RESUMO
Objetivo
Estimar a cobertura vacinal da hepatite A em crianças de 24 meses e identificar fatores associados à ausência de vacinação.
Métodos
Inquérito em amostra estratificada por estratos socioeconômicos em capitais (2020-2022), com estimativa de cobertura e intervalos de confiança de 95% (IC95%) e análise de fatores pela razão de prevalência (RP) via regressão de Poisson.
Resultados
Nas 31.001 crianças, a cobertura da hepatite A foi de 88,1% (IC95% 86,8;89,2). Nos estratos socioeconômicos (A/B), a variável pais/responsáveis imigrantes foi associada à ausência de vacinação (RP = 1,91; IC95% 1,09;3,37); nos estratos C/D, crianças de cor amarela (RP = 4,69; IC95% 2,30;9,57), 4ª ordem de nascimento ou mais (RP = 1,68; IC95% 1,06;2,66), não frequentar creche/berçário (RP = 1,67; IC95% 1,24;2,24) e mãe com trabalho remunerado (RP = 1,42; IC95% 1,16;1,74) foram associadas à ausência de vacinação.
Conclusão
Cobertura da hepatite A abaixo da meta (95%), sugerindo-se considerar especificidades dos estratos sociais.
Palavras-chave
Cobertura Vacinal; Programas de Imunização; Vacinas contra Hepatite A; Criança; Fatores Socioeconômicos; Inquéritos Epidemiológicos
Contribuições do estudo
Principais resultados
A cobertura vacinal da hepatite A foi de 88%. Ausência de vacinação foi maior em crianças de responsáveis imigrantes (estratos A/B); de cor amarela, 4º filho ou mais, não frequentador de creche/berçário e de mãe com trabalho remunerado (estratos C/D).
Implicações para os serviços
Os resultados deste estudo contribuíram com Ministério da Saúde e Secretarias de Saúde no monitoramento da cobertura vacinal e identificação de fatores que possam impactar negativamente a cobertura vacinal da hepatite A.
Perspectivas
É preciso mais pesquisa sobre o impacto da migração na vacinação contra hepatite A e em geral. Gestores de saúde devem atentar aos diferentes fatores que afetam a vacinação entre os estratos sociais.
Palavras-chave
Cobertura Vacinal; Programas de Imunização; Vacinas contra Hepatite A; Criança; Fatores Socioeconômicos; Inquéritos Epidemiológicos
INTRODUÇÃO
Globalmente, estima-se a ocorrência anual de mais de 100 milhões de casos de hepatite A e de 15 mil a 30 mil mortes pela doença, principalmente em países em desenvolvimento, onde o acesso a água tratada e esgotamento sanitário é precário.11 WHO. The immunological basis for immunization series: module 18: Hepatitis A. Immunological basis for immunization series; module 18. Geneva: WHO; 2019. p. 68. No Brasil, as melhorias das condições de vida da população, em especial nas primeiras décadas do século XXI, resultaram na transição epidemiológica da hepatite A, observando-se endemicidade baixa em regiões mais desenvolvidas, como as regiões Sul e Sudeste, e endemicidade intermediária nas regiões menos desenvolvidas, como Centro-Oeste, Norte e Nordeste.22 Ximenes RA, Martelli CM, Amaku M, Sartori AM, de Soarez PC, Novaes HM, et al. Modelling the force of infection for hepatitis A in an urban population-based survey: a comparison of transmission patterns in Brazilian macro-regions. PLoS One. 2014;9(5):e94622.
A hepatite A, causada pelo vírus da hepatite A (HAV), vírus RNA da família Picornaviridae, gênero Hepatovírus,11 WHO. The immunological basis for immunization series: module 18: Hepatitis A. Immunological basis for immunization series; module 18. Geneva: WHO; 2019. p. 68. é transmitida predominantemente pela via fecal-oral. Em geral, ocasiona doença hepática inflamatória aguda de autorresolução. Raramente evolui para a forma fulminante. Na primeira infância, a infecção em geral é assintomática, aumentando o risco de sintomas com a idade, que incluem febre, mal-estar, fadiga, perda de apetite, diarreia, náuseas, desconforto abdominal, anorexia, mialgia, cefaleia, artralgia e icterícia. Por outro lado, mais de 70% das crianças acima de 5 anos e os adultos são sintomáticos, necessitando de repouso e internação hospitalar. Hepatite A fulminante é um evento raro, e ocorre mais frequentemente em adultos mais velhos.33 Lemon SM, Ott JJ, Damme PV, Souval D. Type A viral hepatitis: A summary and update on the molecular virology, epidemiology, pathogenesis and prevention. Journal of Hepatology. 2018;68:167-84.
