG. Orientações sobre a população transgênero : conceitos e termos / [Internet]. Brasília. [citado em 3 de janeiro de 2024]. 24 p. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/ORIENTAÇÕES_POPULAÇÃO_TRANS.pdf?1334065989
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Estima-se que 0,7% da população adulta brasileira é transgênera.1010 Spizzirri G, Eufrásio R, Lima MCP, De Carvalho Nunes HR, Kreukels BPC, Steensma TD, et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Sci Rep. 26 de janeiro de 2021;11(1):2240. Essa população é uma das mais vulneráveis à violência, devido à grande discriminação individual e institucional que vivencia.1111 Benevides BG, Noguqira SNB. Dossiê Assassinatos e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018 [Internet]. 2019. Disponível em: https://observatoriotrans.org/produ%C3%A7%C3%B5es
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O Brasil é o país que mais mata pessoas transgêneras, principalmente travestis e mulheres transexuais, sendo marcadamente intolerante com a diversidade.1212 GRUPO GAYS DA BAHIA (GGB). Mortes violentas de LGBT+ no Brasil: relatório 2018 [Internet]. 2019 [citado em 3 de fevereiro de 2024]. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/wp-content/uploads/2022/05/Relatorio-2018.pdf
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,1313 TRANSGENDER EUROPE (TGEU). TMM annual report 2016 [Internet]. 2016 [citado em 19 de fevereiro de 2024]. Disponível em: https://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-PS-Vol14-2016.pdf
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A notificação de violência interpessoal e autoprovocada na população transgênera permite monitorar esse problema de saúde pública e pautar a gestão quanto às ações de intervenção necessárias para reduzi-la e alcançar sua prevenção.1414 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Notificação de violências interpessoais e autoprovocadas [recurso eletrônico] [Internet]. 2017 [citado em 5 de janeiro de 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/notificacao_violencias_interpessoais_autoprovocadas.pdf
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Este estudo tem por objetivo analisar a tendência temporal e características das notificações de violências ocorridas na população transgênera no período de 2015 a 2022, nos municípios brasileiros.

MÉTODO

Estudo epidemiológico do tipo painéis repetidos, estudo híbrido que combina estudo transversal e de seguimento,1515 Klein C, Block K. Estudos Secionais. In: Medronho RA, Block KV, Luiz RR, Werneck GL. Epidemiologia. 2ª edição. São Paulo: Atheneu; 2009. 193-219 p. sobre a violência autoprovocada e interpessoal na população transgênera de 20 a 59 anos, com registro no Sinan, no período de 2015 a 2022, com dados preliminares para 2021 e 2022. Os arquivos referentes aos microdados anonimizados compactados foram baixados do sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, na primeira quinzena de dezembro de 2023.

A tendência temporal anual para o período foi descrita tendo como variável independente o ano da notificação, e como variável dependente, a proporção de violências contra indivíduos transgênera em relação ao total de notificação da faixa etária estudada, bem como a proporção do tipo de violência (autoprovocada, interpessoal e ignorada) em trangênera e a proporção de cada natureza da violência interpessoal (física, psicológica etc.). A avaliação da tendência temporal foi realizada por regressão linear generalizada, utilizando-se o método de Prais-Winsten. No caso de tendência com significância estatística (p ≤ 0,05), utilizou-se a estatística de Durbin-Watson (d), considerando-se uma série de oito anos, em que resultados entre 1,332 e 2,668 confirmam que não há autocorrelação residual.1616 Gujarati DN, Porter DC. Basic econometrics. 5th ed. Boston: McGraw-Hill Irwin; 2009. 922 p.

A distribuição espacial dos municípios brasileiros com e sem notificação de violências (autoprovocada e interpessoal) contra a população transgênera de 20 a 59 anos foi apresentada em mapa coroplético, utilizando-se o programa TabWin versão 4.1.5, para o ano de início da série estudada (2015), antes da pandemia (2019), na pandemia (2020) e no final (2022). Também foi calculada a proporção de municípios de cada estado e região com notificação.

