RESUMO
Objetivo
Descrever o perfil sociodemográfico e de acompanhamento do uso da profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV entre pessoas trans atendidas em um serviço de saúde referência em infecções sexualmente transmissíveis e HIV/aids no município de São Paulo entre 2018 e 2021.
Método
Estudo descritivo com análise de dados sociodemográficos, motivos de procura da PrEP, descontinuidade do uso e experiências de acompanhamento clínico. Empregou-se estatística descritiva.
Resultados
Entre as 53 pessoas, a maioria era parda (n=25), mulheres trans (n=48), heterossexual (n=38) e com mais de 11 anos de estudos (n=22). Houve uma diminuição nas visitas de acompanhamento (n=14 para n=3) a partir da segunda consulta.
Conclusão
É necessário desenvolver estratégias para aumentar a dispensação e continuidade do uso da PrEP entre pessoas trans, principalmente entre pretas e com menor escolaridade.
Palavras-chave
Profilaxia Pré-exposição; Pessoas Transgênero; Acesso à Tecnologia em Saúde; HIV; Epidemiologia Descritiva
Contribuições do estudo
Principais resultados
A maioria dos usuários da profilaxia pré-exposição (PrEP) era mulher trans, jovem, parda e escolarizada, refletindo uma parcela da população trans com acesso à saúde. A descontinuidade no acompanhamento clínico, especialmente após a segunda consulta, requer atenção.
Implicações para os serviços
Estratégias individualizadas devem ser priorizadas para melhorar a dispensação da PrEP e o acompanhamento clínico de homens e mulheres trans.
Perspectivas
Pesquisas futuras deveriam priorizar investigação de estratégias para aumentar a dispensação e o acompanhamento clínico da PrEP para pessoas trans, com destaque a homens trans, pessoas negras e com menor escolaridade.
Palavras-chave
Profilaxia Pré-exposição; Pessoas Transgênero; Acesso à Tecnologia em Saúde; HIV; Epidemiologia Descritiva
INTRODUÇÃO
A profilaxia pré-exposição de HIV (PrEP) consiste na oferta e no uso de combinação de antirretrovirais. Esse método já está comprovado ser eficaz na prevenção da transmissão do HIV. Ele demonstrou uma redução da infecção nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Austrália, no Quênia, em Lesoto, na Tailândia e no Vietnã.11 Buchbinder SP, Havlir DV. Getting to Zero San Francisco: A Collective Impact Approach. J Acquir Immune Defic Syndr. 2019;82 (Suppl 3):S176-S182. doi:10.1097/QAI. 0000000000002200.
2 Grulich AE, Guy R, Amin J, Jin F, Selvey C, Holden J, et al. Population-level effectiveness of rapid, targeted, high-coverage roll-out of HIV pre-exposure prophylaxis in men who have sex with men: the EPIC-NSW prospective cohort study. Lancet HIV. 2018;5(11). doi:10.1016/S2352-3018(18)30215-7.
https://doi.org/10.1016/S2352-3018(18)30... -33 UNAIDS. 2023 Global HIV Prevention Coalition Scorecards: Key Findings. Geneva: UNAIDS; 2024. p. 39.
Apesar do potencial da PrEP para interromper a transmissão e evitar novas infecções, existem disparidades no acesso a esse medicamento que precisam ser abordadas para garantir a equidade em seu uso.44 Powell VE, Gibas KM, DuBow J, Krakower DS. Update on HIV Preexposure Prophylaxis: Effectiveness, Drug Resistance, and Risk Compensation. Curr Infect Dis Rep. 2019;21(8):28. doi: 10.1007/s11908-019-0685-6
https://doi.org/10.1007/s11908-019-0685-... Há preocupação crescente com as barreiras de acesso enfrentadas por pessoas trans, muitas vezes decorrentes de experiências negativas e estigmatizantes nos serviços de saúde.55 Ogunbajo A, Storholm ED, Ober AJ, Bogart LM, Reback CJ, Flynn R, et al. Multilevel Barriers to HIV PrEP Uptake and Adherence Among Black and Hispanic/Latinx Transgender Women in Southern California. AIDS Behav. 2021;25:2301-15. doi: https://doi.org/10.1007/s10461-021-03159-2.
https://doi.org/10.1007/s10461-021-03159...