Vacinas contra hepatite A são seguras e eficazes. Vacinas contra hepatite A inativadas em formaldeído são licenciadas para crianças a partir de 12 meses, por via intramuscular, em duas doses com intervalo mínimo de seis meses entre as doses.11 WHO. The immunological basis for immunization series: module 18: Hepatitis A. Immunological basis for immunization series; module 18. Geneva: WHO; 2019. p. 68. Contudo, estudos em países em desenvolvimento mostraram a efetividade dessas vacinas quando aplicadas em dose única,44 Mayorga O, Buhler S, Jaeger VK, Bally S, Hatz C, Frosner G, et al. Single-Dose Hepatitis A Immunization: 7.5-Year Observational Pilot Study in Nicaraguan Children to Assess Protective Effectiveness and Humoral Immune Memory Response. J Infect Dis. 2016;214:1498-506.,55 Uruena A, Badano MN, Bare P, Gonzalez J, Vicentin R, Calli R, et al. Humoral and cellular immune memory response 12 years following single dose vaccination against hepatitis A in Argentinian children. Vaccine. 2022;40:114-21. o que levou a Organização Mundial da Saúde a recomendar os dois esquemas (uma ou duas doses) em crianças.66 World Health Organization. WHO position paper on hepatitis A vaccines – October 2022. Weekly epidemiological record, 2022;97(40);493-512. Assim, considerando o novo perfil endêmico do Brasil, e após análises de custo-efetividade, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde recomendou em 2012 a inclusão da vacina contra a hepatite A no calendário básico infantil.77 CONITEC. Vacina de Hepatite A. Relatório de Recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS-CONITEC-22. Secretaria de Ciência, Tecnologia e insumos Estratégicos. Brasília: Ministério da Saúde do Brasil; 2012. p. 120. Em 2014, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) introduziu essa vacina no calendário infantil, com esquema vacinal de dose única, aos 15 meses de idade.88 Brasil. Ministério da Saúde. Manual de Normas e Procedimentos para Vacinação. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Ministério da Saúde 2014. p. 176. ISBN 978-85-334-2164-6.
Um estudo com dados secundários, que avaliou a incidência de hepatite A e a cobertura vacinal da hepatite A no Brasil, após cinco anos de implantação no PNI (2014-2018), constatou que a cobertura vacinal teve o seu pior desempenho em 2014 (60,13%) e melhor desempenho no ano seguinte (97,07%), com variações negativas nos anos posteriores: 71,58% (2016), 82,7% (2017) e 76,72% (2018). A despeito dessa variação, como observado em outros países, houve redução da incidência da hepatite A.99 Brito WI, Souto FJD. Universal hepatitis A vaccination in Brazil: analysis of vaccination coverage and incidence five years after program implementation. Rev Bras Epidemiol. 2020;23:e200073.
Entre 2014 e 2022, observou-se um decréscimo de mais de 95% na incidência de hepatite A em menores de 10 anos no Brasil,1010 Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Hepatites Virais 2023. Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Ministério da Saúde 2023. p. 83. ISSN 9352-7864. reforçando a necessidade de se alcançar a meta de cobertura da vacina hepatite A de 95%, recomendada pelo Ministério da Saúde,1111 Brasil. Ministério da Saúde. 2022 Caderno Temático do Programa Saúde na Escola: Verificação da Situação Vacinal. Ministério da Saúde, Ministério da Educação. Brasília. Ministério da Saúde, 22, 30p. il. para a redução da incidência e o controle da doença. Assim, avaliações periódicas da cobertura vacinal tornam-se imprescindíveis para identificar eventuais falhas a serem superadas pelo serviço, sendo os inquéritos de base populacional as fontes de informação mais confiáveis. O objetivo deste estudo foi estimar a cobertura vacinal da hepatite A em crianças com idade de 24 meses e identificar fatores associados à ausência de vacinação.