Adicionalmente, foram analisadas as variáveis disponíveis: gênero, características socioeconômicas (faixa etária, raça/cor da pele e escolaridade), mesmo município de residência e notificação (sim; não), características do agressor (quantidade, sexo e vínculo) e motivação para a agressão. Foi calculado o percentual de cada categoria das variáveis, estratificando-se as características socioeconômicas e demográficas por tipo de notificação (autoprovocada e interpessoal) e as características da violência interpessoal por gênero (homem transgênero e mulher transgênera, incluindo travesti). O teste qui-quadrado de Pearson foi utilizado para avaliar a existência de diferença estatisticamente significativa entre os estratos (p ≤ 0,05), com correção de Yates, se necessário.

Os dados foram analisados no programa estatístico R versão 4.2.1 utilizando-se os pacotes foreign, MASS, prais e read.dbc.

RESULTADOS

Foram notificados 2.778.017 casos de violência no período, sendo 1.535.329 na faixa etária de 25 a 59 anos (55,3%). Desses, 26.258 (1,7%) foram referentes à população transgênera, apresentando tendência de queda no período (β = -0,07; p = 0,010; d = 1,71) e com maior percentual de notificação em 2016 (2,2%) (Figura 1). Entre as notificações na população transgênera, a maioria foi de violência interpessoal (66,6%), mas com decréscimo no período (β = -1,94; p < 0,001; d = 2,21). O percentual de notificação de violência autoprovocada (28,9%), entretanto, tem aumentado (β = 2,21; p < 0,001; d = 1,88), representando 35% das notificações em 2022. Já o percentual de classificação ignorada quanto ao tipo de violência manteve-se estável (4,5%; p = 0,157).

Figura 1
Distribuição percentual das notificações de violência na população transgênera, com idade entre 25 e 59 anos, e por tipo de notificação segundo ano, Brasil, 2015 a 2022

A Figura 2 apresenta os mapas dos municípios brasileiros com notificações de violências que acometeram a população transgênera no grupo etário estudado. Em 2015, 13,2% dos municípios notificaram, aumentando para 18,2% em 2019 (antes da pandemia), caindo para 16,4% em 2020 (durante a pandemia) e atingindo 19,0% em 2022. No período 2015 a 2022, 45,8% dos municípios notificaram violências contra a população transgênera. A região Sudeste apresentou o maior percentual de municípios com notificação (61,3%), sendo esta proporção maior no estado do Rio de Janeiro (70,7%). A região Nordeste apresentou o menor percentual de municípios notificantes (37,8%), mas com alto percentual no estado do Rio Grande do Norte (79,2%), e baixo nos estados de Sergipe (24,0%), Piauí (15,2%) e Paraíba (12,6%). Mais da metade dos municípios da região Norte notificaram, com alto percentual para o estado de Roraima (80,0%).

Figura 2
Municípios com notificação de violências autoprovocada e interpessoal na população transgênera com idade entre 25 e 59 anos, Brasil, 2015, 2019 (antes da pandemia), 2020 (na pandemia) e 2022

A notificação de violência autoprovocada foi proporcionalmente maior nos homens transgênero (22,4%; p < 0,001), menores de 40 anos (78,6%; p < 0,001) e brancos (45,9%; p < 0,001) do que para a violência interpessoal (Tabela 1). A escolaridade teve alto percentual de informação ignorada, sendo proporcionalmente maior para a notificação de violência autoprovocada (31,9%; p < 0,001). Cerca de 90% das notificações foram realizadas no município de residência, tanto para a violência autoprovocada quanto para a interpessoal (p = 0,094).

Tabela 1
Distribuição percentual das características sociodemográficas da população transgênera, segundo tipo de violência, Brasil, 2015 a 2022

Múltiplos tipos de violência interpessoal ocorreram em 32,5% das notificações. A maioria foi de violência física (87,5%), seguida de violência psicológica (35,3%), mas ambas decresceram no período (β = -0,10; p = 0,041; d = 1,87 e β = -1,06; p = 0,003; d = 1,64, respectivamente) (Figura 3). A tortura também apresentou queda (β = -0,25; p = 0,011; d = 1,91), com maior percentual de notificação em 2015 (6,5%) e menor em 2021 (4,4%). Em contrapartida, a violência sexual aumentou (β = 0,79; p < 0,001; d = 2,04), com 8,5% das notificações no período, atingindo 11,5% em 2021. A notificação de violência sexual no período foi proporcionalmente maior para os homens transgênero (9,2%; p < 0,001) (dados não mostrados em tabelas).

