RESUMO
Objetivo
Avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde e fatores associados em pessoas trans.
Métodos
Estudo transversal em 2023. Empregou-se o instrumento 12-Item Short-Form Health Survey em mulheres trans, homens trans, travestis e não binários, usuários de um serviço de saúde em Manaus.
Resultados
Incluídos 71 participantes: 36 mulheres trans; 29, homens trans; 2, travestis; e 4, não binários, média de idade 30,1 anos. O componente físico apresentou escore 44,6 ±7,8, e o componente mental, 38,4±11,1. O aspecto emocional, escore 16,0±1,1, foi o domínio mais afetado. Associaram-se trabalho remunerado com melhor qualidade de vida mental e ter vivido em situação de rua com pior qualidade de vida física, diferenças médias de 4,4 (IC95% 2,3;6,9) e -3,3 (IC95% -7,7;-2,3) respectivamente.
Conclusão
Em pessoas trans, o componente mental foi mais afetado que o físico, com maior prejuízo no aspecto emocional. Características socioeconômicas associaram-se à qualidade de vida.
Palavras-chave
Pessoas Transgênero; Qualidade de Vida Relacionada à Saúde; Serviços de Saúde para Pessoas Transgênero; Estudos Transversais
Contribuições do estudo
Principais resultados
O componente mental da qualidade de vida das pessoas trans avaliadas foi pior do que o físico, com maior prejuízo no aspecto emocional. As pessoas trans com trabalho remunerado relataram melhor qualidade de vida, enquanto ter vivido em situação de rua foi associado à pior.
Implicações para os serviços
A qualidade de vida favorece a compreensão do estado de saúde autopercebido e deve ser considerada como desfecho de saúde. Pode-se explicitar necessidades não contempladas pelos serviços e fomentar a integralidade, a inclusão e o acolhimento na atenção à saúde.
Perspectivas
Os serviços de saúde e a avaliação de intervenções terapêuticas em pessoas trans devem incorporar desfechos de saúde autorreferidos. Estes possibilitam avaliar a qualidade do cuidado e subsidiar ações de saúde sensíveis às peculiaridades dessa população.
Palavras-chave
Pessoas Transgênero; Qualidade de Vida Relacionada à Saúde; Serviços de Saúde para Pessoas Transgênero; Estudos Transversais
INTRODUÇÃO
Conceitualmente, o termo “trans” abrange todas as pessoas que não se identificam com as expressões sociais tradicionais dicotômicas de gênero.11 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB de, Duarte MJO, Sodré F. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(1). doi:10.1590/1981-7746-sol00234. Diante da pluralidade das experiências das pessoas travestis, transexuais e transgêneros, “trans” é utilizado como termo guarda-chuva, que integra diferentes identidades e funcionalidades, compondo um grupo diverso de pessoas que neste estudo serão denominados de “pessoas trans”.11 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB de, Duarte MJO, Sodré F. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(1). doi:10.1590/1981-7746-sol00234.
A população mundial que se autoidentifica como pessoa trans é de 4,6 em 100 mil pessoas, sendo maior para mulheres trans (6,8 em 100 mil) do que para homens trans (2,6 em 100 mil).22 Arcelus J, Bouman WP, Van Den Noortgate W, Claes L, Witcomb G, Fernandez-Aranda F. Systematic review and meta-analysis of prevalence studies in transsexualism. European Psychiatry. 2015;30(6):807–15. doi: 10.1016/j.eurpsy.2015.04.005.
https://doi.org/10.1016/j.eurpsy.2015.04... No Brasil a diversidade de gênero representa cerca de 2% da população adulta do país. Estima-se que 3 milhões de brasileiros identificam-se como pessoas trans. São pessoas, em média, mais jovens (32,9±13,5) quando comparados aos cisgêneros (42,2±15,9). A média de idade dessas pessoas pode estar associada à menor expectativa de vida dessa população.33 Spizzirri G, Eufrásio R, Lima MCP, de Carvalho Nunes HR, Kreukels BPC, Steensma TD, et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Scientific Reports. 2021;11(1): 2240. doi: 10.1038/s41598-021-81411-4.
https://doi.org/10.1038/s41598-021-81411...
O desrespeito ao nome social e a incapacidade de gerir questões específicas da população trans,11 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB de, Duarte MJO, Sodré F. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(1). doi:10.1590/1981-7746-sol00234. bem como a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, renda, conflitos sociais e familiares,44 Nobili A, Glazebrook C, Arcelus J. Quality of life of treatment-seeking transgender adults: A systematic review and meta-analysis. Rev Endocr Metab Disord. 2018;19(3):199-220. doi: 10.1007/s11154-018-9459-y.
https://doi.org/10.1007/s11154-018-9459-... -66 Gava G, Fisher AD, Alvisi S, Mancini I, Franceschelli A, Seracchioli R, Meriggiola MA. Mental Health and Endocrine Telemedicine Consultations in Transgender Subjects During the COVID-19 Outbreak in Italy: A Cross-Sectional Web-Based Survey. J Sex Med. 2021;18(5):900-7. doi: 10.1016/j.jsxm.2021.03.009.