MÉTODOS
Trata-se de um inquérito epidemiológico domiciliar de base populacional que integra o Inquérito Nacional de Cobertura Vacinal (INCV),1212 Barata RB, Franca AP, Guibu IA, Vasconcellos MTL, Moraes JC, Grupo ICV, et al. National Vaccine Coverage Survey 2020: methods and operational aspects. Rev Bras Epidemiol. 2023;26:e230031. realizado nas cinco regiões do Brasil. Esse recorte do estudo avaliou a cobertura da vacina contra hepatite A em crianças nascidas vivas em 2017 e 2018, residentes em 26 capitais e no Distrito Federal, segundo registros do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc).
A coleta de dados foi realizada entre setembro de 2020 e março de 2022, sendo respeitado o distanciamento físico devido à pandemia de covid-19.
Informações detalhadas do cálculo amostral e coleta de dados foram descritas em estudo metodológico por Barata et al.1212 Barata RB, Franca AP, Guibu IA, Vasconcellos MTL, Moraes JC, Grupo ICV, et al. National Vaccine Coverage Survey 2020: methods and operational aspects. Rev Bras Epidemiol. 2023;26:e230031. Resumidamente, o tamanho da amostra por inquérito foi calculado considerando os seguintes parâmetros: efeito do desenho de 1,4; prevalência estimada de cobertura vacinal de 70%; erro de estimativa de 5%; e z de 1,96 para intervalo de confiança de 95%. Assim, foram necessárias 452 crianças por inquérito. Considerando-se a heterogeneidade de coberturas vacinais nas capitais, em cada cidade foram realizados de um a quatro inquéritos, dependendo do número de nascidos vivos registrados no Sinasc em 2017 e 2018. Para fins de comparação, o tamanho da amostra foi dividido de forma a se garantir o mesmo número de crianças por estrato socioeconômico.
Para definição dos estratos socioeconômicos, foram utilizados todos os setores censitários urbanos de cada cidade, segundo as informações do censo demográfico de 2010.1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010. Resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. [acessado em 17 de maio de 2023]. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados
https://censo2010.ibge.gov.br/resultados... Assim, em cidades onde foi realizado apenas um inquérito, como Porto Velho, o número de crianças por estrato foi 113. Já em cidades como São Paulo, onde foram realizados quatro inquéritos, o número de crianças por estrato foi 452. Para a classificação dos setores, considerou-se renda média dos responsáveis pelo domicílio, proporção de responsáveis alfabetizados e proporção de responsáveis com renda maior ou igual a 20 salários mínimos. Os estratos sociais foram classificados de A a D, com base no nível de consumo das famílias, os pontos de corte estabelecidos pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa,1414 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério de classificação econômica Brasil. [Internet]. 2019. [citado em 9 de abril de 2024]. Disponível em: https://www.abep.org/criterio-brasil
https://www.abep.org/criterio-brasil... critério Brasil: estrato A, alto (42 pontos e mais); estrato B, médio (27 a 41 pontos); estrato C, baixo (16 a 26 pontos); e estrato D, muito baixo (< 16 pontos).
Foram utilizados dois instrumentos de coleta: questionário estruturado com perguntas fechadas e fotografia da caderneta de vacinação. O questionário foi composto por blocos de questões, que para este estudo foram considerados os dados sociodemográficos da criança; dados reprodutivos e sociodemográficos da mãe; dados do domicílio e renda da família; e dados transcritos da caderneta da vacinação (doses válidas aplicadas e data da aplicação) do PNI e do setor privado. Foram consideradas doses válidas (entre 12 e 24 meses) as aplicadas no intervalo e data correta e/ou em intervalos em torno da data prevista.
A cobertura vacinal foi definida como o percentual de crianças que receberam a vacina contra hepatite A, calculado de acordo com as doses válidas. Para fins deste estudo, considerou-se no numerador o número de crianças nascidas em 2017 e 2018 que receberam a vacina contra hepatite A, e no denominador o total de crianças nascidas vivas no mesmo período nas áreas urbanas das capitais brasileiras.