6 Kimani M, van der Elst EM, Chirro O, Wahome E, Ibrahim F, Mukuria N, et al. “I wish to remain HIV negative”: Pre-exposure prophylaxis adherence and persistence in transgender women and men who have sex with men in coastal Kenya. PLoS One. 2021;16(1):e0244226. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.024422
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... -77 Nieto O, Fehrenbacher AE, Cabral A, Landrian A, Brooks RA. Barriers and motivators to pre-exposure prophylaxis uptake among Black and Latina transgender women in Los Angeles: perspectives of current PrEP users. AIDS Care. 2021;33(2):244-52. doi: 10.1080/09540121.2020.1769835
https://doi.org/10.1080/09540121.2020.17...
Aumento na prevalência do HIV foi observado em uma revisão sistemática, que passou de 18% em 2012 para 24% em 202188 Stutterheim SE, van Dijk M, Wang H, Jonas KJ. The worldwide burden of HIV in transgender individuals: An updated systematic review and meta-analysis. PLoS ONE. 2021;16(12):e0260063.. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0260063
https://doi.org/10.1371/journal.pone.026... .Discute-se que esse aumento não está relacionado ao uso da PrEP em si, mas que a oferta desse procedimento para mulheres trans tem sido limitada. Os serviços de saúde em geral não estão preparados para atender, de forma inclusiva e sensível, às necessidades específicas da população transgênero. As barreiras no acesso aos serviços de saúde podem ter contribuído para o aumento da prevalência do HIV nesse grupo. Tais barreiras são um dos principais desafios para a população trans no contexto da PrEP.55 Ogunbajo A, Storholm ED, Ober AJ, Bogart LM, Reback CJ, Flynn R, et al. Multilevel Barriers to HIV PrEP Uptake and Adherence Among Black and Hispanic/Latinx Transgender Women in Southern California. AIDS Behav. 2021;25:2301-15. doi: https://doi.org/10.1007/s10461-021-03159-2.
https://doi.org/10.1007/s10461-021-03159...
6 Kimani M, van der Elst EM, Chirro O, Wahome E, Ibrahim F, Mukuria N, et al. “I wish to remain HIV negative”: Pre-exposure prophylaxis adherence and persistence in transgender women and men who have sex with men in coastal Kenya. PLoS One. 2021;16(1):e0244226. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.024422
https://doi.org/10.1371/journal.pone.024... -77 Nieto O, Fehrenbacher AE, Cabral A, Landrian A, Brooks RA. Barriers and motivators to pre-exposure prophylaxis uptake among Black and Latina transgender women in Los Angeles: perspectives of current PrEP users. AIDS Care. 2021;33(2):244-52. doi: 10.1080/09540121.2020.1769835
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A marginalização social e a discriminação que pessoas trans frequentemente enfrentam resultam em menor utilização dos serviços de saúde.99 James SE, Herman JL, Rankin S, Keisling M, Mottet L, Anafi M. The Report of the 2015 U.S. Transgender Survey. Washington, DC: National Center for Transgender Equality; 2016. Esse cenário é exacerbado por barreiras como a falta de informação sobre a PrEP, os preconceitos no atendimento de saúde e a preocupação dos profissionais de saúde com interações medicamentosas, que podem desencorajar pessoas trans a buscar ou continuar o tratamento.1010 Bass SB, Kelly PJ, Brajuha J, Gutierrez-Mock L, Koester K, D’Avanzo P, et al. Exploring barriers and facilitators to PrEP use among transgender women in two urban areas: implications for messaging and communication. BMC Public Health. 2022;22(17). doi: https://doi.org/10.1186/s12889-021-12425-w
https://doi.org/10.1186/s12889-021-12425... A interseccionalidade de condicionantes como raça/cor da pele, condição socioeconômico e contextos de vulnerabilidade, inclusive como localização geográfica,– a exemplo das regiões periféricas – , pode agravar o acesso às medidas preventivas, criando disparidades significativas no acesso à PrEP entre pessoas trans.1010 Bass SB, Kelly PJ, Brajuha J, Gutierrez-Mock L, Koester K, D’Avanzo P, et al. Exploring barriers and facilitators to PrEP use among transgender women in two urban areas: implications for messaging and communication. BMC Public Health. 2022;22(17). doi: https://doi.org/10.1186/s12889-021-12425-w
https://doi.org/10.1186/s12889-021-12425...