https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2021.03.0... permeiam a realidade no acesso a bens e serviços por pessoas trans. Grande parte dos problemas de saúde dessa população está direta e indiretamente relacionada à exposição ao preconceito, à discriminação e à violência.77 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. The Lancet. 2016;388(10042):390–400. doi: 10.1016/s0140-6736(16)00683-8.
https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)00... Depressão, ansiedade, estresse, uso de substâncias nocivas à saúde, automutilação e tentativas de suicídio77 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. The Lancet. 2016;388(10042):390–400. doi: 10.1016/s0140-6736(16)00683-8.
https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)00... acometem frequentemente esses indivíduos. Atitudes discriminatórias afetam a relação entre médico e paciente e prejudica ações de educação e prevenção em saúde.11 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB de, Duarte MJO, Sodré F. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(1). doi:10.1590/1981-7746-sol00234. Tais exposições afetam a qualidade de vida dessa população.
A Organização Mundial da Saúde define a qualidade de vida como a autopercepção sobre sua condição de vida, no seu próprio contexto de cultura e sistema de valores, considerando seus objetivos de vida, as expectativas e as preocupações.88 The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): Position paper from the World Health Organization. Soc Sci Med. 1995;41(10):1403–9. doi:10.1016/0277-9536(95)0012-k. Mantendo-se a subjetividade e a multidimensionalidade da qualidade de vida, surgiu o conceito de qualidade de vida relacionada à saúde, que é definida pelos aspectos da qualidade de vida que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde.99 Guyatt GH. Measuring health-related quality of life. Ann Intern Med. 1993;118(8):622. doi: 10.7326/0003-4819-118-8-199304150-00009.
https://doi.org/10.7326/0003-4819-118-8-... A compreensão da qualidade de vida é focada na avaliação subjetiva da pessoa99 Guyatt GH. Measuring health-related quality of life. Ann Intern Med. 1993;118(8):622. doi: 10.7326/0003-4819-118-8-199304150-00009.
https://doi.org/10.7326/0003-4819-118-8-... e pode ser avaliada através de instrumentos em forma de questionários que investigam o impacto das condições de saúde com relação aos aspectos físicos, psicológicos, emocionais e sociais de cada pessoa.1010 Wilson IB, Cleary PD. Linking clinical variables with health-related quality of life. A conceptual model of patient outcomes. JAMA. 1995; 273(1):59-65. doi:10.1001/jama.1995.03520250075037.-1212 Campolina AG, Lopez RVM, Nardi EP, Ferraz MB. Quality of life in a sample of Brazilian adults using the generic SF-12 questionnaire. Rev Assoc Med Bras (1992). 2018;64(3):234-42. doi: 10.1590/1806-9282.64.03.234.
https://doi.org/10.1590/1806-9282.64.03.... Ao longo deste artigo, o termo “qualidade de vida” foi empregado para se referir ao desfecho “qualidade de vida relacionada a saúde”.
A qualidade de vida de pessoas trans mostrou-se pior que a de pessoas cisgênero em pesquisas prévias.44 Nobili A, Glazebrook C, Arcelus J. Quality of life of treatment-seeking transgender adults: A systematic review and meta-analysis. Rev Endocr Metab Disord. 2018;19(3):199-220. doi: 10.1007/s11154-018-9459-y.
https://doi.org/10.1007/s11154-018-9459-... ,1313 Breidenstein A, Hess J, Hadaschik B, Teufel M, Tagay S. Psychosocial Resources and Quality of Life in Transgender Women following Gender-Affirming Surgery. J Sex Med. 2019;16(10):1672-80. doi: 10.1016/j.jsxm.2019.08.007.
https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2019.08.0... -1515 Newfield E, Hart S, Dibble S, Kohler L. Female-to-male transgender quality of life. Qual Life Res. 2006;15(9):1447-57. doi: 10.1007/s11136-006-0002-315.
https://doi.org/10.1007/s11136-006-0002-... Pessoas trans, quando comparadas à população cisgênero, experienciam diversas situações de discriminação que interferem negativamente no seu cotidiano.1616 Başar K, Öz G, Karakaya J. Perceived Discrimination, Social Support, and Quality of Life in Gender Dysphoria. J Sex Med. 2016;13(7):1133-41. doi:10.1016/j.jsxm.2016.04.071. O estresse psicossocial tem o potencial de afetar os domínios físico, psicológico e de bem-estar, que corroboram o comprometimento da qualidade de vida.77 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. The Lancet. 2016;388(10042):390–400. doi: 10.1016/s0140-6736(16)00683-8.
https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)00... ,1616 Başar K, Öz G, Karakaya J. Perceived Discrimination, Social Support, and Quality of Life in Gender Dysphoria. J Sex Med. 2016;13(7):1133-41. doi:10.1016/j.jsxm.2016.04.071. Fatores como tratamento com terapia hormonal de reafirmação de gênero,1717 Motmans J, Meier P, Ponnet K, T’Sjoen G. Female and male transgender quality of life: socioeconomic and medical differences. J Sex Med. 2012; 9(3):743-50. doi: 10.1111/j.1743-6109.2011.02569.x.