A análise das características associadas à ausência de vacinação contra hepatite A nos estratos sociais abrangeu variáveis fundamentais para a compreensão dos fatores subjacentes ao evento. As variáveis associadas à ausência de vacinação contra hepatite A, relativas às crianças, foram sexo (feminino, masculino), ordem de nascimento (número de ordem de nascimento da criança entre os filhos), raça/cor da pele da criança (branca, preta, parda, amarela e indígena), frequentar creche/escola (sim; não) e recebimento da Bolsa Família (sim; não). A variável associada à ausência de vacinação contra hepatite A relativa às famílias foi a renda familiar (expressa em R$: até R$ 1.000,00; de R$ 1.001,00 a R$ 3.000,00; de R$ 3.001,00 até R$ 8.000,00; mais de R$ 8.000,00). As variáveis maternas ou relativas ao responsável foram escolaridade (fundamental I completo ou fundamental incompleto; fundamental II completo ou médio incompleto; ensino médio completo ou superior incompleto; superior completo ou acima), idade no momento do nascimento da criança (< 20 anos; 20 - 34 anos; ≥ 35 anos), raça/cor da pele (branca, preta, parda, amarela e indígena), o exercício de trabalho remunerado (sim; não), a condição de imigrante do responsável (não; sim) e a situação conjugal da mãe (com companheiro estável; sem companheiro estável).
Análise dos dados
Conforme descrito detalhadamente por Barata et al.,1212 Barata RB, Franca AP, Guibu IA, Vasconcellos MTL, Moraes JC, Grupo ICV, et al. National Vaccine Coverage Survey 2020: methods and operational aspects. Rev Bras Epidemiol. 2023;26:e230031. por ser uma amostra complexa, pesos amostrais foram calculados para cada domicílio entrevistado, de modo a permitir a estimação sem viés dos parâmetros de interesse da população. Esse procedimento ocorreu em duas etapas: inicialmente foram obtidos pesos amostrais básicos (inverso das probabilidades de inclusão dos domicílios entrevistados), e a seguir, esses pesos foram calibrados para totais populacionais conhecidos. Para tanto, utilizaram-se os dados mais relevantes, ou seja, a vacinação das crianças e os possíveis motivos de ausência de vacinação. O software Stata versão 17, módulo survey data analysis, foi utilizado para a análise dos dados. A cobertura vacinal da hepatite A geral, por região do Brasil e por estrato social, foi estimada com seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Para identificar potenciais variáveis explanatórias de ausência de vacinação para hepatite A, dois subgrupos foram considerados para análise: estratos A/B e estratos C/D. Inicialmente, análise bivariada foi realizada para identificação de potenciais variáveis associadas à ausência de vacinação da hepatite A. A seguir, as variáveis que apresentaram valor de p < 0,20 foram incluídas em modelos de regressão de Poisson multivariada. A-Link Test foi utilizado para avaliar a qualidade dos modelos finais. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Aspectos éticos
O inquérito foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (parecer 3.366.818, em 4/6/2019, Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 4306919.5.0000.5030), e da Irmandade da Santa Casa de São Paulo (parecer 4.380.019, de 4/11/2020, CAAE 39412020.0.0000.5479). Antes de iniciar o estudo, os coordenadores locais comunicaram às autoridades de imunização estaduais e municipais sobre a pesquisa. Os entrevistados (pais ou responsáveis) deram consentimento por escrito e permitiram fotografar as cadernetas de vacinação. A coleta de dados ocorreu somente após a autorização dos responsáveis, garantindo a confidencialidade. O banco de dados utilizado excluiu informações de identificação.1212 Barata RB, Franca AP, Guibu IA, Vasconcellos MTL, Moraes JC, Grupo ICV, et al. National Vaccine Coverage Survey 2020: methods and operational aspects. Rev Bras Epidemiol. 2023;26:e230031.
RESULTADOS
Um total de 33.032 crianças foram recrutadas e elegíveis para o estudo e 31.001 crianças participaram do estudo, representando uma perda de 6,15% da amostra inicialmente recrutada. As perdas ocorreram por recusas, insucesso após três tentativas de visita do entrevistador, em horários e dias diferentes, e número previsto de criança, nos conglomerados sorteados inferior ao previsto. A Figura 1 apresenta a cobertura da vacina contra hepatite A na coorte de crianças nascidas em 2017 e 2018, no Brasil e regiões. A cobertura total da vacina hepatite A foi de 88,1% (IC95% 86,8;89,2), variando de 86,5% (IC95% 84,0;88,7), na região Norte, a 90,7% (IC95% 87,793,0), na região Sul.