Estudos longitudinais, por exemplo, subrepresentam mulheres trans.1111 Zarwell M, John SA, Westmoreland D, Mirzayi C, Pantalone DW, Golub S, et al. PrEP uptake and discontinuation among a U.S. national sample of transgender men and women. AIDS Behav. 2021 Apr;25(4):1063-71. doi: 10.1007/s10461-020-03064-0
https://doi.org/10.1007/s10461-020-03064... No Brasil, há uma representação insuficiente ou inadequada de pessoas trans em estudos da PrEP oral. As análises de tais estudos frequentemente são agrupadas junto aos homens que fazem sexo com homens.1212 Souza MVL, Silva RR, Oliveira MCP, Silva LA, Silva MVG, Vargas D, et al. Acesso a PrEP por homens cisgênero e transexuais: Um estudo de abordagem qualitativa. Res Soc Develop. 2021;10(1):e44310111843. doi: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i1.11843
https://doi.org/10.33448/rsd-v10i1.11843...
13 Silva Junior AL, Brigeiro M, Monteiro S. Health, enhancement and lifestyle: the use of the HIV pre-exposure prophylaxis (PrEP) among gay men, trans women and travestis. Physis. 2023;33:e33082. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-7331202333082
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202333... -1414 Pereira CCA, Torres TS, Luz PM, Hoagland B, Farias A, Brito JDU, et al. Preferences for pre-exposure prophylaxis (PrEP) among sexual and gender minorities: a discrete choice experiment in Brazil. The Lancet Regional Health - Americas. 2023;19. doi: https://doi.org/10.1016/j.lana.2023.100432.
https://doi.org/10.1016/j.lana.2023.1004... Em países desenvolvidos, a maioria das pessoas que fazem uso da profilaxia é composta por homens que fazem sexo com homens, brancos e com alto nível de escolaridade.1515 Murthy BP, Krishna N, Jones T, Wolkin A, Avchen RN, Vagi SJ. Public Health Emergency Risk Communication and Social Media Reactions to an Errant Warning of a Ballistic Missile Threat — Hawaii, January 2018. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2019;68(7):174-6. Available from: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/68/wr/mm6807a2.htm
16 Thompson KA, Blank G, Toy J, Moore DM, Lachowsky N, Bacani N, et al. Chronic Hepatitis B Infection Among Preexposure Prophylaxis Users Enrolled in a Population-Based Program in British Columbia, Canada. Open Forum Infect Dis. 2021;8(11)-1717 Rotsaert A, Reyniers T, Jacobs BKM, Vanbaelen T, Burm C, Kenyon C, et al. PrEP user profiles, dynamics of PrEP use and follow-up: a cohort analysis at a Belgian HIV centre (2017-2020). J Int AIDS Soc. 2022;25(7):e25953. doi: 10.1002/jia2.25953.
https://doi.org/10.1002/jia2.25953... Esse é um perfil semelhante ao apresentado no Brasil,1919 Wood S, Gross R, Shea JA, Bauermeister JA, Franklin J, Petsis D, et al. Barriers and Facilitators of PrEP Adherence for Young Men and Transgender Women of Color. AIDS Behav. 2019;23(10):2719-29. que pode refletir aqueles que efetivamente acessam os serviços de saúde, embora exista contingente desconhecido que sequer consegue acessar tais serviços. No caso de pessoas trans, pouco se sabe sobre o perfil das que acessam a PrEP.