https://doi.org/10.1111/j.1743-6109.2011... ,1818 Silva ED, Fighera TM, Allgayer RM, Lobato MIR, Spritzer PM. Physical and Sociodemographic Features Associated With Quality of Life Among Transgender Women and Men Using Gender-Affirming Hormone Therapy. Front Psychiatry. 2021;12:621075. doi: 10.3389/fpsyt.2021.621075
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.62107... relação amorosa estável,1818 Silva ED, Fighera TM, Allgayer RM, Lobato MIR, Spritzer PM. Physical and Sociodemographic Features Associated With Quality of Life Among Transgender Women and Men Using Gender-Affirming Hormone Therapy. Front Psychiatry. 2021;12:621075. doi: 10.3389/fpsyt.2021.621075
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.62107... trabalhar ou estudar1414 Valashany BT, Janghorbani M. Quality of life of men and women with gender identity disorder. Health Qual Life Outcomes 2018;16:167. doi:10.1186/s12955-018-0995-7.,1818 Silva ED, Fighera TM, Allgayer RM, Lobato MIR, Spritzer PM. Physical and Sociodemographic Features Associated With Quality of Life Among Transgender Women and Men Using Gender-Affirming Hormone Therapy. Front Psychiatry. 2021;12:621075. doi: 10.3389/fpsyt.2021.621075
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.62107... estão associados a melhores escores de qualidade de vida. Fatores demográficos e socioeconômicos também têm sido associados à qualidade de vida de pessoas trans,1414 Valashany BT, Janghorbani M. Quality of life of men and women with gender identity disorder. Health Qual Life Outcomes 2018;16:167. doi:10.1186/s12955-018-0995-7.,1717 Motmans J, Meier P, Ponnet K, T’Sjoen G. Female and male transgender quality of life: socioeconomic and medical differences. J Sex Med. 2012; 9(3):743-50. doi: 10.1111/j.1743-6109.2011.02569.x.
https://doi.org/10.1111/j.1743-6109.2011... -1818 Silva ED, Fighera TM, Allgayer RM, Lobato MIR, Spritzer PM. Physical and Sociodemographic Features Associated With Quality of Life Among Transgender Women and Men Using Gender-Affirming Hormone Therapy. Front Psychiatry. 2021;12:621075. doi: 10.3389/fpsyt.2021.621075
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.62107... assim como acontece com a população em geral.1919 JieAnNaMu, Xu X, You H, Gu H, Gu J, Li X, Cui N, Kou Y. Inequalities in health-related quality of life and the contribution from socioeconomic status: evidence from Tibet, China. BMC Public Health. 2020; 20(1):630. doi: 10.1186/s12889-020-08790-7
https://doi.org/10.1186/s12889-020-08790... -2020 Ghahramani S, Hadipour M, Peymani P, Ghahramani S, Lankarani KB. Health-related quality of life variation by socioeconomic status: Evidence from an Iranian population-based study. J Educ Health Promot. 2023; 12:287. doi: 10.4103/jehp.jehp_1031_22
https://doi.org/10.4103/jehp.jehp_1031_2...
Estudos que investiguem a qualidade de vida na população trans ainda são escassos. Este estudo objetivou avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde e os fatores associados em pessoa trans em Manaus, Amazonas.
MÉTODOS
Desenho do estudo
Trata-se de um estudo transversal aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas por meio do parecer 6.315.703, com certificado de apresentação para apreciação ética nº 65732222.0.0000.5020. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme as diretrizes éticas estabelecidas pela Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
Contexto
O estudo foi realizado no período de abril a dezembro de 2023 no Ambulatório de Diversidade Sexual e Gênero, localizado na Policlínica Codajás, em Manaus, Amazonas, serviço de referência da Secretaria de Estado de Saúde que oferta assistência realizada por uma equipe multidisciplinar durante o processo transexualizador.
Participantes
A amostra de conveniência foi composta por pessoas acima de 18 anos que se autoidentificaram como homens trans, mulheres trans, travestis e não binários, usuários do Ambulatório de Diversidade Sexual e Gênero. O critério de exclusão foi estar sob efeito de substância psicoativa ou álcool no momento da entrevista de forma a impossibilitar a aplicação do questionário. A participação no processo transexualizador, decisão de participar ou momento terapêutico do processo não foram considerados para elegibilidade no estudo.
As pessoas foram convidadas a participar na recepção, durante a espera pelo atendimento no serviço de saúde. Esse primeiro contato foi auxiliado pelos profissionais do ambulatório. Aquelas pessoas que concordaram em participar e atenderam aos critérios de elegibilidade foram direcionadas a uma sala reservada para obtenção do consentimento livre esclarecido e coleta de dados.