Cobertura da vacina contra hepatite A em crianças com 24 meses de idade (n = 31.001), residentes nas capitais, de acordo com a região do Brasil, 2020-2021
A Figura 2 apresenta as coberturas da vacina contra hepatite A no Brasil, segundo estrato socioeconômico. Os estratos C (89,4%) e D (88,8%) apresentaram maiores coberturas do que os estratos A (84,6%) e B (85,6%) (p = 0,032).
Cobertura da vacina contra hepatite A em crianças com 24 meses de idade (n = 31.001), residentes nas capitais, segundo estrato socioeconômico, Brasil, 2020-2021
Nos estratos A e B, crianças cujos responsáveis eram imigrantes estrangeiros apresentaram prevalência 1,91 vez maior de ausência de vacinação quando comparadas às que estavam sob os cuidados de responsáveis brasileiros. Por outro lado, em crianças de mães pretas e pardas, as ausências de vacinação foram 66% e 33% menores, respectivamente, comparadas às crianças de mães brancas (Tabela 1).
Frequência, razão de prevalência (RP) bruta e ajustada e intervalo de confiança de 95% (IC95%) da ausência de vacinação contra hepatite A em crianças brasileiras de 24 meses (n = 31.001) e suas mães nos estratos sociais A/B, Brasil, 2020-2021
A análise multivariável dos dados das crianças dos estratos C e D revelou que crianças de raça/cor da pele amarela apresentaram prevalência quase cinco vezes maior de ausência de vacinação contra hepatite A comparadas às de raça/cor da pele branca. Observou-se que, à medida que a ordem de nascimento aumentou, como a do segundo filho (RP = 1,31; IC95% 1,05;1,64), do terceiro (RP = 1,54; IC95% 1,11;2,13) e do quarto filho ou mais (RP = 1,68; IC95% 1,06;2,66), as prevalências de ausência de vacinação foram maiores em comparação com as crianças primogênitas. Crianças que não frequentavam creche/berçário e aquelas cujas mães possuíam trabalho remunerado apresentaram, respectivamente, prevalências aumentadas de 1,67 e 1,42, respectivamente, em comparação com aquelas que não possuíam tais características (Tabela 2).
Frequência, razão de prevalência (RP) bruta e ajustada e intervalo de confiança de 95% (IC95%) da ausência de vacinação contra hepatite A em crianças brasileiras de 24 meses (n = 31.001), residentes em 26 capitais e no Distrito Federal, e suas mães, nos estratos sociais C/D, Brasil, 2020-2021
DISCUSSÃO
Esta investigação representa os primeiros dados primários de cobertura vacinal de hepatite A do estudo de base populacional, com análise estratificada por regiões do Brasil e estratos sociais, além de identificar os fatores associados à ausência da vacinação. Todas as regiões do país apresentaram cobertura vacinal da hepatite A abaixo da meta estabelecida pelo Ministério da Saúde, sendo os estratos socioeconômicos mais altos os que apresentaram as menores taxas de cobertura.
Algumas limitações devem ser consideradas na interpretação dos resultados apresentados. O estudo foi realizado em áreas urbanas e pode não representar as crianças do país, da coorte estudada, embora represente uma parcela significativa. Utilizou-se o Censo Demográfico 2010 para definição dos estratos socioeconômicos, e mudanças urbanas, ao longo dessa década, podem ter ocorrido, mas os dados sociodemográficos do nível familiar ajudaram a mitigar essa limitação. Observou-se uma proporção elevada de mães com idade igual ou superior a 35 anos e nível superior completo, sugerindo viés de seleção. No recorte do presente estudo, idade e escolaridade da mãe não foram associadas a ausência de vacinação contra hepatite A nas análises múltiplas, sugerindo baixo impacto nos resultados. A despeito das limitações, o presente estudo incluiu todas as regiões do país com tamanho amostral robusto e apresenta rigor metodológico.