Estudos que avaliem pessoas trans não agregadas a outras orientações sexuais mostram-se, portanto, necessários. Tais análises possibilitariam entender o perfil de acesso à profilaxia entre as pessoas trans. Este estudo objetivou descrever o perfil sociodemográfico e o acompanhamento clínico do uso da PrEP ao HIV entre pessoas trans atendidas em um serviço de saúde referência em infecções sexualmente transmissíveis e HIV/AIDS no município de São Paulo, entre 2018 e 2021.
MÉTODO
Delineamento e contexto
Trata-se de um estudo descritivo que incluiu homens e mulheres trans adultos que receberam PrEP no Centro de Referência e Treinamento DST AIDS/SP.
Contexto
O serviço de saúde é referência estadual para o diagnóstico e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis. Foi um dos primeiros centros de referência e treinamento em HIV no Brasil, criado em 1988 e conta com centro de testagem e aconselhamento, pronto atendimento, laboratório de análises clínicas, internação diurna e 24 horas, ambulatórios de HIV/aids, hepatites virais e de travestis e transexuais. Mensalmente atende cerca de 7 mil usuários. Conta com equipes multidisciplinares compostas por enfermeiros, médicos infectologistas e especialistas, farmacêuticos, psicólogos, biólogos, entre outros profissionais.
Participantes
Foram incluídos homens e mulheres trans com 18 anos ou mais que assim se identificaram e que receberam ao menos uma combinação de medicamentos PrEP entre janeiro de 2018 a junho de 2021. Foram excluídas pessoas que receberam PrEP e foram transferidas para outro serviço de saúde, devido a indisponibilidade dos dados após a transferência. Tal período foi priorizado para uniformidade nas fichas de coleta, que sofreu modificação após 2021. Foi considerado de acompanhamento clínico até a terceira consulta a fim de minimizar perdas de seguimento.
Variáveis
Foram incluídas como variáveis desse estudo: idade (em anos: 18-24, 25-29, 30-34, > 35), País de origem , identidade de gênero (homem trans, mulher trans), orientação sexual (bissexual, heterossexual, homossexual), raça/cor da pele (branca, indígena, parda, preta), situação de rua (não, sim), escolaridade (em anos: 1-3, 4-7, 8-11, >11), motivo de chegada ao serviço de saúde (informação/atendimento em geral, PEP, PrEP), motivo de busca pela PrEP (encaminhado por profissional de saúde, orientado por organização não governamental, sensibilizado por comunicação impressa ou internet), PrEP anterior (iniciativa própria, não iniciou, participou de projeto de pesquisa), sexo com parceiro HIV (não, sim, não sabe), troca sexo por dinheiro (não, sim), uso de injetáveis (não, sim), compartilhamento de seringas para uso de anabolizantes (não, sim), histórico de problema renal (não, não sabe, sim), perda de seguimento após consultas (não; sim, mas retornou; sim e não retornou); prescritor (enfermeiro, médico), frequência de uso do preservativo (nenhuma vez, menos da metade das vezes, metade das vezes, mais da metade das vezes, todas as vezes), uso de álcool (não, sim), substância (não, sim: nitrito, cocaína, crack, maconha, drogas de festas, estimulante de ereção, solvente), efeitos adversos por PrEP (não, sim: diarreia, flatulência, náuseas, vômitos, dor abdominal, outros efeitos adversos), motivo pelo qual deixou de tomar a PrEP (Falta de medicamento, efeito adverso, esquecimento, ausência do domicílio, outro), vacinação contra hepatite B (uma dose, duas doses, esquema completo, encaminhado para vacinação).