Figura 3
Distribuição percentual da natureza da notificação de violência interpessoal na população transgênera de 20 a 59 anos, por ano, Brasil, 2015 a 2022

A maioria das notificações de violência interpessoal envolveu apenas um agressor (69,0%) e do sexo masculino (80,7%), sendo que mais de um agressor e envolvendo ambos os sexos dos agressores foram proporcionalmente maiores para homem transgênero (34,4%; p < 0,001 e 3,7%; p = 0,026, respectivamente) (Tabela 2). Em relação ao vínculo do agressor com o(a) agredido(a), 41,0% envolviam relacionamento afetivo – cônjuge, ex-cônjuge, namorado(a), ex-namorado(a) –, sendo proporcionalmente maior para mulher transgênera (43,4%; p < 0,001); em seguida, desconhecidos (20,6%), com maior proporção para homem transgênero (24,7%; p < 0,001). A violência perpetrada por conhecidos e familiares também foi proporcionalmente maior para homem transgênero (21,6% e 12,5%, respectivamente; p < 0,001). A maioria dos motivos da violência foi ignorada (32,7%), sendo proporcionalmente maior para mulher transgênera (33,5%).

Tabela 2
Distribuição percentual das notificações de violência interpessoal na população transgênera, por características dos agressores e da motivação, Brasil, 2015 a 2022

DISCUSSÃO

O estudo identificou que 1,7% das notificações de violência autoprovocada e interpessoal foi registrada entre a população transgênera, atingindo 2,2% em 2016. Pesquisa realizada entre novembro e dezembro de 2018 estimou em 0,7% a população transgênera maior de 18 anos no país,1010 Spizzirri G, Eufrásio R, Lima MCP, De Carvalho Nunes HR, Kreukels BPC, Steensma TD, et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Sci Rep. 26 de janeiro de 2021;11(1):2240. com menor proporção para a região Centro-Oeste (0,2%). Destaca-se, contudo, que a população transgênera é uma das mais vulneráveis à intolerância e discriminação; portanto, é esperada maior proporção de notificação de violência do que nos demais grupos. Adicionalmente, a pesquisa1010 Spizzirri G, Eufrásio R, Lima MCP, De Carvalho Nunes HR, Kreukels BPC, Steensma TD, et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Sci Rep. 26 de janeiro de 2021;11(1):2240. foi realizada num período de ascensão da extrema direita no país, com discurso moral conservador e forte crítica à “ideologia de gênero”,1717 Miguel LF. O mito da “ideologia de gênero” no discurso da extrema direita brasileira. Cad Pagu. 2021;(62):e216216. o que pode ter inibido a resposta de alguns participantes. O percentual de municípios notificantes, entretanto, aumentou no período, atingindo 19,0% em 2022, mas quase metade dos municípios já notificaram no período. Ademais, cerca de 90% das notificações ocorreram no município de residência, sinalizando adesão aos serviços de saúde. Estudo realizado com notificação de violência interpessoal contra mulheres de 20 a 59 anos, no período de 2015 a 2021, identificou que 31,7% dos municípios brasileiros tinham registro para transgêneras.1818 Marinho Neto KRE, Girianelli VR. Violência interpessoal em mulheres transgêneras e cisgêneras nos municípios brasileiros: tendências e características. Cien Saude Colet. 2024;29(7):e02702024.

A proporção da notificação de violência autoprovocada tem aumentado, e foi proporcionalmente maior nos homens transgêneros, brancos e mais jovens do que para violência interpessoal. Resultados similares foram encontrados em estudo realizado com base em prontuários de ambulatório para transgênero no Distrito Federal,1919 Corrêa FHM, Rodrigues BB, Mendonça JC, Cruz LRD. Pensamento suicida entre a população transgênero: um estudo epidemiológico. J Bras Psiquiatr. Janeiro de 2020;69(1):13-22. em que pensamentos suicidas foram mais frequentes nos homens transgêneros (80,5%), de 18 a 40 anos e com ensino médio incompleto ou superior (60,6%). Estudo realizado com adultos transgênero residentes nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul identificou que 67,7% apresentavam ideação suicida e 43,1% já haviam tentado o suicídio.2020 Chinazzo ÍR, Lobato MIR, Nardi HC, Koller SH, Saadeh A, Costa AB. Impacto do estresse de minoria em sintomas depressivos, ideação suicida e tentativa de suicídio em pessoas trans. Ciênc Saúde Coletiva. Outubro de 2021;26(suppl 3):5045-56. Pesquisa realizada com mulheres transgêneras residentes em São Paulo constatou que o histórico de violência sexual foi um dos fatores associados à ideação e às tentativas de suicídio, mesmo após ajustado pelos demais fatores com significância estatística.2121 Reis A, Sperandei S, De Carvalho PGC, Pinheiro TF, De Moura FD, Gomez JL, et al. A cross-sectional study of mental health and suicidality among trans women in São Paulo, Brazil. BMC Psychiatry. Dezembro de 2021;21(1):557.