Variáveis, fonte de dados e mensuração
Os dados foram coletados utilizando-se questionários aplicados por meio de entrevistas, conduzidas por 3 entrevistadores treinados. O desfecho do estudo foi a qualidade de vida relacionada à saúde, mensurado pelo instrumento Short-Form Health Survey (SF-12) na sua versão traduzida e validada para o português do Brasil.2121 Camelier AA. Avaliação da Qualidade de Vida Relacionada à Saúde em Pacientes com DPOC: estudo de base populacional com o SF-12 na cidade de São Paulo-SP [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2004 As exposições avaliadas foram características demográficas e socioeconômicas. As variáveis demográficas incluíram gênero (homem trans, mulher trans, travesti, não binário), raça/cor da pele (preta, parda, amarela, branca, indígena), idade (em anos) e estado civil (solteiro(a), casado(a), viúvo(a), separado(a), com companheiro(a)). As variáveis socioeconômicas analisadas foram escolaridade (fundamental, médio, superior), trabalho remunerado (sim, não), ocupação (desempregado(a), servidor(a) público(a), empregado, autônomo, empregador), renda familiar total (<1 salário mínimo, >1 -2 salários mínimos, >2 –5 salários mínimos, ≥5 salários mínimos), benefício social (sim, não), se já ficou sem ter onde morar (sim, não) e se já esteve em situação de rua (sim, não).
Elaborado em 1995,1111 Ware J. How to score SF-12 items. SF-12 v2: How to Score Version 2 of the SF-12 Health Survey. 1995;29–38. o SF-12 é uma versão reduzida do SF-36, composta por 12 itens que avaliam, em 8 diferentes domínios, a percepção do indivíduo em relação aos aspectos de sua saúde nas 4 últimas semanas.2121 Camelier AA. Avaliação da Qualidade de Vida Relacionada à Saúde em Pacientes com DPOC: estudo de base populacional com o SF-12 na cidade de São Paulo-SP [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2004 Cada item apresentou um conjunto de possíveis respostas dicotômicas (sim, não) ou distribuídas em uma escala gradativa tipo Likert, abrangendo de 3 a 6 opções de escolha, dependendo da questão, as quais refletiram diferentes graus de intensidade ou frequência, variando, por exemplo, de “excelente” a “ruim” ou “todo o tempo” a “nenhuma parte do tempo”. Essa estrutura permitiu captar variações na percepção dos entrevistados em relação aos domínios que compõem o instrumento: capacidade funcional, aspectos físicos, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos emocionais, aspectos sociais e saúde mental. Por meio da aplicação de um algoritmo próprio do instrumento, 2 escores foram mensurados: o componente físico e o componente mental. A pontuação varia de 0 a 100, sendo os maiores escores associados à melhor qualidade de vida.1111 Ware J. How to score SF-12 items. SF-12 v2: How to Score Version 2 of the SF-12 Health Survey. 1995;29–38.
Um estudo piloto foi realizado com 7 pessoas trans, não incluídas no estudo principal, para treinamento dos examinadores e verificação da viabilidade da aplicação do instrumento na população do estudo, bem como averiguação da clareza e compreensibilidade dos itens do questionário.
Tamanho do estudo
Com base nos registros administrativos do serviço e no fluxo de pacientes ativos, estimou-se tamanho amostral de 70 participantes, o que representa um poder de 80% em estimar efeitos de 0,2 em um modelo de regressão com cinco covariáveis no nível de significância de 5%.
Métodos estatísticos
Os dados foram tabulados em planilha de Excel e importados no software Stata SE, versão 15. Após o cálculo dos escores do SF-12, por meio da sintaxe do instrumento, foram realizadas as análises descritivas. As variáveis numéricas foram descritas pela média e desvio padrão, e as variáveis categóricas, pelas frequências absoluta e relativa. Um gráfico de radar foi utilizado para sumarizar os valores dos domínios do instrumento de qualidade de vida. Os escores dos componentes do SF-12 foram comparados por meio da estimativa da média e intervalos de confiança de 95% (IC95%) entre duas categorias: homens trans e mulheres trans e travestis, uma vez que elas vivem e carregam em si as expressões do feminino.
Realizou-se análise de regressão não Paramétrica Kernel para avaliar a associação entre variáveis sociodemográficas e os escores dos componentes, estimando as diferenças médias (DM) e IC95%, calculados por método de reamostragem. As variáveis com p-valor<0,20 nas análises de regressão bivariadas foram incluídas no modelo múltiplo. Nos modelos finais, mantiveram-se as variáveis com p-valor<0,10 e estabeleceu-se o nível de significância em 0,05.
RESULTADOS
Foram avaliadas 71 pessoas trans, com média de idade de 30,1±8,1 anos. Metade da amostra (n=36) se autoidentificou como mulher trans, enquanto 29 participantes se identificaram como homens trans. A maioria se autodeclarou da raça preta ou parda (n=48), de estado civil solteiro(a) (n=53), com ensino médio (n=44) e renda média familiar entre >1-2 salários mínimos. Vinte e cinco pessoas relataram já ter ficado sem ter onde morar e 13 em situação de rua. A Tabela 1 apresenta a caracterização sociodemográfica dos participantes do estudo.