As variáveis de foram organizadas em sociodemográficas, razões para buscar a PrEP, critérios de elegibilidade da PrEP, avaliação de riscos de infecção pelo HIV, possíveis critérios de exclusão da PrEP, efeitos adversos, adesão à PrEP, resultados laboratoriais e condutas finais e foram coletadas no primeiro atendimento e em dois momentos subsequentes (Quadro 1).
Variáveis coletadas no acompanhamento clínico da profilaxia pré-exposição (PrEP), São Paulo, 2018-2021
Fonte de dados e mensuração
Os dados foram obtidos do Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (Siclom), disponível em https://siclom.aids.gov.br. Esses dados incluem: (i) ficha do primeiro atendimento para PrEP (primeiro dia do usuário no serviço de saúde e início da PrEP); (ii) ficha do retorno de 30 dias após o início da profilaxia; e (iii) ficha de acompanhamento clínico da PrEP (preenchida a cada 30, 60, 90 ou 120 dias, a depender da quantidade de comprimidos dispensados pelo profissional de saúde).
Considerou-se descontinuidade quando o indivíduo não compareceu ao serviço de saúde depois de exceder em 40% o período dos dias de fornecimento do medicamento estipulado na última visita, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde.1818 Brasil. Ministério da Saúde. Painel PrEP - Profilaxia Pré-Exposição [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2024 [citado em 18 de agosto de 2024]. Disponível em: https://www.gov.br/aids/pt-br/assuntos/prevencao-combinada/prep-profilaxia-pre-exposicao/painel-prep.
https://www.gov.br/aids/pt-br/assuntos/p...
Análise dos dados
Os dados anonimizadas foram compilados em Microsoft Excel e analisado descritivamente utilizando-se o programa R Studio, versão 4.1.1.
Aspectos éticos
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo por meio do parecer 6.128.586 de em 19/06/2023, certificado de apresentação de apreciação ética (CAAE) 69454123.8.0000.5392, e pelo CEP do Centro de Referência e Treinamento DST AIDS/SP conforme o Parecer 6.267.75 de 29/08/2023, CAAE 69454123.8.3001.5375.
RESULTADOS
Foram incluídas 53 pessoas trans (Tabela 1). A maioria das pessoas era brasileira (n=51), mulher trans (n=48), heterossexual (n=38), parda (n=25), residiam em moradia própria ou alugada (n=48) e frequentaram escola por mais de 11 anos (n=22).
A principal motivação para a busca da PrEP foi o próprio desejo de acessá-la (n=51), seguido por sensibilização através de meios de comunicação impressos ou pela internet (n=31). A troca de sexo por dinheiro foi relatada por 43 participantes. O uso de drogas injetáveis e o compartilhamento de instrumentos foi registrado em 1 e 2 casos, respectivamente (Tabela 1). Nota-se a diminuição de comparecimento e dos que não retornaram após a perda inicial de seguimento (de n=14 na primeira consulta para n=3 na terceira consulta). A maioria das prescrições foi feita por médicos na primeira consulta (n=36), na segunda (n=24) e na terceira (n=16) (Tabela 2).
Caracterização sociodemográfica e motivos da busca e critérios de uso da profilaxia pré-exposição (PrEP) por pessoas trans, São Paulo, 2018-2021 (n=53)
Grande parte reportou uso de preservativo nas relações sexuais na maioria das vezes (n=24 na primeira consulta) ou em todas as vezes (n=17 na primeira consulta). Muitas respostas não foram informadas sobre o uso de álcool. A maioria informou uso de drogas ilícitas na primeira avaliação (n=37); na terceira avaliação, foram (n=6). As substâncias que mais se destacaram foram a cocaína, a maconha e as drogas de festas (Tabela 2).