A estimativa de cobertura vacinal da hepatite A observada neste estudo foi acima das médias históricas de cobertura dos anos anteriores, sugerindo sub-registro de dados no Sistema de Informação do PNI.99 Brito WI, Souto FJD. Universal hepatitis A vaccination in Brazil: analysis of vaccination coverage and incidence five years after program implementation. Rev Bras Epidemiol. 2020;23:e200073. Embora variações regionais tenham sido observadas, as diferenças não foram estatisticamente significativas, ainda que essas coberturas vacinais tenham sido aquém da meta desejável, de 95%, em todas as regiões. Notavelmente, a região Norte, considerada região de endemicidade elevada para hepatite A,22 Ximenes RA, Martelli CM, Amaku M, Sartori AM, de Soarez PC, Novaes HM, et al. Modelling the force of infection for hepatitis A in an urban population-based survey: a comparison of transmission patterns in Brazilian macro-regions. PLoS One. 2014;9(5):e94622. apresentou a menor cobertura vacinal para esta vacina.
O declínio da cobertura vacinal no Brasil é multifatorial, incluindo mudanças no sistema de registro das vacinas, redução de investimento no setor de saúde e ascensão do movimento antivacina suportado por disseminação de desinformação.1515 Domingues CMAS, Fantinato FFST, Duarte E, Garcia LP. Vacina Brasil e estratégias de formação e desenvolvimento em imunizações. Epidemiologia e Serviços de Saúde. 2019;28(2):e20190223. O cenário atual foi impactado pelo desabastecimento ocasional de imunizantes, decorrente de dificuldades na produção, e por desafios operacionais que afetaram a execução adequada dos programas de vacinação.1616 Domingues CMAS, Maranhão AGK, Teixeira AM, Fantinato FFS, Domingues RAS. The Brazilian National Immunization Program: 46 years of achievements and challenges. Cad. Saúde Pública 2020;36(Sup 2):e00222919.
Os estratos sociais A/B, mais favorecidos economicamente, apresentaram coberturas vacinais contra hepatite A inferiores àquelas dos estratos C/D, menos favorecidos. Acredita-se que as altas coberturas vacinais do PNI até meados da década de 2010, reduziram/eliminaram várias infecções infantis, e podem ter levado a uma falsa sensação de segurança dos pais em relação à saúde de seus filhos.1717 Queiroz LL, Monteiro SG, Mochel EG, Veras MA, Sousa FG, Bezerra ML, et al. [Coverage of the basic immunization schedule in the first year of life in State capitals in Northeast Brazil]. Cad Saude Publica. 2013;29:294-302. O aumento da adesão ao movimento antivacina nas classes mais privilegiadas têm contribuído para a redução das taxas de vacinação dentro desses estratos.1818 Buffarini R, Barros FC, Silveira MF. Vaccine coverage within the first year of life and associated factors with incomplete immunization in a Brazilian birth cohort. Arch Public Health. 2020;78:21.
O aumento da cobertura vacinal nas classes menos privilegiadas economicamente pode ser atribuído, principalmente, à abrangente atuação da Estratégia Saúde da Família (ESF) e ao acesso facilitado aos estabelecimentos de saúde. Essa iniciativa expandiu significativamente a oferta de medidas preventivas, com foco especial nas comunidades mais vulneráveis.1717 Queiroz LL, Monteiro SG, Mochel EG, Veras MA, Sousa FG, Bezerra ML, et al. [Coverage of the basic immunization schedule in the first year of life in State capitals in Northeast Brazil]. Cad Saude Publica. 2013;29:294-302. As equipes da ESF desempenham um papel ativo no acompanhamento das famílias, monitorando a saúde das crianças, fornecendo orientações sobre a importância da imunização e garantindo a adesão ao calendário de vacinação.1919 Fernandes AC, Gomes KR, de Araujo TM, Moreira-Araujo RS. Analysis of vaccination status of preschool children in Teresina (PI), Brazil. Rev Bras Epidemiol. 2015;18:870-82. O Programa Bolsa Família, uma estratégia fundamental na transferência de renda, desempenha um papel ímpar na promoção da saúde infantil e na garantia da vacinação, ao estabelecer condicionalidades de saúde que incluem a atualização do calendário de vacinação.2020 Silva FS, Queiroz RCS, Branco M, Simoes VMF, Barbosa YC, Rodrigues M, et al. Bolsa Familia program and incomplete childhood vaccination in two Brazilian cohorts. Rev Saude Publica. 2020;54:98.
Analisou-se o efeito de possíveis características sociodemográficas na baixa cobertura vacinal da hepatite A, considerando-se em conjunto os estratos sociais A/B e C/D.