Caracterização sociodemográfica de pessoas trans usuárias de serviço de saúde especializado, Manaus, Amazonas, 2023 (n=71)
A primeira questão do SF-12 refere-se à autopercepção da saúde geral da população de estudo, não sendo utilizada para o cálculo dos escores. Metade dos participantes considerou sua saúde geral como boa (n=36), enquanto 13 perceberam sua saúde como excelente ou muito boa e 22 como ruim ou muito ruim.
A Tabela 2 apresenta os escores dos componentes físico e mental, bem como de cada um dos 8 domínios. O escore médio observado foi 44,6 para o físico e 38,4 para o mental. O aspecto emocional apresentou o menor escore (16,0), sendo o domínio mais afetado, seguido do aspecto físico (26,0). Os 3 domínios com as maiores pontuações foram: vitalidade (52,1), saúde mental (52,1) e capacidade física (52,0). A pontuação dos domínios do instrumento SF-12 foi sumarizada na Figura 1.
Escores médios dos domínios do instrumento de qualidade de vida relacionada à saúde em pessoas trans usuárias de serviço de saúde especializado, Manaus, Amazonas, 2023 (n=71)
Média e desvio padrão (DP), valores mínimos e máximos da qualidade de vida relacionada à saúde em pessoas trans usuárias de serviço de saúde especializado, Manaus, Amazonas, 2023 (n=71)
Por meio dos intervalos de confiança estimados, observou-se menor valor no escore médio do componente mental em relação ao componente físico em pessoas trans. Não foi observada diferença significativa nos escores dos componentes do SF-12 entre os gêneros (Tabela 3).
Tabela 3– Média do escore (intervalo de confiança de 95%) dos componentes físico e mental do de pessoas trans usuárias de serviço de saúde especializado, de acordo com a identidade de gênero, Manaus, Amazonas, 2023
As pessoas trans que referiram ter trabalho remunerado apresentaram melhores escores no componente mental do SF-12 (diferença média 4,4; IC95% 2,3;6,9). Ter vivido em situação de rua foi associado com pior escore do componente físico do SF-12 (diferença média -3,3; IC95% -7,7;-2,3) (Tabela 4).
Diferença média (DM) e intervalo de confiança de 95% (IC95%) bruta e ajustada dos componentes mental e físico da qualidade de vida de pessoas trans usuárias de serviço de saúde especializado, Manaus, Amazonas, 2023 (n=71)
DISCUSSÃO
Na avaliação da qualidade de vida de pessoas trans, o componente mental apresentou-se pior que o componente físico, tendo sido “aspecto emocional” o domínio mais afetado. Não houve diferença na qualidade de vida ao se comparar homens trans com mulheres trans e travestis. As pessoas trans que referiram ter trabalho remunerado apresentaram melhor componente mental da qualidade de vida, enquanto ter vivido em situação de rua foi associado com pior componente físico. Um terço das pessoas trans percebeu sua saúde como ruim ou muito ruim.
Os escores dos componentes mental e físico da qualidade de vida das pessoas trans avaliadas neste estudo foram menores que os de outras populações transgênero na Índia,55 Bhattacharya S, Ghosh D. Studyng physical and mental health status among hijra, kothi and transgender community in Kolkata, India. Soc Sci Med. 2020; 265:113412. doi: 10.1016/j.socscimed.2020.113412.
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2020... nos Estados Unidos2222 O’Bryan J, Scribani M, Leon K, Tallman N, Wolf-Gould C, Wolf-Gould C, Gadomski A. Health-related quality of life among transgender and gender expansive youth at a rural gender wellness clinic. Qual Life Res. 2020; 29(6):1597-1607. doi: 10.1007/s11136-020-02430-8
https://doi.org/10.1007/s11136-020-02430... e na Itália.66 Gava G, Fisher AD, Alvisi S, Mancini I, Franceschelli A, Seracchioli R, Meriggiola MA. Mental Health and Endocrine Telemedicine Consultations in Transgender Subjects During the COVID-19 Outbreak in Italy: A Cross-Sectional Web-Based Survey. J Sex Med. 2021;18(5):900-7. doi: 10.1016/j.jsxm.2021.03.009.
https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2021.03.0... Também observaram-se maiores escores de qualidade de vida em pesquisas com mulheres trans submetidas à cirurgia de redesignação sexual1313 Breidenstein A, Hess J, Hadaschik B, Teufel M, Tagay S. Psychosocial Resources and Quality of Life in Transgender Women following Gender-Affirming Surgery. J Sex Med. 2019;16(10):1672-80. doi: 10.1016/j.jsxm.2019.08.007.
https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2019.08.0... e homens trans.1515 Newfield E, Hart S, Dibble S, Kohler L. Female-to-male transgender quality of life. Qual Life Res. 2006;15(9):1447-57. doi: 10.1007/s11136-006-0002-315.
https://doi.org/10.1007/s11136-006-0002-... Os resultados de uma revisão sistemática mostraram que pessoas transgênero apresentam prejuízo na qualidade de vida e que relatam pior qualidade de vida mental em comparação à população em geral.44 Nobili A, Glazebrook C, Arcelus J. Quality of life of treatment-seeking transgender adults: A systematic review and meta-analysis. Rev Endocr Metab Disord. 2018;19(3):199-220. doi: 10.1007/s11154-018-9459-y.
https://doi.org/10.1007/s11154-018-9459-...