Características da profilaxia pré-exposição (PrEP) de acordo com as consultas de avaliação, São Paulo, 2018-2021 (n=53)
A maioria não relatou efeitos adversos com o uso da PrEP (n=25) na primeira consulta, (n=19 na segunda). A diarreia foi o problema mais citado entre os efeitos adversos relatados. Os principais motivos para a interrupção da PrEP foram o esquecimento na tomada dos antirretrovirais (n=3 na primeira consulta) e o término do medicamento. A maioria completou o esquema de vacinação para hepatite B (n=29) na primeira consulta, n=20 na segunda (Tabela 2).
DISCUSSÃO
A maioria das pessoas trans que receberam PrEP em serviço de referência paulistano era formada por adultos jovens, mulheres trans, pardas e que estudaram até o ensino médio. Esses dados se alinham com perfil diagnosticado pelo Ministério da Saúde, de predominância de mulheres trans com maior escolaridade dentre essa população.1818 Brasil. Ministério da Saúde. Painel PrEP - Profilaxia Pré-Exposição [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2024 [citado em 18 de agosto de 2024]. Disponível em: https://www.gov.br/aids/pt-br/assuntos/prevencao-combinada/prep-profilaxia-pre-exposicao/painel-prep.
https://www.gov.br/aids/pt-br/assuntos/p...
A população de estudo se restringe a pessoas que conseguiram acesso a serviço de saúde, tendo a possibilidade de obter medicamento para prevenção do HIV. Tal perfil potencialmente exclui a experiência de mulheres e homens trans menos escolarizadas e pretas, bem como o acesso dessa população a PrEP.
Mulheres trans que vivem situação de vulnerabilidade social têm mais dificuldade de acesso aos serviços de saúde77 Nieto O, Fehrenbacher AE, Cabral A, Landrian A, Brooks RA. Barriers and motivators to pre-exposure prophylaxis uptake among Black and Latina transgender women in Los Angeles: perspectives of current PrEP users. AIDS Care. 2021;33(2):244-52. doi: 10.1080/09540121.2020.1769835
https://doi.org/10.1080/09540121.2020.17... e à PrEP.1919 Wood S, Gross R, Shea JA, Bauermeister JA, Franklin J, Petsis D, et al. Barriers and Facilitators of PrEP Adherence for Young Men and Transgender Women of Color. AIDS Behav. 2019;23(10):2719-29. Melhorar o acesso das pessoas trans à educação e renda, assim como na organização dos serviços de saúde se mostra necessário, considerando essas barreiras e formas de superá-las.2020 Antonini M, Silva IE, Elias HC, Gerin L, Oliveira AC, Reis RK. Barreiras para o uso da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV: uma revisão integrativa. Rev Bras Enferm. 2023;76(3). doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0963pt
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O uso de drogas ilícitas entre as pessoas trans em uso da PrEP foi frequente no início da profilaxia, em especial de cocaína. Como as pessoas em uso da PrEP serão acompanhadas ao longo do tempo, isso representa uma oportunidade para que os profissionais de saúde trabalhem com questões mais amplas, a exemplo da redução de danos, necessário para pessoas que fazem uso da PrEP.2121 Bórquez A, Rich K, Farrell M, Degenhardt L, McKetin R, Tran LT, et al. Integrating HIV pre-exposure prophylaxis and harm reduction among men who have sex with men and transgender women to address intersecting harms associated with stimulant use: a modelling study. J Int AIDS Soc. 2020;23(S1):e25495. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/jia2.25495/full