A maioria das notificações de violência na população transgênera foi referente às mulheres, sendo 82,0% das violências interpessoais e 77,6% das autoprovocadas. Estudo realizado entre 2016 e 2020, utilizando-se dados do TabNet de violência interpessoal da cidade de São Paulo, também identificou maior percentual de notificação entre as mulheres transgêneras.2222 Fernandes H, Bertini PVR, Hino P, Taminato M, Silva LCPD, Adriani PA, et al. Violência interpessoal contra homossexuais, bissexuais e transgêneros. Acta Paul Enferm. 12 de agosto de 2022;35:eAPE01486.

A proporção de notificação de violência interpessoal na população transgênera decresceu no período, mas com aumento para violência sexual, sendo maior para os homens. A notificação de violência sexual, tem sido maior para mulheres cisgêneras do que transgêneras.1818 Marinho Neto KRE, Girianelli VR. Violência interpessoal em mulheres transgêneras e cisgêneras nos municípios brasileiros: tendências e características. Cien Saude Colet. 2024;29(7):e02702024. O estupro corretivo, cuja intenção é mudar a sexualidade de forma a impor a heteronormatividade,2323 Costa L dos S d’Utra. A prática delitiva do estupro corretivo e a heteronormatividade compulsória: um estudo acerca da correlação entre crime e patriarcado. Revista Direito e Sexualidade. Junho de 2021;2(1):50-65. é uma modalidade que tem sido noticiada para mulheres cisgêneras lésbicas, mas os homens transgêneros também tendem a estar sujeitos a esse tipo de violência. O estupro corretivo e coletivo já tem pena agravada no Código Penal.2424 Brasil. Lei no 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei no 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais) [Internet]. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13718.htm
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A violência física ainda é a mais notificada, mas apresentou uma queda, de 2019 a 2021, que pode estar relacionada à dificuldade de acesso aos serviços de saúde devido à epidemia de covid-19. A equiparação de atitudes ofensivas, preconceituosas e de violência contra pessoas LGBTQIAPN+ ao crime de racismo, em 2019,2525 Supremo Tribunal Federal (BR). STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa [Internet]. 2019a. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010 Acesso em 10 Jan 2024
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também pode ter influenciado a redução das notificações. A queda nas notificações não significa necessariamente reduções de práticas violentas na população transgênera, cuja retomada da violência física em 2022 já se aproxima ao início da série (2015). Estudo que analisou a violência contra as mulheres constatou maior proporção de notificação de violência física contra as mulheres transgêneras.1818 Marinho Neto KRE, Girianelli VR. Violência interpessoal em mulheres transgêneras e cisgêneras nos municípios brasileiros: tendências e características. Cien Saude Colet. 2024;29(7):e02702024.

A violência psicológica foi a segunda mais frequente, expressando o seu reconhecimento tanto pela vítima quanto pelos profissionais, mas, diferentemente da violência física, manteve-se em queda em 2022. A violência psicológica costuma aparecer no início do ciclo de agressão, principalmente nos relacionamentos afetivos, e, portanto, tende a ser mais invisibilizada. Ela costuma ser mais frequentemente revelada em estudos com entrevistas,2626 Leite FMC, Amorim MHC, Wehrmeister FC, Gigante DP. Violence against women, Espírito Santo, Brazil. Rev Saúde Pública [Internet]. 2017 [citado em 28 de fevereiro de 2024];51(0). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102017000100223&lng=en&tlng=en e muitas vezes pode ser identificada apenas pelo(a) entrevistador(a).