Para os estratos A/B, a cor da criança não influenciou na cobertura vacinal da hepatite A, mas a cor da mãe exerceu um papel protetor. Crianças de mães pretas e pardas apresentaram prevalências de ausência de vacinação 66% e 33%, respectivamente, menores de vacinação comparadas às de mães brancas. Contudo, deve-se ressaltar que, dentro desses estratos, observa-se uma diferença na distribuição de renda entre as famílias de crianças de mães pretas e pardas e mães brancas. Uma proporção menor de famílias com mães de raça/cor da pele preta e parda (13,6%) tinha renda superior a R$ 8.000,00 em comparação com as famílias de mães brancas (44,8%) (dados não apresentados), corroborando os achados de melhores coberturas vacinais em famílias de menor renda.
Observou-se nos estratos A/B que ser criança sob a responsabilidade de imigrantes foi um fator associado à ausência de vacinação contra hepatite A. Essa relutância em relação à vacinação entre os imigrantes pode ser atribuída a vários fatores, como o receio e a desinformação sobre possíveis efeitos adversos das vacinas, falta de conhecimento sobre as doenças, desconfiança nos sistemas de saúde dos países anfitriões, barreiras linguísticas e influência das crenças e da mídia de seus países de origem.2121 Wilson L, Rubens-Augustson T, Murphy M, Jardine C, Crowcroft N, Hui C, et al. Barriers to immunization among newcomers: A systematic review. Vaccine. 2018; 36:1055-62.
Em consonância com os achados nos estratos A/B, questões migratórias parecem perpassar também os estratos sociais menos favorecidos. A prevalência de crianças de raça/cor da pele amarela não vacinadas para hepatite A foi significativamente maior, cerca de cinco vezes, quando comparadas às de cor branca. Embora as razões para as disparidades étnicas na cobertura vacinal fujam do escopo deste trabalho, pode-se sugerir que famílias de origem asiática desempenham um papel na moldagem das atitudes dos pais em relação à importância das vacinas. Essa influência inclui fatores culturais e religiosos que podem impactar diretamente a decisão de vacinar suas crianças.2222 Forster AS, Rockliffe L, Chorley AJ, Marlow LAV, Bedford H, Smith SG, et al. Ethnicity-specific factors influencing childhood immunisation decisions among Black and Asian Minority Ethnic groups in the UK: a systematic review of qualitative research. J Epidemiol Community Health. 2017;71:544-9. Deve-se ressaltar que, nas últimas duas décadas, houve aumento significativo do fluxo migratório de pessoas de várias origens no Brasil,2323 Cavalcanti L, Oliveira T, Silva BG. Relatório Anual 2021. 2011-2020: Uma década de desafios para a imigração e o refúgio no Brasil. Migrações. Brasília: Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral; 2021. sendo desejável estudos adicionais para avaliar o impacto da imigração na hesitação vacinal no país.
A ausência de vacinação contra hepatite A foi mais frequente em crianças de mães com trabalho remunerado. Em uma sociedade predominantemente patriarcal, como no Brasil, o cuidado dos filhos é majoritariamente delegado às mães.2424 Faverin E, Corrêa RD, Caroza R, Lima FMF, Marcomini I, Sobreira L, et al. Hegemonia do patriarcado numa perspectiva etológica e outros sistemas sociais contemporâneos. Psicologia USP. 2022;33:e220039. No entanto, para as mães que possuem trabalhos remunerados, a disponibilidade de horário para levar os filhos às unidades de saúde para consultas de rotina e vacinação, muitas vezes, não converge com os horários de funcionamentos das unidades de saúde, favorecendo a hesitação vacinal.2525 Garcia CF, Viecili J. Implicações do retorno ao trabalho após licença-maternidade na rotina e no trabalho da mulher. Fractal, Rev Psicol. 2018;30:271-80.,2626 Almeida LS. Mãe, cuidadora e trabalhadora: as múltiplas identidades de mães que trabalham. Revista do Departamento de Psicologia UFF. 2007;19:411-22. Gestores públicos deveriam reavaliar horários e dias de funcionamento das salas de vacina e outras estratégias, como a vacinação no ambiente escolar, para mitigar a hesitação vacinal.2727 Ueda M, Kondo N, Takada M, Hashimoto H. Maternal work conditions, socioeconomic and educational status, and vaccination of children: a community-based household survey in Japan. Prev Med. 2014;66:17-21.,2828 Liu X, Yang C, Qu X, Li N, Huang X, Yang Y, et al. Vaccination coverage and its determinants of live attenuated hepatitis A vaccine among children aged 24-59 months in 20 rural counties of 10 provinces of China in 2016. Hum Vaccin Immunother. 2020;16:1574-8.