Este estudo evidenciou a importância dos serviços de saúde na prevenção da hepatite B, destacando a necessidade de checar e iniciar a vacinação já na primeira consulta de PrEP. O acompanhamento de pessoas em PrEP pode representar oportunidade de atualização do calendário vacinal. No Canadá, 46% de homens e mulheres cis e mulheres trans com hepatite B não receberam monitoramento adequado durante o acompanhamento da PrEP entre 2018 e 2019. 1616 Thompson KA, Blank G, Toy J, Moore DM, Lachowsky N, Bacani N, et al. Chronic Hepatitis B Infection Among Preexposure Prophylaxis Users Enrolled in a Population-Based Program in British Columbia, Canada. Open Forum Infect Dis. 2021;8(11) Aumentar a conscientização e a educação sobre a hepatite B entre os profissionais que prescrevem a PrEP se mostra prioritário.2222 Thompson KA, Blank G, Toy J, Moore DM, Lachowsky N, Bacani N, et al. Chronic Hepatitis B Infection Among Preexposure Prophylaxis Users Enrolled in a Population ‒Based Program in British Columbia, Canada. Open Forum Infect Dis. 2021;8(11). doi: https://doi.org/10.1093/ofid/ofab492
https://doi.org/10.1093/ofid/ofab492... Tal conduta se mostra mais relevante ao considerar a elevada prevalência de hepatite B em pessoas trans, por meio de estratégias inclusivas e acessíveis para essa população.2323 Grinsztejn B, Jalil EM, Monteiro L, Velasque L, Moreira RI, Garcia ACF, et al. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. Lancet HIV. 2017;4(4):e169-e176. doi: 10.1016/S2352-3018(17)30015-2.
https://doi.org/10.1016/S2352-3018(17)30...
Neste estudo, poucas pessoas apresentaram efeitos adversos, na maioria leves, semelhante aos achados de uma revisão sistemática.2424 Pereira M, Castro CT, Magno L, Oliveira TA, Gomes FS, Neves FMF, et al. Adverse effects of daily oral pre-exposure prophylaxis in men who have sex with men and transgender women: a systematic review and meta-analysis. Cad Saude Publica. 2023;39 Suppl 1:e00089522. doi: 10.1590/0102-311XEN089522.
https://doi.org/10.1590/0102-311XEN08952... ,2525 Magno L, Silva LAV, Veras MA, Pereira-Santos M, Dourado I. Stigma and discrimination related to gender identity and vulnerability to HIV/AIDS among transgender women: A systematic review. Cad Saude Publica. 2019;35(4):e00112718. doi: 10.1590/0102-311X00112718.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0011271... Tais efeitos não devem ser barreiras ao uso da PrEP, minimizando preocupação de profissionais da saúde sobre efeitos adversos por antirretrovirais na indicação da PrEP.55 Ogunbajo A, Storholm ED, Ober AJ, Bogart LM, Reback CJ, Flynn R, et al. Multilevel Barriers to HIV PrEP Uptake and Adherence Among Black and Hispanic/Latinx Transgender Women in Southern California. AIDS Behav. 2021;25:2301-15. doi: https://doi.org/10.1007/s10461-021-03159-2.
https://doi.org/10.1007/s10461-021-03159... Manifestação de efeitos adversos deve ser observada por esses profissionais, da mesma forma que a remoção assim como a remoção de barreiras no acesso à PrEP.
A descontinuidade do uso da PrEP decorrente do esquecimento foi observada no presente estudo. Em outros regimes terapêuticos que exigem a ingestão regular de medicamentos, como no tratamento de diabetes e na infecção pelo HIV, o uso de tecnologias digitais, como avisos no celular e lembretes em agendas eletrônicas, podem auxiliar na adesão a terapia medicamentosa.2626 Park JYE, Li J, Howren A, Tsao NW, De Vera M. Mobile Phone Apps Targeting Medication Adherence: Quality Assessment and Content Analysis of User Reviews. JMIR Mhealth Uhealth. 2019 Jan 31;7(1):e11919. doi: 10.2196/11919.
https://doi.org/10.2196/11919...