A maioria dos agressores foi do sexo biológico masculino (80,7%) e com relacionamento afetivo com a vítima (41,0%), sendo proporcionalmente maior para mulheres transgêneras (p < 0,001). Estudo restrito à violência contra mulheres constatou que a agressão oriunda de pessoas com as quais a vítima tinha vínculo afetivo foi maior para as transgêneras.1818 Marinho Neto KRE, Girianelli VR. Violência interpessoal em mulheres transgêneras e cisgêneras nos municípios brasileiros: tendências e características. Cien Saude Colet. 2024;29(7):e02702024. Uma revisão sistemática com metanálise sobre violência pelo parceiro íntimo na população transgênera2727 Peitzmeier SM, Malik M, Kattari SK, Marrow E, Stephenson R, Agénor M, et al. Intimate Partner Violence in Transgender Populations: Systematic Review and Meta-analysis of Prevalence and Correlates. Am J Public Health. Setembro de 2020;110(9):e1-14. encontrou que a prevalência média por esse tipo de agressor, ao longo da vida, foi de 37,5%, e que a população trans tem uma probabilidade maior de sofrer violência por parceiro íntimo em comparação à população cisgênera. Esse estudo incluiu 74 artigos de diversos países publicados até 2019, sendo dois brasileiros, mas o enfoque principal era o HIV.

O motivo da violência não foi registrado em 32,7% das notificações, inviabilizando o conhecimento das principais causas da agressão. A notificação da violência perpetrada em razão da identidade de gênero (transfobia), às vezes presumida pelo agressor em relação à vítima, é fundamental para subsidiar as políticas públicas para o enfrentamento dessa discriminação. A escolaridade também apresentou alto percentual de registros ignorados, o que tem sido observado em estudos baseados em sistemas de informação.

O baixo preenchimento de alguns campos da ficha de notificação é uma das limitações do estudo, bem como o provável erro de preenchimento, pois no tema há conceitos que podem ainda não ser de domínio dos profissionais de saúde, como tem sido evidenciado em alguns estudos.2828 Girianelli VR, Ferreira AP, Vianna MB, Teles N, Erthal RMDC, Oliveira MHBD. Qualidade das notificações de violências interpessoal e autoprovocada no Estado do Rio de Janeiro, Brasil, 2009-2016. Cad Saúde Coletiva. 17 de setembro de 2018;26(3):318-26.,2929 Ministério da Saúde (BR). Qualidade dos dados de notificação de violência interpessoal e autoprovocada, Brasil [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde [Internet]; 2016 [citado em 2 de fevereiro de 2024]. Disponível em: https://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2019/03/Qualidade-dos-dados-de-notifica%C3%A7%C3%A3o-de-viol%C3%AAncia-interpessoal-e-autoprovocada-Brasil-%E2%80%93-2016-Relat%C3%B3rio-de-Qualidade.pdf
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A ausência de informação sobre a identidade de gênero no censo demográfico também inviabiliza estimar a prevalência de violência para a população transgênera, informação fundamental para subsidiar as políticas públicas. As estimativas existentes, apesar dos esforços de representatividade, incluem um pequeno tamanho de amostra e tendem a se concentrar nos grandes centros urbanos.

Adicionalmente, a provável subnotificação deve ser maior nesse tipo de agravo, pois depende do reconhecimento da vítima e do profissional de saúde, situação que nem sempre é percebida por ambos. A parceria com as organizações não governamentais, incluindo a notificação, como previsto na legislação, poderá contribuir para minimizar as subnotificações existentes, melhorando a qualidade das informações e o direcionamento dos serviços à demanda dessa população.

Pesquisas futuras que contemplem a realização de inquéritos para estimar o tamanho da população transgênera são fundamentais, enquanto os dados a respeito não são incorporados no censo demográfico, bem como o desenvolvimento de estudos mais aprofundados sobre as violências autoprovocada e sexual, que têm aumentado nessa população.

Apesar das limitações identificadas, espera-se que o estudo possa dar visibilidade às características da notificação de violência na população transgênera – que evoluiu nos oito anos após a inclusão dessa população na ficha de notificação –, e dessa forma contribuir para subsidiar as políticas públicas para enfrentamento desse agravo.

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  • TRABALHO ACADÊMICO ASSOCIADO

    O artigo é parte da tese de doutorado em curso, intitulada Violência autoprovocada e interpessoal na população LGBT+ nos municípios brasileiros, a ser defendida por Kelly Roberta Estrela Marinho Neto no Programa de Pós-graduação de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2024
  • Aceito
    07 Ago 2024
Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente - Ministério da Saúde do Brasil Brasília - Distrito Federal - Brazil
E-mail: ress.svs@gmail.com