Crianças que não frequentavam creches nos estratos C/D apresentaram menor cobertura vacinal do que as que frequentavam. No Brasil, a matrícula em creches ou berçários requer a apresentação da caderneta de vacinação atualizada, com os registros das vacinas recomendadas pelo PNI. 2929 de Silveira AS, da Silva BM, Peres EC, Meneghin P. [Immunization control and student registration at the city of São Paulo’s Municipal Schools of Infantile Education]. Rev Esc Enferm USP. 2007;41:299-305. Essa política pública é eficaz e muito provavelmente tem um impacto positivo na cobertura vacinal das crianças, especialmente nos estratos socioeconômicos mais baixos.2929 de Silveira AS, da Silva BM, Peres EC, Meneghin P. [Immunization control and student registration at the city of São Paulo’s Municipal Schools of Infantile Education]. Rev Esc Enferm USP. 2007;41:299-305. Ela não apenas incentiva a vacinação, mas contribui para a proteção das crianças contra doenças evitáveis por meio da imunização, garantindo um acesso mais igualitário à saúde e à educação.
Independentemente do estrato social, observou-se uma redução gradativa na cobertura vacinal da hepatite A de acordo com a ordem de nascimento. Em famílias com dois ou mais filhos, é possível que os pais dediquem menos tempo no cuidado ao segundo ou aos filhos subsequentes, e a sensação de segurança proporcionada pela ausência de doenças imunopreveníveis no primogênito e em seu entorno social pode favorecer despreocupação em relação ao cumprimento do calendário vacinal, resultando em taxas de vacinação mais baixas para os demais filhos.2424 Faverin E, Corrêa RD, Caroza R, Lima FMF, Marcomini I, Sobreira L, et al. Hegemonia do patriarcado numa perspectiva etológica e outros sistemas sociais contemporâneos. Psicologia USP. 2022;33:e220039.
Os achados deste estudo mostram que a cobertura da vacina contra hepatite A está abaixo da meta desejável (95%) em todas as regiões do país. Fatores socioeconômicos distintos contribuem para a ausência de vacinação nos estratos A/B e C/D, e devem ser considerados na construção de estratégias públicas que revertam a baixa frequência de crianças vacinadas, visando ao alcance da meta de cobertura vacinal estabelecida pelo PNI. A pandemia de covid-19 agravou ainda mais essa situação. Os dados administrativos de cobertura vacinal após o início da pandemia são preocupantes, com taxas da vacina contra hepatite A atingindo 75% em 2020 e 67% em 2021.3030 Campos FE, Bonolo PF, Girardi SN. Pesquisa nacional sobre cobertura vacinal, seus múltiplos determinantes e as ações de imunização nos territórios municipais brasileiros - ImunizaSUS. Belo Horizonte, MG: Núcleo de Educação em Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, 2023.
Apesar de a cobertura vacinal ainda ser baixa, como também evidenciado em outros países,99 Brito WI, Souto FJD. Universal hepatitis A vaccination in Brazil: analysis of vaccination coverage and incidence five years after program implementation. Rev Bras Epidemiol. 2020;23:e200073. a introdução da vacina contra hepatite A resultou em uma redução significativa no número de casos notificados da doença, bem como de seus desfechos secundários (mortalidade, transplantes hepáticos e hepatite fulminante) nos anos seguintes, com ênfase em crianças e adolescentes.1010 Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Hepatites Virais 2023. Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Ministério da Saúde 2023. p. 83. ISSN 9352-7864.
Tais avanços podem retroceder, caso não haja esforço significativo dos gestores para fortalecer as ações de vacinação do PNI, incluindo uma melhoria das estratégias de comunicação para combater à disseminação de informações errôneas sobre a eficácia e segurança das vacinas.
FINANCIAMENTO
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ‒ Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde – Processo nº 404131 (Inquérito de Cobertura Vacinal).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
21 Out 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
7 Jan 2024 - Aceito
23 Maio 2024