Os escores deste estudo foram piores que os de uma amostra representativa para 15 capitais das 5 regiões brasileiras, incluindo Manaus, de indivíduos com 15 anos ou mais, que observou média de 49,3 (IC95% 49,1;49,6) no componente físico do SF-12 e 52,7 (IC95% 52,4;52,9) no componente mental.1212 Campolina AG, Lopez RVM, Nardi EP, Ferraz MB. Quality of life in a sample of Brazilian adults using the generic SF-12 questionnaire. Rev Assoc Med Bras (1992). 2018;64(3):234-42. doi: 10.1590/1806-9282.64.03.234.
https://doi.org/10.1590/1806-9282.64.03.... No levantamento da população brasileira, o componente físico da qualidade de vida mostrou-se mais afetado que o componente mental, diferentemente do encontrado para as pessoas trans deste estudo. Estas tiveram o componente mental pior que o físico, o que está em concordância com outros estudos que também avaliaram pessoas trans em contextos internacionais.55 Bhattacharya S, Ghosh D. Studyng physical and mental health status among hijra, kothi and transgender community in Kolkata, India. Soc Sci Med. 2020; 265:113412. doi: 10.1016/j.socscimed.2020.113412.
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2020... -66 Gava G, Fisher AD, Alvisi S, Mancini I, Franceschelli A, Seracchioli R, Meriggiola MA. Mental Health and Endocrine Telemedicine Consultations in Transgender Subjects During the COVID-19 Outbreak in Italy: A Cross-Sectional Web-Based Survey. J Sex Med. 2021;18(5):900-7. doi: 10.1016/j.jsxm.2021.03.009.
https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2021.03.0... ,1515 Newfield E, Hart S, Dibble S, Kohler L. Female-to-male transgender quality of life. Qual Life Res. 2006;15(9):1447-57. doi: 10.1007/s11136-006-0002-315.
https://doi.org/10.1007/s11136-006-0002-... ,2424 Barbosa ALSB, Santana AD da S, Araújo EC de, Abreu PD de, Lima MS de, Moura JW da S. Representações sociais de travestis profissionais do sexo sobre qualidade de vida. Enferm Glob. 2021; 20(4):131–69. doi: 10.6018/eglobal.462441
https://doi.org/10.6018/eglobal.462441... -2525 Solar O; Irwin A. A conceptual framework for action on the social determinants of health. Social Determinants of Health Discussion Paper 2 (Policy and Practice). OMS, 2010. 75 p.
O processo transexualizador é marcado por fatores biológicos e fisiológicos, as características sexuais, e por prejuízos psicológicos, que incluem ansiedade, depressão, ideação suicida,77 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. The Lancet. 2016;388(10042):390–400. doi: 10.1016/s0140-6736(16)00683-8.
https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)00... e sociais, como falta de apoio social, rejeição, discriminação e transfobia.11 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB de, Duarte MJO, Sodré F. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(1). doi:10.1590/1981-7746-sol00234.,44 Nobili A, Glazebrook C, Arcelus J. Quality of life of treatment-seeking transgender adults: A systematic review and meta-analysis. Rev Endocr Metab Disord. 2018;19(3):199-220. doi: 10.1007/s11154-018-9459-y.
https://doi.org/10.1007/s11154-018-9459-... -77 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. The Lancet. 2016;388(10042):390–400. doi: 10.1016/s0140-6736(16)00683-8.
https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)00... As pessoas trans sofrem com as barreiras de acesso ao serviço de saúde, características do sistema binário e heteronormativo, que impedem que essa população procure os serviços de saúde. Quando esta consegue acessar e utilizar o serviço de saúde, padece com a assistência de profissionais que invisibilizam suas necessidades.2424 Barbosa ALSB, Santana AD da S, Araújo EC de, Abreu PD de, Lima MS de, Moura JW da S. Representações sociais de travestis profissionais do sexo sobre qualidade de vida. Enferm Glob. 2021; 20(4):131–69. doi: 10.6018/eglobal.462441
https://doi.org/10.6018/eglobal.462441... Todas essas exposições podem explicar o impacto negativo na qualidade de vida dessas pessoas, além de poderem justificar o maior impacto negativo no domínio “aspecto emocional”, que também foi ou o mais ou um dos mais afetados em outras populações trans.1515 Newfield E, Hart S, Dibble S, Kohler L. Female-to-male transgender quality of life. Qual Life Res. 2006;15(9):1447-57. doi: 10.1007/s11136-006-0002-315.
https://doi.org/10.1007/s11136-006-0002-... É importante ressaltar que não foi feita distinção das pessoas trans investigadas em relação ao momento do processo transexualizador em que se encontravam. Há evidência que a qualidade de vida melhora após o tratamento de redesignação sexual.44 Nobili A, Glazebrook C, Arcelus J. Quality of life of treatment-seeking transgender adults: A systematic review and meta-analysis. Rev Endocr Metab Disord. 2018;19(3):199-220. doi: 10.1007/s11154-018-9459-y.
https://doi.org/10.1007/s11154-018-9459-... ,1414 Valashany BT, Janghorbani M. Quality of life of men and women with gender identity disorder. Health Qual Life Outcomes 2018;16:167. doi:10.1186/s12955-018-0995-7.