Por princípio, o uso de PrEP é determinado pelo usuário no processo de avaliação com o profissional de saúde em relação aos riscos de transmissão. Não há exatamente a adesão no mesmo sentido de tratamento da infecção. Considerando o acompanhamento nos serviços de saúde, esse é um dado importante a ser analisado, no sentido da manutenção do seguimento da PrEP, devido sua relevância na prevenção do HIV. Neste estudo, muitas pessoas trans deixaram de realizar o acompanhamento da PrEP e descontinuaram já na segunda consulta. Uma pesquisa com 294 pessoas trans nos Estados Unidos inscritas entre outubro de 2017 e maio de 2018, revelou que 49% descontinuaram o uso após um ano.1111 Zarwell M, John SA, Westmoreland D, Mirzayi C, Pantalone DW, Golub S, et al. PrEP uptake and discontinuation among a U.S. national sample of transgender men and women. AIDS Behav. 2021 Apr;25(4):1063-71. doi: 10.1007/s10461-020-03064-0
https://doi.org/10.1007/s10461-020-03064...
Os motivos da busca pela PrEP mostram a importância dos profissionais de saúde e de organizações não governamentais para facilitar o acesso à profilaxia. É preciso ampliar as parcerias entre os serviços de saúde e equipamentos sociais diversos para instituir uma rede colaborativa para incentivo à prevenção e na promoção de ambientes mais acolhedores e sem julgamentos, que encorajam indivíduos a buscar e continuar o acompanhamento.2727 Jackson-Gibson M, Ezema AU, Orero W, Were I, Ohiomoba RO, Mbullo PO, et al. Facilitators and barriers to HIV pre-exposure prophylaxis (PrEP) uptake through a community-based intervention strategy among adolescent girls and young women in Seme Sub-County, Kisumu, Kenya. BMC Public Health. 1o de dezembro de 2021;21(1284). doi: https://doi.org/10.1186/s12889-021-11335-1
https://doi.org/10.1186/s12889-021-11335... Campanhas de educação e sensibilização sobre a PrEP também podem aumentar o conhecimento e a aceitação da PrEP como método eficaz de prevenção do HIV. O estudo inclusive mostrou a influência das redes sociais na divulgação de informações para a procura da PrEP. Esse é um recurso que pode ser incorporado pelos serviços de saúde, inserido no que é chamado presença digital.2828 Nichiata LYI, Passaro T. mHealth e saúde pública: a presença digital do Sistema Único de Saúde do Brasil por meio de aplicativos de dispositivos móveis. RECIIS - Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde. 2023;17(3):503-16, 2023. doi: https://doi.org/10.29397/reciis.v17i3.3663.
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Este estudo apresenta limitações que devem ser consideradas ao interpretar os resultados. Primeiramente, o tamanho da amostra foi pequeno, com 53 pessoas trans acompanhadas ao longo do período de estudo. Isso pode limitar a generalização dos resultados para outras populações trans em diferentes contextos. O estudo utilizou dados secundários das fichas de atendimento, o que pode ter resultado em vieses devido à possível incompletude ou inconsistência nas informações registradas. Outra limitação é a perda de seguimento observada durante o acompanhamento clínico, especialmente após a segunda consulta. Tal perda pode ter influenciado os achados, uma vez que a análise considerou os três primeiros retornos de acompanhamento, o que limitou uma avaliação completa da continuidade do uso da PrEP a longo prazo.
Em conclusão, a maioria das pessoas trans que utilizam a PrEP em um serviço de saúde de referência no município de São Paulo era mulher trans, jovem, parda, com mais escolaridade. Alta descontinuidade no acompanhamento clínico após a segunda consulta foi observada e sugere necessidade de ações para aumentar a continuidade da PrEP. Considerando essa estreita janela de oportunidade, ações de prevenção estratégicas a essa população, como a vacinação contra hepatite B, deveriam ser priorizadas nas primeiras consultas.
FINANCIAMENTO
A pesquisa foi financiada mediante conceção de bolsa de doutorado concedida a Marcos Morais Santos Silva pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Processo nº 88887.508615/2020-0
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Dez 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
29 Fev 2024 - Aceito
29 Ago 2024