Não foram observadas diferenças nos componentes físico e mental da qualidade de vida entre homens trans e mulheres trans (avaliadas em conjunto com as travestis). Pesquisa realizada entre 2016 e 2017 em um serviço de saúde de Porto Alegre (RS) também não encontrou diferenças entre os gêneros,1818 Silva ED, Fighera TM, Allgayer RM, Lobato MIR, Spritzer PM. Physical and Sociodemographic Features Associated With Quality of Life Among Transgender Women and Men Using Gender-Affirming Hormone Therapy. Front Psychiatry. 2021;12:621075. doi: 10.3389/fpsyt.2021.621075
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.62107... ao mesmo tempo que demonstrou que fatores relacionados ao corpo e ao processo transexualizador associados à qualidade de vida eram diferentes para homens e mulheres trans. Isso sugere uma similaridade na percepção da saúde física entre os dois grupos, o que pode apontar que os fatores na experiência de saúde física são compartilhados, desafiando estereótipos preexistentes sobre as vivências específicas de homens e mulheres trans nessa dimensão. Globalmente, homens trans e mulheres trans enfrentam desafios semelhantes em termos de saúde mental.
As pessoas trans que tinham trabalho remunerado apresentaram melhor qualidade de vida, no seu componente mental, e aquelas que viveram em situação de rua tiveram pior componente físico. A associação de fatores socioeconômicos, como escolaridade, renda e ocupação,1414 Valashany BT, Janghorbani M. Quality of life of men and women with gender identity disorder. Health Qual Life Outcomes 2018;16:167. doi:10.1186/s12955-018-0995-7.,1717 Motmans J, Meier P, Ponnet K, T’Sjoen G. Female and male transgender quality of life: socioeconomic and medical differences. J Sex Med. 2012; 9(3):743-50. doi: 10.1111/j.1743-6109.2011.02569.x.
https://doi.org/10.1111/j.1743-6109.2011... -1818 Silva ED, Fighera TM, Allgayer RM, Lobato MIR, Spritzer PM. Physical and Sociodemographic Features Associated With Quality of Life Among Transgender Women and Men Using Gender-Affirming Hormone Therapy. Front Psychiatry. 2021;12:621075. doi: 10.3389/fpsyt.2021.621075
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.62107... mostraram-se associados à qualidade de vida de pessoas trans, da mesma forma que na população em geral.1919 JieAnNaMu, Xu X, You H, Gu H, Gu J, Li X, Cui N, Kou Y. Inequalities in health-related quality of life and the contribution from socioeconomic status: evidence from Tibet, China. BMC Public Health. 2020; 20(1):630. doi: 10.1186/s12889-020-08790-7
https://doi.org/10.1186/s12889-020-08790... ,2020 Ghahramani S, Hadipour M, Peymani P, Ghahramani S, Lankarani KB. Health-related quality of life variation by socioeconomic status: Evidence from an Iranian population-based study. J Educ Health Promot. 2023; 12:287. doi: 10.4103/jehp.jehp_1031_22
https://doi.org/10.4103/jehp.jehp_1031_2... A estratificação social está associada a diferenciais de exposição e vulnerabilidade a condições comprometedoras da saúde. Essa estratificação se associa também a diferentes formas de enfrentamento e consequências dos problemas de saúde, constituindo-se esse o mecanismo fundamental pelo qual a posição socioeconômica gera desigualdades na saúde.2525 Solar O; Irwin A. A conceptual framework for action on the social determinants of health. Social Determinants of Health Discussion Paper 2 (Policy and Practice). OMS, 2010. 75 p.
Embora as associações identificadas reflitam vulnerabilidades que podem ser comuns a população em geral, para a população trans, essas vulnerabilidades são agravadas por fatores interseccionais específicos, como a discriminação de gênero, a exclusão social e as barreiras de acesso a serviços de saúde. Travestis e mulheres trans em situação de rua conseguiram acessar serviços do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social no município de Belo Horizonte (MG) em pesquisa realizada entre outubro de 2017 a fevereiro de 2018, mas enfrentaram desafios de inadequação às suas necessidades, o que evidencia lacunas na proteção social e na produção do cuidado em saúde.2626 Mendes LG, Jorge AO, Pilecco FB. Proteção social e produção do cuidado a travestis e a mulheres trans em situação de rua no município de Belo Horizonte (MG). Saúde debate 2019;43(spe8):107–19. doi:10.1590/0103-11042019S808.
Um terço das pessoas trans percebeu sua saúde como ruim ou muito ruim. Assim como a qualidade de vida, a autopercepção da saúde é um indicador subjetivo que reflete uma integração do estado funcional de saúde com o sofrimento emocional e os fatores sociais. A qualidade de vida é preditora do uso de serviços de saúde geral e mental e expectativa de vida. A percepção geral da saúde certamente está relacionada a fatores biológicos e fisiológicos, mas compreender que há outros fatores que afetam as percepções de saúde pode explicar as variações em cada estado clínico ou entre indivíduos.1010 Wilson IB, Cleary PD. Linking clinical variables with health-related quality of life. A conceptual model of patient outcomes. JAMA. 1995; 273(1):59-65. doi:10.1001/jama.1995.03520250075037. Cinco por cento da população brasileira referiu autopercepção da saúde ruim ou muito ruim em 2019.2727 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde – PNS: conceitos e métodos: metadados. 2020. Disponível em: https://metadados.ibge.gov.br/consulta/estatisticos/operacoes-estatisticas/XN. Acesso em: 10 de fevereiro de 2024.
https://metadados.ibge.gov.br/consulta/e... A proporção de pessoas trans com autopercepção da saúde ruim encontrado no estudo reitera e contribui para justificar a avaliação negativa da qualidade de vida.
Algumas limitações do estudo devem ser apontadas. A amostra foi não probabilística e envolveu apenas usuários de um centro de referência no processo de transexualização, o que representa viés de seleção ao se excluírem pessoas que não conseguiram acesso ao serviço de saúde. O recrutamento dos participantes no serviço de saúde é usual em estudos com população trans, embora se reconheça a possibilidade de erro sistemático dele decorrente.44 Nobili A, Glazebrook C, Arcelus J. Quality of life of treatment-seeking transgender adults: A systematic review and meta-analysis. Rev Endocr Metab Disord. 2018;19(3):199-220. doi: 10.1007/s11154-018-9459-y.
https://doi.org/10.1007/s11154-018-9459-...
O pequeno número de participantes pode não ter tido o poder de identificar diferenças entre categorias avaliadas que podem, na realidade, existir. A população trans é altamente vulnerabilizada, com desafios em recrutar e reter os participantes resultando em variabilidade no planejamento e tamanho amostral.44 Nobili A, Glazebrook C, Arcelus J. Quality of life of treatment-seeking transgender adults: A systematic review and meta-analysis. Rev Endocr Metab Disord. 2018;19(3):199-220. doi: 10.1007/s11154-018-9459-y.
https://doi.org/10.1007/s11154-018-9459-... ,1414 Valashany BT, Janghorbani M. Quality of life of men and women with gender identity disorder. Health Qual Life Outcomes 2018;16:167. doi:10.1186/s12955-018-0995-7. Não houve distinção do momento terapêutico do processo transexualizador em que as pessoas estavam. Isso merece ser investigado em relação à qualidade de vida, inclusive em conjunto com uma investigação qualitativa, considerando que há evidências de que a qualidade de vida pode melhorar após as intervenções.2828 Baker KE, Wilson LM, Sharma R, Dukhanin V, McArthur K, Robinson KA. Hormone Therapy, Mental Health, and Quality of Life Among Transgender People: A Systematic Review. J Endocr Soc. 2021 Feb 2;5(4):bvab011. doi: 10.1210/jendso/bvab011.
https://doi.org/10.1210/jendso/bvab011...
O estudo sugere que a inclusão de medidas de percepções subjetivas no contexto do processo transexualizador ajudaria a avaliar a relação entre a identidade de gênero e as mudanças físicas e psicológicas que acompanham a transição. Um dos principais objetivos do tratamento, além das mudanças corporais, é o ganho na qualidade de vida e a integração social das pessoas trans.2929 Sá PT de, Caputo VG, Moraes MAA de. Percepção de pessoas transexuais sobre os atendimentos em serviços de saúde. Rev Psicol Saúde. 2022;77–90. doi: org/10.20435/pssa.v14i1.1185.
https://doi.org/10.20435/pssa.v14i1.1185... Isso não pode ser avaliado apenas por medidas clínicas exclusivamente normativas, que negligenciam as necessidades percebidas pelas pessoas, bem como suas possíveis implicações psicossociais. Essas medidas subjetivas autorreportadas descrevem ou caracterizam a percepção da própria saúde, considerando os aspectos físicos, psicológicos e sociais que a permeiam, ou o que o paciente experienciou como resultado dos cuidados médicos. Tais medidas são complementares às medidas biológicas ou fisiológicas tradicionais do estado de saúde.
O estudo identificou que a qualidade de vida relacionada à saúde de pessoas trans usuárias de um serviço especializado em Manaus apresentou-se pior no componente mental, sendo o aspecto emocional o mais afetado. Fatores socioeconômicos, como trabalho remunerado e ter vivido em situação de rua, estiveram associados, respectivamente, a melhor desfecho mental e pior desfecho físico da qualidade de vida. Esses achados reforçam a vulnerabilidade da população trans e a importância de considerar fatores subjetivos e psicossociais no cuidado à saúde.
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